PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Verde-amarelo: O Brasil, o futebol e uma cultura comum.
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A Teoria de Raymond Williams e a copa do mundo no Brasil, 2014 .
Francisco Silva Mitraud2
PPGCOM- Escola Superior de Propaganda e Marketing
Resumo
Partindo das contribuições teóricas de Raymond Williams, o presente artigo reflete sobre o
uso do verde e amarelo durante a copa do mundo de 2014 no Brasil, como traço de uma
cultura comum que atravessa as barreiras de classe, gênero, gerações e etnias. Não obstante o
momento singular que vive o país desde junho de 2013, a mobilização em torno do evento
frustrou as expectativas mais pessimistas que apostavam no fracasso da copa e, acima de
tudo, demonstrou, à partir do consumo de símbolos, a permanência e imanência de um
nacionalismo por todo o território. O consumo assume assim uma dimensão comunicacional e
narra uma brasilidade comum a todos os brasileiros.
Palavras-chave: Raymond Williams, copa do mundo, cultura comum, verde e
amarelo.
Introdução
A copa é um evento superlativo. É mundial, mobiliza bilhões de pessoas,
atrai as maiores corporações do planeta, movimenta bilhões de dólares, convoca todas
as principais redes de comunicação, em todos os países. Talvez por isso, pode ser
considerado o maior fato social total da atualidade, para usar uma expressão de
Marcel Mauss, para quem, “os fatos que estudamos são todos, [...], fatos sociais totais
[...]; isto é, põem em movimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas
instituições...” (MAUSS, 1974, p. 179).
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Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5– Comunicação, Consumo e Novos fluxos políticos, do
4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
22 Doutorando do PPGCOM- ESPM, sob orientação da Profa. Dra. Maria Isabel Orofino, e-mail:
Doutorando do PPGCOM- ESPM, sob orientação da Profa. Dra. Maria Isabel Orofino, e-mail:
[email protected]
[email protected]
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Tivemos a oportunidade de estar na primeira metade da copa de 2014
assistindo aos jogos em 5 países da Europa e pudemos constatar e registrar os mesmos
movimentos em todos os lugares: uma cobertura atenta e priorizada pela imprensa,
uma grande mobilização popular, que na hora das partidas se reúne em bares,
restaurantes e praças públicas; e o apelo ao consumo à partir dos símbolos que
circulavam nesse contexto (a seleção de cada país, as cores da bandeira e vários
ligados ao país sede, o Brasil).
Não obstante, ele ocorreu em nosso país num momento singular. Muito
embora há décadas se esperasse que o evento acontecesse em nosso território, sua
realização foi precedida por várias manifestações contrárias à sua realização. Nas
redes sociais, por exemplo, grupos se organizavam em torno do apelo “não vai ter
copa” , promoviam marchas e protestos
nas ruas, antes e durante o evento 3,4 .
Organizações populares, como por exemplo, o Comitê popular da copa5, da mesma
forma aproveitaram o momento para reivindicar moradia, educação, transporte, etc. A
imprensa conservadora apostava no fracasso e, de muitas maneiras, procurava
promover e espalhar a sensação de que o caos reinaria. Na edição de 01 de junho de
2014, o Estado de São Paulo estampava como manchete na primeira página: “Black
blocs prometem caos na copa e contam com ajuda do PCC”. Nos dias e semanas
seguintes ao início da copa, essa mesma imprensa tratava de destacar o lado sombrio,
seja registrando as vaias que a Presidente Dilma levara 6 , seja amplificando a
fatalidade da queda de um viaduto em Belo Horizonte, ao dizer que “o acidente, cujas
as imagens deram a volta ao mundo, expõe uma das fragilidades da organização”7.
3
Disponível em https://www.facebook.com/pages/NÃO-VAI-TER-COPA/659281940763018,
acesso em 18/07/2014.
4
Disponível em http://www.brasilpost.com.br/news/nao-vai-ter-copa/, acesso em 18/07/2014.
5
Disponível em http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/2013/07/movimentossociais-e-moradores-da.html, acesso 18/07/2014.
6
Capa da Revista Veja, edição de 18/06/2014.
7
Artigo “Um gol contra da vida real”- Revista Veja, edição de 09 de julho de 2014, página
71.
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Nenhuma das catastróficas previsões se cumpriu. A copa transcorreu dentro
da normalidade. É fato, houve protestos e manifestações. Porém, isso não tirou o
brilho da festa, a alegria dos turistas, a gentileza dos brasileiros, os estádios lotados, e
todos os olhos do mundo sobre nosso país. Apenas a título de exemplo, destacamos
alguns destaques na impressa logo após a copa. O site do Globo esporte, no dia 13/7,
destacou o elogio de jogadores estrangeiros à copa: O” Brasil não foi esquecido nas
saudações dos jogadores. Não pela campanha da seleção brasileira, mas pelo sucesso
na realização da maior competição de futebol do planeta”8. O portal G1 fez um
balanço da copa no dia 14/7 e destacou os principais pontos positivos da copa: a
hospitalidade brasileira, uma boa infraestrutura hoteleira, alimentação farta e
diversificada, o sistema de transporte e o trânsito, aeroportos mantiveram sua
normalidade, apesar do aumento de voos e passageiros,, o incremento do turismo, que
segundo estimativas movimentou mais de R$ 1 bilhão, entre outros9. A Revista Carta
Capital de 2/7 destacou na seção Seu País (págs. 28 a 31): “O pessimismo goleado. A
organização eficaz e entusiasmo popular derrotam as previsões sombras. A Revista
Veja, que muito antes do início da copa já tecia duras críticas à organização e
prenunciava um fracasso geral, apesar de encerrar a manchete com ironia, estampa em
sua capa de 25 de junho de 2014: “Só alegria até agora. Um festival de gols nos
gramados, menos pessimismo nas pesquisas, consumo, visitantes em festa e o melhor
e aproveitar, pois legado duradouro esqueça.
Mas, das diversas perspectivas, dos diversos possíveis olhares que possamos
colocar sobre esse momento, há um em particular que nos chama a atenção. De norte
a sul do território, perpassando todas as classes sociais, derrubando todas as barreiras
econômicas, raciais, de gênero e de gerações, salta-nos à percepção uma adesão
massiva ao uso de símbolos que representam o pais. Nas favelas, nos assentamentos
ou nos condomínios de luxo, bares, shoppings, milhões de pessoas trajando peças de
8
Disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/07/o-legadojogadores-admitem-sucesso-da-copa-e-saudam-o-anfitriao-brasil.html, acesso em 27/07/2014;
9
Disponível em http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/07/o-que-deu-certo-e-o-que-deuerrado-na-copa-do-mundo-2014-no-brasil.html, acesso 27/07/2014;
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) vestuário com as cores nacionais. Parece-nos um encontro da sociedade consigo
mesma, um diálogo à partir de uma linguagem estética, do povo com o povo, uma
certa afirmação de um vínculo social esquecido, que muitos querem afirmar
inexistente.
O objetivo desse artigo é refletir, no momento singular que vive o Brasil,
sobre a existência de uma identidade nacional que se manifesta exatamente à partir do
consumo de símbolos nacionais. Para isso, queremos mobilizar conceitos da escola
dos Estudos Culturais britânicos, principalmente à partir de Raymond Williams e de
sua contribuição à construção do Materialismo Cultural.
A Cultura para Raymond Willians
Raymond Williams nasceu em Pandy, um pequeno vilarejo do País de Gales.
Filho de um ferroviário, cresceu num ambiente humilde, que ele mesmo retrata em
alguns de seus textos. Lembra de seu avô paterno, dizendo que os filhos dele iam
trabalhar como roceiros nas fazendas da região e suas filhas, como empregadas
domésticas (WILLIAMS, 1989, p. 3). Estuda como bolsista em Cambridge, e,
depreende-se de seu registro, ser bolsista era um lugar de privilégio. Reconhece que
poucos pobres – pobres merecedores – para usar sua expressão10, conseguiam acesso
a educação e ele não se sentia feliz por ser um desses merecedores, já que não se
considerava nem melhor, nem pior que ninguém. E foi à partir de sua formação em
Cambridge, a ligação de seu avô, pai e vizinhos com o partido trabalhista inglês, que
ele constrói suas próprias convicções marxistas. Com elas, Williams enfrenta
principalmente as velhas teorias da literatura inglesa, que só valorizavam o canônico,
10
Em tradução livre de “[…] It is still very obvious that only the deserving poor get much
educational opportunity […] (WILLIAMS, 1989, p. 7) – grifo do autor.
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) fazendo com isso também uma crítica interna ao marxismo, o que se constituiu em
uma grande contribuição para a atualização desse paradigma.
Nosso autor reconhecia que ele se diferenciara da classe trabalhadora inglesa,
vivendo e estudando em Cambridge. Contudo, ele continuou a apreciar o modo de
vida que os trabalhadores e suas famílias compartilhavam, convivendo nos bairros,
ajudando-se mutuamente, cultivando o sentido de comunidade; valores que ele
considerava serem “a melhor base para uma sociedade inglesa futura” 11 . Sua
formação multicultural - cresceu num ambiente rural, no interior do País de Gales, sua
família, principalmente seu pai, esteve engajada no partido trabalhista britânico, na
luta por uma sociedade socialista mais justa, e a efervescência intelectual de
Cambridge – forjaram um pensador privilegiado, que soube como poucos conjugar
sua origem com a teoria marxista clássica.
Como dito, ele fora bolsista na Universidade de Cambridge, mas não se
sentia oprimido ou desconfortável num ambiente majoritariamente burguês
(WILLIANS, 1989, p. 5), pois todos, diz ele, deveriam ter esse acesso. As artes, a
educação são parte dos desejos de todos, era sua convicção. O conhecimento deve
pertencer a todos, independente de classe social. Mas, algo ali refletia, mais do que
tudo, as diferenças sociais, a privação dos mais pobres, sobretudo a privação ao
acesso à educação, e isso mexia com seus princípios e suas convicções, herdadas de
seu pai e construídas ao longo de sua vida: a sala de chá, onde pseudointelectuais
empedernidos exibiam um tipo de cultura que ele desaprovava – um certo exercício e
exposição da aparência burguesa em si mesma, que expunha de forma clara a
distância entre o ter e o ser; entre um lugar de merecimento, o lugar burguês, e os
demais. Ali ficava claro que as classes trabalhadoras eram inferiores, ou para usar
uma expressão de seus amigos, muitos comunistas inclusive, dos quais faz questão de
11
Segundo Williams (1989, p. 8), “There is a distinct working class way of life, which I for
one value – not only because I was bred in it, for I now, in certain respects, live differently. I
think this way of life, with its emphases of neighborhood, mutual obligation, and common
betterment, as expressed in the great working-class political and industrial institutions, is in
fact the best basis for any future English society (grifo nosso).
5
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) registrar a discordância, as massas ignorantes (idem, p. 7). Ali se materializava o
conceito estabelecido de que as formas de produção de uma sociedade determinam
seus valores, sua visão de mundo, sua cultura, e justificam a existência de uma classe
superior e de uma cultura superior.
Williams critica essa posição teórica. Ele rechaça a ideia de que a cultura é
apenas uma esfera superestrutural, determinada pelos modos de produção
infraestruturais. Faz críticas contundentes a esse reducionismo econômico, conforme
bem demonstrou Maria Isabel Orofino:
O maior problema desta concepção cultural dominante no marxismo
foi a redução do conceito de cultura à dimensão superestrutural,
excluindo-se a própria dimensão material dos processos e práticas
culturais e a ideia de que as atividades simbólicas são apenas o
resultado mecânico de uma realidade material particular. (2006, p. 75,
grifos da autora).
Williams discorda também do pensamento marxista ortodoxo, de que uma
“cultura de dominação deliberadamente restringia uma herança comum a uma
pequena classe, deixando as massas ignorantes12. Ele reconhece que há um modo
burguês, instituições burguesas, mas que isso não significa absolutamente que a vida
contemporânea seja exclusivamente uma manifestação da cultura de classes
dominantes. As classes trabalhadoras possuem um modo distinto de vida e esse modo
particular de viver, a cultura que representam, compõe a cultura de uma sociedade
também. Porque a cultura é ordinária, pertence a todos e está em todos os lugares. É
um reducionismo afirmar que a indústria cultural irá homogeneizar as massas,
difundir uma cultura comum a todos. Também é errado, segundo o autor, desejar que
o socialismo produza, da mesma forma, uma única forma de pensar, agir e produzir
arte. A cultura de uma sociedade não é a herança de uma determinada classe,
tampouco fruto da luta entre as classes, mas é construída à partir da multiplicidade de
relações, da complexidade das negociações entre as culturas residuais, emergentes e
12
Em tradução livre: It was said that it was a class-dominated culture, deliberately restricting
a common inheritance to a small class, while leaving the masses ignorant”(idem, p. 7) 6
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) dominante (WILLIANS, 2011b) e da extensa rede de significados e atividades
comuns de seus membros. A tessitura de uma sociedade se faz por significados,
direções e objetivos comuns, muito embora presentes na multiplicidade, nas
divergências, nos embates. Por essa razão, o autor critica de forma contundente os
marxistas ingleses por sua visão estreita de cultura e propõe:
...os marxistas deveriam, logicamente, usar “cultura” no sentido de todo um
modo de vida, um processo social geral. O ponto não é apenas verbal, pois a
ênfase neste último uso impossibilitaria os procedimentos mecânicos que
critiquei e ofereceria uma base para uma compreensão mais substancial
(WILLIAMS, 2011c, p. 307).
Tal compreensão por parte do autor se deve a articulação de sua teoria com
conceitos de outros teóricos. O primeiro desses conceitos é o da hegemonia,
desenvolvido por Gramsci. Williams compreendia com Gramsci que “em qualquer
sociedade e em qualquer período específicos há um sistema central de práticas,
significados e valores que podemos chamar apropriadamente de dominante” (2011b,
p. 53) e que estão de tal forma diluídos no cotidiano que se constituem como “um
sentido de realidade” (p. 53). Contudo, o autor amplia o escopo de hegemonia ao
afirmar que este não é um sistema estático, e sim um processo dinâmico, que
constantemente se atualiza através da incorporação de outros conjuntos de
significados e práticas residuais e emergentes. Por residual ele entendia algo que,
embora formado no passado, mesmo com alguma distância da cultura dominante,
mantêm-se ativo no presente. Já como emergente, o autor considerava que “ novos
significados, valores, novas práticas e novas relações e tipos de relação estão sendo
continuamente criados” (p. 57). O dominante precisa se atualizar, sob o risco de se
perder. Então, há um contínuo fazer e refazer , uma contínua negociação entre forças
dominantes, residuais e emergentes. Essa é uma ideia muito diferente do tradicional
conceito de ideologia, segundo o qual um determinado modo de vida é imposto de
cima para baixo, das classes dominantes para as mais baixas.
Suas reflexões abarcam também o pensamento Mikhail Bakhtin. A teoria
estruturalista havia conduzido a linguagem também ao patamar superestrutural,
portanto reflexo mecânico, materialização das determinações ideológicas da base.
7
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Bakhtin reformula essa visão e afirma que os sentidos dos signos são construídos na
interação social. Ele resulta de um consenso (BAKHTIN, 2002, p. 44) que é
construído nas relações cotidianas. Naturalmente, isso não ocorre de forma pacífica.
Na verdade, trava-se uma luta pela significação dos signos, cujo objetivo não é apenas
o da imposição coercitiva, mas o da naturalização. A palavra é, portanto, a arena das
lutas, mas também o canal através do qual as conformações ideológicas espraiam-se
naturalizadas, já que a palavra penetra todos os domínios e está presente no cotidiano
dos sujeitos. Ela parte dos sistemas ideológicos e está nas práticas sociais, que
incluem a linguagem, ou seja, a práxis, aqui entendida como uma categoria do
paradigma marxista que expressa a ideia da “teoria em ação”, ou seja, das atividades
humanas como resultado de sua capacidade teleológica. Tendo em vista que a
linguagem é parte integrante desse processo, seja porque o processo mental (ideação)
implica na linguagem verbal, seja porque ela permeia as relações que cercam tais
atividades, a ideia de práxis necessariamente inclui a linguagem. Práxis, em última
análise, significa a palavra em ação. Dessa forma, os sistemas ideológicos se ligam
através das ações humanas e da linguagem ao viver cotidiano. Para Bakhtin,
Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da
religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez
sobre esta, em retorno, uma forte influência, e dão assim normalmente o tom
a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos
constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a
ideologia do cotidiano (2002, p. 119).
Em Marxismo e literatura, Williams reconhece essas concepções e delas se
vale para compor suas próprias, na construção de uma teoria da cultura. Diz ele, que
para Bakhtin, o significado da linguagem
era necessariamente uma ação social, dependente de uma relação social. Mas
entender isso dependia da recuperação de um sentido total do “social”,
distinto tanto de sua redução idealista como um produto herdado e criado
pronto [...]. (2002, p. 119).
8
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Desta forma, num sentido mais geral, defende o autor a ideia de que cultura
se refere mais a um processo de significação, construído exatamente no embate das
relações sociais, na produção da vida. Esta claro para ele que a cultura também é
reprodução, tanto num sentido mais estrito da teoria marxista, mas também num
sentido amplo. Por exemplo, explica o autor, “a linguagem como tal, ou qualquer
língua ou sistema de comunicação não-verbal, só existe na medida em que é passível
de reprodução” (WILLIAMS, 2011a, p. 182). Educação e as tradições são formas de
reprodução. Contudo, na pratica social há espaços para ressignificações, criação de
novos sentidos. Desta forma, há na teoria de Raymond Williams, uma emancipação
das consciências dentro da filosofia marxista. O autor permite, sem se esquecer do
peso e força das estruturas de produção capitalistas, que os sujeitos hajam dentro de
certos limites de autonomia. Usaremos agora esse conceito fundamental para pensar
nas manifestações espontâneas dos brasileiros durante a copa e para afirmar uma
cultura de brasilidade, uma identificação, a despeito das diferenças, como um povo
que possui uma cultura comum.
O consumo de símbolos nacionais como marca de uma cultura comum
Iniciamos nossa reflexão mencionando o momento particular da vida no
Brasil nos anos recentes. Os movimentos de junho de 2013 iniciaram uma onda de
manifestações em todo o país, que, embora em escala muito menor, perduram até os
dia de hoje. Nos dias que antecederam a copa e durante a mesma, protestos
específicos contra sua realização continuaram a ocorrer. O Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto – MTST, cuja estratégia de ocupações urbanas cresceu
consideravelmente em 2014, em seu site oficial vincula algumas ações à copa do
mundo, chamando de Copa do Povo, atividades em Fortaleza e São Paulo13 . A
imprensa, como já dito, bombardeou a organização do evento, antes, durante e depois,
13
Disponível em http://www.mtst.org, acesso em 2207/2014.
9
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) alardeando a corrupção, a desorganização, o despreparo da nação. E, finalmente, mas
não menos importante, é fundamental destacar que a se trata de um evento concebido
e promovido por uma entidade privada. Está sediada em Zurique, na Suíça, é formada
por 209 federações de futebol dos países membros, todas elas entidades privadas,
como é o caso da Confederação Brasileira de Futebol14. Para se ter uma ideia do que
isso significa, basta dizer que a Organização das Nações Unidas possui atualmente
193 países membros15. A receita da FIFA no ano de 2013, último balanço oficial
publicado, foi da ordem de US$ 1.386.000.000,00 (um bilhão, trezentos e oitenta e
seis milhões de dólares)16. Sua exigências quanto à organização geraram e ainda
geram críticas, por sua capacidade de interferir nos ordenamentos jurídicos das
nações, como é o caso, por exemplo, de permitir o consumo de bebidas alcóolicas nos
estádios, durante o evento, o que é proibido pelo Estatuto do Torcedor no Brasil.
Também não foi sem muita negociação que o Brasil fez prevalecer os descontos aos
estudantes e idosos já consagrados na vida nacional.
Como entidade promotora privada, seu nome e sua logomarca estão grafados
em todos os títulos dos torneios. É o caso da FIFA Confederations Cup Brazil 2013 e
a 2014 World Cup FIFA, sempre acompanhados do símbolo de direito autoral
protegido (TM- Trade Mark). E, o que boa parte do senso comum ignora, é que as
seleções não são seleções dos países, mas seleções das federações de futebol, também
entidades privadas. O símbolo nas camisetas dos jogadores não é a bandeira nacional,
mas sim a logomarca da Confederação Brasileira de Futebol (Figura 1).
Figura 1: Logomarca oficial da CBF
14
Como pode ser visto em http://www.fifa.com/aboutfifa/organisation/associations.html,
acesso em 22.07.2014.
15
Informação disponível no site da ONU no Brasil, http://www.onu.org.br/conheca-aonu/paises-membros/, acesso em 22/07/2014.
16
Disponível em
http://www.fifa.com/mm/document/affederation/administration/02/30/12/07/fifafr2013en%5f
neutral.pdf, acesso em 22/07/2014.
10
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Fonte: site da CBF17
Não obstante todo o cenário traçado até aqui, o que se observou durante essa
copa, e todas as demais, é que para a maioria da população brasileira, toda essa
memória é apagada à partir do momento em que a competição tem início.
Jose Fiorin, em artigo que analisa a criação da identidade nacional, cita a
historiadora francesa Anne-Marie Thiesse, para destacar elementos distintivos de uma
identidade nacional.
Uma nação deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais:
uma história, que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais
antigos; uma série de heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua;
monumentos culturais; um folclore; lugares importantes e uma paisagem
típica; representações oficiais como hino, bandeira, escudo; identificações
pitorescas, como costumes, especialidades culinárias, animais e árvoressímbolo (THIESSE, 1999, p. 14, apud FIORIN, 2009, p. 117).
No mesmo artigo, Fiorin demonstra como o esporte futebol é característico
de nossa brasilidade, como representa bem a ginga, o jeito de ser moleque, uma certa
irreverência do brasileiro, moldada à partir das misturas étnicas e culturais que
formam nossa identidade. Acima de tudo, o futebol fala da nossa mestiçagem. Em
suas palavras,
Essa concepção da mistura como o jeito de ser brasileiro apodera-se das
consciência das massas por meio do futebol (MELO, 2006, p. 281-285) e da
música popular (VIANA, 1995). José Lins do Rego (2002) e Mário Filho
(2003), inicialmente, e depois Nélson Rodrigues (1993; 1994) mostram que a
17
Disponível em http://www.cbf.com.br, acesso 22/07/2014.
11
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) mestiçagem é que dá a genialidade do futebol brasileiro (FIORIN, 2009, p.
121).
Pensamos então que, no momento que a seleção brasileira se apresenta, há
uma mobilização dos sentidos mais profundos, de um certo sentimento nacional, que
é capaz de ofuscar, e mesmo ignorar, todo o cenário que poderia ser considerado
como negativo e antagônico ao grande espetáculo da copa. Há um mergulho na
memória coletiva, ou para usar do conceito de Williams, uma convocação, um apelo a
elementos de uma cultura comum. Cultura que atravessa todas as barreiras, mas que
sem dúvida, e de acordo com a teorização de Williams, é construída na dialogia
dessas barreiras, no encontro das classes sociais, no diálogo e negociação entre o
dominante, o residual e o emergente.
Assim, todos os brasileiros consomem os símbolos nacionais, e
particularmente roupas, com o verde e amarelo, e o símbolo da CBF, agora
apropriado e ressignificado pela cultura comum. Seja em comunidades carentes, em
organizações populares, nos blocos de bairros ou agremiações, seja nos bares e
restaurantes, em condomínios de luxo e, obviamente, nos estádios onde joga o time
brasileiro, um mar de camisetas verdes e amarelas, tornam-se símbolo visível da
união social (Fotos 1 a 5). Daniel Miller, um antropólogo que tem estudado a cultura
material, escreve em um de seus livros: “As roupas não são superficiais, elas são o
que faz de nós o que pensamos ser” (2013, p. 22). E, no caso da camiseta verde e
amarela, seu uso se dá com demonstrações de orgulho e paixão, através, por exemplo,
do punho fechado batendo sobre o peito, ou da mão sobre o coração, quando se canta
o hino, ou ainda nos beijos no escudo nela impresso, que como dito, é uma logomarca
privada, mas que o brasileiro toma como símbolo do seu país. Não sem razão,
Stallybrass afirma que “pensar sobre a roupa, sobre roupas, significa pensar sobre
memória, mas também sobre poder e posse” (2012, p. 12). Em nosso caso, na
memória que nos constitui como nação, o poder dessa camiseta sobre os adversários e
o sentimento de pertença de cada um dos brasileiros.
12
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Foto 1: Jacarezinho, RJ
Foto 2: Periferia de Brasília
Fonte: Site Envolverde.com18
Fonte: Fotógrafo Uslei Marcelino19
Foto 3: Periferia de Brasília
Fonte: Fotógrafo Uslei Marcelino
Foto 4: Rio de Janeiro
20
Fonte:
Turma do Alzirão - RJ
21
Foto 5: quadra da Vai-Vai – SP
Fonte: Portal EBC
22
18
Disponível em http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/comeca-copada-fifa-e-o-espetaculo-e-o-campeao/
19
Disponível em : http://umarcelinofoto.blogspot.com.br/2014/06/varjao-na-periferia-debrasilia-clima.html, acesso 22/07/2014.
20
Disponível em http://umarcelinofoto.blogspot.com.br/2014/06/varjao-na-periferia-debrasilia-clima.html, acesso 22/07/2014.
21
Disponível em http://www.ebc.com.br/esportes/copa/galeria/imagens/2014/06/confiraimagens-dos-torcedores-da-selecao-brasileira, acesso 22/07/2014.
13
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Considerações finais
O objetivo desse artigo foi o de demonstrar como o uso de símbolos
nacionais, num momento de inquietações, confrontos, despertar de consciência cívica
e cidadã, revela traços de uma cultura que é comum aos brasileiros. Não obstante as
diferenças de classe, as mazelas e carências da população mais pobre, há um
sentimento de brasilidade que nos congrega a todos; há uma cultura comum,
conforme procuramos demonstrar a partir de Raymond Williams.
É um momento onde muito se observa o consumo simbólico de elementos de
nossa cultura, como uma ação comunicacional, uma narrativa de nossa identidade.
Um momento e um lugar privilegiados para se observar a interseção comunicaçãoconsumo.
E sendo a identidade nacional também um discurso, ele só pode ser pensado
na dimensão bakhtiniana da dialogia, no confronto e na interação social. Por isso
mesmo, deveríamos considerar firmemente a crença de Raymond Williams nos
valores e modos de vida das classes populares, dos bairros e comunidades, onde as
pessoas não se encastelam, mas vivem num sentimento de coobrigação, de
solidariedade e de vida em comum (1989, p. 8), o modo de que vida que ele
apreciava.
Referências
BAKHTIN, Mikhail, Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud et al. 10ª edição. São
Paulo: Editora Hucitec, 2002.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
2003.
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francisco silva mitraud