O promotor deve ter o zelo pela justiça e não pela acusação
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira*
OAB Revista ano II, n. 5, jan.-mar./2002
Tendências/Debates
Poucas instituições estatais no curso da respectiva história foram adquiridos características,
contornos e objetivos consentâneos com a evolução da própria sociedade, como o Ministério Público.
As modificações operadas na instituição, especialmente no que tange às suas funções,
acompanharam as extraordinárias alterações sofridas pelas intrincadas relações sociais, especialmente no
último século. Ao lado das profundas mudanças ocorridas em todos os setores das atividades humanas nas
relações estatais e nas idéias políticas e econômicas, a necessidade da tutela de valores atingidos pela
ação predatória do homem também fez com que os ordenamentos jurídicos dotassem a instituição de
instrumentos estruturais e funcionais aptos a suprir as próprias exigências do Estado moderno.
De sua origem remota, situada por uns no Egito, por outros na Grécia ou em Roma, passado por
sua conformação jurídica. Fornecida pelo direito francês, em que eram “gens du roi” para instituição
permanente e indispensável à função jurisdicional e ao Estado democrático, sua formação e transformação
que sofreu sempre corresponderam às exigências da história.
O objetivo desse singelo escrito não é tecer críticas à instituição como um todo. Quero, inclusive
realçar a minha discordância com aqueles que verberam os poderes outorgados ela Constituição de 1988
ao Ministério Público.
Na verdade, a questão a ser analisada não se relaciona aos poderes e às funções, mas à forma
como são exercidos e desempenhados. O problema, pois, não é institucional, ele é pessoal.
O fortalecimento das instituições públicas e dos segmentos sociais comprometidos com a
construção de um país justo, pacífico e democrático é uma imperiosa necessidade de nossos tempos.
Nesse contexto, entendendo imprescindível um Ministério Público dotado de instrumentos legais
que lhe possibilitem fortalecer, ao lado da advocacia e da magistratura, o primado da lei, a intangibilidade
do regime democrático e a aplicação da justiça, mas da justiça concreta e efetiva, sem discriminações, para
todos os segmentos da sociedade brasileira.
Com efeito, nas últimas décadas, a sociedade brasileira sofreu profundas modificações que
alteraram substancialmente o perfil do homem brasileiro.
Valores e princípios são diariamente postos em cheques; grassa uma trágica desigualdade social;
germinam e dão frutos as raízes daninhas da corrupção e da violência; inexistem mecanismos de amparo
aos desvalidos. Por outro lado, está a sociedade representada por uma classe política insensível ao bem
comum e à elaboração de projetos de interesse nacional.
A sociedade de consumo passou a superestimar o “ter” em detrimento do “ser”, colocando valores
culturais, intelectuais e morais, informadores da conduta humana e da evolução social, em plano
secundário. A solidariedade cedeu lugar ao egoísmo e à emulação destrutiva. A busca desesperada
de
bens de consumo e de posição social substitui o desejo de aprimoramento intelectual e espiritual. Noções
como bem comum e interesse coletivo passaram a ser meras figuras de retórica. Essa atitude de
individualista avilta o ser humano, pois amortece a sua maravilhosa capacidade de amar o próximo e o
condena à mais cruel das penas: a solidão. A falsa idéia de que os eventos econômicos são os
responsáveis pela dinâmica social muito contribui para esse triste fenômeno.
Na linha da correta atuação individual de cada parquertier, uma primeira observação diz respeito
a deformação do papel institucional por ele desempenhado.
Na visão da sociedade e na ótica de alguns promotores, o desiderato na instituição é exercer a
acusação de forma sistemática e obstinada. Deve, no entanto, ficar definitivamente entranhado, na
consciência social e no íntimo de cada parquertier, que o alvo de seu trabalho e de seus esforços
intelectuais é mais elevado, superior à missão de perseguir a coordenação.
Instituição permanente e essencial à administração da justiça e também responsável pela defesa
da ordem jurídica, da democracia e dos interesses indisponíveis, reduzi-la a mero órgão acusador é aviltar a
apequenar sua exponencial missão de elemento essencial à função jurisdicional. Com certeza sua
essencialidade não reside na necessária condução de uma postulação condenatória até o termo final do
processo, alheia às circunstâncias fáticas carreadas para os autos, o que não poucas vezes a levaria a tmar
rumos diversos daqueles inicialmente proposto.
Com muita propriedade, o eminente Hugo Nigro Mazzili, que honrou o ministério público paulista,
hoje aposentado, em sua extraordinária obra Regime Jurídico do Ministério Público, afirmou:
“No campo criminal, porém, ao contrário do que muitos leigos pensam, não é o promotor de
Justiça obrigado a acusar: tem plena liberdade de convicção e de atuação. Não só pode, como deve pedir a
absolvição ou recorrer em favor do acuado, caso se convença da sua inocência. Igualmente pode impetrar
habeas corpus em benefício do acusado, se entender que sofre ele constrangimento ilegal” (fls. 76).
Com efeito, sua liberdade funcional, condiciona apenas à sua missão de contribuir para o alcance
do justo no caso concreto, lhe dá mais do que o direito, imprime-lhe a obrigação de proclamar a inocência
do acusado ou do postular pela tese que lhe pareça a mais adequada, mesmo que benéfico àquele por ele
acusado.
“O promotor deve ter zelo pela Justiça e não pela acusação. Caminha para série deformação
profissional e pessoal o promotor quando não mais pensa assim, ou quando nem mesmo percebe que
inverteu o sentido de seu trabalho” (ob. cit. Fls.80)
Parece advir dessa “deformação” um rol não tão pequeno de condutas censuráveis, nos dias de
hoje, por parte de promotores que, pressurosos em mostrar publicamente um diligência exigida, via e regra,
pela imprensa, adotam providências, requerem medidas e dão declarações ainda não consentâneas com as
circunstâncias de fato, muitas vezes sequer apuradas, sobre determinado caso, as quais, também, não
encontram aparo legal.
Tal conduta possibilita à imprensa escrita e televisionada o grande alarde, a desproporcional
divulgação, o estardalhaço de um fato nem sequer caracterizado como criminoso e de seu indigitado
responsável, tido como tal por meras, frágeis e inconsistentes ilações, produzidas pelos próprios jornalistas
e acolhidas pelo promotor, mais preocupado em mostrar sua agilidade e presteza do que em apurar,
investigar e formar sua convicção indispensável à adoção das medidas que venha postular.
O açodamento, por outro lado, faz criar expectativas junto à sociedade, imbuída da idéia do
promotor acusador pertinaz,as quais não podem ser acolhidas pelo Judiciário, por afastadas dos fatos ou
por contrárias à lei. Com isso, cria-se um indesejável sentimento de descrédito em relação à Justiça, pois
dela se esperava, erroneamente, guarida aos reclamos da imprensa e aos pedidos ministeriais, mesmo que
desprovidos de legalidade e violadores de princípios e garantias constitucionais.
Fenômeno dos mais graves que atinge diretamente a administração da Justiça, especialmente a
penal, é o papel desempenho modernamente pela imprensa, mais especificamente pela chamada imprensa
investigativa e denunciante. No afã de cumprir o salutar objetivo de contribuir para o combate à corrupção,
ela esta se arvorando em exercente de uma função que não é sua, qual seja, a de fazer justiça.
Extrapola os lindes de seus objetivos e o faz de forma perniciosa e maléfica. Sua atividade na
cobertura de eventos criminosos ou tidos por ela como tais desrespeita os mais comezinhos direitos da
pessoa humana: sua honra, sua intimidade, sua privacidade, o respeito que merece do corpo social e de
seus familiares. Ademais, fere princípios constitucionais de todo o estado democrático ligados à presecutio
criminis, pois não são respeitados o direito de defesa, o devido processo legal,
o contraditório e a
presunção de inocência.
Ao dirigirem suas baterias – máquinas e câmeras – contra alguém, desejam condená-lo sem
processo e sem defesa. Lançam fatos aparentemente desabonadores, sob o sigilo da fonte, que passam a
constituir verdades. Ao contrário do que ocorre na Justiça, os fatos não precisam ser aprovados. Na Justiça
se prova, na mídia não. O tratamento dado à matéria não é imparcial. Noticia-se apenas o negativo.
Prevalece uma abominável posição maniqueísta, na qual o bom, o positivo, o edificante são esquecidos.
Infelizmente, a imprensa não se limita a informar, acusa. Não admite defesa, condena. Não quer processo,
deseja punição.
Por outro lado, ela encontra na sociedade terreno fértil para o seu desiderato. Sociedade
essencialmente punitiva, que perdeu seu poder de crítica - aceita o que lhe transmitido – desconhecendo as
regras que norteiam a administração da Justiça, indiferente, ou pior, avessa ao direito de defesa,
caracteriza-se por uma crença cega no que é divulgado, mormente se atender aos seus anseios de
encontrar culpados, de castigar, de possuir um alvo para sua execração. Como a aquietar consciências
alcançadas por culpas e responsabilidades não detectadas, transforma os “eleitos” em exclusivos algozes
da Nação, em detrimento de múltiplas investigações e apurações, necessárias para que, efetivamente, se
destruam os focos de corrupção, mas de maneira equânime, dentro da lei, sem transformar essa missão em
espetáculo que atende aos fins da imprensa, ligados à vendagem de jornal e às pesquisas de audiência.
Com muita propriedade, Rafael Bielsa, afirmou: “a má imprensa não só lesa direitos e intereses
jurídicos e morais das pessoas que, por falta de sentido crítico, de reflexão ou de experiência, são
propensas às vias de fato, perigo que comprova a psicologia das multidões” (in Estúdios de Derecho
Público, v. III, pág 733).
É nesse quadro que promotores – obviamente há os que resistem às tentações” e, felizmente,
constituem a maioria- estão atuando, num conluio com a imprensa e com a deturpada “vontade social”
extremamente nocivo à justiça, à construção de uma sociedade justa e igualitária, ao respeito devido pela
sociedade ao direito de defesa, às liberdades, aos direitos e às garantias individuais.
Mas, na verdade, essa conduta de alguns representantes do parquet atenta contra a própria
instituição, pois a nivela e coloca no mesmo patamar daqueles que embora agindo incorretamente e
violando a nobre e imprescindível missão de informar livremente a verdade, não são administradores da
Justiça, não tendo, assim, compromisso primeiro com seus postulados. Já os promotores, não. Não
possuem obrigações com a atividade jornalística, nem com a divulgação da própria imagem, cumpre-lhes
fazer justiça. Tudo que possa pôr em risco esse sagrado mister deve ser desprezado. O único risco admitido
para o alcance da Justiça reside na falibilidade, que é própria da condição humana
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O promotor deve ter o zelo pela justiça e não pela acusação Antônio