O Desafio do Educador
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O Desafio do Educador
O Desafio do Educador
Ensaios sobre educação em tempos difíceis
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O Desafio do Educador
RUDÁ RICCI 2015
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O Desafio do Educador
Sumário
APRESENTAÇÃO
6 O PERFIL DO EDUCADOR DO SÉCULO XXI
21 VINTE ANOS DE REFORMAS EDUCACIONAIS
35 O DIREITO DE APRENDER
45 INTERDISCIPLINARIDADE
54 DESAFIOS RECENTES DA EDUCAÇÃO POPULAR NO BRASIL
64 O PROTAGONISMO JUVENIL E A CRISE DAS INSTITUIÇÕES MODERNAS
71 SOBRE O AUTOR
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O Desafio do Educador
Apresentação
Esta obra apresenta alguns textos elaborados por Rudá Ricci a partir do final dos anos 1990 e publicados, originalmente, em revistas,
livros e sites técnicos nacionais e internacionais.
Rudá Ricci é um militante da área educacional. Foi consultor de diversas redes estaduais e municipais de ensino, escolas e redes particulares e confessionais, mas também dirigiu programas de formação continuada para educadores e lideranças sociais, além de outros quadros
técnicos da gestão pública brasileira.
A intenção é apresentar esta eleição de artigos que têm como alinhavo a inspiração de Paulo Freire – com quem Rudá trabalhou diretamente – na construção da autonomia e da cidadania ativa.
Perpassa balanços das reformas educacionais recentes implantadas na Europa, EUA e América Latina, mudanças no perfil do educador e
estudantes e envereda para os desafios da escola regular e da educação popular no Brasil. Um ensaio específico trata do desafio da interdisciplinaridade, tema que até hoje é muito citado, mas pouco compreendido entre educadores e redes de ensino.
O conjunto de textos aqui publicados pode sugerir uma trajetória pessoal. Com efeito, como dizia o escritor Bartolomeu Queirós, escrever e ler nada mais são que uma conta matemática: quem escreve, procura dividir sua experiência com outros e, quem lê, procura somar à
sua vida a experiência e olhar do outro que escreve.
Em outras palavras, o objetivo é que esta publicação cumpra sua função de não ter autoria, mas de se refazer nas subtrações e adições
que ele se propõe.
Belo Horizonte, julho de 2015
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O Desafio do Educador
O perfil do educador para o século XXI: de boi de
coice a boi de cambão
Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga
(“O ferrageiro de Carmona”, João Cabral de Melo Neto)
MUDANÇA DE HÁBITO
João Cabral de Melo Neto, numa de suas raras entrevistas, relembrou uma classificação insólita que um dia havia elaborado para destacar as diferenças de postura entre poetas. A classificação baseava-se numa analogia com a denominação que os sertanejos utilizavam para
identificar as duplas de bois empregadas nas juntas. Boi de coice era a denominação daquele que fazia o papel de freio, principalmente nas
descidas, e boi de cambão aquele que puxava o carro, desbravando o caminho, sem pose, sem grandiosidade.1Aanalogia me parece perfeita
para compreendermos a mudança de postura do educador neste final de século. Entre outros motivos, porque podemos traçar um segundo
paralelo com a denominação que Taylor havia atribuído ao trabalhador típico da era moderna: o homem-boi.2 Grosso modo, tanto o homem-boi quanto o boi de coice definem os contornos do educador padrão estabelecido pelas políticas educacionais ocidentais na maior parcela
deste século. Tal padrão adequava-se a uma demanda crescente de formação de mão-de-obra que abastecesse a indústria. Por muito tempo,
os discursos dos educadores brasileiros pregaram que a função do educador era formar cidadãos, contrapondo-se à formação utilitária, que
buscava facilitar ou preparar o ingresso de jovens no mercado de trabalho. Contudo, o discurso foi, aos poucos, confundindo um projeto educacional ideal com a crítica à política oficial. Assim, foi se naturalizando a noção de que a prática educacional seria um dos poucos bastiões de
resistência à mercantilização das profissões e continuaria mantendo seu princípio de autonomia, formando seres críticos e independentes.
Uma vertente ainda mais ingênua ia mais longe e afirmava que daí fundamentava-se o descompromisso de governos e empresários na universalização da educação, justamente porque o ensino formaria um contingente de homens críticos à exploração e à opressão. Ledo engano.
A educação foi um dos principais pilares do processo de industrialização e modernização do mundo ocidental, a despeito da sua possível capacidade de gerar homens críticos. A partir dos anos 50, gestou-se no Ocidente uma concepção educacional de massas, muito mais apoiada
na memorização de conceitos e rotinas que propriamente numa visão heterogênea e crítica da realidade. Forjava-se o homem-boi.
Tão ingênua quanto essa crença na natureza independente e crítica da educação, cristalizou-se uma concepção mágica de cidadania que
nasceria do processo educativo. Na realidade, tal como alude o excerto de poesia transcrito no início deste texto, o cidadão não pode ser
concebido previamente, o cidadão forma-se na sua própria experiência de vida. Entretanto, muitos educadores acreditaram na possibilidade
intrínseca da escola de formar cidadãos, pura e simplesmente a partir da introdução de conteúdos contestadores ou espaços reflexivos, negando que há toda uma dimensão da vivência cotidiana tão ou mais importante para a emergência de uma consciência cidadã. Em outras palavras, não se discutiu com muita profundidade a relação do processo educativo formal e com a cidadania.3 Assim, concebia-se a escola como
o espaço privilegiado da formação de cidadãos, imputando ao educador um papel de demiurgo social. O discurso supostamente progressista
reforçava um grande distanciamento da escola em relação à experiência de vida dos cidadãos, como se o cotidiano estivesse impregnado pelo
impessoalismo ou, numa versão vulgar marxista, pelo mundo do fetichismo e da circulação de mercadorias. O romantismo evidente dessa
concepção acabou por gerar muitos matizes da mesma vertente. A título de ilustração, muitos professores da rede pública municipal de Belo
Horizonte, em encontros de formação promovidos por suas coordenações pedagógicas regionais, manifestaram, recentemente, que a fonte
elaboradora do projeto pedagógico é a comunidade escolar: professores, equipe pedagógica e funcionários. Tal manifestação demonstra o
grau de centralidade da escola na prática educacional, que não incorpora outras dimensões do cotidiano dos alunos, da comunidade residen-
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O Desafio do Educador
te no entorno do prédio escolar e do próprio cotidiano do professor. A escola, em outras palavras, basta-se a si mesma.
Este texto procura polemizar com essa concepção ingênua que naturalizou o papel do educador como formador de cidadãos e desenvolverá as bases históricas e sociais que romperam, nos anos 80, a concepção educacional hegemônica neste século, criando novas perspectivas
educacionais. Para tanto, serão desenvolvidos quatro tópicos: a) o vínculo estreito entre papel da escola e formação de mão-de-obra industrial entre os anos 50 e 70; b) as mudanças no sistema de produção e comportamento social na Era da Globalização; c) a busca de novos
padrões educacionais, em especial os casos alemão e espanhol; d) as novas perspectivas educacionais que emergem nos anos 90.
EDUCAÇÃO E MERCADO DE TRABALHO: DOS ANOS 50 AOS 70
Com a emergência do modelo keynesiano de organização estatal,4 disseminou-se pelo mundo ocidental uma ampla política de indução
governamental à industrialização acelerada e à conformação de um mercado de consumo de massa. Emergiu um padrão organizacional
baseado em grandes corporações, com ampla planta industrial, com especialização em produtos de alta tecnologia e consumo de massa.
O operário padrão demandado por essas corporações era, simultaneamente, um consumidor em potencial dos produtos de alta tecnologia
(daí o adestramento que a psicologia industrial e a assistência social desenvolveram nesse período, reeducando a rotina familiar) e um produtor disciplinado, especializado, de fácil adaptação às mudanças tecnológicas, estimulado a desempenhar ambições individuais e familiares
conquistadas a partir dos méritos alcançados por sua produtividade. É um trabalhador individualista, com alta capacidade de concentração
e especialização.
Disciplina e especialização são as senhas para compreendermos o perfil desse trabalhador do século XX. Especialização significava ser
adestrado a conhecer um aspecto da produção, aprofundar-se nesse aspecto e tornar-se um padrão de produção. Significava, ainda, adaptar-se a uma rotina de movimentos desumana. Desumana porque a existência dos homens é marcada pela criatividade. Mas a produção em
massa, que introduzia lentamente inovações nos produtos e na forma de produção, não tinha como permitir a criatividade sob pena de não
conseguir padronizar os produtos e ser incapaz de controlar a produção.
Os trabalhadores das grandes corporações tiveram que submeter-se a esse perfil. Mas havia ainda uma distinção entre eles. Segundo a
concepção taylorista, não superada com o fordismo,5 as empresas deveriam estabelecer hierarquias na produção: no chão da fábrica estariam os operários, executores da produção, disciplinados e especializados; no topo da fábrica estariam os planejadores, inseridos nos departamentos de planejamento e de pessoal, responsáveis pela tecnologia empregada nos produtos e até mesmo pelo processo de produção,
o que incluía estudos sobre os movimentos mais adequados a serem adotados pelos operários. Mesmo esses planejadores (engenheiros,
administradores, psicólogos, advogados, economistas, na maioria das vezes) eram caracterizados pela disciplina e especialização. Assim, a
fábrica tornava-se uma grande estrutura burocratizada, rotinizada e departamentalizada.
Com o desenvolvimento do modelo de gestão e de produção racionais, e com o crescimento da industrialização ocidental, inicia-se
um processo de massificação da educação que acompanhará a demanda pelos dois tipos básicos de trabalhadores fabris: o planejador e o
executor. Assim, consolida-se uma hierarquia na estrutura de ensino, em que o 1o e o 2o graus teriam como objetivo a reprodução de conhecimentos básicos indispensáveis ao desenvolvimento industrial e a uma ferrenha disciplina, voltados para a formação da mão-de-obra dos
níveis inferiores da fábrica. De outro lado, investe-se em pesquisa e qualificação universitária, com o objetivo de formar planejadores especializados. Tal hierarquia funcional, que se alastra por todo o Ocidente, será duramente sentida no final deste século; uma vez que a base de
informação considerada necessária ao trabalhador médio era muito reduzida, os Estados Unidos encontram-se enredados nesse legado até
hoje. Estudos recentes revelam que 20% dos jovens americanos entre 17 e 19 anos são analfabetos e que 1/3 dos trabalhadores americanos
são incapazes de entender um manual escrito.6 Daí surgirá um perfil de educador de ensino fundamental, muitas vezes burlado no cotidiano
da sala de aula, mas concebido oficialmente como reprodutor de conhecimentos específicos e padrões de comportamento.
As bases desse modelo educacional, difundido no Ocidente entre os anos 50 e 70, atrelou o processo educacional à necessidade de propagação de uma ética do trabalho.7 Seus pilares organizacionais foram:
*
Ensino seriado: Weber já havia demonstrado que as escolas superiores ocidentais tinham por objetivo produzir especialistas capazes
de racionalizar a produção (o homem calculista-racional) que pudessem administrar empresas. O homem calculista possibilitaria o
uso racional dos recursos humanos e materiais, evitando desperdícios e potencializando o acúmulo de capital, necessários no mundo
competitivo e mercantilizado da sociedade industrial. As escolas superiores seriam, assim, racionais, sistemáticas e providas de especialistas treinados; os professores; em ciências.8 O ensino seriado tinha por objetivo definir conteúdos programáticos previamente estabelecidos pelo mercado, no intuito de formar um contingente de trabalhadores especializados. Assim, o primeiro ano primário seria
a base do segundo, e assim sucessivamente, até se forjar o trabalhador demandado pelo mercado. Tal organização curricular, como se
percebe, não se apóia no processo cognitivo do ser humano, no seu tempo e no seu processo de elaboração e apropriação, mas no tempo necessário para se reproduzir uma seqüência de disciplinas a serem fixadas e memorizadas pelos alunos. Daí a insistência dos países
ingleses em definir o programa curricular como disciplina, que estabeleceria a unidade, a ordem e a seqüência de um curso, definindo
a coesão escolar.9
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O Desafio do Educador
* Implantação de hierarquia funcional no interior da escola : A mesma subdivisão estabelecida nas indústrias modernas entre setor executor e setor planejador é reproduzida nas escolas ocidentais, que, como recurso didático, passamos a denominar escola fordista. Como
a disciplina e a reprodução de conhecimentos encadeados seriam a tônica do processo educacional, o segmento administrativo das
escolas passou a ter proeminência sobre todas as outras funções. Assim, o diretor da escola e toda a sua equipe de apoio assumiram
funções de controle sobre o trabalho do professor, fiscalizando horário, respeito às normas de preenchimento de diários e outros documentos de controle de desempenho, atrasos na execução do programa curricular e, em alguns casos, até mesmo o desempenho
extra-sala. Na verdade, tal procedimento traduz-se numa evidente subversão política e funcional; as atividades meio, de apoio à prática
pedagógica, passando a dirigir a atividade fim, o exercício de educar;
* Alteração do papel do professor: O ofício de ensinar reduziu-se, na escola fordista, à capacidade de memorização de conteúdos pelos
alunos. De um lado, a exigência em relação ao ofício enfocava a capacidade técnica do professor de saber desempenhar aulas-espetáculo, ou múltiplas técnicas aparentemente interativas; como no caso do estudo dirigido;, mas que objetivavam a memorização
sem questionamentos. De outro lado, com a massificação do ensino, foi se criando um consenso social de que a educação, em si, não
era garantia de igualdade e de promoção social dos mais desfavorecidos como se esperava e, assim, embora sendo considerado uma
etapa necessária, o saber escolar não era definidor de ascensão social. Em síntese, o modelo educacional adotado alterou a projeção
social do professor. Se seu status, até os anos 50, era de intelectual, num mundo onde o letramento significava distinção e autonomia
de decisões, era marcado pelo prestígio, a partir de então, o professor passa a ser considerado um técnico, e o centro do poder passa
a ser compreendido como os cargos de administração do sistema escolar10. Daí o rebaixamento salarial, não como um movimento
maquiavélico e conspiratório do Estado contra o mundo intelectual, mas como uma reorganização funcional do sistema educacional.
José Esteve, da Universidade de Málaga, percebe a ruptura da valorização do professor e do consenso social sobre a educação como um
movimento também experimentado pela Europa nos últimos 20 anos. O autor crê que a massificação do ensino e a retração do papel
de socialização da família se, por um lado, aumentaram as exigências da prática do professor, por outro, inviabilizaram um tratamento
individualizado capaz de assegurar um acompanhamento adequado aos alunos, contribuindo para o decréscimo da motivação dos alunos para estudar e para a valorização do sistema educativo. Decaiu, assim, a distinção social do professor.
* Processo seletivo e privatização dos conteúdos: Mesmo as escolas públicas, por direcionarem seus esforços para a colocação dos alunos
no mercado, acabaram por criar uma lógica perversa altamente competitiva e seletiva entre os alunos. Com efeito, em virtude dos mais
altos salários e das rotinas de trabalho com maiorstatus estarem localizadas nas funções da área de planejamento das empresas, que
exigem qualificação superior, obviamente as famílias programaram o futuro de seus filhos objetivando proporcionar-lhes o ingresso
na universidade.11 Assim, cria-se a crença de que a melhor escola é aquela que garante o ingresso ao terceiro grau. Em países em que
existe o processo seletivo do vestibular, como no caso do Brasil, a melhor escola seria aquela que garanta o sucesso no vestibular. Ora,
em sua grande maioria, os testes de vestibular não comportam questões que se valham da capacidade de raciocínio do candidato, mas
de sua capacidade de memorização. As escolas de segundo grau são, então, impelidas a desenvolverem técnicas de memorização que
banalizam o conhecimento e apresentam-no ao aluno como acabado, como absoluto, e não como fruto de um processo histórico de
produção social, compartilhada socialmente. O conhecimento cristaliza-se como algo externo à vida do aluno, como parte de um ritual
de passagem que impõe um sacrifício momentâneo (ler apostilas e responder centenas de testes de memorização, além dos famosos
testes simulados) ou como a oficialização de truques e fórmulas que, no fundo, são apologias à “Lei de Gérson”. Na verdade, exacerba-se a influência da psicologia comportamental como base metodológica. Estímulos e respostas de estilo behaviorista são explorados
em profusão: músicas de gosto duvidoso são plagiadas com letras que reduzem os conhecimentos, transformando-se em pequenas colas não-escritas utilizadas pelos vestibulandos; analogias entre palavras para facilitar a lembrança de fórmulas de química, física ou
fatos históricos relevantes, e tantos outros mecanismos que destroem o saber como uma busca da humanidade. Pode-se afirmar que
esse processo implica a privatização dos conteúdos escolares, justamente porque as escolas adotam programas diretamente vinculados a uma determinada universidade. Não se pensa o currículo como um plano de estudos de conhecimentos socialmente necessários
para o aluno compreender-se no mundo atual e que possibilite a construção de novos conhecimentos. Adota-se um currículo prescritivo, fechado, o que afasta, ainda mais, a escola do cotidiano da comunidade.
Contudo, a segunda metade dos anos 70 sofreu uma revolução na estrutura de produção e emprego que colocou por terra todo o esforço
do sistema educacional de formar um trabalhador padronizado, disciplinado e especializado. A microeletrônica e a biotecnologia criaram um
novo patamar de competitividade e novas exigências funcionais. O homem-boi sucumbiu e, com ele, toda a estrutura da escola fordista.
MUDANÇAS NO SISTEMA DE PRODUÇÃO E NO COMPORTAMENTO SOCIAL: OS ANOS 90
Na última metade dos anos 70, a economia mundial e o sistema fordista de produção serão profundamente abalados. No caso europeu,
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O Desafio do Educador
as grandes corporações industriais facilitarão a organização sindical, a massificação dos movimentos grevistas e a conseqüente crise fiscal
do Welfare State, em virtude de o Estado fordista patrocinar e subsidiar os gastos sociais, incluindo a cesta básica.12 O choque do preço do
barril de petróleo, patrocinado pela Opep, na metade e no final da década de 1970 (somente em 1974 o barril de petróleo subiu 400%), agravou o sistema de financiamento público dos investimentos industriais e o custo de produção. No caso norte-americano, as suas empresas,
no final dos anos 60, investiram no mercado europeu, tornando-o um grande mercado financeiro internacional, completamente desregulamentado. A oferta de dólares se ampliou e, em meados dos anos 70, com a expansão dos petrodólares (originados diretamente do aumento
do preço do petróleo), houve um crescimento do mercado interbancário13. Nesse momento, o FMI propôs a criação de uma cesta de moedas
dos países com maiores reservas, buscando definir maior controle e uma nova ordem monetária, mas os Estados Unidos reagem duramente,
vislumbrando nessa medida um ataque ao dólar. A reação norte-americana provoca, a partir de 1979, uma profunda recessão mundial. Para
sustentar o dólar, o presidente do Banco Central americano (Federal Reserve System) eleva a taxa de juros. A recessão mundial e a crise do
modelo fordista foram, portanto, a marca da virada da década de 1970 para a de 1980, gerando uma fortíssima disputa entre Estados e oligopólios internacionais.
Em meio à crise internacional, ocorreram investimentos produtivos que procuraram superar o impasse tecnológico, tendo por base o
aumento de produtividade, a flexibilidade produtiva, a diminuição dos custos de produção e a busca de nichos de mercado de alto consumo
e capital.14 A partir da metade dos anos 80 desencadeia-se uma revolução tecnológica baseada na microeletrônica e na biotecnologia que
diminuirá os espaços e as diferenças de produção do mundo. A microeletrônica acabou gerando os robôs, a produção sem homens. A biotecnologia, ou engenharia genética, acabou gerando subprodutos em parte provenientes da natureza, em parte criados pelo homem. Sinteticamente, as mudanças mais drásticas podem ser arroladas em seis pontos:
*
aumento no ritmo das inovações: Se neste século, até os anos 70, criava-se um produto novo, por ramos de produção, a cada dez anos,
com a microeletrônica e a biotecnologia, cria-se um produto novo a cada oito meses. No caso da informática, o tempo é ainda menor:
um produto novo é criado a cada três meses. Significa um investimento brutal em pesquisa e tecnologia. Para tanto, é necessário vender muito e muito rápido para se investir novamente em pesquisa, lançar o produto e rapidamente pesquisar outro produto. Significa,
também, que não se pode ter muito estoque, porque os produtos são alterados muito rapidamente. Daí nasce o sistemajust-in-time,
em substituição ao sistema just-in-case: o ritmo de produção (e, em parte, o que é produzido) é definido em razão do consumo (ou do
perfil de consumo dos nichos de mercado priorizados pela empresa);15
* o aumento no ritmo de inovações leva à fusão das grandes empresas: Como é cada vez menor o tempo de criação industrial; e mesmo
agropecuária ; a concorrência torna-se feroz. Surge uma grande necessidade de aumento do capital de investimento para diversificar os
produtos oferecidos aos consumidores. A título de ilustração, o setor de informática procura criar uma TV acoplada a um microcomputador que acesse a Internet ou outros veículos de comunicação, ou ainda a criação de novos produtos interativos que interliguem
vários serviços, como é o caso dos equipamentos bodynet.16 Por esse motivo, vemos ultimamente empresas de sorvete fundindo-se
com empresas de massas, gerando uma dezena de novos produtos como bolachas recheadas de sorvete, biscoitos com novos sabores,
sorvetes com pedaços de frutas e biscoitos e assim por diante;
*
com as grandes fusões, os ramos produtivos oligopolizam-se: Podemos citar um exemplo claro. Há uns cinco anos, o mercado de café era
comandado por centenas de empresas de beneficiamento, torrefação e exportação. O acelerado processo de aumento de concorrência
está levando esse mercado a concentrar-se em apenas três grandes empresas: Philip Morris, Nestlé e Carrefour. A mesma situação
ocorre com o leite (vide o que a Parmalat vem gerando em nosso país), com calçados, bebidas, frangos, e tantos outros;
* as novas tecnologias geram uma substituição de produtos naturais por sintéticos: Isso sempre ocorreu no capitalismo e na história da
industrialização mundial. Substituímos gordura animal por margarina. Substituímos fibras naturais por sintéticas. Hoje, substituímos sucos por produtos sintéticos com baixas calorias, condutores tradicionais por fibras óticas, açúcares da cana e da beterraba por
subprodutos do petróleo e outras sínteses químicas. Diminuímos o consumo de carne vermelha e de leite. Aumentamos o consumo de
produtos mais sofisticados, light ou diet, com sabores mais exóticos. Aumentamos, assim, a tecnologia em áreas onde a concorrência
era menor, e obrigamos os produtores a investir pesadamente em pesquisa;
* as novas tecnologias geram um novo tipo de trabalhador: O trabalhador dos anos 70 era especializado (sabia fazer uma coisa, e apenas
uma, bem feita), era disciplinado e adaptava-se às mudanças de produção. O trabalhador dos anos 90 é polivalente, é indisciplinado,
criador, trabalha em equipe, é instável. Polivalente significa que trabalha com mais de uma máquina ao mesmo tempo. Não tem função
fixa, muda de seção constantemente; possui uma vasta gama de informações; é criativo e por suas sugestões. As empresas investem
nesse tipo de trabalhador porque o aumento da concorrência obriga-as a transferir parte do processo de decisão da empresa para o
operário que está na base da fábrica. Assim, a empresa diminui o tempo das mudanças e pode criar mais rápido que os concorrentes.
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O Desafio do Educador
Nos Estados Unidos foi constituída uma comissão, denominada Comission on Achieving Necessary Skills (Comissão para alcançar qualificações necessárias), que identificou as habilidades básicas desse novo trabalhador. São elas: saber ler jornal; ler instrução de manual;
elaborar estatísticas; apresentar sugestões para melhoria de processos; participar de reuniões; planejar e executar o trabalho com
precisão; planejar o tempo, próprio e alheio; saber alocar recursos financeiros; compreender o sistema social e o organizacional; saber
aplicar tecnologia apropriada a cada tarefa; participar das atividades de treinamento e desenvolvimento. Como se percebe, este não é o
perfil da quase totalidade dos trabalhadores brasileiros. Portanto, o polivalente é parte de uma minúscula minoria de trabalhadores;
* aumento da precariedade e diminuição da organização da maioria dos trabalhadores: Com as novas tecnologias, muitos trabalhadores
são substituídos por máquinas. As empresas contratam em massa apenas em alguns momentos de pico de produção. Dessa forma,
aumenta o número de trabalhadores temporários ou contratados por empreiteiras. A Organização Internacional do Trabalho estima
que, em 30 anos, apenas 5% da população adulta do mundo terá emprego fixo. O restante será autônomo, subempregado ou desempregado. Outra modalidade de trabalho é o domiciliar. A empresa fornece matéria-prima e a família produz em casa, recebendo por
peça. Finalmente, aumenta o número de desempregados. Na Europa, 11% da população adulta está desempregada (24% na Espanha,
10% na Itália, 13% na França). Na Argentina, o índice de desemprego já supera a casa dos 17%. Nos sete países mais ricos do mundo são
mais de 35 milhões de desempregados. Se aumenta o desemprego e o subemprego, os sindicatos têm muito mais dificuldades para se
organizar. Como se organizar se o trabalhador que ontem era metalúrgico hoje é encanador?
O novo trabalhador que surge em meados dos anos 80 precisa desenvolver o raciocínio analítico e seu poder de decisão. Precisa adquirir novos conhecimentos num processo de formação contínua e saber antecipar-se às inovações. Recentemente, a Volvo lançou um ônibus
que substitui o retrovisor por uma pequena câmara de circuito interno de TV que transmite sinais para duas pequenas telas alojadas logo
abaixo do volante. O objetivo é diminuir os movimentos de cabeça do motorista e concentrar seu campo de visão. A inovação foi criada por
uma equipe de operários da Volvo, num sistema de trabalho em grupos denominado sistema de docas. Alguns administradores de empresa
norte-americanos afirmam, com uma grande dose de exagero, que o perfil ideal do trabalhador dos anos 90 é o de um paranóico: sente-se
sempre atrasado em relação ao presente.
Nem todos os trabalhadores são assim. A exigência básica em relação a esse perfil recai sobre os polivalentes, que são poucos, altamente
qualificados, que investem continuamente na aquisição de saberes específicos e globais. São trabalhadores que trabalham próximos à exaustão. Em alguns casos, ultrapassam esse limite. No Japão, dados oficiais revelam que dez mil operários morrem por ano por estresse, que eles
denominam dekaroshi. Os polivalentes, nos últimos anos, estão sendo organizados em grupos com atividades similares, os job-families. Cada
grupo é estudado e apresenta habilidades específicas muito definidas, conhecimentos necessários para se desenvolver. Essa gama de informações acaba conferindo um rol de informações que está se transformando numa exigência básica para conseguir emprego. Alguns países
adotaram um provão, por meio do qual cada trabalhador deve atestar seus conhecimentos para receber um certificado. Algumas empresas,
inclusive, já adotam tal certificado como base de contratação, ou seja, a certificação ocupacional, tal como é denominado, é o certificado que
gera empregabilidade. Mas ao redor dos polivalentes surgem outras modalidades de trabalhadores, vivendo situações de insegurança de
emprego. Já citamos alguns: o temporário, o domiciliar, o trabalhador de empreiteira.
Quando se fala em empregabilidade, ainda deve-se levar em consideração algumas características básicas dessa nova dinâmica do mercado de trabalho:
* algumas atividades e funções estão sendo substituídas por máquinas. É o caso de grande parte das atividades administrativas. Nos Estados Unidos, 85% dos trabalhadores da área administrativa que perderam emprego nos anos 90 jamais recuperaram seu posto de trabalho.17 As oportunidades de emprego no Japão, que eram de 1,1 por pessoa à procura de trabalho em 1991, caíram para 0,7 por pessoa;
* países em desenvolvimento que abrem aceleradamente seu mercado, como é o caso do Brasil, tendem a elevar o salário médio dos
trabalhadores mais qualificados e a aumentar o número de empregos de áreas menos qualificadas. É o que se denomina na economia
de vantagens comparativas. Na medida em que são importados produtos com alta tecnologia, as indústrias nacionais concorrentes
desses produtos estrangeiros são forçadas a investir em mais tecnologia e a qualificar seus empregados. Daí o salário médio cresce.
Inversamente, um país em desenvolvimento, ao abrir seu mercado, terá vantagens comparativas na exportação de produtos domésticos, com menor grau de tecnologia empregado. Então aumenta a demanda de trabalhadores menos qualificados. É algo assim que
está ocorrendo no Brasil: surgem bolsões de empregos bem remunerados com exigência de alta qualificação, ao lado do aumento de
contratações de empregos de baixa remuneração e qualificação profissional;18
* quanto maior o grau de investimento tecnológico de um ramo ou indústria, menor o nível de empregos. Em outras palavras, investimentos em capital intensivo geram poucos postos de trabalho.
Como é possível perceber, as profundas e dramáticas mudanças que ocorreram no mercado de trabalho mundial abalaram os fundamen-
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O Desafio do Educador
tos da escola fordista dos anos 70. Não há mais necessidade de formação de trabalhadores disciplinados ou especializados. O trabalhador
dos anos 90 é multifuncional, criativo, irrequieto e pesquisador. Os objetivos das políticas educacionais ocidentais desmancham-se no ar e
abrem uma grande lacuna em relação aos objetivos estratégicos da escola dos anos 90. Desencadeiam-se, assim, amplos movimentos de
reformas educacionais, grande parte delas iniciadas na segunda metade dos anos 80. O grande ponto de convergência foi a superação do
espaço escolar como auto-regulador e autodefinidor e sua aproximação com a sociedade. Em outras palavras, a escola deste final de século
procura redefinir sua função, buscando vínculos que apontem demandas reais, numa sociedade em constante mutação. Como será possível
perceber no próximo item deste texto, as reformas em curso redefinem seu papel aproximando a escola, em alguns casos, das demandas
específicas do mercado de trabalho, vinculando-a a um pool de empresas; em outros casos, aproximando-a das comunidades localizadas no
seu entorno, transformando-a num centro comunitário/cultural.
NOVOS PADRÕES EDUCACIONAIS: AS EXPERIÊNCIAS DA ALEMANHA E ESPANHA
Para compreender um pouco melhor as tentativas em curso, destacamos a seguir duas das experiências mais comentadas de reforma
educacional, justamente porque são dois projetos distintos no que diz respeito à definição do papel da escola e do educador. No primeiro
caso, trata-se da experiência alemã, do ensino dual, motivado a formar trabalhadores polivalentes. No segundo caso, a experiência destacada é a da reforma espanhola, que propõe a escola aberta, fortemente vinculada à comunidade em que está inserida e que privilegia a formação moral em detrimento da formação para o mercado de trabalho. Os dois exemplos são aqui expostos como referências para análise,
mas compõem uma gama de inúmeras outras experiências internacionais. Podemos citar as experiências japonesa, portuguesa, australiana,
francesa e norte-americana, ou mesmo reformas nacionais, com forte impacto sobre a comunidade acadêmica e técnica, como nos casos da
Escola Plural (da prefeitura de Belo Horizonte) e das reformas de Porto Alegre e dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Como
o objetivo deste item é apresentar informações mais detalhadas sobre os caminhos atualmente vislumbrados pelas reformas, valho-me de
uma certa tipologia que distingue dois modelos diferentes que definem dois campos de política educacional internacionalmente.
A implementação da Escola Dual alemã ocorreu no estado de Baden-Württemberg, que está situado no sul da Alemanha. É a região
mais desenvolvida e industrializada do país.19 Há três formas de formação escolar nesse estado: a graduação escolar, o bacharelado misto e
o bacharelado superior. O sistema educacional público, por sua vez, oferece uma preparação para a vida profissional em três setores: a) universidades; b) formação profissionalizante auxiliar (assistentes técnicos); e c) formação dual. A formação dual envolve 70% dos jovens que
buscam formação profissional.
Esse programa de formação é assim denominado porque a aprendizagem ocorre em dois locais: empresa e escola. A escola apresenta
conhecimentos teóricos específicos e formação geral, e a empresa apresenta programas de destreza manual. A formação total dura três ou
três anos e meio. Os alunos ficam três dias e meio na empresa e um dia e meio na escola profissional, por semana. A empresa oferece uma
remuneração ao aprendiz/aluno de cerca de 600 marcos mensais.
A base de formação é o regulamento estatal de formação profissional por profissão, que define a avaliação, a duração da formação e a
titulação dos professores. As escolas, por sua vez, são regidas pelo plano de estudos. A elaboração do regimento de formação é realizada
pelo Instituto Federal de Formação Profissional, com sede em Berlim. Esse instituto é composto por expertos indicados pelos sindicatos e
pelos empresários, o que define um acompanhamento plural na formação do futuro trabalhador. O que deve ser destacado em relação a essa
experiência é a clareza com que é percebida a relação entre elaboração curricular e alterações produtivas sucessivas do período pós-fordista.
Em outras palavras, na medida em que há uma evidente opção em vincular o ensino às demandas de mercado, adota-se um mecanismo de
constante atualização do currículo, de acordo com as alterações produtivas. Assim, estabelece-se um projeto de investigação prévio, no qual
se estudam as exigências do momento e as tendências futuras do setor produtivo em questão. Esse projeto de investigação é acompanhado
e analisado por empresários e sindicatos que compõem o comitê superior do Instituto Federal de Formação Profissional. Os representantes
de classe participam dos diversos comitês paritários profissionais dos diversos estados e colaboram com os respectivos comitês de formação
profissional que determinam os regulamentos de exame. Os trabalhadores possuem amplos direitos de co-gestão na planificação e na reali-
zação da formação profissional nas empresas e administrações. Assim, forma-se a seguinte grade de competências:
11
O Desafio do Educador
INSTITUIÇÃO
COMISSÃO GERAL
COMPOSIÇÃO
Empresários, trabalhadores,
administração central e províncias.
COMPETÊNCIAS
Resolução do programa de
investigação e opiniões sobre as
propostas de regulamentação
educativa.
COMISSÃO DE PROVÍNCIA
COMPOSIÇÃO
Empresários, trabalhadores e
ministérios.
COMPETÊNCIAS
Fomento à colaboração entre
escolas e empresas em matéria de
formação profissional.
COMISSÃO DE FORMAÇÃO
POR CÂMARA SETORIAL
COMPOSIÇÃO
Empresários, trabalhadores,
preofessores das escolas de
formação profissional.
COMPETÊNCIAS
Resolução de disposições.
COMISSÃO EXAMINADORA
POR CÂMARA SETORIAL
COMPOSIÇÃO
Empresários, trabalhadores,
professores das escolas de
formação profissional.
COMPETÊNCIAS
Exames finais e parciais.
As partes que integram a formação profissional dual pagam as despesas respectivas. Em 1984, a título de ilustração, a administração
pública (envolvendo seus diversos níveis) participou com aproximadamente 1/3 dos gastos e as empresas com os outros 2/3.20
Os programas de ensino adotam três tipos de professores: professores de matérias de formação geral e professores de matérias vinculadas à profissão (ambos com formação universitária), e professores de matérias específicas de caráter prático (exigindo-se conhecimento
técnico para o ensino prático vinculado à profissão). A grade curricular adotada é assim distribuída: 4 horas semanais de religião, história
da Alemanha, ciências sociais e economia; 8 horas semanais de tecnologia, matemática aplicada, planejamento do trabalho e práticas de
laboratório. Os relatórios da comissão geral do programa apontam sete vantagens básicas em relação ao sistema dual: a) motivação do
aluno; b) incorporação progressiva ao ambiente de trabalho; c) assimilação mais dinâmica do desenvolvimento tecnológico; d) capacidade
de adaptação; e) articulação do sistema educacional e ocupacional; f) remuneração econômica que valoriza o aprendizado; g) alargamento
da ação pública.
Há três aspectos a serem ressaltados em relação a essa experiência.
O primeiro diz respeito ao controle político do programa, com ingerência direta de sindicatos e empresários. Essa é uma das tendências
gerais de todas as reformas educacionais implementadas a partir da década de 1980: a ampliação da participação social na elaboração e no
controle do sistema educacional. Obviamente, na experiência do sistema dual restringe-se a participação de acordo com as demandas de
mercado, mas há uma evidente superação da estrutura sistêmica ou estrutura institucional fechada dos equipamentos escolares dos anos
70.
O segundo aspecto diz respeito à evidente privatização de conteúdos. Günter Fehling, diretor da Câmara de Indústria e Comércio de
Oberhein, afirma que as empresas alemãs adotam duas formas de ascensão: com base em cursos de especialização, com carreira universitária ou estudo em escola superior (que envolve entre 5% e 10% das promoções) ou como aprendiz do sistema dual (envolvendo 70% das
promoções). As empresas selecionam os candidatos ao sistema dual, analisando seu currículo escolar, seu desempenho num teste escrito e
em entrevista. Os testes consistem de conhecimentos em língua alemã, cálculo, cultura geral e afins e testes de aptidão. O perfil do instrutor
é detalhadamente discutido pelos empresários: instrutor com experiência profissional na área, no caso de comércio, e, no caso das indústrias, experiência na formação de jovens e vínculo com câmaras setoriais (o que facilita sua compreensão dos níveis de demanda). As câmaras
setoriais reafirmam que, se antes se exigia que o instrutor tivesse capacidade de transmissão de conhecimentos teóricos e práticos, agora,
exige-se que ele tenha capacidade de desenvolvimento do poder de criação e que oriente o processo de auto-aprendizagem. As câmaras de
indústria e comércio chegaram a organizar grupos de trabalho com instrutores que objetivavam fomentar o desenvolvimento de tecnologias
apropriadas.21 Percebe-se, assim, que a definição curricular está diretamente vinculada à dinâmica de competição tecnológica específica de
12
O Desafio do Educador
cada setor e que o perfil dos educadores vincula-se ao seu envolvimento com as políticas produtivas e empresariais. Em outras palavras, é a
mercantilização radical dos conteúdos de aprendizagem.
Contudo, uma última característica ameniza a análise do tópico anterior. O sistema dual procura incluir no seu currículo reflexões sobre ética e moral, o que lhe confere uma peculiaridade em relação aos outros programas educacionais diretamente vinculados à formação
para o mercado.22 O destaque dado à religião e às disciplinas da área de humanas parece indicar a intenção de diluir ou domesticar o caráter
altamente competitivo do mercado de trabalho, tão disseminado na experiência japonesa, principalmente com jovens a partir dos 14 anos,
quando se inicia o processo de seleção e recrutamento industrial. Embora a intenção seja válida, os resultados em relação ao comportamento social não demonstram grande impacto.23
Um outro modelo de reforma educacional é aquele vivenciado pela Espanha. Na prática, a reforma teve início em 1987, quando da publicação do primeiro documento oficial da Reforma Educativa. Para termos um panorama dos princípios que regem essa reforma, descreveremos o documento-base que orienta a educação primária, regulamentado pelo Dec. 95/1992, que compreende três ciclos de alunos entre 6 e
12 anos.24 Com base em um enunciado que considera a educação primária como definidora de um marco de aprendizagem instrumental para
o desenvolvimento das capacidades de socialização, relação e descoberta, em um ambiente físico e afetivo adequado, o documento-base
descreve seus princípios norteadores. Destacamos sete itens nesta descrição, em virtude de balizarem as diferenças centrais com a proposta
alemã de sistema dual. São elas:
(a) vínculo com a comunidade: o documento ressalta que, embora a escola tenha responsabilidades específicas na definição do marco de
aprendizagem (desenvolvimento das capacidades motoras, cognitivas e de procedimentos), esta deve ser complementada pela família e pelo
entorno. Essa referência na comunidade e na família é uma constante, como destacaremos nos itens arrolados;
(b) a centralidade na formação ética e moral: a escola teria como funções o desenvolvimento de procedimentos, conceitos e atitudes, segundo os diferentes pontos de partida e ritmos de aprendizagem de cada aluno e em razão do período de escolarização. Orienta-se para potencializar a sensibilidade e o comportamento cívico e ético, “indispensáveis para a boa convivência desejada em nosso país; pressupondo a
participação ativa na sociedade”. Deve-se levar em consideração que a Espanha viveu ainda recentemente um processo de redemocratização,
a partir do Pacto de Moncloa, quando todas as correntes políticas - incluindo as que estavam na clandestinidade ; sentaram-se à mesa com as
lideranças franquistas para definir as bases do processo de construção de uma nova institucionalidade política. Essa é uma marca central na
Espanha: o respeito às normas democráticas e a recusa radical da sociedade de uma nova experiência autoritária. Outra referência na preocupação com a formação moral na escola são as orientações pedagógicas de Kohlberg, que enfatizam uma educação para o desenvolvimento
do juízo moral, através do conflito cognitivo provocado pela discussão entre iguais.25 Sugere-se o desenvolvimento de argumentos morais,
noções de convenção social cuja normalidade deriva de consenso social, idéias de organização social, justificativas de prudência (que aludem
aos perigos à integridade física e psicológica do indivíduo) e conceitos pessoais (direito à privacidade de decisão em razão de preferências). A
preocupação com o desenvolvimento do conceito de justiça perpassa todos os documentos da reforma. Ao contrário da proposta alemã (e
de todas as outras que se referem ao mercado de trabalho), não há uma única referência à formação profissional;
(c) princípios baseados no ensino compreensivo: o documento destaca como princípios o ensino compreensivo, a atenção à diversidade e
o ensino personalizado. Por concepção compreensiva entende-se a aplicação de estratégias que respondam a diferentes interesses, capacidades e ritmos de aprendizagem. A atenção à diversidade, sustenta a proposta, não significaria convertê-la em desigualdades, nem mesmo
pretender resolver desigualdades da sociedade, mas utilizá-las com fonte de enriquecimento e complemento da função educativa. A escola
é apontada como tendo objetivos de integração, proporcionando uma formação comum a todos. Concretamente, excluem a possibilidade
de separações por sexo, capacidade afetivo-intelectual ou de procedência social;
(d) flexibilidade metodológica e trabalho em equipe: como bases da prática pedagógica, o documento-base propõe: a diversificação de
métodos, o trabalho em equipe de mestres, a organização do tempo não-letivo, a diversificação de atividades de aprendizagem, a utilização
de instrumentos e recursos diversos (trabalho em grupo, individual, manual e intelectual), autoridade afetiva e flexibilização na organização
de grupos, tempo e espaço;
(e) organização por ciclo e não por curso: os ciclos de dois anos pretendem atender à diversidade, desenvolver o ensino personalizado e
compreensivo e a relação afetiva, facilitando a comunicação pessoal. Para tanto, são fixadas turmas de 25 alunos por sala;
(f) bases curriculares: a fim de garantir a formação comum dos alunos, a autonomia das escolas, a atenção à diversidade, a inovação educativa e a eficácia da prática pedagógica, o currículo proposto estabelece uma inter-relação entre áreas curriculares, adotando-se um planejamento globalizador e construtivista. Planejamento globalizador, no caso, é mais do que interdisciplinaridade; é uma unidade que comporta
aspectos pedagógicos e psicológicos, além da integração de áreas de conhecimento, justamente porque a reforma educacional espanhola
pressupõe a aprendizagem como a relação de um novo material de conhecimento ao cabedal de informações e compreensões que o aluno
13
O Desafio do Educador
possui. Não se propõe, portanto, acúmulo de novos elementos à estrutura cognitiva do aluno, mas um diálogo, envolvendo-o em temas e
proposições não explorados até então;
(g) relação com a família: esse é outro ponto recorrente em todo o documento. A relação com a família dos alunos (por meio de reuniões,
entrevistas e informes) objetiva informá-la do progresso do filho e absorver informações sobre o entorno familiar para o estabelecimento de
estratégias conjuntas. Essa também é uma preocupação central nas reformas portuguesa e australiana.26
Na prática, tais princípios desencadearam algumas experiências extremamente inovadoras em toda a Espanha. Destacamos duas delas:
a implantação da Escola Aberta e a introdução de temas transversais.27 A escola aberta pressupõe a abertura do equipamento para a comunidade, principalmente nos finais de semana. Membros do sistema público educacional afirmam que ao contrário do que ocorria antes da
reforma, quando a escola era tratada como patrimônio da secretaria de educação ou de seu diretor, com a escola aberta a escola retornou
a ser patrimônio da comunidade onde está inserida. Escolas públicas abrem-se no final de semana à população e oferecem aulas de dança,
dança folclórica, torneios de futebol e xadrez, cursos de história da arte e assim por diante. Ocorrem, eventualmente, problemas, como casos
de apedrejamento da escola. Algumas escolas do interior chegaram a suspender o programa, retomando-o em seguida por considerarem um
problema social e cultural e, como tal, objeto do trabalho educacional.
Os temas transversais,28 por sua vez, são eixos que “não estão incluídos diretamente em nenhuma área do currículo. Tampouco fazem referência a etapas educativas específicas nem a nenhuma idade concretamente. Se estendem, portanto, a todos os cursos (educação infantil,
primária e secundária) e são de caráter transversal” (Samaniego 1994). São destacados temas, tais como: educação ambiental, educação para
a paz, educação do consumidor, educação de vias públicas, educação para a igualdade, educação para a saúde e educação sexual. Todos os
temas são trabalhados por todas as disciplinas, conformando a necessidade da interdisciplinaridade, e trazem para a sala de aula a vivência
concreta dos alunos.
A experiência espanhola aproxima fortemente a escola da comunidade em que está inserida, desarticula todo o aparato de recursos
pedagógicos pensados de maneira massificada e que define previamente conteúdos gerais obrigatórios (como no caso de livros didáticos),
introduz ciclos e o acompanhamento personalizado do aluno, priorizando a formação moral em detrimento da formação para o mercado.
Mas apresenta impasses. Um deles é a preocupação tão acentuada com a formação moral que acaba resvalando numa concepção prévia
de cidadania, cristalizando comportamentos sociais aceitáveis, sem qualquer questionamento.29 Outro problema ocorre na introdução dos
temas transversais que acabam naturalizando certos temas. Em outras palavras, os temas não surgem de questões ou dúvidas vivenciadas
pelos alunos, o que poderia torná-los um complemento curricular ou novas disciplinas. Deve-se levar em consideração que os eixos transversais são concebidos para propiciar um espaço interdisciplinar e para a experiência concreta se expressar nas salas de aula. Novamente, o
formalismo da reforma pode trair seus princípios, enrijecendo os temas transversais.
Em maio de 94 ocorreu o XV Encontro de Movimentos de Renovação Pedagógica, envolvendo professores de toda a Espanha. As conclusões do encontro são extremamente críticas. Destacamos algumas das principais críticas ao processo da reforma educacional:
(a) os professores não se sentem co-responsáveis pela reforma, pois dizem não possuir informações mínimas;
(b) sugerem uma ordenação territorial do sistema educativo (rural, suburbano e urbano), priorizando zonas marginais, desfavorecidas
ou rurais. Afirmam que tal proposta não é levada em consideração, dificultando a especialização de orientações, formação de professores,
animação social, implantação de laboratórios e serviços de bibliotecas;
(c) criticam a formação centrada em cursos e propõem a adoção de cursos-programa, mais ligados à prática e que reforçam grupos de
trabalho.
Como se percebe, nenhuma reforma educacional em curso parece acabada e todas possuem problemas internos e incoerências. Contudo, os dois exemplos demonstram uma convergência muito clara neste final de século que é a aproximação da escola e do processo educativo à comunidade ou às empresas, derrubando afeudalização do equipamento escolar. Também demonstram duas vertentes muito distintas
em relação às estratégias adotadas: por um lado, aquelas que privilegiam a formação para o mercado de trabalho (educando para formar os
polivalentes, mais criativos, intelectualizados e participantes do processo produtivo) e, por outro, aquelas que privilegiam a formação moral,
personalizada, integral (ou globalizada, como denominam os espanhóis), rompendo com o isolamento de disciplinas e a estrutura seriada.
O professor, nos dois casos, sofre um profundo impacto. É instado a superar sua formação compartimentada e especializada, a reorganizar seu tempo de trabalho (priorizando atividades extra-sala), a trabalhar em equipe, a se envolver com a comunidade, a atualizar-se constantemente. Ele próprio torna-se um polivalente, incorporando à tarefa de lecionar novas tarefas, como: administração, relações públicas,
psicólogo, entre outras. Como nas empresas, os níveis hierárquicos da estrutura escolar diminuem e o professor, pouco a pouco, ocupa o
espaço de direção pedagógica. Assim, a formação do professor ganha centralidade. Deixa de ser realizada em etapas estanques, que induzem
à ascensão na carreira (como cursos de especialização, de habilitação, de pós-graduação) para ocorrer cotidianamente, em serviço.
14
O Desafio do Educador
Sem dúvida, os novos contornos do professor neste final de século projetam uma profissão ao mesmo tempo empolgante, desafiadora
e estressante. A análise desse novo perfil é o tema do último item deste texto.
NOVAS PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS: A EMERGÊNCIA DO PROFESSOR BOI DE CAMBÃO E A RUPTURA DA ESCOLA-FEUDO
José Esteve, em artigo citado anteriormente, destaca que o professor europeu vive um mal-estar docente neste final de século. Para o
autor, são fatores que geram tal sentimento:
(a) aumento de exigências em relação ao professor: é cada vez maior o número de responsabilidades. Além do domínio da disciplina, pede-se que ele seja pedagogo, organizador de grupo, que cuide do equilíbrio psicológico e afetivo dos alunos, da integração social, da educação
sexual, e assim por diante. Tal aumento de exigência não seria acompanhado, segundo o autor, pela alteração na formação do professor;
(b) inibição educativa de outros agentes de socialização: a família, em virtude da incorporação da mulher no trabalho e da redução do
número de seus membros e horas de convívio, vai delegando à escola maior responsabilidade no que diz respeito a um conjunto de valores
básicos;
(c) desenvolvimento de fontes de informação alternativas: os meios de comunicação alteram o papel transmissor do professor, obrigando-o a integrar tais meios à aula;
(d) ruptura do consenso social sobre educação: atualmente, segundo Esteve, a sociedade encontra-se perante uma socialização divergente: uma sociedade pluralista que defende modelos de educação opostos e a aceitação de conteúdos multiculturais;
(e) modificação do apoio da sociedade ao sistema educativo: os pais sentem-se desamparados em relação ao futuro dos filhos, em especial, em virtude do aumento das taxas de desemprego. Percebem que a educação não gera automaticamente maior igualdade social, abandonando a idéia de ensino como promessa de um futuro promissor. Por outro lado, a emergência de uma sociedade voltada para o prazer
individual (o que Lipovetsky denomina de personalização social) acaba por gerar uma defesa incondicional dos alunos, sejam quais forem o
conflito e a razão que assistem ao professor;
(f) menor valorização social do professor: como o status social é estabelecido em termos exclusivamente econômicos, a função de docente passa a ser desconsiderada ou relativizada;
(g) mudança dos conteúdos curriculares: a velocidade da criação e da socialização de informações gera uma permanente insegurança a
respeito da atualidade do conhecimento à disposição do professor. O autor questiona-se: o que pode ser considerado um conhecimento útil
aos alunos?
(h) escassez de recursos materiais: o autor cita a redução de recursos públicos destinados à educação na Europa: 2,2% do PIB na Grécia,
3,3% na Espanha, 4,2% em Portugal (a média nos países desenvolvidos é de 6%);
(i) mudanças na relação professor/aluno: o autor destaca a impunidade crescente dos alunos. Cita, como ilustração, o número de agressões sofridas por professores, em 1979, nos Estados Unidos: 113 mil, envolvendo 5% do total de docentes do ensino público;
(j) fragmentação do trabalho do professor: finalmente, destaca o acúmulo de tarefas, envolvendo administração, programação, avaliação,
reciclagem, orientação aos alunos, atendimento aos pais, participação em seminários e reuniões de coordenação.
Subtraindo-se um certo fatalismo nas observações do autor, suas ponderações parecem coincidir com o sentimento dos professores de
ensino fundamental reveladas por uma série de entrevistas recentes. A título de ilustração, destacamos uma dessas pesquisas, realizada em
1995, com professores australianos.30 Os professores pesquisados sentem-se num estado de profunda alteração e instabilidade. Sentem a
alteração do currículo, da filosofia administrativa e de direção. Sentem a redução de recursos e o aumento de expectativas dos pais. Em relação a este último aspecto, afirmam que se, por um lado, a participação crescente dos pais ajuda a superar problemas, por outro, gera tensão,
porque transfere a demanda crescente por resultados, em especial nesse momento de maior competitividade social.
Lamentam que não estejam conseguindo contribuir efetivamente, como desejariam, nos debates e nas mudanças em curso. Como ressalta Esteve, percebem que acumulam funções de aconselhamento, cuidado, guarda, assistência social, assistência nutricional e vivenciam o
fato de que a profissão de professor perdestatus social. Nas palavras de uma professora:
Quando eu comecei a lecionar, realmente era uma profissão. Eu tinha orgulho de dizer: eu sou um professor, porque ocupava uma posição que era respeitada. Eu acho que estamos perdendo uma parcela desse status profissional. Temos perdido status na comunidade.
15
O Desafio do Educador
Se o conceito social decai, os professores sentem que ainda mantêm o respeito dos pais dos alunos. Muitos afirmam que, ao conversar
com os pais, estes comentam que seus filhos têm sorte em tê-los como professor. Mas, afinal, o que ocorre com a imagem social do professor? O que se espera como resultado de seu desempenho? Enfim, qual o papel do professor neste final de século e nos próximos anos?
Para propor uma resposta a essas questões, sugiro uma análise distinta de dois aspectos que aparecem desordenadamente nas exposições de Esteve e dos professores australianos. Em primeiro lugar, cabe compreendermos a mudança de comportamento social (inclusive dos
alunos) neste final de século, criando novas expectativas em relação à educação. Em segundo lugar, precisamos compreender como o papel
do professor altera-se profundamente, exigindo uma nova postura social e a construção de uma nova dinâmica escolar. Em outras palavras,
a mudança de postura profissional necessariamente exige uma nova organização e um novo papel para o equipamento escolar.
Em relação à mudança de comportamento social neste final de século, observa-se que o processo de globalização de mercados define
um novo patamar de competição tecnológica em todo o mundo. Assim, qualquer localidade passa a produzir, tendo como adversários os
países mais avançados na produção de dada tecnologia por ramo produtivo. A globalização induz, a partir de então, a uma maior racionalização dos custos de produção, maior investimento tecnológico e enxugamento do pessoal fixo das empresas. O desemprego, o subemprego e
os contratos temporários aumentam consideravelmente, provocando muita insegurança e enorme competição pelos postos de trabalho. A
conseqüência é que se a globalização unifica os mercados, por um lado, fragmenta a ação social, por outro. Habermas sustenta que este final
de século experimenta o surgimento de normas particularizadas de conduta, normas grupais de autodefesa, momento em que cada grupo,
potencialmente, defende seu território, numa evidente crise do conceito de humanidade e do conceito de direitos fundamentais do homem.
Surgiriam guetos com uma profunda intolerância cultural. Daí o renascimento de movimentos racistas e xenófobos nos últimos anos.31
Por sua vez, a competição em todos os níveis da convivência social e a profusão de produtos oferecidos à sociedade estariam dando
ensejo a uma criança e um jovem mais ansiosos. Como a nova geração recebe uma gama inimaginável de informações e mercadorias que
rapidamente são superadas, instala-se uma nova relação com o tempo. As novas gerações experimentam, com sofreguidão, a necessidade
de se sentirem contemporâneas ao presente. Em outras palavras, toda novidade escapa-lhes por entre os dedos, porque a informação ou
produto obtido há instantes é superado em poucos dias. Hobsbawm, em A era dos extremos,afirma, perplexo, que “quase todos os jovens de
hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem” (1995, p.
13). Plagiando Hobsbawm, poderíamos afirmar que os jovens sentem uma profunda sensação de que tudo é passado e perdem a capacidade
de cultuarem expectativas em relação ao futuro, porque simplesmente não têm o menor controle sobre o tempo e a sucessão de fatos. Mais
que nunca, viver tornou-se absolutamente imprevisível. Daí uma profunda ansiedade e pragmatismo. Não há tempo, sentem os jovens, para
se construírem conhecimentos ou nexos teóricos, justamente porque suas dúvidas estão reduzidas aos problemas imediatos, do cotidiano.
Além disso, são induzidos a relativizar a necessidade de teorias que sustentem uma explicação mais unitária do mundo, em virtude de experimentarem uma cultura do supérfluo e do relativismo de comportamentos.
A ânsia por respostas imediatas leva a uma relação também pragmática com a escola e o professor. As novas gerações, via de regra, sentem dificuldades em estabelecer diálogos entre teorias distintas, em tolerar o difícil processo de construção de explicações mais sofisticadas
sobre a realidade. O profundo pragmatismo em que estão mergulhadas induz a uma prática calculista. Uma expressão desse comportamento é a “cultura da nota”, quando os alunos envolvem-se apenas com aqueles conhecimentos que certamente serão cobrados nos testes e
avaliações. Dedicam-se a exaustivos mecanismos de trocas de anotações às vésperas das provas, desaparecendo o prazer pela descoberta,
pelo sentimento de partilhar a construção de um conhecimento. Sua relação com os professores é de clientela - os alunos exigindo informações acabadas, precisas e de uso imediato.
A sobrevivência da escola reside na construção de espaços que contestem e marchem na contramão desse processo de fragmentação
social, aumento de competitividade e pragmatismo exacerbado. A escola do século XXI, portanto, não é aquela que prioriza equipamentos
de informática e a construção de sistemas de informação em rede, mas aquela que retoma o papel de socialização e preservação dos laços
de solidariedade, justamente porque a escola é um serviço público. Como tal, só haverá sentido na sua permanência se os homens sustentarem normas de conduta e buscas coletivas, universais. A fragmentação em curso, em outros termos, depõe contra os objetivos da prática
de educar.
Em termos práticos, o que estou sugerindo é que a escola, na qualidade de serviço público, seja concebida como um centro comunitário,
pautado pela construção social do conhecimento e por atividades culturais. Assim, deve tornar-se um local de prestação de serviços comunitários dentro deste prisma, a saber: equipando bibliotecas com jornais, revistas e atividades de promoção de debates de interesse comunitário e lançamento de livros; promover pesquisas e entrevistas no entorno da escola, compreendendo a dinâmica social, as demandas da
comunidade e a avaliação que a população faz dos serviços prestados; criando instrumentos de comunicação e informação para a comunidade, em especial, relacionados aos problemas concretos vivenciados pela população local (como emprego, qualificação, desenvolvimento
regional, lazer, troca de experiências etc.); produzindo conhecimento, por meio da publicação de boletins voltados à comunidade, livretos
com poesias e literatura, informes técnicos e textos de reflexão, polêmica e debates; criando uma real rede de ensino, na qual as escolas
possam compor projetos pedagógicos integrados (como seria o caso de projetos de estudo de ecossistemas diferenciados de cada bairro,
16
O Desafio do Educador
em que alunos de uma escola analisariam e fariam exposições de seus estudos sobre o bairro a alunos de escolas de outros bairros). 32 Os
conteúdos curriculares teriam que ganhar maior concretude, estariam mais articulados à experiência cotidiana e envolveriam não apenas os
alunos, mas toda a comunidade, propiciando espaços coletivos de construção de identidades sociais, normas de conduta e projetos sociais.
O conhecimento e o estudo, enfim, ganhariam significado social e histórico.
O professor, inserido nessa nova perspectiva escolar, torna-se um pesquisador, um investigador da realidade local, articulando-a com
os conhecimentos disponíveis e oferecendo espaços de reflexão à comunidade; o conhecimento apresentado supera a departamentalização
da realidade imposta pela estrutura disciplinar estanque. É, ainda, um facilitador da produção de conhecimento e de busca de soluções. Por
fim, participa da gestão escolar, propiciando uma vinculação entre demandas pedagógicas e demandas sociais apresentadas pela comunidade. A gestão escolar, então, deixa de ser burocrática para adotar um sistema gerencial, por projetos, pressupondo uma estrutura colegiada.
Para tanto, é necessário repensarmos a formação desse profissional, introduzindo a formação em serviço, que acompanha as dúvidas e os
impasses emergentes, articula redes de conhecimento e informação e constrói espaços coletivos que associam a teoria à prática concreta.
Esses espaços formativos, portanto, não estariam centralizados no topo da estrutura administrativa do sistema educacional, mas estariam
montados numa estrutura em rede, associando escolas e estruturas de pesquisa e informação.
O professor do próximo século teria um perfil mais articulador e de viabilização do contato dos alunos, e de suas comunidades, com o
conhecimento, num processo participativo, crítico, fundamentado nas aspirações e nos impasses cotidianos. Definitivamente, deixa de ser
compreendido como um boi de coice, que evita o risco e controla o processo educativo, e volta a ser um orientador, um intelectual, inserido
num projeto social e não num projeto burocrático, técnico, que define a priori uma dinâmica social mais adequada ou que serve a interesses
privados, individualizados. O educador, assim, deixa de estar a serviço de uma clientela e passa a promover espaços públicos, marcados pelo
diálogo entre diferentes, na busca da construção de uma unidade moral que garanta a liberdade e os direitos dos indivíduos.
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O Desafio do Educador
NOTAS:
rada a respeito da estrutura curricular adotada no Brasil. Contudo, vale destacar que não houve
na história da educação brasileira uma única linha filosófica. Assim, nos anos 20/30, adotava-se
1. Cadernos de Literatura. São Paulo: Instituto Moreira Sales, março de 1997. Originalmente publicado na Revista Educação & Sociedade, volume 20, n. 66, Campinas: Unicamp, abril de 1999.
o progressivismo (inspirada em Dewey, Kilpatrick, Decroly e Montessori) e uma linha tecnicista que buscavam, antes de mais nada, a coesão social. Em Minas Gerais, na reforma dirigida
2. Frederick Winslow Taylor (1856-1915), engenheiro americano considerado o criador da organi- por Francisco Campos e Mário Cassanta, foram implementados trabalhos de grupo ao lado
zação científica do trabalho, pregava que a seleção científica dos homens pressupunha a busca da preocupação com noções de higiene, civismo e instrução moral. Após a Reforma Francisco
do homem do tipo boi: “espécime que não é tão raro na humanidade, nem tão difícil de encon- Campos e a criação do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, fundado
trar que seja demasiado caro. Pelo contrário,” ¾ afirmava ¾ “era um homem tão imbecil que não em 1938), adota-se uma concepção de currículos enciclopédicos e cria-se um corpo de adminisse prestava à maioria dos tipos de trabalho”. (apud Braverman, op. cit. p.99) Ver, a respeito, Rago tração educacional: orientadores, inspetores, supervisores. O objetivo central seria o ajuste do
e Moreira 1984; Braverman 1981, em especial o capítulo 4, “Gerência científica”. O homem-boi comportamento individual ao ambiente social, afinado com as demandas do processo de indusseria aquele pouco crítico, tolerante ao esforço físico e adaptado à rotina de movimentos.
trialização em curso. Nos anos 60 haverá um período de interregno em virtude da ascensão de
movimentos sociais de grande projeção pública e do crescimento de movimentos nacionalistas
3. Teoricamente, o conceito de cidadania surge em meados deste século, com base nas elaborações de Marshall. Para o autor, a cidadania significaria a convergência de três direitos experimentados simultaneamente: o direito civil (individual, de liberdade de expressão, de ir e vir), o direito
político (possibilidade de eleger ou ser eleito representante e de escolher os rumos políticos de
sua nação) e o direito social (o direito ao bem-estar, à moradia, à educação, entre outros). Duas
vertentes apropriaram-se diferenciadamente desse conceito. Uma primeira, filiada à tradição
grega, que privilegiou a noção coletiva da cidadania, o direito político sobre os individuais; e uma
segunda, filiada à tradição romana, que privilegiou os direitos individuais em detrimento dos
coletivos.
4. John Maynard Keynes (1883-1946) foi pioneiro da macroeconomia. Foi professor em Cambridge e em 1930, em meio ao turbilhão do crash de 29, escreveu o seu Tratado sobre a moeda, base
para seu estudo mais importante: Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Nesse último
estudo demonstrou que o nível de emprego estaria diretamente relacionado com a renda que
é gasta no consumo. O desemprego, assim, só poderia ser combatido com investimentos. Em
outras palavras, somente com a intervenção estatal, adotando-se uma política de incentivos e
investimentos, poder-se-ia combater o desemprego, preservando altos níveis de renda. Para tanto, o Estado deveria ser provido de mecanismos de regulação da taxa de juros e de expansão dos
no país. Mesmo no período, mantém-se uma certa ambigüidade. Autores como Paulo Freire e
Erich Fromm aparecem ladeados, nas orientações curriculares por Jaspers, Manheim e orientações do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado em 1955, elaborador da ideologia
nacional-desenvolvimentista). A elaboração pedagógica, entretanto, assume uma abordagem
mais sociológica. Com o regime militar, os acordos com a Usaid (United States Agency for International Development) passam a orientar uma linha mais racionalista, com apoio direto das
universidades de San Diego e Wisconsin, separando a prática da teoria curricular e enfatizando
o ensino profissionalizante, a especialização docente e o planejamento. Esse é o período que se
aproxima das concepções que aqui denomino de educação fordista. Mesmo assim, a orientação
teórica permanece ambígua: são adotados autores tradicionalistas (Tyler, Taba, Saylor, Fleming)
e, com menor peso, autores tecnicistas (Bloom e Gagné). Embora mantenham como objetivo
da educação a reprodução de valores, aparecem, surpreendentemente, orientações curriculares sustentadas por linhas existencialistas e fenomenológicas. Somente nos anos 80, alguns
autores e algumas reformas curriculares introduzem uma abordagem crítica no contexto de
crise internacional da educação fordista, como analisaremos no próximo item. Para uma análise
abrangente da histórica curricular brasileira ver Moreira 1997a.
8. Ver Weber 1981.
gastos públicos. Suas propostas foram adotadas pelo governo Roosevelt, em 1933, como base
do New Deal. Sua política induziu os empresários a estabelecerem acordos sobre preços, salários 9. Deve-se salientar que essa não é a postura apregoada pela escola francesa que compreende
e produção; determinou-se a redução das horas de trabalho; criou-se o salário mínimo nacional o currículo como plano de estudos, ao contrário da noção de aperfeiçoamento da vigilância dos
e a convenção coletiva de trabalho; criou-se um programa de casa própria, de reflorestamento e estudantes e refinamento do conteúdo. Ver Hamilton 1990, Forquin 1993.
combate a incêndios; o governo assumiu as dívidas dos agricultores familiares e ofereceu facili-
10. Ver Esteve apud Nóvoa (org.) 1995.
dades de crédito. Em suma, o keynesianismo acabou por conformar uma forte política de regulação da economia pelo Estado e a adoção de políticas sociais permanentes do Estado Capitalista, 11. As entrevistas recentes demonstram que, em sua maioria, os pais vislumbram nas escolas
como suporte ao equilíbrio econômico e social.
5. O fordismo é o modelo elaborado por Henry Ford (1863-1947), industrial americano pioneiro
da indústria automobilística e inovador no processo de produção. Introduziu a esteira elétrica na
produção ¾ ironizada por Charles Chaplin em Tempos modernos ¾ no início do século, quando
da produção do Ford T (conhecido no Brasil como Ford Bigode). A base de seu modelo era o
duas funções: a garantia de um futuro para seus filhos melhor que o seu presente e um local
de proteção, assistência e acompanhamento dos filhos enquanto trabalham. Daí a dificuldade
de os pais aceitarem os movimentos grevistas na área de educação, justamente porque grande
parte fica desprovida na sua rotina e na divisão de tarefas cotidianas que comportam o trabalho
e a administração do lar.
princípio de que uma empresa deveria dedicar-se apenas a um produto, o que facilitaria o do- 12. Essa é a principal linha de explicação da teoria da regulação para a crise fordista. Ver Harvey
mínio sobre os fornecedores de insumos, baixando os custos, e adequando os produtos de alta 1992.
tecnologia ao consumo de massa. Agregava-se a esse princípio o de produção em massa, com a
contratação de operários especializados.
6. Ver Salm 1992.
7. Assim, mais que difundir conceitos de democracia e cidadania, tal como propalava John Dewey
no início do século, a concepção ocidental de educação vinculou-se à padronização de hábitos
racionais de trabalho, produtividade e consumo. Não cabe a este espaço uma reflexão mais apu-
13. O aumento sistemático das taxas de juros elevará o índice dos juros pagos pelo Brasil nos
empréstimos internacionais, ao longo da década de 1980, de 2,5% ao ano para 25% ao ano. Para
uma análise do sistema financeiro mundial no período e da tentativa de recuperação da hegemonia norte-americana, ver Tavares e Fiori 1997; Singer 1997. O texto de Paul Singer sustenta que, a
partir de 1971, estabeleceu-se a desregulamentação total dos mercados financeiros e a crescente
liberdade de comércio, possibilitando liberdade para os capitais se deslocarem no espaço global,
18
O Desafio do Educador
o que inviabilizou qualquer controle nacional sobre os investimentos e fluxos de capital, inclusive 22. Esse não é o caso da formação japonesa, que procura incentivar, no ensino fundamental, o
o especulativo.
14 Em relação às novas tecnologias de gestão de mão-de-obra, vale destacar a emergência dos
modelos toyotista (Japão), khalmarista (Suécia) e da Emilia Romagna (Itália), que desmontaram
as linhas de produção, implantaram grupos de produção (denominados células de produção ou
sistema de docas) e estimularam a participação na gestão e na definição de rotinas diárias.
trabalho em grupo e a criatividade. Até os 14 anos, o aluno não é atendido individualmente, não
há preocupação com o tempo, mas com o processo de descoberta de soluções e o professor é um
apoiador, estimulando a troca de habilidades no grupo e acompanhando a evolução dos grupos
na resolução de exercícios que podem demandar mais de uma semana de esforços, até se superar o exercício em questão. Esse também não parece ser o caso das experiências recentes em países de língua inglesa. A título de ilustração, a Universidade de Nottingham vem desenvolvendo
15 A nova tecnologia de gestão de mão-de-obra dos anos 90 não esteve determinada exclusiva- programas modulares, nos quais o aluno opta por disciplinas que vão compondo certificados de
mente pelas novas tecnologias de produção. O modelo japonês, também cunhado como modelo habilitação técnica, antes mesmo da conclusão final do curso. Algumas escolas técnicas federais
toyotista, foi sendo desenvolvido desde meados dos anos 50. No início daquela década, a Toyo- brasileiras, em especial as agrotécnicas, estudam a adoção desse modelo. Um dos objetivos é o
ta, que produzia teares industriais, entra em crise e, após realizar um acordo com um pool de ingresso quase imediato de especialistas no mercado de trabalho.
bancos, introduz a produção de carros, demitindo metade de seus empregados. Pouco depois a
Coréia, grande exportadora de carros para o Pacífico, diminui sua produção, o que proporciona
o crescimento de vendas da Toyota. Taiichi Ohno, engenheiro-chefe da Toyota, inicia, então, a
elaboração de um sistema de produção que compartilhe aumento de produtividade com menor
número de empregados. Seu esforço estará baseado no just-in-time, obrigando todos os trabalhadores a se conectarem num ritmo único de produção, sem o acúmulo de estoques em nenhuma seção; o acúmulo de funções (ou desespecialização) em um mesmo operário; a diluição das
diferenças entre planejamento e execução da produção; um sistema de informação visual, no
23. Em 1996 foram registrados mais de dois mil casos de assassinatos motivados por racismo,
na Alemanha. Em toda a Europa, o desmantelamento do Welfare State e a crise de desemprego
gerada pela introdução de novas tecnologias alimentam práticas xenófobas dos mais atingidos pela insegurança social. Na Alemanha, as privatizações (como no caso dos Correios que,
privatizados, aumentaram as contratações de adolescentes) e a reconstrução do território correspondente à ex-Alemanha Oriental (para onde são destinados 100 bilhões de dólares anuais)
parecem agravar as diferenças sociais.
qual o operário de uma seção poderia perceber, a distância, o ritmo de produção de outros gru- 24. Utilizo, como referência, o documento Educació primària: Nou sistema educativ. Barcelona:
pos de trabalho; e o declínio da representação sindical. Quanto a este último aspecto, a Toyota Genralitat de Catalunya, maio de 1994.
liderará um movimento empresarial, em 1954, que acabará por diminuir o poder dos sindicatos
no processo de negociação salarial, instaurando negociações diretas, empresários-empregados,
caso a caso, e não por categoria profissional.
25. São inúmeros textos citando-o como referência. Cito, entre tantos exemplos, o livro de Alfredo Goñi Grandmontagne, La educación social: Un reto para la escuela, Barcelona: Ed. Graó
de Serveis Pedagògics, 1992. O autor destaca a orientação educacional que estimule um claro
16 O bodynet está sendo desenvolvido por Olin Shivers, do Laboratório de Ciência de Compu- entendimento dos princípios universais de justiça, evitando-se o relativismo moral e as doutrinas
tação do Massachusetts Institute of Technology (MIT). É um equipamento que associa celular, sectárias. Para tanto, sugere que o professor tenha um conhecimento acerca do nível de compreagenda eletrônica, laptop, rádio e TV, vinculando-os aos sistemas de comunicação e informação. ensão moral dos alunos e familiaridade com a teoria de Kohlberg, ou a inspiração cognitivo-evoTodos esses equipamentos estariam agregados em óculos providos com diodos fotossensíveis lutiva (o que compreenderia também a Piaget). O autor sustenta que vários estudos corroboram
que monitoram o branco dos olhos. Assim, ao olhar para o lado direito, aciona-se o contato com a tese de que a escola, e não somente o contexto familiar, pode exercer um influxo positivo
a secretária eletrônica, ao olhar para o lado esquerdo, envia-se uma mensagem por e-mail. Um no desenvolvimento moral. Chegam, inclusive, a revelar um trabalho escolar de importância
anel faz a função de mouse e com leves toques digita-se uma palavra ou um comando visualiza- específica, a de atender primordialmente à prevenção daqueles meninos que estão começando
do numa minúscula janela no canto inferior dos óculos. Ver Dertouzos 1997.
17 News & World Report, 41-52, 28 de junho de 1993.
18 Para uma compreensão mais aprofundada dessa dinâmica, ver Krugman 1997.
a decair. Outros autores sugerem como fontes de trabalho: a) os conteúdos curriculares, tais
como: conseqüências da telemática nas relações pessoais, conflitos morais - da tragédia grega
ao cinema etc; b) dilemas hipotéticos; c) dilemas reais vivenciados na própria escola, tais como:
exames, roubos, castigos, racismo.
19 Os ramos produtivos mais importantes são: eletroeletrônica, automobilismo e indústrias de 26. Em Portugal, há toda uma linha editorial do Ministério da Educação voltada para os pais, em
base, predominantemente voltados para a exportação. Nessa região estão indústrias de ponta que são explicitados a dinâmica, os objetivos e os elementos de cada fase da reforma. São procomo Bosch, Porsche, IBM, entre outras. As empresas pequenas e médias ocupam 50% do total duzidos livretos, vídeos e todo um aparato de atendimento aos pais. Na Austrália, desde meados
dos trabalhadores. As descrições sobre escola dual foram recolhidas do livro La formació pro- dos anos 70, o Sindicato Nacional de Professores atua diretamente na elaboração das políticas
fessional dual: Jornades Baden-Württemberg / Catalunya. Barcelona: Institut Català de Noves educacionais. A partir de sua atuação, formulou-se uma política diferenciada para bairros periféProfessions, 1989.
ricos, de origem estrangeira (normalmente de língua espanhola) a partir da constatação de que
as dificuldades cognitivas desses alunos residiam no bloqueio que enfrentavam, como migrantes
20. O custo da formação profissional em 1984 foi de 41 milhões de marcos, sendo que pouco
que eram, para compreender hábitos e comportamentos diferentes da cultura familiar.
menos de 30% refere-se à remuneração dos instrutores. As especializações mais demandadas
foram: mecânica industrial (especialização técnica de produção, especialização técnica indus- 27. Para uma análise mais detalhada da experiência de reestruturação pedagógica numa escola
trial, especialização em máquinas e sistemas, instrumentação), torneiro mecânico (torno, torno espanhola, acompanhando seus princípios, suas atividades e seus dilemas, ver o excelente relato
automático, fresadora e esmeril), mecânico de construção (metalurgia e construção naval, equi- de Hernández e Ventura 1998. A experiência descrita e analisada trata da escola Pompeu Fabra,
pamentos), mecânica de instalações (aparelhamento e manutenção) e mecânica de automóveis. de Barcelona.
21. La formació professional dual: Jornades Baden-Württemberg / Catalunya, op. cit., p. 54.
28. Os temas transversais foram incorporados aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s),
que contaram com a assessoria de César Coll, diretor da reforma educacional espanhola. O MEC
19
O Desafio do Educador
propõe, como eixos, os seguintes temas: ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural, edu- fetichizada. Ver Sennett 1988; Debord 1997; Hirst 1992.
cação para o consumo e ensino sexual.
32. Acentuo a importância primordial da revisão da compreensão do equipamento escolar, de
29. O Ministério da Educação sugere, em alguns ciclos, uma série de atividades em que os alunos seu projeto estratégico e da metodologia de construção do conhecimento, em detrimento da
são convidados a apresentar seus valores morais e escrevê-los num papel. Em seguida, eles são valorização absoluta das técnicas e dos equipamentos a serem adotados, tão disseminados em
convidados a analisar o conjunto de valores (o que consideram um bom comportamento e um nossa cultura educacional. Contudo, há uma série de estudos que aponta possibilidades concrecomportamento equivocado) e, daí, nasce uma terceira atividade que propõe o estabelecimen- tas de aplicação de novas tecnologias no processo educativo. Cito, de passagem, duas abordato de regras coletivas, acordadas entre todos da sala de aula. Tal experiência, embora muito gens recentes. Dertouzos, em livro citado anteriormente, sugere a criação de um banco de dados
criativa, pode prender-se a um ritual muito formal, esquecendo-se de que as regras de conduta comunitário, utilizando a Internet na montagem de arquivos internacionais. Um exemplo de sua
são renegociadas cotidianamente na sociedade. O formalismo, muitas vezes, parece dominar a proposta poderia ser a criação de um arquivo ecológico mundial, compartilhado por alunos de
experiência espanhola.
30. Cito o relatório denominado What do teachers think?, Leichhardt: Australian Teaching Council, 1995. Trata-se do relatório de análise de 13 grupos focais ocorridos na metade de 1994, envolvendo professores dos municípios de Sydney, Ballarat, Bathurst, Brisbane, Adelaide, Melbourne
e Perth.
nível médio. Outra possibilidade seria a criação de uma biblioteca mundial descentralizada, em
que cada país forneceria sua colaboração em literatura ou ciências para ser acessada livremente
por qualquer instituição educacional. Elizabeth Macedo, em seu texto “Novas tecnologias e currículo”, adota uma postura mais crítica em relação ao tema. Afirma que o uso do computador na
sala de aula, por meio de programas instrucionais (Ensino assistido por computador), funciona
como um recurso didático a mais, mas impossibilita que o próprio professor programe-os, vis-
31. Há toda uma literatura e uma profusão de conceitos que exploram essa mudança de compor- to que os softwares organizam o conhecimento segundo uma lógica linear de conceitos. Por
tamento. Sennett sustenta a disseminação de uma ideologia da intimidade que promoveria os sua vez, os simuladores de experiências científicas ou jogos, ou ainda programas de modelação
grupos privados, mais restritos, e abominaria todos os espaços públicos de convivência. Os espa- reduzem, segundo a autora, o contato do aluno com situações reais, substituindo a percepção
ços públicos seriam, pelo contrário, motivadores de um certo rancor ou cinismo, que destruiriam sensória e física de um problema à sua representação matemática. As fontes de pesquisa seriam
os mecanismos de legitimidade da autoridade pública. Lipovetsky propõe o conceito de perso- a utilização mais promissora do computador na escola, mas teria o inconveniente de transfornalização social que estaria gerando um profundo movimento narcisista, fechando os indivíduos mar as informações em verdades absolutas, não havendo lugar para a suspeição crítica do aluno,
em pequenos grupos intolerantes e criando um grande vazio de projetos sociais. Paul Hirst suge- reduzindo a pesquisa a um ato rotineiro de busca de informações. Finalmente, os aplicativos,
re uma profunda burocratização da política e uma prática corporativa social. Maffesoli, por sua como os editores de texto, estariam sobrevalorizando a forma em detrimento dos conteúdos.
vez, recentemente elaborou ensaios que procuram demonstrar que a noção de sociedade estaria Ver Dertouzos, op.cit., principalmente o capítulo 8, que trata da área de ensino; ver também
sendo substituída pela lógica tribal urbana. E até mesmo Debord ressurge em muitos círculos Macedo 1997.
intelectuais que retomam sua tese de emergência de uma sociedade do espetáculo totalmente
The educator’s profile for the twentieth first century: From object to subject of educational politics
ABSTRACT: This article analyzes the impacts of new tecnologies and changes in work market dynamics over educational practices at fundamental and medium school. It dettaches
some international experiences which search for implanting educational reforms which approximate schools to communities, and it ends suggesting some exigences, imposed by these
changes, to the educator’s profile at this century end.
20
O Desafio do Educador
Vinte anos de reformas educacionais
1. REFORMAS OU INOVAÇÕES?
A década de oitenta do século passado marcou uma vaga de reformas educacionais em todo o mundo. Inicialmente, em virtude da pujança econômica dos países do leste asiático e do seu significativo investimento na educação de sua população, os projetos voltados para
a formação de profissionais mais qualificados para criar e operar com tecnologias sofisticadas ganharam a atenção de inúmeros artigos e
ensaios. O vínculo entre novas exigências profissionais e projetos educacionais ganharia projeção em diversas proposições internacionais.
É possível destacar três delas:
* Escola Dual Alemã, desenvolvida em Baden-Württemberg. As escolas envolvidas com este modelo são acompanhadas por comissões
especiais, compostas por empresários, sindicatos de trabalhadores e técnicos do governo. Tais comissões avaliam o currículo e o desempenho escolar. Empresários investem em bolsas de apoio aos alunos e à formação de professores por ramo produtivo. Assim, o
currículo desenvolvido é dinâmico e se articula a partir das inovações tecnológicas de cada ramo produtivo e demandas de mercado1.
* Propostas do Banco Mundial. Os programas de fomento às reformas educacionais desenvolvidos pelo Banco Mundial priorizaram a
formação para o mercado, em especial para a operacionalização de novas tecnologias. Também destacaram a capacidade criativa do
novo trabalhador polivalente.
* Programas de Qualidade Total. Tendo o Chile como modelo, o Brasil procurou desenvolver os princípios da qualidade total na educação
a partir de 1990, quando o Ministério da Educação organizou o Encontro sobre Qualidade da Educação, com apoio da Oficina Regional de Educação para a América Latina e Caribe (OREALC)2. Este modelo inspirou-se declaradamente nos princípios empresariais e no
modelo toyotista. No Brasil, chegou a se desenhar como programa de governo em Minas Gerais. Os instrumentos de maior visibilidade deste programa foram aqueles vinculados ao controle da gestão do sistema educacional mineiro, envolvendo implementação de
avaliações sistemáticas dos resultados pedagógicos. Também procurou-se implementar uma radical política de descentralização, premiando iniciativas das escolas. Na prática, como a filosofia original desta proposta inspirava-se nas concepções empresarias, foram desarticuladas as estruturas intermediárias do sistema educacional (fragilizando o papel das Superintendências Regionais de Ensino e dos
Inspetores de Ensino) e, muitas vezes, desenhou-se a fragmentação da rede de ensino, aumentando a competitividade intrasistema3.
Contudo, na metade dessa gestão, a política governamental se altera, após crise envolvendo a consultoria internacional que apoiava
esta programação, incorporando o modelo propagado pelo Banco Mundial, voltado inicialmente para a formação de professores e para
a implantação do sistema de ciclos4.
Estes foram alguns dos modelos disseminados nos anos 80 e início dos 90. Fundamentados na filosofia de gestão originária de países de
cultura anglo-saxônica e asiática5, competiram a partir da segunda metade da década de 80 com modelos originários de países latinos, em
especial da Espanha e França. Esta distinção cultural parece significativa para compreendermos a trajetória da vaga reformista que atinge o
Brasil desde então.
A cultura anglo-saxônica tem como característica os princípios lógico-racionais e de controle societário para implantação de políticas
públicas. Mais afetos à busca de resultados numéricos, verificáveis objetivamente, os anglo-saxões propõem que a missão de cada instituição
seja claramente definida e que metas objetivas sejam estabelecidas ao longo do tempo. Tais metas são, então, acompanhadas de perto por
gerentes quase sempre externos aos executores das políticas definidas.
Os modelos asiáticos, por sua vez, apoiam-se nos vínculos de fidelidade e tradição. Assim, as instâncias inferiores da estrutura de gestão
são consideradas partes integrantes de um esforço conjunto de obtenção de metas. Fortemente marcadas pela cultura patriarcal, é comum
estabelecer-se um ambiente «familiar» em que a instituição busca o bem-estar dos executores e discute objetivos a serem atingidos. As
premiações, ao contrário da perspectiva racional ocidental, conferem agradecimento e proteção aos resultados obtidos coletivamente.
21
O Desafio do Educador
A cultura latina, ao contrário, é eminentemente comunitária e afetiva. Seus princípios são mais genéricos e filosóficos, e há maior flexibilidade em relação às metas objetivas a serem perseguidas. A participação nas práticas de gerenciamento são mais influenciadas pelas
intenções políticas comunitárias do que pela transferência ou delegação de funções (como no caso das parcerias sugeridas pela Nova Administração Pública do Reino Unido, em que os usuários dos equipamentos públicos eram considerados clientes)6.
Tal diferenciação já foi analisada em muitos estudos. No campo educacional, Sacristán, ao analisar as teorias norte-americanas sobre
currículo, havia apontado características específicas do modo de pensar: currículo como guia da experiência do aluno; currículo como experiências de aprendizagem planejadas e dirigidas para obter determinadas mudanças nos alunos; currículo como definição de conteúdos da
educação ou planos que especificam objetivos. Para o autor, tal definição aparece descontextualizada no tempo, demonstrando clara intenção utilitarista, de natureza racional ou sistemática, que pretende cumprir com tarefas autodenominadas lógicas ou científicas7. Em contraposição, o autor cita o movimento Escola Nova européia, que partiu do pressuposto que a experiência e a recriação da cultura em termos de
vivência se constituiria no eixo central de um currículo. Ao contrário das experiências planejadas, processos passam a ser relevantes, ou seja,
o currículo passa a ser concebido como uma construção social8.
No caso brasileiro e latino-americano, muitos autores destacam nossa condição de culturas híbridas, em que tradição e modernidade
dialogam entre si9. Seríamos, então, mais comunitários, afetivos, indígenas e místicos que os povos de cultura anglo-saxônica ou mesmo os
latinos europeus. Daí que, enquanto as políticas centrais de reforma educacional se aproximaram de modelos anglo-saxônicos e asiáticos,
grande parte das iniciativas municipais (locais) adotaram modelos de reforma mais comunitários e latinos.
Aos poucos, a literatura educacional latina ganhou mais projeção e reconhecimento entre os educadores brasileiros que qualquer outra
doutrina. O conflito entre as duas escolas de pensamento, contudo, nunca foi superado claramente. Tais distinções jamais foram objeto de
discussão aprofundada entre os professores da rede pública de ensino do país, o que contribui ainda hoje para grande perplexidade e confusão, diminuindo o seu papel protagonista nas reformas.
Num esforço de síntese, seria possível destacar os princípios e instrumentos mais empregados por cada uma dessas escolas de pensamento que orientaram reformas educacionais nos anos 80 e 90 do século passado.
Tabela 1
Princípios e instrumentos de reforma educacional a partir das escolas anglo-saxônica/asiática e latina.
PRINCÍPIOS
ESCOLA DE PENSAMENTO
ANGLO-SAXÔNICA E ASIÁTICA
PRINCÍPIOS
Definição de metas a
serem alcançadas.
Objetivos pedagógicos
vinculados a demanda
de mercado.
Parceria entre clientela
escolar e gestores.
Premiação por
produtividade.
Metas definidas pela
comunidade escolar.
Objetivos pedagógicos
definidos a partir do
processo de
aprendizagem dos
alunos ou das
demandas
comunitárias.
Gestão por colegiados.
Aumento do tempo de
trabalho.
INSTRUMENTOS
INSTRUMENTOS
Avaliação quantitativa
dos resultados
pedagógicos do
sistema educacional.
Currículo privilegiando
formação polivalente e
capacitação para
operacionalização de
novas tecnologioas.
Autonomização do
gerenciamento escolar.
Abonos salariais e
verbas especiais para
professores e escolas
que diminuírem índices
de evasão e repetência.
LATINA
Avaliação qualitativa,
processual e descritiva dos
resultados alcançados.
Currículo interdisciplinar,
apoiado em projetos.
Modelos mistos de
gerenciamento, oscilando
entre colegiados e
assembléias de gestão e
sistemas de controle
centrais.
Modelos mistos de
gerenciamento, oscilando
entre colegiados e
assembléias de gestão e
sistemas de controle
centrais.
Adoção de modelos de
formação e planejamento
em serviço.
22
O Desafio do Educador
Como é possível perceber, os modelos anglo-saxônicos/asiáticos são mais objetivos e racionais, apresentando instrumentos de gerenciamento, promoção e aferição de resultados mais específicos. Por sua vez, os modelos latinos são mais processuais, centrados no método de
negociação entre os atores sociais. Surpreendentemente, as escolas privadas do país não optaram por um modelo específico no final dos
anos 90, possivelmente em virtude da forte crise econômica que atingiu o setor10. A oferta de escolas e vagas em escolas públicas no final
do século demonstram um forte investimento público na área educacional, como é possível verificar no gráfico abaixo.
Gráfico 1 Crescimento de estabelecimentos particulares e estatais de ensino fundamental e médio no Brasil (1995/2000).
FONTE: ANAMEC e INEP, 2001.
O fato é que as reformas educacionais no período concentraram-se nas escolas da rede pública de ensino brasileiro, com raras exceções.
Este preâmbulo que procura localizar as reformas educacionais no país auxilia para introduzir uma primeira questão de fundo a respeito
de suas motivações e características.
Comecemos por uma rica provocação elaborada por J. Carbonell. O autor faz uma distinção instigante entre inovações e reformas educacionais:
Inovação como um conjunto de intervenções, decisões e processos, com certo grau de intencionalidade e sistematização, que tratam de
modificar atitudes, idéias, culturas, conteúdos, modelos e práticas pedagógicas. E, por sua vez, introduzir, em uma linha renovadora, novos
projetos e programas, materiais curriculares, estratégias de ensino e aprendizagem, modelos didáticos e outra forma de organizar e gerir o
currículo, a escola e a dinâmica da classe. [...] As diferenças entre inovação e reforma têm a ver com a magnitude da mudança que se quer
empreender. No primeiro caso, localiza-se nas escolas e nas classes, enquanto que o segundo diz respeito à estrutura do sistema educativo
em seu conjunto. Além disso, as reformas escolares são movidas por imperativos econômicos e sociais, e estão ligadas a esse tipo de reformas mais gerais11.
Acredito que tal distinção, se, por um lado, auxilia na compreensão dos territórios e atores sociais envolvidos, por outro dificulta a identificação do que temos de central em várias reformas em curso. Em outras palavras, muitas das reformas de inspiração latina, em andamento
no Brasil, buscam justamente a superação da distinção entre a prática em sala de aula e o planejamento central da política educacional. Assim, grande parte das reformas educacionais, com destaque para as que ocorrem em municípios brasileiros, supõem a construção efetiva de
uma rede pública de ensino, onde as escolas articulam-se em projetos ou a partir de problemas comuns. Este é o sentido de várias tentativas
de descentralização de programas de formação de professores ou de sua articulação com modelos de gestão e comunicação no interior do
sistema12. A participação da comunidade deixa de se atomizar para compor uma rede. Este parece ser um dos principais desafios contemporâneos na área de gestão de sistemas educacionais.
Entendo que as reformas educacionais em curso no Brasil, que atinge grande parte dos governos municipais que implementam reformas educacionais desde os anos 90 e que se inspiram nas concepções latinas, estariam no mesmo campo de preocupação e construção de
políticas públicas de natureza participacionista ou caracterizadas como democracia participativa. Em livro recente, B. Santos13 sustenta que
o mundo atual exige soluções plurais nas quais a coordenação de grupos distintos e soluções diferentes ocorrem no interior de uma mesma
jurisdição14,aumentando a importância do saber e interesses dos atores sociais. Esta sugestão analítica se aproxima do que A. Giddens vem
23
O Desafio do Educador
denominando de sociedade reflexiva, ou seja, uma nova sociedade emergente que está pautada pela profusão de informações e inovações
cotidianas, obrigando todos cidadãos a tomar uma variada gama de decisões no seu dia-a-dia. O homem contemporâneo é reflexivo por
natureza, porque dele é exigido que decida sobre problemas inusitados. Ora, o problema desta mudança na ordem social é que nem sempre
as burocracias se apropriam dos saberes e interesses dos cidadãos. Estaria aí um alto risco de deslegitimação das agências estatais burocratizadas, incluindo todo o sistema educacional. Na prática, as demandas do mercado de trabalho, as tensões e rupturas familiares, as
expressões culturais e religiosas cada vez mais fragmentadas, a valorização crescente dos espaços privados e as tribos urbanas, pressionam
todos sistemas gerenciais de prestação de serviços públicos a estarem abertos à composição de acordos e objetivos que antes eram definidos
exclusivamente pelas esferas superiores da gestão governamental. Pelo contrário, no dia de hoje, é cada vez maior a importância das instâncias inferiores dos sistemas educacionais (e outros sistemas de gestão pública) na tomada de decisão. No caso educacional, a participação
progressiva de famílias, professores e atores sociais do entorno escolar interferem na manutenção dos equipamentos escolares, na segurança interna das escolas e na orientação curricular. Esta é uma mudança significativa do papel da escola que, de instância de formação básica
para o desenvolvimento econômico, passa a assumir o papel de instância social básica de desenvolvimento social, potencializando acordos
morais, unificando interesses comunitários e abrindo-se para a elaboração de novos conhecimentos sociais.
Esta parece ser a base das críticas que A. Hargreaves15 às reformas anglo-saxônicas. Para o autor, várias das reformas anglófonas orientam-se por uma nova ortodoxia fundada na padronização de saberes. Contudo:
Uma das críticas mais contundentes de reformas minuciosas orientadas por padrões (ou daquelas que têm características semelhantes e
são rotuladas como sendo baseadas em resultados) é que elas reduzem o currículo e o planejamento curricular a processos técnicos e racionais, perdendo grande parte do que poderia ser eficaz e envolvente no ensino e no aprendizado. [...] Em resposta a essa posição, Sergiovanni
ressente-se com o que chama de «a explosão da padronização», e argumenta que a preocupação excessiva com o mundo técnico dos padrões está expulsando o lifeworld – e, pode-se acrescentar, a força vital – da educação. Ele se preocupa com o fato de que «se continuarmos
com essa solução única, com padrões típicos e avaliações padronizadas, iremos comprometer os lifeworlds dos pais, dos professores, dos
estudantes e das comunidades locais16.
Em suma, os interesses dos pais, dos professores e dos alunos seriam substituídos por sistemas de padrões que determinam o que é
necessário socialmente.
Daí porque ser importante destacar as motivações centrais das reformas educacionais em curso, para além das demandas econômicas.
Destaco seguidamente três motivações que considero mais significativas.
1.1 MOTIVAÇÕES PEDAGÓGICAS
A década de 70 do século passado deu lugar ao início de um movimento reformista em nosso país. Naquele momento, o regime militar
impunha um severo controle político sobre as escolas públicas, o que consolidou uma significativa estrutura de controle burocrático altamente centralizada. No campo pedagógico, o governo federal reorganizou os objetivos curriculares a partir da necessidade econômica de
expandir a oferta de mão-de-obra para a indústria de bens de consumo durável, em franco desenvolvimento naquela década. Os métodosbehavioristas de fixação de comportamentos e de memorização foram largamente empregados, dando lugar a muitos pareamentos17. Foram
introduzidas, ainda, disciplinas semi-profissionalizantes ao longo do ensino fundamental e médio. Todas as modalidades curriculares implementadas pelo governo federal neste período foram claramente espelhadas nas concepções anglo-saxônicas.
No campo das escolas privadas, contudo, algumas inovações pedagógicas foram desenvolvidas, em especial nas escolas de educação
infantil. Essas inovações foram agregadas no que se convencionou denominar deconstrutivismo. Na prática, oscilaram entre orientações piagetianas a programas que tangenciavam o espontaneísmo, passando por proposições rousseaunianas. Em alguns casos, educadores progressistas procuravam criar espaços de experimentação, já que as escolas públicas haviam sido reduzidas a práticas tayloristas de educação.
O que convém destacar é que esta dicotomia pedagógica verificada entre escolas públicas e iniciativas progressistas introduzidas em
algumas escolas particulares acabou por marcar algumas das reformas educacionais que ocorreriam na década seguinte.
A redemocratização do país nos anos 80 alterou a lógica observada na década anterior. As reformas educacionais ganharam impulso a
partir de governos estaduais eleitos pelo voto direto, passaram pelas iniciativas dos governos municipais, e, finalmente, chegaram ao governo federal. Neste último caso, o Ministério da Educação contratou o ex-diretor da reforma educativa da Espanha, César Coll, como consultor
na elaboração dos Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN), o que significou uma mudança significativa nos objetivos e concepções que
orientavam até então a ação governamental.
A «guinada latina» da educação brasileira deslocou, ainda que não totalmente, a ênfase nos resultados para os processos de aprendizagem. E a partir desta nova trilha, estudos e temas oriundos da psicologia e da neurologia ganharam relevância. Estudos sobre o funciona24
O Desafio do Educador
mento da mente, sobre desenvolvimento humano e sobre sociabilidade passaram a ter lugar nas orientações educacionais. Alguns autores
destacaram-se mais. Este é o caso das teorias socio-interacionistas, tendo em Vygotsky e Luria as referências mais citadas. Piaget foi relido
por muitos autores, superando alguns reducionismos englobados originalmente na denominação «construtivismo». A releitura piagetiana
orientou-se pela discussão dos ciclos de formação humana (as peculiaridades da infância, da pré-adolescência e da adolescência e os condicionamentos dos processos de desenvolvimento) ou pelas mãos de seu discípulo, L. Kohlberg (como no caso da reforma espanhola), que
desenvolveu o estudo dos estágios de desenvolvimento moral.
Ainda nesta esteira propiciada pela «guinada latina», vários estudos de neurologistas (nem todos latinos) alimentaram mudanças na
perspectiva pedagógica oficial. O autor mais influente foi H. Gardner, a partir de seu conceito de inteligências múltiplas18. O Exame Nacional
de Ensino Médio (ENEM) espelhou-se nesta teoria. Ao invés da elaboração de provas por disciplina, a teoria das inteligências múltiplas foi o
fundamento para a elaboração de exames cujas questões eram declaradamente interdisciplinares, ou até mesmo resvalavam na transdisciplinaridade. Os elaboradores do ENEM apostaram na formulação de «situações problema» que exigiriam a articulação de vários conhecimentos e linguagens. O campo da avaliação pedagógica foi, inclusive, o mais polêmico das reformas educacionais. Uma disputa surda entre
especialistas e dirigentes governamentais foi travada sem que grande parte dos educadores percebessem. O ENEM conviveu com modelos
mais ousados de avaliação, como a sugestão de portfolio19, desenvolvida pelo educador catalão Fernando Hernández. Ao mesmo tempo,
vários governos estaduais e o próprio governo federal desenvolveram programas de avaliação sistêmica de forte inspiração anglo-saxônica.
Padrões estatísticos foram formulados para medir variações no desempenho dos alunos, deixando-se de lado o foco no processo de aprendizagem e suas múltiplas influências (sociais, culturais, econômicas). Como se percebe, o país continuou dialogando com teorias conflitantes.
Permanecemos tributários de uma cultura que um dia S. Buarque de Holanda sintetizou como a encarnação dos personagens do trabalhador
e do aventureiro: de um lado, uma razão ordenadora e, de outro, um impulso à mudança. Seríamos, enfim, uma síntese inacabada.
Contudo, é necessário destacar que a maior influência nas reformas educacionais, embora em grau diferenciado de aprofundamento ao
longo do país, foram os autores espanhóis. A influência direta surgiu a partir da reforma espanhola iniciada em 1985-1986. Inicialmente, os
autores com orientação psicopedagógica (em sua maioria oriundos de reflexões piagetianas) tiveram maior projeção, logo cedendo seu lugar
aos autores cuja fundamentação incorporava teorias sociológicas ou antropológicas. Autores como F. Hernández, A, Zabala, J. Santomé e o
citado Sacristán orientaram grande parte das inovações curriculares.
O maior dos impasses na concretização de tais orientações está sendo a estrutura organizacional das escolas e sistemas educacionais do
Brasil. A organização do tempo escolar, a rigidez do tempo do módulo-aula fixada em 50 minutos, o excesso de turmas de alunos para cada
professor, o diminuto tempo de estudo coletivo para professores, a quase inexistência de programas de estudo em tempo integral, a ausência
de programas de formação em serviço, tais déficit organizacionais colocam por terra as reformas educacionais que enfocam o acompanhamento do processo de aprendizagem e de formação humana.
1.2 MOTIVAÇÕES SOCIAIS
E. Shorter, em seu livro A formação da família moderna20, sustenta que entre a década de 60 e 70 ocorreu uma grande alteração na relação entre gerações. A desmontagem da família como «ninho» aumentou a probabilidade de adolescentes organizarem opiniões autônomas,
muitas vezes diametralmente opostas às convicções de seus pais. O autor crê que a família nuclear está sendo substituída, desde então,
pelos «grupos de iguais». Não haveria um conflito entre gerações, mas um afrouxamento da influência da família. Estudos realizados na Europa e EUA demonstram, com efeito, que adolescentes ao redor dos quinze anos de idade preferem a convivência com amigos, em oposição
à sua família. O comportamento, como modo de vestir, passa a ser influenciado por outros jovens, constituindo uma subcultura adolescente,
independente dos valores adultos. Não seria, portanto, uma mera afirmação, mas um estilo de vida.
Para Shorter e outros estudiosos do comportamento familiar, a desarticulação do núcleo familiar está diretamente relacionada com o
aumento de divórcios e com novas exigências do mercado de trabalho. Na Grã-Bretanha, entre os que se casaram em 1960, quatorze num
universo de mil pessoas tinham-se se divorciado; a projeção que se faz para o início deste século é que o divórcio atingiria 250 pessoas em mil
casadas nos últimos três anos. A mesma projeção envolveria a população dos EUA.
No Brasil, o IBGE registrou um aumento de 32% do número de divórcios ao longo da década de 90, acompanhado por uma redução de
quase 1% na taxa de casamentos (em 1994 haviam ocorrido 763 mil casamentos, e, em 1998, 699 mil). A guarda dos filhos de casais separados
fica, em 90% dos casos, com as mães. É o mesmo índice da Europa. Nos EUA as mulheres assalariadas realizam 75% das tarefas domésticas e
são ajudadas por seus maridos um pouco mais de meia hora por dia21. Na década de noventa, 79% das espanholas, 70% das inglesas e alemãs,
e 60% das italianas e francesas afirmaram que seus maridos não auxiliam em nada nos afazeres domésticos.
Imaginemos, então, a rotina diária de uma mãe brasileira, separada, responsável por dois filhos adolescentes (nos anos 90, a faixa etária
entre 14 e 19 anos de idade era a mais significativa em nosso país). Independente da sua renda mensal, dificilmente encontrará tempo para
25
O Desafio do Educador
acompanhar os estudos de seus filhos. Além de provedora, está inserida numa cultura que determina que atividades domésticas são de responsabilidade feminina.
Enfim, os dados populacionais do ocidente revelam que as mulheres trabalham mais em empregos que remuneram pouco, separam-se
de seus maridos com mais freqüência, e assumem a chefia da família em 90% dos casos de famílias monoparentais22.
Podemos aventar a hipótese que as mudanças em curso no mercado de trabalho, ao exigirem maior dedicação, facilitam a decomposição dos arranjos familiares originais. Em muitos casos, mesmo que isso não ocorra, o drama da educação dos filhos permanece. O tempo de
convívio familiar se reduz. Em suma, as famílias estão transferindo a educação básica de seus filhos para a escola.
Esta seria uma motivação importante para as reformas educacionais: o papel social das escolas altera-se muito no século xxi. A socialização básica é largamente transferida para as escolas. Mas nossos equipamentos escolares, nosso corpo de dirigentes e nossos professores
não se formaram para esta tarefa, com exceção da educação infantil. Não seria por outro motivo que temas que fogem da tradição curricular
brasileira povoam um número grande de projetos educacionais contemporâneos, como é o caso dos projetos que envolvem sexualidade,
violência, cidadania, preservação ambiental, etc.
1.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS
A redemocratização do país nos anos 80 desarticulou a burocracia estatal dedicada à administração de políticas sociais. O modelo fordista tupiniquim, que o regime militar procurou esboçar a partir da captação de poupança externa e do aumento da pauta de exportação, alicerçou-se na geração de emprego a partir da expansão da indústria da construção civil e no financiamento de grandes projetos de desenvolvimento regional, e na política previdenciária pública (ampliando, inclusive, o acesso ao meio rural através do Funrural). A política educacional
vinculou-se de maneira direta ao aumento de oferta de postos de trabalho industrial, restringindo as preocupações pedagógicas. A tentativa
de formação de um corpo técnico de nível médio no Brasil foi a tônica da reorganização do sistema de ensino. Contudo, como o meio educacional tinha sido foco de resistência ao regime militar, uma complexa estrutura de controle foi engendrada, unificando os currículos, extinguindo qualquer autonomia das unidades escolares, implementando estruturas de fiscalização intermediárias (entre escolas e sedes das
secretarias de educação). Esta burocracia intermediária, marcada pelas funções de controle e fiscalização, foi sendo desmontada a partir da
redemocratização, embora de maneira desigual ao longo do país e permanecendo como foco de resistência às várias mudanças em curso.
A pauta das reformas educacionais dos anos 80 espelha a negação ao modelo educacional forjado no regime militar, sendo muitas vezes
formulada a partir da agenda sindical ou estudos produzidos por intelectuais progressistas. Assim, o binômio autonomia e participação da
comunidade escolar passou a figurar como antítese do modelo anterior, justamente porque desmontava a estrutura de controle e fiscalização. As primeiras iniciativas da década de 80 que caminharam nesta direção procuraram alterar as estruturas curriculares. Programas de
alfabetização de adultos inspirados nas teorias de Paulo Freire e mudanças nos programas curriculares introduzindo a noção de globalidade
(em que o conteúdo educacional se articula com a realidade concreta da vida do aluno, e não como uma informação postiça ou artificial,
exigindo vinculação com conceitos de várias disciplinas) e, no caso de algumas áreas específicas, inovando em conceitos estruturantes23. Em
seguida, uma nova vaga reformista passou a instalar mecanismos de gestão descentralizada e uma valorização do professor sustentados
por programas de formação continuada. Finalmente, instalaram o sistema de ciclos e de formas colegiadas de gestão (conselhos municipais,
conselhos ou colegiados escolares).
Seria possível, então, aventar a possibilidade das reformas educacionais brasileiras do último período sofrerem o signo da motivação
política mais que pedagógica. Esta hipótese explicativa poderia justificar tantas iniciativas de mudança nem sempre coincidentes, atingindo
uma mesma localidade, e, em alguns casos, uma mesma escola. O objetivo central das reformas seria a desmontagem do sistema de controle central, o que acrescentaria o poder escolar, aumentando a autonomia do professor. Obviamente que tal movimento desaguaria em
mudanças profundas da prática pedagógica, mas seria encarada como conseqüência e não como motivação para a mudança. Se essa hipótese tem sentido, as contradições entre reformas estaduais e municipais, e até mesmo no interior de cada iniciativa reformista são compreensíveis, e, neste caso, seria também possível prever que estaríamos num estágio em que tais contradições desencadeariam um grande debate
público. Em outras palavras, se no princípio as reformas tiveram uma conotação política de negação do modelo educacional elaborado pelo
regime militar, ao se esboçar o mosaico de iniciativas reformistas, o país acabaria por revelar propostas muito diferentes entre si, embora em
apariência similares na intenção. Aos poucos, tais distinções acalentariam debates entre educadores que identificariam as nuanças. Possivelmente estamos ingressando nesta fase, dada a inquietação entre gestores educacionais de estados e municípios, e a agenda cada vez mais
carregada de encontros para avaliar e socializar iniciativas reformistas24.
26
O Desafio do Educador
2. AS REFORMAS BRASILEIRAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO
A década de 90 foi palco das reformas educacionais latino-americanas. Alguns pontos foram comuns: descentralização administrativa,
políticas com enfoque em grupos vulneráveis, melhoria da qualidade e da participação comunitária. Contudo, alguns estudos apontam a persistência das desigualdades ao acesso e às oportunidades educacionais (ausência de eqüidade), o rendimento escolar continua baixo (altas
taxas de repetência e abandono escolar), políticas de financiamento seguem encontrando obstáculos políticos, deterioração das condições
de trabalho dos professores e desprestígio da profissão25.
Grosso modo, as reformas em curso mantêm uma dicotomia similar a que ocorre no Brasil: experiências que aumentam a autonomia
escolar, aproximando-se em alguns casos de uma atomização da escola pública, em que o equipamento escolar deixa de compor um sistema
para se aproximar de uma escola exclusiva da comunidade escolar, e experiências que reforçam a construção de um sistema democrático de
educação pública priorizando a educação básica, o que nem sempre supera um excessivo grau de centralismo administrativo, e, em alguns
casos (como o brasileiro), desequilibra os aportes financeiros e até mesmo as iniciativas de melhoria no interior do sistema educacional (no
caso brasileiro, o investimento na educação básica afetou duramente as universidades públicas).
Alguns estudiosos consideram, ainda, que o método de implantação das reformas foi acelerado, um «método apressado», que não refletiu a heterogeneidade das práticas educacionais no interior das escolas.
Helena Bomeny, da FGV-RJ e coordenadora do PREAL no Brasil, destaca quatro pontos não superados pelas reformas educacionais, desafios para este início de século:
* Tempo médio de escolaridade muito baixa: no caso brasileiro, 49% daqueles que possuem entre 25 e 59 anos de idade não superaram
cinco anos de escolaridade.
* Jornada escolar reduzida: a maioria dos países latino-americanos ainda não conseguiram adotar o estudo integral de oito horas diárias,
embora apresentem resoluções nesta direção, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) do Brasil. A jornada em período integral é a mais
adequada para a implantação do sistema de ciclos e a única que possibilita a ampliação do tempo de estudo coletivo de professores;
* O déficit de vagas e projetos pedagógicos na educação infantil.
* Fragilidade das políticas de apoio e de incentivo ao professor, relacionadas ao desempenho, avaliação, recompensa e exposição pública.
Bomeny destaca que pesquisas recentes dos EUA revelam que os melhores índices de desempenho profissional de professores relacionavam-se com o que esses profissionais tiveram quando estudantes do Ensino Médio. A autora articula este dado com a constatação
do déficit de formação básica de grande parte dos professores que ministram cadeiras específicas no Ensino Médio brasileiro26.
Gajardo apresenta um quadro de estratégias inovadoras implementadas por governos latino-americanos ao longo da década de 90, possibilitando um panorama das iniciativas em curso.
As inovações e reformas não foram homogêneas, como destacado no início deste item. A título de ilustração, analisaremos as mudanças
relacionadas à autonomia escolar, tema caro nos debates.
No Brasil, na prática, a construção da autonomia confundiu-se com descentralização administrativa e financeira, relacionada de maneira
direta com eleição de diretores escolares e criação de órgãos colegiados que aprovavam decisões e exerciam controle sobre sua execução.
Também esteve diretamente relacionada à transferência de alguns recursos, como aquisição de merenda e materiais de consumo. O fato é
que nunca tivemos um padrão nacional de serviços educacionais. Como afirma M. Arretche.
27
O Desafio do Educador
Tabela 2 Eixos e estratégias nas orientações de política educacional na década de 90.
EIXOS DE POLÍTICA
GESTÃO
EQUIDADE E
QUALIDADE
ESTRATÉGIAS E PROGRAMAS
- Descentralização administrativa
e pedagógica.
- Fortalecimento das capacidades
de gestão.
- Autonomia escolar e
participação local.
- Melhoria dos sistemas de
informações e de gestão.
- Avaliação de resultados.
- Participação dos pais e das
comunidades locais.
- Enfoque nas escolas pobres
dos níveis básicos.
- Discriminação positiva de
grupos vulneráveis.
- Reformas curriculares.
- Fornercimento de textos e
materiais de instrução.
- Extensão da jornada escolar.
- Programas de melhoria e de
inovação pedagógicas.
- Programas de fortalecimento
institucional.
EIXOS DE POLÍTICA
FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
FINANCIAMENTO
ESTRATÉGIAS E PROGRAMAS
- Desenvolvimento profissional
dos docentes.
- Remuneração por desempenho.
Políticas de incentivo.
- Subsídio à demanda.
- Financiamento compartilhado.
- Mobilização de recursos do
setor privado.
- Redistribuição de impostos.
- Uso efetivo de recursos
existentes (racionalização).
FONTE: M. Gajardo (2000): «Reformas educativas na América Latina: balanço de uma década», in Documentos PREAL, núm. 15. Rio de Janeiro, PREAL, p. 13
A carreira, o salário e o pagamento de professores, a natureza e qualidade dos serviços educacionais oferecidos, bem como os padrões de
avaliação, foram sempre executados – na esmagadora maioria dos Estados – de modo independente para uma mesma série em uma mesma
cidade por duas redes, que tenderam a operar de um modo inteiramente paralelo27.
A autora observou como alguns estados brasileiros implementaram as políticas educacionais descentralizadas, a partir da Constituição
de 88 e da LDB, que teriam que se confrontar com a cultura política fragmentada destacada anteriormente. Nos casos estudados, apenas o
Paraná havia implementado um programa de descentralização efetivo entre 1988 e 1994, transferindo para os municípios a gestão completa
do ensino fundamental (incluindo educação especial, educação infantil e supletivo). O mais interessante é que o grau de adesão foi maior nos
municípios de pequeno porte, justamente porque, na análise de Arretche, possuem menor poder de negociação com os órgãos centrais do
sistema educacional. Em outros estados pesquisados (São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará) os programas de descentralização ocorridos na
primeira metade dos anos 90 foram insuficientes ou parciais. No caso da descentralização da merenda escolar, a partir de 1993 estruturou-se
uma intervenção nacional para sua municipalização. O baixo custo do processo de municipalização gerou um grande êxito do programa,
como pode ser observado na tabela abaixo.
28
O Desafio do Educador
Tabela 3
Programa Nacional de Alimentação Escolar (Taxas de municipalização em Estados selecionados).
FONTE: M. Arretche (2000): Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro/São Paulo, Revan/Fapesp, p. 165.
O que podemos aventar como hipótese explicativa é que a descentralização dos programas educacionais ocorreram no Brasil quando o programa em
TAXA DE MUNICIPALIZAÇÃO
ESTADO
questão apresentava baixo custo operacional para o município que aderia ao
Rio Grande do Sul
programa, ou quando seu poder de barganha com o poder central era baixo.
A análise de Arretche, em suma, sugere a persistência da cultura política centralizadora, a despeito das mudanças efetivamente ocorridas.
Paraná
No caso do Chile, em 1990 foi promulgada uma lei que garante a descentralização curricular e pedagógica, onde as realidades locais são privilegiadas. Foi criado um fundo nacional para fomentar a elaboração de Projetos de
São Paulo
Melhoria Educativa (PME) das escolas. Durante a década de noventa, 5.600
projetos foram financiados por esse fundo.
Mas as experiências mais significativas de construção de autonomia esBahia
colar ocorreram na América Central. Três programas parecem se destacar: o
PRONADE da Guatemala, o EDUCO em Salvador, e as Escuelas Autónomas da
Pernambuco
Nicarágua. Aqui é importante destacar o alto risco de atomização das escolas, embora esta não seja a orientação inicial.
O PRONADE teve início em 1993, ocorre nas escolas rurais da Guatemala
Ceará
e aproxima-se da experiência brasileira de Escolas Família-Agrícola (EFAs).
Caracteriza-se pela transferência de responsabilidades administrativas para
a comunidade local. Nas escolas são instituídos Comitês Educativos de AuBrasil
togestão (Coeduca), compostos por pais que contratam professores, pagam
salários, provêm ajuda alimentar e realizam a manutenção das escolas. Os
COEDUCAs recebem apoio técnico de Instituições de Serviços Educativos
(ISEs), que desenvolvem programas de formação e supervisionam o emprego
dos recursos financeiros. Este programa envolve 3.600 professores e 155 mil alunos.
Por sua vez, o EDUCO salvadorenho foi criado em 1991. Também caracteriza-se pela transferência de recursos financeiros para as comunidades locais administrarem os equipamentos escolares. Neste caso, as Associações Comunais para a Educação (ACE) realizam convênios com
o Ministério da Educação e acessam fundos e programas de formação. As ACE são constituídas por pais de alunos, e, como os COEDUCA,
contratam professores e supervisionam seu desempenho. Neste programa estão envolvidos 1.800 professores e 168 mil alunos.
Por fim, as escolas autônomas da Nicarágua tiveram início em 1991, e, igualmente, tiveram como pilar a organização de conselhos de
escolas públicas, inicialmente de caráter consultivo. Os conselhos são compostos por pais, diretores, professores e líderes comunitários, que
analisam as questões pedagógicas e administrativas da escola. Hoje os conselhos possuem poder deliberativo.
Como se percebe, as mudanças parecem adotar um norte próximo, a descentralização administrativa e o aumento do poder da comunidade local, mas o grau de radicalidade das experiências e a própria concepção de sistema educacional público é muito distinto.
Todas as iniciativas reformistas da América Latina parecem confluir para esta característica da unidade de intenções e de heterogeneidade de métodos e resultados. Os avanços, como afirma o documento do PREAL, são importantes, mas os resultados são pobres: persiste a
distância entre estratos sociais, a melhoria dos resultados pedagógicos é muito lenta (sobretudo nos países mais pobres), a ausência de redes
de comunicação e interação entre atores prevalece, os interesses corporativos e institucionais se sobrepõem aos comunitários e sociais, o
financiamento continua insuficiente.
B. Sander, num lúcido ensaio sobre a gestão educacional na América Latina, já havia destacado a persistência da tradição funcionalista
da educação, que objetiva a ordem e a integração social, e onde a administração projeta-se como mediadora entre interesses, dando lugar
à hipertrofia das estruturas burocráticas28. Estaríamos longe, então, de uma concepção que o autor denomina de Administração Relevante,
ou seja, de modelos de gestão em que o critério cultural define e mede o desempenho gerencial. Neste último caso, o critério da qualidade
de vida e de solidariedade comunitária superariam a de metas quantitativas alcançadas. Por este critério, a noção de capital social 29, ou a
capacidade comunitária de se agregar e construir soluções coletivas aos problemas locais, reorientaria os projetos educacionais e as práticas
75%
68%
77%
66%
76%
91%
66%
29
O Desafio do Educador
pedagógicas.
Contudo, somos herdeiros de uma cultura política altamente centralizadora e dependente, em que a emergência de uma sociedade civil
organizada tensiona com as tradições.
3. INDICANDO OS DESAFIOS E IMPASSES NESSES VINTE ANOS DE REFORMAS EDUCACIONAIS
Em junho de 2002, secretários de educação de vários municípios e estados brasileiros que vêm implementando reformas educacionais
reuniram-se em Belo Horizonte para inaugurar o Fórum Nacional de Reformas Educacionais (FNRE). Ao longo de dois dias, secretários oriundos das regiões nordeste (Fortaleza e Pernambuco), sudeste (vários municípios de Minas Gerais e São Paulo, além de especialistas do Rio
de Janeiro), sul (Mostardas, Florianópolis e Porto Alegre) e centro-oeste (Mato Grosso do Sul e Cuiabá) montaram um primeiro painel das
reformas em curso e os principais impasses que enfrentam.
Pela representatividade política (os secretários presentes estão vinculados à governos que envolvem a totalidade dos grandes partidos
brasileiros) e pela especificidade do Fórum (secretários que implementam reformas educacionais), o evento constitui-se num importante panorama do andamento das reformas educacionais brasileiras. As discussões realizadas revelaram uma dupla mão de dificuldades: a primeira
diz respeito aos entraves burocráticos e o legado da estrutura gerencial e organizacional do setor público (problemas com transporte escolar, substituição de professores, além de fontes de financiamento, foram os aspectos mais ressaltados); a segunda destacava peculiaridades
específicas das reformas (sistema de avaliação emergiu como um dos problemas mais citados).
Uma intervenção inicial de Hernández orientou grande parte das discussões posteriores. Ele destacou como título de sua primeira intervenção A importância de relacionar a formação dos professores com a melhoria da educação. Um título que indica um olhar atento à prática
educativa, à prática concreta da sala de aula, da realidade do professor. As reformas educacionais contemporâneas possuem este mote da
relação entre sua efetivação e a capacidade protagonista do professor no seu desenvolvimento.
Em determinado momento, o educador espanhol destacou o «aprendizado acumulado» sobre as reformas. A partir daí, a articulação
entre cultura do professor e desenvolvimento das reformas ficou mais nítido. Segundo Hérnández, é fundamental a definição de um marco
geral das reformas, por meio do qual se dialoga com o que se considera os desejos de uma sociedade. Mas o sentido da reforma precisa ser
compartilhado com o professor, o que sugere estratégias de comunicação em que o professor explicita a maneira como ele experimenta a
mudança, permitindo-lhe, inclusive, expressar suas objeções. A reforma é, então, compreendida como um processo sociopolítico de negociação de interesses e convicções, o que demanda muito tempo (mais de oito anos).
As estratégias de comunicação e de negociação aparecem como fundamentais para o desenvolvimento das reformas justamente porque
definem uma cultura escolar positiva, que incorpora e trabalha o sentimento de perda e de ansiedade dos seus protagonistas. Seu sucesso,
portanto, está relacionado às condições que se instalam no interior das escolas, possibilitando que elas assumam riscos, mantenham o ânimo em momentos de turbulência, e garantam a identidade de propósitos do grupo de educadores.
Em sua elaboração, Hernández parece sugerir que a condução política das reformas educacionais deve assumir a mesma crença pedagógica que as formulações educacionais centradas no acompanhamento do processo de desenvolvimento: sustentam a necessidade de diálogo com as práticas concretas e experimentadas para que o educando construa um conhecimento peculiar e próprio, transformando-se em
protagonista. As reformas educacionais contemporâneas, a partir deste paralelo, deveriam dialogar com as práticas, experiências e desejos
concretos dos professores, procurando transformá-los em energia moral que sustenta o desenvolvimento das mudanças.
Corroborando as sugestões de Hernández, os secretários sustentaram que o locus das reformas educacionais é o poder municipal, justamente porque possibilita a construção e o exercício de uma prática democrática, ou seja, a formação de uma massa crítica a partir das
reformas. Quanto mais distante das escolas e do cotidiano escolar, menos dialógica e permeável torna-se a reforma.
Tal constatação mantém identidade com a tese que apresentamos neste texto sobre a característica das reformas educacionais contemporâneas: a sua aproximação com as inovações escolares.
Como princípios a serem observados nas reformas educacionais, os participantes do FNRE destacaram:
* A observação da vivência e da subjetividade dos professores ao longo do processo de mudança. As reformas, em suma, dialogam com práticas cristalizadas e com ritmos e crenças diferenciadas do corpo docente. Ignorar a multiplicidade de intenções é romper com o diálogo,
com o real ator das reformas.
* A definição pública de um marco global, de resultados e objetivos desejados. Este é o discurso que deve iniciar o diálogo com os professores e com a comunidade escolar. Sem um marco e sem objetivos anunciados com clareza, não se estabelece um processo de reforma,
mas uma imposição.
30
O Desafio do Educador
* Observação do tempo necessário para que a reforma seja construída enquanto processo. Hernández, em sua exposição aos secretários,
destacou que estudos recentes sugerem um mínimo de oito anos em reformas cuja abrangência territorial é um distrito escolar.
* Necessidade de distinção entre mudanças externas (reestruturação do sistema educacional) e mudanças internas (reculturação). A construção de uma nova cultura educacional e escolar é mais complexa, necessária e longa, e apoia-se justamente no diálogo permanente
entre os gestores públicos e a comunidade escolar; a prioridade na valorização do profissional da educação (o ator das reformas),
compreendida como remuneração salarial digna, formação em serviço a partir da demanda dos professores (em caráter permanente,
incluindo temáticas como práticas na escola, cultura e lazer), implicação dos professores na formulação de políticas educacionais,
autonomia das escolas na elaboração de seus projetos pedagógicos, organização de colegiados de gestão e participação, eleição direta
para diretores de escola, tempo semanal de estudo remunerado, prevenção e atendimento ao adoecimento, avaliação de desempenho
profissional e institucional, e investimento na formação em cursos superiores.
Como protagonista das reformas, o professor mereceu grande destaque nas intervenções. Foi consenso entre os presentes a necessidade
de superação de contratos de trabalho que obrigam o professor brasileiro a ministrar aulas em muitas escolas, perdendo a oportunidade de
ser elaborador na construção de um projeto institucional.
Apesar do foco dos discursos convergir para a valorização da escola e do município como locus das reformas, e do professor como seu
protagonista, o tema da autonomia mereceu uma atenção mais minuciosa dos secretários. A autonomia, sugeriram várias intervenções, não
pode ser confundida com atomização do sistema público de educação. Desde a década de 80 do século passado, o tema da autonomia escolar vem sendo explorado em todos discursos sindicais e reformistas. Contudo, os discursos nem sempre tiveram a mesma intenção pedagógica ou política, e acabaram evitando aprofundar tal distinção, tornando esta proposta numa bandeira aparentemente unânime e muito superficial. Enfrentando esta lacuna, o FNRE acatou a elaboração da Secretaria de Educação de Porto Alegre, que sugeriu a adoção do conceito
de «autonomia parcial». O conceito significa a busca do equilíbrio entre os regulamentos centralizadores e as iniciativas locais (projeto coletivo
original, explícito e negociado, conjugando as finalidades visadas pelas autoridades às próprias necessidades e possibilidades de evolução local).
É possível verificar alguns paralelos entre as observações realizadas no FNRE e outros eventos educacionais de cunho progressista, que
privilegiam o espaço escolar e sua relação com a comunidade30.
Parece-me, mais uma vez, que tais recentes iniciativas reorientam as estratégias educativas do pós-guerra, quando objetivos educacionais vinculavam-se diretamente com propósitos econômicos nacionais. A escola havia se transformado num instrumento à serviço de metas
gerais, distanciando-se das motivações e da dinâmica local. Mas os exemplos citados ao longo deste texto indicam uma mudança significativa em relação a este foco. A escola e o espaço de vivência social passam a se encontrar, articulando projetos educacionais. A escola chega
a observar e interagir com outros espaços formativos (as ruas, as organizações culturais e religiosas, as festas populares, os lares), incorporando as intenções sociais e motivando processos de aprendizagem e de socialização mais amplos. Os espaços educativos, então, superam o
escolar, mas são todos incorporados no projeto pedagógico da escola.
É a partir dessa nova lógica que o papel do professor e a atenção em relação às suas condições de trabalho e desenvolvimento parecem
ganhar relevância nos processos de implantação das reformas educacionais contemporâneas. É ele, o professor, o sujeito da leitura institucional que a escola deve realizar para compreender as possibilidades de interação com os outros espaços formativos e de socialização dos
alunos. É ele que interage com os alunos, e, preferencialmente, com pais e líderes comunitários, dialogando com vários saberes e interesses
que passam a compor novos projetos e currículos.
Mas, se esta hipótese é válida, estamos muito longe de conseguirmos traduzir tal compreensão e necessidade em práticas concretas.
Ainda adotamos metodologias impositivas de implantação das reformas, alijando os professores da elaboração e da definição do ritmo da
mudança. E, mais: não conseguimos, ainda, incorporar as dimensões culturais do trabalho docente na condução das referidas reformas. Este
é o caso das múltiplas expectativas que afetam o trabalho do professor. Um olhar breve sobre este tema pode auxiliar na compreensão do
quanto divorciamos as iniciativas reformistas do cotidiano do professor.
Uma das expectativas sociais em relação ao papel social do professor é o de «mãe postiça», em especial nos primeiros anos de escolaridade. Esta é uma expectativa marcadamente afetiva. Contudo, nos anos posteriores a expectativa social é de transferência de competências
técnicas aos alunos. Finalmente, nos anos de Ensino Médio a expectativa passa a ser a preparação para o ingresso nas universidades e no
mercado de trabalho. Tal pressão social, muito distinta em relação à faixa etária do aluno, implica uma determinada conduta profissional do
professor, e sua performance gera um julgamento precisso sobre sua competência. As reformas raramente dialogam com tais pressões que
inundam o cotidiano de trabalho do professor. Ao contrário, o discurso reformista é genérico e universal, não conseguindo manter contato
com as expectativas sociais reais e com o cotidiano escolar. O discurso generalista das reformas aumenta em muitos casos a solidão do professor, que, além de atender as demandas das famílias, passa a ter que atender as demandas governamentais. Não por outro motivo muitos
acabam mergulhando numa sensação de frustração e rancor. A psicanalista Alicia Fernández procurou traduzir tais sentimentos cotidianos
31
O Desafio do Educador
no que denominou queixas-lamento (desmobilizadoras) e queixas-reclamo (que denunciam as causas do sofrimento)31. Muitas vezes as queixas são estimuladas e promovidas pela escola, e evoluem, não raro, para uma denúncia da redução da tarefa de educar.
Fernández oferece pistas para compreendermos o quanto estamos distantes de atingirmos os objetivos reais das reformas educacionais
contemporâneas. São inúmeros os casos em que as reformas são implantadas e as queixas dos professores multiplicam-se. Mas, na medida
em que o professor é o ator principal das reformas, tal situação revela uma larga distância entre intenção e gesto. Este parece ser o principal
obstáculo: articular os objetivos gerais das reformas com uma escuta atenta do cotidiano escolar e do fazer docente.
John Dewey afirmou, numa oportunidade, que nem sempre quando um professor sustenta que possui dez anos de experiência, ele está
dizendo a verdade. Muitas vezes, prossegue o autor, o professor teve apenas um ano de experiência e a repetiu por mais nove anos. A experiência, em síntese, nasce da reflexão sobre a prática concreta. Se não criarmos condições concretas para que o professor mergulhe nas
experiências das reformas educacionais, passarão vários anos, e, ao final, constataremos que as mudanças não criaram raízes. Poderão ser
eficazes, mas, dificilmente, serão efetivas.
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NOTAS:
rio. Edição Especial Educação. Rio de Janeiro, IBASE.
(*) Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da PUC-Minas e diretor da
2 OREALC - Originalmente publicado na Revista Ibero-Americana de Educação, Organização
CPP (Consultoria em Políticas Públicas), Brasil.
1 Ver R. Ricci (1999): «O perfil do educador do século XXI: de boi de coice a boi decambão»,i n Educação & Sociedade, núm. 66, ano XX. Campinas: CEDES. Às páginas 157- 160 destaco e analiso
algumas de suas características principais.
2 Ver M. M. Campos (2000): «A qualidade da educação em debate», in Cadernos do Observató-
dos Estados Ibero-americanos (OEI), n. 31, janeiro-abril de 2003.
3 Esta proposição foi reproduzida no Estado do Rio de Janeiro, a partir da incorporação de adicionais de salário e fundos especiais para escolas e professores com maior produtividade.
4 Na prática, o governo estadual mineiro reintroduziu a divisão tradicional do sistema educacional brasileiro, separando o ensino fundamental em duas fases (dois ciclos de quatro anos de
32
O Desafio do Educador
duração). Foi, então, uma organização meramente administrativa, sem fundamento psicopeda- pela Igreja Católica perderam 300 mil alunos. Dois motivos principais, segundo irmão Juilatto,
gógico, tendo como preocupação maior a queda dos índices de evasão e repetência escolar, tal um dos analistas dos dados deste levantamento: empobrecimento da população e melhoria do
como anunciado em inúmeras entrevistas e encontros promovidos pela Secretaria Estadual de ensino público. Contudo, é necessário destacar um sutil movimento de mercado que envolve o
Educação. No Brasil, durante muitos anos, esta divisão foi denominada de primário (os primeiros ramo educacional nos últimos quinze anos: a sua oligopolização. Poucos e poderosos grupos
quatro anos) e ginásio (os quatro anos seguintes). Tal subdivisão não se apropriou das elabora- privados investem na oligopolização, adquirindo escolas ou comercializando assessorias e recurções oriundas de pesquisas da psicologia do desenvolvimento que orientaram a montagem de sos pedagógicos, o que, na prática, gera franquias informais. Estudos da International Finance
experiências distintas de i mpl ant açãodeci cl os, comoéocasodos ciclos de formação. Com efei- Corporation sugerem que, nos próximos anos, os investimentos privados em educação devem
to, nos ciclos de formação, acompanha-se o desenvolvimento de crianças e adolescentes, cen- aumentar significativamente, em especial nas áreas de ensino à distância e treinamento vocaciotradas no desenvolvimento das crianças, tal como sugeriram Piaget, Erikson, Bruner, Kohlberg, nal. A educação brasileira movimenta 90 bilhões de reais por ano.
Mead, Wallon e Vygotsky. Mais recentemente, outros autores ampliaram a noção de inteligência, destacando a peculiaridade do desenvolvimento em cada criança, extendendo a importância
11 J. Carbonell (2002): A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto Alegre, Artmed, p. 19.
da superação da seriação, que totaliza e estigmatiza o processo de aprendizagem em módulos 12Um exemplo recente é a implementação do Sistema de Ação Pedagógica (SIAPE) pela Secretade um ano de duração. Este é o caso dos estudos que revelam processos de desenvolvimento ria Estadual de Educação de Minas Gerais.
específicos diretamente relacionados à cultura e rituais sociais (como observa D. H. Feldman,
o crescente ceticismo em relação à noção de habilidades universais dos homens (como nos estudos de Ericsson e Charness), aos perfis intelectuais múltiplos e diferenciados e à persistência
13 B. de Sousa Santos, B. (org.) (2002): Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
de raciocínios errôneos mesmo quando corrigidos (como em Gardner). Ver, sobre essas recen- 14 Ídem, íbidem, p. 48.
tes pesquisas na área de desenvolvimento humano o ensaio de H. Gardner, B; Torff y T. Hatch
(2000): «A idade da inocência considerada: preservando o melhor das tradições progressistas 15 A. Hargreaves, et al. (2002): Aprendendo a mudar: o ensino para além dos conteúdos e da
na psicologia e na educação», in D. Olson et al., Educação e desenvolvimento humano. Porto padronização. Porto Alegre, Artes Médicas.
Alegre, Artes Médicas.
5 A crença das reformas fundadas na cultura anglo-saxônica fundava-se no desenvolvimento
acelerado e na melhoria das condições de vida e emprego em sociedades com maior nível de
escolaridade, e onde suas propostas educacionais atendiam as demandas de mercado. Estudos
recentes desenvolvidos na Inglaterra abalam, contudo, tal crença. A. Wolf (2002), em seu li-
16 Ídem, íbidem, p. 30.
17 A associação de estímulos foi denominado por Pavlov de «pareamento». Tais estímulos, acreditava-se, levariam ao condicionamento de reflexos, programando-se as respostas daqueles
expostos aos inputs definidos pelo cientista. Pavlov acreditava que quanto maior o número de
pareamentos, mais eficiente seria a resposta condicionada.
vro Does Education Matter? Myths About Education and Economic Growth (Londres, Penguin
Books) sustenta que posicionamento no mercado e nível salarial não dependem apenas da ins- 18 O conceito se baseia em pesquisas desenvolvidas pelo Projeto Zero da Universidade de Hartrução, mas também do grau de competitividade no mercado de trabalho. Em suma, trata-se vard, que identificaram originalmente sete subsistemas da inteligência humana independentes
de uma corrida, em que as empresas selecionam uma diminuta parcela dos mais preparados e entre si: lógico-matemático, linguístico, espacial, físico-cinestésico, interpessoal, intrapessoal e
qualificados. Este estudo vai mais longe na demolição de crenças que emergiram nos anos 80: os musical. Posteriormente, Gardner acrescentou mais outras inteligências, como a espiritual e a
investimentos públicos para elevar o número de formados em universidades são acompanhados existencial.
de cortes orçamentários em todo o sistema educacional, atingindo duramente as somas direcionadas para as melhores universidades.
19 O conceito de portfolio encontra-se explicitado no livro Cultura Visual, mudança educativa e
projeto de trabalho (Porto Alegre, Artes Médicas, 2000). Hernández, no capítulo 7 deste livro,
6 Ver H. Ferlie et al. (1999): A nova administração pública em ação. Brasília, ENAP/UnB. Esta afirma que o portfolio é uma modalidade de avaliação retirada do campo da arte, tendo por obconcepção de gerenciamento público foi denominada no Brasil de Estado Gerencial.
jetivo reeducar a capacidade de percepção, compreensão e valorização daqueles que participam
das experiências educativas. Define-o como um continente de diferentes tipos de documentos
7Ver G. J. Sacristán (1998): O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre, Artmed, pp.
14 e 38.
(anotações pessoais, experiências de aula, trabalhos pontuais, controles de aprendizagem, conexões com outros temas fora da escola, representações visuais, etc.) que proporciona evidências
8 Sacristán cita J. Dewey e as pedagogias progressistas norte-americanas como contraponto das do conhecimento que foram sendo construídas, as estratégias utilizadas para aprender e a disteorias clássicas norte-americanas.
posição de quem o elabora para continuar aprendendo. No portfolio, o aluno registra e analisa
o que e como aprendeu, dentro e fora da escola, tomando consciência do seu desenvolvimento,
9 Sobre este tema, ver N. García Canclini (1997): Culturas híbridas. São Paulo, EDUSP. Numa o que lhe possibilita definir metas pessoais e auxilia seu professor a compreender sua própria
perspectiva mais discriminatória, Huntington destaca os latino-americanos como possuidores performance como educador.
de elementos de cultura indígena, corporativa e autoritária, predominantemente católicos, sugerindo que seríamos uma subcivilização da civilização ocidental. Ver S. Huntington (1997): O 20 E. Shorter (1995): A formação da família moderna. Lisboa, Terramar.
choque de civilizações. Rio de Janeiro, Objetiva.
21 Ver A. Hochschild (1989): The Second Shift: Working Parents and the Revolution at Home.
10Dados recentes indicam que a crise econômica que atingiu a classe média brasileira afetaram Nova Iorque, Viking Penguin. Ver, ainda, G. Lipovetksy (2000): A terceira mulher. São Paulo, Cia
duramente as escolas da rede particular de ensino fundamental e médio no país. Dentre estas, das Letras.
as escolas católicas foram as mais afetadas. Nos últimos três anos, 130 escolas católicas de en-
22 Na Europa, quando o pedido de divórcio é apresentado por apenas um dos cônjuges, em 70%
sino fundamental e médio fecharam suas portas, segundo a CNBB/CERIS. As escolas mantidas
33
O Desafio do Educador
dos casos é a mulher que toma a iniciativa. Este índice chega a 65% nos EUA. Apesar da signifi- descaso com a formação de um professor com a trajetória de um médico: é como se um médico
cativa autonomia, o mercado de trabalho continua discriminando os sexos. Nos EUA, 80% das recém-formado fosse obrigado a atuar em operações mais complexas, e, com o passar do temmulheres ativas são secretárias, empregadas ou vendedoras.
23 Este é o caso da área de Humanas, que introduziu conceitos marxistas no currículo estadual
po, fosse reservado a ele a tarefa mais fácil, como medicar um pequeno ferimento de dedo de
uma criança... é um contra-senso (depoimento à equipe técnica da CPP em setembro de 2001).
mineiro e se inspirou na elaboração teórica thompsiana na inovação curricular paulista. Os con- 27 M. Arretche (2000): Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização.
ceitos estruturantes procuraram superar a listagem de temas ou informações seqüenciais que Rio de Janeiro/São Paulo, Revan/Fapesp, p. 137.
inibiam qualquer reflexão crítica sobre a realidade social. Ao invés de fatos e personagens ou de
temas; ao invés de seqüência linear de fatos e topografia, conceitos que possibilitam a verificação
de permanências e mudanças a partir da ação humana.
24 Este é o caso da criação do Fórum Mundial da Educação (ver http://www.forummundialdeeducacao.com.br)e do Encontro de Municípios com estrutura de ciclos ocorridos este ano em
Porto Alegre, ou ainda a realização do Fórum Nacional de Reformas Educacionais realizado também neste ano em Belo Horizonte (verhttp://www.portalcpp.com.br/fnre)A UNDIME, órgão de
congregação de secretários municipais de educação, também prepara um encontro nacional de
experiências de implantação de sistemas de ciclo de formação.
25 Um dos estudos mais panorâmicos das reformas latino-americanas é o desenvolvido por M.
Gajardo, coordenadora do Programa de Promoção das Reformas Educativas na América Latina
e Caribe (PREAL). Ver M. Gajardo (2000): «Reformas educativas na América Latina: balanço de
uma década», in Documentos PREAL, núm. 15, Rio de Janeiro. Vários documentos e boletins a
respeito das reformas educacionais latino-americanas podem ser acessados em http://www.
preal.cl
28 B. Sander (1995): Gestão da educação na América Latina: construção e reconstrução do conhecimento. Campinas, Editora Autores Associados.
29 J. Coleman denominou a capacidade das pessoas trabalharem juntas, visando a objetivos comuns, de capital social. A capacidade de associação dependeria, por seu turno, do grau em que as
comunidades compartilham normas e valores e mostram-se dispostas a subordinar interesses
individuais aos grupos maiores. Daí nasceria a confiança. Ver R. Putnam (1996): Comunidade e
democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro, FGV; J. Coleman (1998): «Social Capital in the Creation of Human Capital», in American Journal of Sociology, núm.
30 A título de ilustração, o projeto Cidades Educadoras, outra articulação entre secretários de
educação de vários países, que ganhou organicidade a partir do I Congresso Internacional de
Cidades Educadoras realizado em Barcelona em novembro de 1990, sugere a ênfase na relação
escola-cidade. Várias resoluções e ensaios produzidos no interior desta articulação aconselham
que a compreensão da cidade como espaço educador e de aprendizagem passa pela mudança
de perspectiva: da atenção ao parâmetro do cidadão médio (adulto e trabalhador) para adoção
da criança como parâmetro. Exemplos como a criação de um verdadeiro Laboratório Municipal,
26 Comunicação na mesa Marco Referencial das Reformas Educacionais, realizada no dia apresentam propostas de elaboração de conselhos de crianças para pensar a cidade ou projeto
21/06/02 em Belo Horizonte, durante o I Fórum Nacional de Reformas Educacionais. A. Nóvoa, Crianças Projetistas, em que crianças estabelecem soluções para problemas urbanísticos. Em
em consonância com as observações de Bomeny, ressalta que os dois primeiros anos de ativi- Cuiabá, uma vez por ano, os alunos de escolas públicas elegem um Secretariado Municipal que
dades profissionais de um educador são decisivas para seu desempenho e engajamento futuros. acompanha, durante um dia, o titular de cada secretaria municipal de governo, tomando deciContudo, suas pesquisas revelam que justamente os professores novatos são os mais sobrecar- sões e sugerindo políticas.
regados em suas instituições de ensino: a eles são atribuídas as turmas mais complexas e violentas, os horários menos convidativos, as tarefas mais penosas. Nóvoa chega a comparar este
31 A. Fernández (1994): A mulher escondida na professora: uma leitura psicopedagógica do ser
mulher, da corporalidade e da aprendizagem, Porto Alegre, Artes Médicas.
34
O Desafio do Educador
O Direito de Aprender
1. ENTRE O PASSADO E O FUTURO
O papel da educação é humanizar os homens. (Hannah Arendt)
Por que aprender? Esta pergunta, até então, parecia óbvia demais. Mas nos últimos anos, voltou a ser fonte de preocupação para educadores. Em pesquisa recente desenvolvida junto à professores da Espanha e Portugal, a grande maioria afirmava que não sabia, ao certo, o
que seria conteúdo fundamental a ser ensinado. Comecemos, então, pelo início. Como o Brasil concebeu a importância da aprendizagem?
Ou ainda: aprender foi desde sempre considerado um direito? Para tentarmos esboçar uma resposta, façamos uma breve incursão sobre as
escolas de pensamento da educação pública brasileira. A educação pública brasileira pode ser caracterizada como resultado de um hibridismo cultural, ou pedagógico. Nossa primeira influência foi a concepção dos jesuítas, logo no século XVI. O Concílio de Trento, em 1546, procurava combater a máxima de Lutero que pregava que não havia necessidade de um fiel ser mediado pelo clero. Bastava colocar-se à frente da
Bíblia e dirigir-se à Deus. A principal arma empunhada pelos jesuítas neste conflito era a revalorização da transmissão oral. Para tanto, era
necessário reconstruir a noção de carisma, ou seja, o toque divino sobre alguns homens escolhidos para serem instrumentos de Sua vontade.
Pregou-se que a palavra divina seria transmitida pela palavra oral, disseminada nos púlpitos. O núcleo da doutrina pedagógica da ação dos jesuítas expressava-se nas concepções disseminadas pela Universidade de Coimbra (até o século XVIII), segundo as quais era imperativo que os
indivíduos integrassem um corpo político subordinado ao Estado, numa espécie de servidão voluntária3 . A ação educativa resumia-se às três
grandes funções da retórica: ensinar (a partir da Verdade), defender a Verdade e, através da Verdade, envergonhar os pecadores. O exercício
da memorização era amplamente empregado, potencializando o arsenal retórico a ser utilizado nas pregações. Esperança e medo definiam
a dinâmica do discurso. Registremos, portanto, que a primeira herança pedagógica que recebemos da Europa concebia o educando como um
ser errado (oriundo do pecado original) que deveria ser doutrinado a se incorporar, através da palavra pregada pelo pároco local, ao corpo
do Estado. A cultura do educando, neste caso, era ignorada, porque distante do desejo divino. Em outras palavras, não interessava saber de
quem se tratava, mas o que se tornaria o educando. Outro elemento essencial dessa pedagogia era a noção de infalibilidade do currículo prescrito na pregação do pároco. O currículo, em suma, era intocável, assim como a orientação da Igreja Católica a respeito dos costumes e da
fé. Por fim, deve-se destacar a orientação didática para que se humilhasse o pecador na busca de sua conversão em súdito da unidade social.
Submissão, negação da individualidade e das expressões culturais peculiares, currículo infalível, conversão pela vergonha. Esses foram os
primeiros elementos da nossa herança pedagógica. Em seguida, já no século XVII4 , a escola foi se constituindo num aparelho que se opunha
à educação familiar. Neste caso, portanto, não havia ruptura com a tradição jesuítica. Florescia uma profunda crença na verdade científica,
oriunda de métodos racionais de leitura da realidade. A ciência, nessa época, aparecia como instrumento de desvelamento e teleologia,
aproximando-se de um movimento de conversão pessoal. A educação informal, desenvolvida no interior das moradias5 foi sendo substituída
por instituições públicas, imposta pela corte portuguesa. O discurso higienista passa a ganhar projeção social. Para adequar as famílias à estrutura burocrática e centralizadora do Estado português, disseminaram-se os internatos, consideradas redutos de moralidade e orientação
do espírito jovem. Higiene pessoal, rígidas regras de comportamento social, controle do tempo pessoal, cumpriam a tarefa de modelar um
cidadão sadio, honesto e responsável. No século XIX, o ideal de formatação do cidadão através de um órgão público, externo à família, passa
a atingir todas as camadas sociais, através da instituição dos grupos escolares. A escola era considerada a alavanca para a modernização
do país. Lançavam mão dos conhecimentos produzidos pela Biologia, Psicologia e Ciências Sociais para compreender a infância e adequá-la
aos desafios do desenvolvimento. Ao professor caberia orientar ou guiar a liberdade do aluno, evitando caprichos pessoais. Nascia, assim, a
concepção taylorista de educação pública4 . O modelo taylorista supõe uma escola que doutrina os educandos à vida social e produtiva. Produção, no século XIX, era significado de progresso industrial. Daí, os conteúdos a serem ministrados adotarem como foco as disciplinas diretamente vinculadas à produção industrial: Matemática, Física, Química, Biologia e Psicologia (esta última, vinculada à mudança de hábitos e
comportamentos sociais do aluno). Joseph Mayer Rice, um educador taylorista norte-americano, elaborou, quase que simultaneamente aos
escritos de Taylor, uma clara orientação da estrutura de gestão escolar: tempo de estudo racional (45 minutos de módulo-aula), conteúdos
organizados em pré-requisitos, formação de homens disciplinados para a produção industrial, ensino seriado, currículo prescritivo. O sistema
de avaliação do ensino primário objetivava selecionar os homens aptos ao trabalho repetitivo e disciplinado da indústria.
35
O Desafio do Educador
1. Este breve relato histórico possibilita entendermos que somos herdeiros de concepções distintas a respeito do papel da educação pública. Mas alguns pontos parecem coincidir:
2. Em 500 anos de modelos educacionais, as famílias e as comunidades em que estão inseridas as escolas parecem ser consideradas obstáculos à educação de crianças e jovens.
3. A experiência de vida do aluno não é levada em consideraçã.
4. O currículo é prescritivo, inquestionável e objetiva formatar o espírito e a conduta dos alunos.
5. A educação vincula-se a objetivos de construção de amplos sistemas de integração econômica e política dos indivíduos, impedindo a
construção de estruturas curriculares vinculadas aos dilemas cotidianos. Há, portanto, uma tendência ao desenvolvimento de conteúdos curriculares marcados pela sua instrumentalização produtiva (aplicados diretamente à rotina industrial), no caso do modelo
taylorista de educação, ou conteúdos abstratos, no caso da permanência da tradição escolástica jesuíta. Não há espaço, como vemos,
à práticas educacionais vinculadas ao pensamento crítico.
Somos, portanto, fruto de uma noção muito peculiar do papel educativo como socialização dos homens. Socialização, no caso da tradição educacional brasileira, significa adestramento do espírito, condicionamento 4 Passamos por outras vertentes pedagógicas, mas não
é objeto deste texto uma análise mais detalhada das escolas de pensamento que influenciaram nossos projetos de educação pública. Para
registro, apenas, vale destacar que à influência da Companhia de Jesus, somaram-se doutrinas lassalistas, maristas, salesianas, beneditinas e
dominicanas. No século XIX, disseminou-se pelo país a filosofia positivista, inclusive entre pensadores socialistas. As proposições de Comte,
para quem seria fundamental preservarmos, como leis sociais, todos hábitos coletivos que congregavam os homens na sociedade industrial,
expressaram-se em currículos que enfatizavam o equilíbrio e o progresso harmônico, o empirismo e o enciclopedismo. Foram, também, comuns, experiências educativas apoiadas nas proposições de Pestalozzi, que enfatizava a atenção ao processo de aprendizagem dos alunos,
tendo como instrumentos principais a intuição e a observação. As escolas comportamental e funcionalista norte-americanas difundiram--se
entre gestores da educação brasileira nas primeiras décadas do século XX. No período entre guerras, somou-se ao funcionalismo as teorias
organizacionais e administrativistas, mais tarde fortemente influenciadas pelas teorias de Simon, Barnard e Parsons. Nascem daí os sistemas
fechados de controle educacional, assim como a definição do papel do diretor escolar. A partir de então, muitos estudiosos sustentam que
mergulhamos numa espécie de hibridismo conceitual. Para uma análise das concepções contemporâneas que pautam as reformas educacionais em nosso país, ver o excelente estudo de Maria Malta Campos, «A Qualidade da Educação em Debate», in: Especial Observatório
da Educação 2000: A Educação Brasileira na Década de 90, Rio de Janeiro, IBASE/Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2000. Ricci,
Ruda: O direito de aprender OEI-Revista Iberoamericana de Educación (ISSN: 1681-5653) 4 dos indivíduos aos objetivos oficiais das instituições
econômicas e políticas. Estamos mais próximos da tradição behaviorista, da Escola Comportamental, para quem a inteligência humana é sinônimo de capacidade de adaptação. São quinhentos anos de reprodução e aggiornamento dessa tradição educacional. A tradução imediata
desta herança na sala de aula é a conformação de um professor extremamente cioso da disciplina dos alunos, preocupado com dinâmicas de
memorização de conteúdos, controlado por instrumentos que medem seu ritmo de trabalho, pouco afeto à pesquisa, reprodutor de conhecimento elaborado nas Universidades. O professor, de maneira geral, é condicionado a entender seu papel como vinculado aos interesses do
Estado, e não da sociedade em que está inserido. Obviamente que existem atos de rebeldia. Mas, mesmo nessas situações, muitos professores não conseguem alterar significativamente o sistema de avaliação que empregam todos os bimestres do ano letivo. Suas inovações são
exceções que segmentam o currículo: o oficial, composto por disciplinas estanques e avaliado por instrumentos de classificação dos alunos;
e o oficioso, quando há, que procura incorporar dilemas e situações sociais mas, quase sempre, desvinculado do currículo oficial e desacompanhado de instrumentos de avaliação. Foi o que ocorreu em grande parte das escolas brasileiras ao longo de 2000. Muitas introduziram
projetos de estudo, quase sempre de natureza multidisciplinar, sobre os 500 anos de história do Brasil como nação. As experiências foram diversificadas e ricas, lançando mão de pesquisas originais e traduzidas em exposições, pequenas peças de teatro, músicas, livros improvisados.
Entretanto, estas iniciativas não foram objeto de avaliação. Ao lado, corriam as aulas tradicionais, carregando seus currículos prescritivos e
objeto de mecanismos de avaliação. No Brasil, dificilmente conseguimos juntar temas de relevância social com os conteúdos disciplinares
oficiais, porque são objeto de interesses distintos: formar para o mercado de trabalho e para o ingresso em Universidades ou formar para a
cidadania. A dicotomia é profunda. No meu entender, o problema central reside na função social que atribuímos à escola. Nossa intenção,
como educadores, é acomodarmos nossa tradição educacional com a necessidade de construirmos espaços de socialização, onde os alunos
discutem seus dilemas reais e o conhecimento esteja à serviço de sua formação. Mas esta acomodação parece cada vez mais inviável. Vivemos um impasse em relação à nossa prática educacional, portanto. Temos que definir o papel social da escola pública.
Benno Sander6 sugere que este impasse estaria sendo, pouco a pouco, solucionado na América Latina. Em sua análise, sugere que passa36
O Desafio do Educador
mos por quatro noções de gestão educacional ao longo do último século. Iniciamos o século adotando como conceitos centrais a eficiência
(central na escola de administração taylorista) e a eficácia. Na prática, significou a busca de maior produtividade e racionalidade na utilização
de instrumentos e procedimentos operacionais. Resultados quantitativos (número de vagas, percentual de alfabetizados), sistemas de controle racionais (controle de freqüência, rotinas administrativas, instâncias de fiscalização do sistema educacional) são objetivos intrínsecos
desse modelo de gestão. Em seguida, ao longo dos anos cinqüenta e sessenta, adotamos um terceiro conceito de gestão do sistema educacional: efetividade. Agregava-se um conteúdo político à gestão, onde as demandas da comunidade procuravam ser atendidas. Paulo Freire
foi uma expressão dessa vertente: não bastava a vaga na escola, a educação deveria estar à serviço da mudança de posicionamento político
do educando. Sua cultura, portanto, deveria ser incorporada ao currículo oficial do processo educativo. Finalmente, um quarto conceito,
desenvolvido nos últimos vinte anos, parece ganhar a atenção dos gestores em educação pública: o de relevância. A relevância estaria vinculada diretamente aos valores de uma comunidade. Em outras palavras, a gestão educacional estaria preocupada com o desenvolvimento
humano sustentável o que muda profundamente o foco da ação educativa. O aluno não é considerado mais um índice (de evasão, repetência
ou de analfabetismo), os objetivos da educação não são mais individualizados (formá-lo para o sucesso profissional, por exemplo). Agora, o
objetivo é reforçar seus vínculos comunitários, desenvolver no aluno a solidariedade. Sander não aprofunda, mas esta noção está associada
ao conceito de capital social. O conceito de capital social foi divulgado por Robert Putnam em seu estudo sobre o desenvolvimento desigual
da Itália. Originalmente, foi desenvolvido por James Coleman e Glenn Loury, mas rapidamente ganhou variações ideológicas, como o recente
estudo de Francis Fukuyama. Vejamos os fundamentos deste conceito. Segundo a formulação original, o capital social seria o conjunto de características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando
as ações coordenadas. Segundo Putnam, a confiança social possui duas fontes: as regras de reciprocidade e os sistemas de participação. Nas
sociedades em que as pessoas acreditam que serão retribuídas, existe maior probabilidade de trocas, de reciprocidade. As associações comunitárias são exemplos claros de sistemas de participação cívica, onde não ocorre hierarquia de poder, e onde são desenvolvidas muitas ações
de cooperação em benefício de todos. Acabam por estabelecer regras de comportamento baseadas na reciprocidade, facilitam a comunicação e a confiança dos indivíduos. Nas sociedades ou regiões onde há forte organização central ou vertical, a comunicação é muito menor, as
expectativas se diluem e dificilmente as regras de reciprocidade construídas na base da sociedade chegam a influenciar o topo das organizações. Este é o caso das relações clientelistas, que ocorrem com muita freqüência em nosso país. Os «clientes» daquele que têm poder não
estabelecem relações entre si, mas cada um com seu «protetor». Chegam, até mesmo, a competir entre si. Assim, impedem ações coletivas
e comunitárias. Impedem a participação coletiva na gestão pública. Putnam e sua equipe ao estudarem por vinte anos as diferenças regionais
da Itália perceberam as regiões com maior índice de capital social (que eles denominaram de «regiões cívicas») eram as que promoviam o
crescimento econômico, ao contrário das regiões com menos associações e mais hierarquia política. Uma das explicações é que as regiões
cívicas deixam as instituições públicas eficazes, justamente porque aumentam a comunicação entre cidadãos, fortalecem o consenso sobre
decisões comunitárias, 5 6 consolidam organizações sociais e a economia local, geram cooperação voluntária. A confiança, neste caso, passa
a ser mais que crença. Gera regra e ação comunitária. O conceito de Capital Social relaciona o desenvolvimento de uma localidade ao grau de
coesão e participação comunitária intensa dos cidadãos daquele território. Tal participação social gera uma série de normas e uma cultura de
ajuda mútua, aumentando a confiança política e social das pessoas na comunidade em que vivem. Por sua vez, esta confiança torna-se um
antídoto contra formas de exploração e dependência política (como o clientelismo), aumentando o controle e a autonomia social. Benno
Sander, acredito, acerta ao afirmar que estamos transitando de uma concepção de gestão pautada pela eficácia e eficiência, para uma gestão
centrada na relevância. Mas esta mudança de mentalidade parece estar ainda restrita a pequenos fóruns de gestores educacionais. Minha hipótese é que ainda continuamos ancorados à nossa tradição prescritiva e normativa de educação. Em muitos encontros da área educacional
realizados nos últimos anos, é significativo o número de professores angustiados porque percebem o quanto é necessário realizarmos esta
mudança de rumo. A escola, em suma, precisa se abrir à sociedade. Mas, infelizmente, por não existir esta tradição, continuamos no impasse.
Colocado o problema de nossa herança, vejamos agora o significado do direito à educação no século XXI. Tentarei caminhar na direção da
construção de uma função social da escola pública, apoiada no conceito de Capital Social. Para tanto, vou fundamentar minha opção a partir
da análise sobre as profundas mudanças na dinâmica familiar e nas inovações recentes de gestão escolar que ocorrem desde os anos 80 do
século passado.
2. O DIREITO DE APRENDER NO SÉCULO XXI
Aprender não é primeiramente memorizar, estocar informações, mas reestruturar seu sistema de compreensão de mundo (Philippe Perrenoud)
A preocupação central de qualquer reforma educacional neste início de século é a mudança do perfil das famílias. Em especial, dois
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O Desafio do Educador
aspectos devem merecer atenção: o aumento do número de famílias monoparentais (onde apenas um dos pais reside com seus filhos) e a
alteração do comportamento social da mulher. Os dois aspectos relacionam-se com as novas exigências do mercado de trabalho, iniciadas
em meados dos anos 80. A universalização das novas tecnologias de produção e gestão empresarial, baseada na microeletrônica e na consolidação do trabalhador polivalente, consolida-se na segunda metade da década de oitenta. O impacto do preço do barril de petróleo e a recessão mundial provocada pelo aumento da taxa de juros norte-americana haviam abalado a estrutura de gestão e produção disseminada no
ocidente após a Segunda Guerra Mundial. Aquele modelo, denominado por muitos autores como fordista-keynesiano, gerou um profundo
pacto social pelo desenvolvimento industrial acelerado. Ele não foi igual em todo o ocidente, mas manteve algumas características centrais.
Se na Europa, a aliança entre sindicatos de trabalhadores e partidos de esquerda ganhou forte apelo popular após a Segunda Guerra, nos EUA
esse fenômeno não ocorreu. Ao contrário, a força do movimento sindical norte-americano verificado no final do século XIX, decaiu drasticamente após as várias crises econômicas e a reorganização do mercado imposta pelo New Deal, a partir de 1933. Mas, o ponto comum entre
as várias modalidades de fordismo é a articulação entre produção de massa e ampla regulação estatal do mercado. A produção em massa
fundou-se, por sua vez, na especialização produtiva: enormes indústrias especializaram-se na produção de apenas um produto, procurando
sincronizar o ritmo de trabalho no interior da fábrica. Ford era tão obcecado por esta organização da produção que chegou a contratar inúmeras assistentes sociais que tinham como tarefa visitar os lares dos operários e definir uma classificação do comportamento familiar para,
então, implementar políticas que condicionassem não apenas a produção de seus operários, mas também o seu consumo. Enfim, no fordismo o operário era compreendido como produtor e consumidor dos produtos industriais. Precisava aprender a consumir, a ser disciplinado.
Uma preocupação que ainda permanece em grande parte dos pedagogos norte-americanos é a educação para as finanças domésticas, para
o consumo, que foi inaugurada com o fordismo7.
Mas este modelo produtivo desmoronou ao longo da década de 80. As novas tecnologias de produção, mais flexíveis e ágeis, acelerou
o ritmo de criação no interior das indústrias. O ramo da informática, por exemplo, chega a produzir um produto novo a cada três meses,
em média. A nova dinâmica produtiva exigiu novo perfil profissional e, consequentemente, novas estruturas de gerenciamento. Três fatores
conformaram o novo perfil profissional: de um lado, as novas tecnologias impunham conhecimentos técnicos mais apurados dos operários;
de outro, o ritmo de competitividade e criação de novos produtos exigiram maior rapidez na comunicação interna, provocando tomada de
decisão ágil (muitas vezes, implicando em mudanças significativas e urgentes na fabricação de um determinado produto); por último, a necessidade de investimentos em tecnologia e, principalmente, criação de novos produtos, impeliu as empresas a procurar diminuir gastos com
a folha de pagamento para alocar esses recursos em pesquisa e tecnologia. O movimento não foi acelerado, nem mesmo atingiu o conjunto
das empresas ocidentais. Mas constituiu-se num novo paradigma de produção de ponta. As conseqüências foram significativas. Para acelerar
a comunicação interna, as empresas de ponta decidiram diminuir as hierarquias funcionais e o sistema de controle interno. Em parte, rompe-se com a concepção taylorista onde operários executavam e segmentos superiores planejavam. As responsabilidades são transferidas para
o «chão da fábrica». Em seguida, novas demandas em recursos humanos desenharam incentivos diretos para o conjunto de trabalhadores
de uma empresa assumirem tarefas coletivas, ampliando sua capacidade de produção. Surgem «células de produção» (como se denominou
no Japão e EUA) ou «sistemas de docas» (denominação empregada na Suécia): agrupamentos de operários com grande autonomia na tomada de decisão, que construíam quase que totalmente um produto. Superava-se a produção em série, segmentada, onde cada operário era
especializado num movimento apenas. Em média, um operário assumiu tarefas que antes envolviam sete operários. Assim, o novo operário
tornou-se multifuncional ou polivalente. As demissões pipocaram e o polivalente substituiu os operários especializados. Este novo perfil
vinha sendo minuciosamente elaborado pelo engenheiro-chefe da Toyota, Taiichi Ohno, desde a década 50, quando aquela empresa demitiu
grande parte de seus operários e iniciou uma reformulação gerencial, procurando aumentar a produção com menos operários. Do «andon»
(visualização de toda a produção, incentivando os operários a se solidarizarem com equipes de operários fora do ritmo normal de produção)
chegou-se à qualidade total. Em muitas empresas de ponta, o salário variável (oriundo de bônus por aumento de produtividade ou premiação
em virtude de um produto criado por operários) é superior ao salário fixo, registrado em contrato.
O novo perfil profissional causou forte impacto sobre as famílias, porque exigiu mais dos trabalhadores. Agora, não há mais segurança
no trabalho. O mundo das empresas passou a ser um mundo flexível, dinâmico, instável. O trabalhador, para garantir sua permanência e
reconhecimento, necessita estudar, informar-se, pesquisar, criar. De um lado, aumenta o contingente de desempregados, de outro, surgem
os polivalentes. Desempregados, trabalhadores temporários ou polivalentes, todos têm seu tempo de convívio familiar reduzido em função
das novas exigências do mundo do trabalho. Esta é a senha para entendermos o que significa, no século XXI, o direito à educação. Poderíamos traduzir como um grito surdo das crianças e adolescentes que sentem-se mais e mais abandonados (e amedrontados) pelo mundo dos
adultos. O direito à educação, mais que antes, significa o direito à socialização, a se reconhecer no coletivo, a procurar identificar-se com um
mundo que o nega constantemente. Vejamos alguns dados sobre composição familiar para sustentarmos tais afirmações.
Dados recentes da Pesquisa Nacional Domiciliar (PNAD), desenvolvida pela Fundação IBGE, revelam que mais de 25% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. Em 1995, a maioria dessas mulheres (49%) eram divorciadas ou separadas. Em 63% dos casos, as mulheres-chefes possuem menos de 40 anos, revelando uma mudança de comportamento social. Na década de 70, mulheres-chefes eram, em sua
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O Desafio do Educador
maioria, viúvas. As famílias monoparentais (apenas um dos pais residindo com seus filhos), por sua vez, constituem o arranjo doméstico que
mais cresce dos anos 70 para cá. Em 1970, apenas 7,8% das famílias brasileiras eram monoparentais. Em 1995, já representavam 14,4% das
famílias. A família monoparental é mais expressiva quando o casal possui até três filhos. Ocorre que o número médio de filhos por casal, na
última década do século XX, chegou a 2,4. Assim, as famílias brasileiras são menos numerosas e os casais se separam mais rapidamente. Nas
pesquisas desenvolvidas pela minha equipe técnica a respeito da dinâmica familiar e seus processos educativos, percebemos uma redução
do tempo de convívio familiar. Em média, especialmente na região sudeste, os pais convivem com seus filhos por seis horas diárias. Quanto
mais próximo do índice de pobreza absoluta (menos de 60 dólares per capita), maior o tempo de convivência. Esta situação parece muito
positiva se compararmos com os dados europeus e norte-americanos. Quando trabalham, as mães européias e norte-americanas dedicam
duas horas e meia por dia aos filhos com menos de dois anos de idade. O pai dedica menos de uma hora. O tempo dedicado ao primogênito
chega a 45 minutos8 . Não obstante, o que os pais brasileiros denominam de convivência é algo muito rarefeito. O maior tempo de convivência (03 horas) ocorre ao final do dia. Nesse momento, os pais reúnem a família e, em 75% dos casos pesquisados, assistem programas de
televisão. Não conversam. Não comentam. O resultado mais significativo é a redução do universo vocabular dos filhos e uma ansiedade que
se dissemina por toda a família. Em outras palavras, o tempo de convívio familiar parece estar sendo roubado pelo mercado de trabalho. E
os pais começam a perder a noção da responsabilidade paternal. Imperceptivelmente, começam a desconhecer a função social da família,
a socialização básica do código de comunicação (a língua materna) e dos valores sociais. O sentido das palavras se dilui e são substituídas
por convenções sem significado. É comum, em público, presenciarmos pais que obrigam seus filhos a balbuciar um agradecimento a outro
adulto, mais como uma forma de corresponder a uma expectativa que os outros adultos fazem da sua performance como pai que necessariamente um processo educativo de socialização. Um procedimento que o psicólogo Jurandir Freire denominou uma vez, em um emocionado
artigo, de «adultescente», ou seja, adultos que agem, como pais, com a mesma tolerância típica de um adolescente, porque estão perdendo
a imagem do papel social do pai. No Brasil, a guarda dos filhos de casais separados fica, em 90% dos casos, com as mães. É o mesmo índice da
Europa. Naquele continente, esta situação é fruto de acordo entre o casal, e não uma imposição do juiz. É importante refletirmos que culturalmente, as mães dedicam-se a várias tarefas domésticas, intercalando várias iniciativas ao longo do dia, mesmo quando são assalariadas.
Nos EUA, as mulheres assalariadas realizam 75% das tarefas domésticas e são ajudadas por seus maridos um pouco mais de meia hora
por dia9 . Na década de noventa, 79% das espanholas, 70% das inglesas e alemãs, e 60% das italianas e francesas, afirmaram que seus maridos não auxiliam em nada nos afazeres domésticos. Imaginemos, agora, a rotina diária de uma mãe brasileira, separada, responsável por
dois filhos adolescentes (nos anos 90, a faixa etária entre 14 e 19 anos de idade era a mais significativa estatisticamente em nosso país). Independente da sua renda mensal, dificilmente encontrará tempo para acompanhar os estudos de seus filhos. Além de provedora, está inserida
numa cultura que determina que atividades domésticas são de responsabilidade feminina. Enfim, os dados populacionais do ocidente revelam que as mulheres trabalham mais, em empregos que remuneram pouco, separam-se de seus maridos com mais freqüência, e assumem
a chefia da família em 90% dos casos de famílias monoparentais.10
Daí, podemos aventar a hipótese que as mudanças em curso no mercado de trabalho, ao exigirem maior dedicação no trabalho, facilitam a decomposição dos arranjos familiares originais. Em muitos casos, mesmo que isso não ocorra, o drama da educação dos filhos
permanece. O tempo de convívio familiar se reduz. Em suma, as famílias estão transferindo a educação básica de seus filhos para a escola.
Estaríamos, enfim, voltando às origens, quando as crianças e adolescentes ocidentais eram socializados fora do seio familiar? Ainda é cedo
para chegarmos a uma conclusão, mas experiências recentes se antecipam algumas respostas. Passarei, neste sentido, a relatar experiências
orientadas para assumir o papel de socialização básica das crianças e adolescentes. Comecemos pela Charter School norte-americana. Essa
modalidade de organização escolar nasceu em 1992, no Estado de Minesota. Hoje, totalizam 2 mil escolas, envolvendo 518 mil alunos. São
escolas licenciadas (charter) pelo governo federal, financiadas com recursos públicos, mas operadas por entidades independentes (board or
trustees), compostas por pais, líderes da comunidade ou professores. A licença é outorgada por conselhos de educação local ou estadual.
Essas licenças perduram por cinco anos. Após esse período, a Charter School é avaliada por órgãos públicos, e o documento central de análise
é o contrato de desempenho assinado pelos dirigentes da escola, numa espécie de Contrato de Gestão. Segundo o Hudson Institute, essas
escolas possuem três vantagens sobre as formas tradicionais de escola pública, a saber:
a) As famílias e docentes escolhem as escolas principalmente por razões educacionais.
b) As crianças que apresentam problemas de aprendizagem em outras escolas, ao se transferirem para uma Charter Scholl melhoram
seu rendimento.
c) Os professores manifestam maior satisfação e relação profissional.11
Um estudo realizado pelo Center for Education Reform indicou que no ano acadêmico de 1997/8, 65% das escolas charter possuíam
uma lista de espera ao redor de 135 alunos interessados em ingressar nessas instituições. Essas escolas, segundo o estudo, atendem crianças
normalmente excluídas da rede oficial, aumentam a participação dos pais, reduzem os problemas disciplinares e incrementam a assistência
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O Desafio do Educador
às turmas de alunos. Três princípios norteiam essas escolas: 1) a co-responsabilidade nos resultados a partir do contrato que define metas;
2) livre eleição de docentes e alunos que escolhem ingressar nessa modalidade escolar, e 3) autonomia (já que estão liberadas de regulações
tradicionais de uma escola pública). Em Chicago, uma reforma iniciada em 1988, criou Conselhos Escolares Escolares Locais (LSC), integrados por pais e professores. Os LSCs são responsáveis pela contratação ou demissão do diretor e aprovar o regimento interno da escola. Os
diretores possuem maior liberdade para definir a equipe de trabalho e até mesmo a estrutura física da escola. Cada escola recebe uma verba
pública anual. Desde 1995, aprofundouse a autonomia dessas escolas, o que possibilitou que passassem a oferecer educação para adultos,
educação infantil e programas extra-sala. Outro exemplo importante que destaca uma concepção comunitária da educação (ou do direito a
aprender) é o programa EDUCO, de El Salvador, que conta com o apoio da UNESCO. O programa surgiu em 1991 e busca atender áreas rurais
remotas, desenvolvendo programas de ensino fundamental. Inicialmente, atendia pouco mais de 8 mil crianças, mas saltou para 194 mil
crianças em 1997. A principal característica dessa experiência é a participação de pais na gestão escolar. Para tanto, foram institucionalizadas
as Associações Comunitárias de Educação (ACE), associações sem fins lucrativos integradas por pais de alunos e por professores. Uma ACE
contrata professores, monitora sua performance, administra a conta bancária da escola (pagamento de professores, manutenção e equipamento) e mobiliza a comunidade para prestar serviços voluntários às escolas. Em 1997 já eram contabilizadas 1.750 ACEs no país. Avaliação
realizada pelo Banco Mundial revelou que as escolas vinculadas ao EDUCO envolviam mais os pais, triplicando suas visitas à escola quando
comparadas com as escolas tradicionais; a maior interação com professores diminui problemas de indisciplina e rendimento escolar; além
de aumentar o envolvimento e apoio da família na ajuda às tarefas escolares dos filhos12: se nas escolas tradicionais a assistência às tarefas
escolares do filho envolvia 9% das famílias, nas escolas EDUCO, o Banco Mundial observou que esta ajuda envolvia 45% das famílias. Nas
escolas tradicionais do meio rural, os professores dedicam 2,9 horas por semana em reuniões com os pais de alunos. Nas escolas EDUCO este
tempo salta para 4,9 horas semanais.
No Brasil, temos uma experiência importante de educação no meio rural que adota os mesmos princípios apontados acima. São as Escolas Família Agrícola (EFAs), que se espelham numa experiência desenvolvida inicialmente por instituições católicas, na França13. As EFAs
espalham-se por 16 estados brasileiros e atendem 14 mil jovens rurais. Cada EFA é gerida por uma associação local, sustentada pelos pais
dos alunos, que assume a administração de pessoal, das finanças, além de se responsabilizar pelas construção do plano de formação. O
original dessa modalidade é que a escola passa a integrar um projeto de desenvolvimento local, objetivando o desenvolvimento sustentável
da localidade. Tal princípio sugere que a função social da escola é articular a comunidade local que protagoniza, por sua vez, a constituição de
uma estrutura comunitária: a escola. Para atingir tal objetivo, adotam a Pedagogia da Alternância, que compreende um processo de desenvolvimento que articula a família (considerado meio afetivo e fonte de motivação do educando), profissionais (mestres de estágio e líderes
comunitários) e monitores (os educadores, considerados catalisadores da formação e organizadores dessa parceria). O educando alterna
momentos de estudo (análise, comparação, aprofundamento) em sistema de internato com longos momentos de convívio familiar (pesquisa e aplicação de conhecimentos). Os instrumentos pedagógicos utilizados aproximam-se da proposta de portfólio (que analisaremos
mais adiante): Plano de Estudo coletivo e individual, Caderno da Realidade, Visitas de Estudo, Atividades de Retorno, Visitas à Família14 . A
Espanha vem sendo um celeiro de experiências inovadoras desde a década de 80. Podemos citar, ainda que brevemente, a experiência Escola
Aberta, onde pais e comunidade freqüentam a escola nos finais de semana, para participar de inúmeras atividades culturais: campeonatos
esportivos, aulas de dança e culinária, oficinas de arte e folclore, entre outras. A escola torna-se um equipamento comunitário, onde a cultura (compreendida como experiência coletiva) é socializada e promove reconhecimento público e social. Algumas experiências importantes,
como a da Escola São Miguel, de Cornellà, em Barcelona, vem sendo objeto de estudos específicos15. Nelas, desenvolve-se um currículo cujo
eixo é a formação moral, a solidariedade e a criação de hábitos de autogoverno. A participação ativa dos jovens estudantes é a tônica, estimulada por programas de tutoria.16
As experiências aqui citadas têm um ponto em comum: as escolas passam a ser compreendidas como equipamentos comunitários. As
famílias não são apenas convidadas a discutir os rumos do processo educacional. Pelo contrário, passam a ditar esses rumos. Os currículos
adotados incorporam elementos da realidade como eixos temáticos (ou temas geradores) ou ainda assumem objetivos claros na formação
moral dos alunos. De certa forma, atualizam o papel clássico dos equipamentos públicos de socialização que encontrávamos na Antigüidade. São experiências pontuais. Mas exatamente por brotarem de iniciativas locais é que devem chamar a atenção de um observador mais
atento, justamente porque possuem elementos de grande identidade. Como poderíamos interpretar essa situação onde experiências localizadas expressam as mesmas intenções universais? Talvez porque procuram responder ao impasse original, da reconversão das escolas como
instituições de humanização dos homens, numa quadra de nossa história marcada pela fragmentação, pela incerteza e insegurança.
Talvez, estejam procurando encontrar modelos que definam a forma de garantir o direito a aprender. O importante é compreendermos
que para a escola pública assumir este papel comunitário, ela precisa ser repensada. Em suma, não pode mais ser compreendida apenas
como equipamento vinculado ao órgão responsável pela educação pública (secretarias e ministério da educação). Passa a ser compreendido
como equipamento multifuncional, porque vinculado aos dilemas das famílias ou da comunidade. Deveria integrar, portanto, programas das
áreas de cultura, esporte, saúde comunitária, geração de emprego e renda, educação. Porque o foco de sua ação passa a ser a comunidade e
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O Desafio do Educador
não os programas instrucionais. Compreende-se como equipamento que produz conhecimento socialmente significativo e não apenas como
reprodutor de informações autoreferenciadas. A tarefa, portanto, é das mais complexas, porque sustenta-se numa profunda reforma da
gestão pública, ainda marcada pela especialização e distanciamento social típicos da burocracia pública. Entretanto, nós educadores, sabemos que a grande jornada tem início com o primeiro passo. Gostaria, portanto, de encerrar este texto-provocação com uma incursão sobre
o papel do professor como aquele que garante o direito a aprender neste novo século.
3. POR UMA NOVA ESCOLA PÚBLICA
O que um professor precisaria, então, saber e fazer para garantir o direito de seu aluno aprender? A sugestão que a UNESCO apresenta é
de concebermos o metiér do professor como provedor de situações educacionais que auxiliam os alunos a aprender a conhecer, a aprender a
fazer, a aprender a compreender o outro e a aprender a ter autonomia. Vejamos a importância de cada uma dessas competências sociais. A
partir da linguagem o homem perpetua sua experiência. A linguagem amplia a memória humana, porque soma uma experiência registrada
à outra e assim sucessivamente. Esse código de comunicação nos diferencia de outros animais (que chegam a definir regras de convivência e
acordos de sucessão de chefes, como no caso dos chimpanzés) porque a partir dele nos baseamos na experiência passada de outros humanos
para agir ou refletir. Muitas vezes, não fomos contemporâneos de experiências significativas da história da humanidade, mas mesmo assim,
em função da linguagem, decidimos ao refletirmos sobre o ocorrido em tempos remotos. Nossa memória, portanto, torna-se elástica. Ser
humano é estar inserido nesta grande experiência registrada pela linguagem ao longo da história. Por este motivo, o educador, para humanizar seus educandos, necessita auxiliá-los a aprender a conhecer a história humana e os conceitos produzidos pelas áreas de conhecimento.
É, sem dúvida, uma tarefa penosa. Crianças e jovens nem sempre desejam se inserir na história da experiência humana porque muitas vezes
desejam respostas imediatas. Mesmo assim, eles têm direito a aprender.
Contudo, nos dias de hoje, não basta aprender a história dos homens, seus conceitos, seu conhecimento sistematizado, seus valores.
Num mundo em que mil livros são publicizados a cada dia na internet, em que o volume de informação é dobrado a cada 10 anos, em que
uma verdade científica perdura por três anos, em média, não basta saber. Para sobreviver, é necessário saber fazer. Saber fazer não significa
apenas instrumentalizar o saber em ações concretas, mas saber produzir novos conhecimentos a partir de dilemas ou desafios pessoais e
coletivos. Deslocamos, portanto, o eixo do planejamento de aula do saber instrumental para um saber crítico, refletido pelo aluno, produzido por ele. Esta proposição demanda vários atributos do professor: ele necessita saber pesquisar, saber orientar pesquisas, saber sustentar
o ânimo de pesquisa, saber desenvolver metodologias adequadas. Mais do que nunca, se queremos construir uma escola comunitária, precisamos adotar como objetivo a construção e socialização de conhecimentos que auxiliem os homens a serem solidários. A instrumentalização pessoal do saber chegou ao seu ápice no final do século XX. O estudo como fator de sucesso individual foi amplamente difundido pelos
cursos preparatórios para os exames de ingresso nas universidades. Sabemos o resultado final deste condicionamento: alunos egocentrados,
desprovidos de questões sociais ou paixão pela dúvida. O educador do século XXI deve voltar a socializar o conhecimento para humanizar
os homens. Para tanto, necessita estabelecer estratégias educativas que integrem os alunos à um objetivo comum, solidário. Trabalhos em
equipe, trabalhos de voluntariado e prestação de serviços à comunidade, debates pautados por dilemas morais são algumas estratégias
que buscam auxiliar nossas crianças e adolescentes a se reconhecerem como parte de uma sociedade, a tolerar a diferença. Finalmente, o
professor necessita desenvolver a autonomia de seus alunos. Anthony Giddens denomina o mundo contemporâneo de reflexivo, porque
a quantidade de informações e situações inusitadas que este mundo produz coloca-nos permanentemente na obrigação de optarmos por
uma decisão ou julgamento. Estamos fadados a refletir e opinar sobre tudo. Em suma, desenvolver a autonomia significa desenvolver a inteligência, já que esta palavra significa capacidade de escolha (da fusão das palavras originárias do latim inter e elegere). Daí a necessidade do
professor não se apegar aos resultados finais, mas ao processo de construção de soluções que seus alunos apresentam. Daí a importância
de criar situações-problema em sala de aula. Mas este processo de desenvolvimento da autonomia não é simples. Para decidir, uma pessoa
compara informações, articula-as a partir do conhecimento e opta em função de valores. O manejo de informações, conhecimento e valores
é o eixo do trabalho do professor.
Todos esses princípios exigem muito tempo de pesquisa e análise por parte do professor. Exige troca de diagnósticos entre educadores e
busca de soluções coletivas. Philippe Perrenoud, resume as condições de trabalho do professor deste início de século: é aquele que decide na
incerteza e age na urgência17. Portanto, não há como pensarmos na escola e no professor do século XXI sem reestruturarmos profundamente
o tempo escolar, possibilitando que o educador tenha menos turmas e mais tempo de pesquisa, troca de informações entre seus pares, análise dos instrumentos de avaliação e planejamento. Detalhemos um pouco mais as competências do professor do século XXI. Perrenoud sugere dez novas competências para ensinar, formuladas a partir do guia referencial de competências elaborado em Genebra, em 1996. São elas:
1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem.
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O Desafio do Educador
2. Administrar a progressão das aprendizagens.
3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação (administrar a heterogeneidade no interior das turmas).
4.Envolver os alunos em sua aprendizagem e em seu trabalho.
5. Trabalhar em equipe.
6. Participar da administração da escola.
7. Informar e envolver os pais.
8. Utilizar novas tecnologias.
9. Enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão (prevenir a violência dentro e fora da escola, lutar contra preconceitos, participar da
criação de regras, desenvolver senso de responsabilidade e justiça).
10.Administrar sua própria formação contínua.
O autor sugere que, de início, o professor precisa conhecer os conteúdos a serem ensinados e sua tradução em objetivos de aprendizagem. O professor precisa saber explorar o interesse dos alunos, favorecendo a apropriação ativa dos conhecimentos. Para tanto, necessita
compreender os conceitos e questões que estruturam saberes no interior de uma disciplina. Aproxima-se, aqui, da tarefa de ensinar os alunos
a conhecer, exposta anteriormente. O acréscimo proposto por Perrenoud é que esta tarefa exige que o professor se coloque no lugar do aluno
e procure evitar uma simples transferência de um conhecimento, em situações fora de contexto, o que exige que ele crie situações-problema
no interior da sala de aula, onde o obstáculo gera uma aprendizagem inédita. Aqui enveredamos pela habilidade e competência do educador.
Uma possibilidade concreta para desenvolvimento desse procedimento é a pesquisa ou projetos de conhecimento. Para o autor:
Uma atividade de pesquisa desenrola-se, geralmente, em vários episódios, porque toma tempo. Na escola, a grade horária e a capacidade
de atenção dos alunos obrigam à suspensão do procedimento para retomá-lo mais tarde, no dia seguinte, às vezes na semana seguinte.
[...] A dinâmica de uma pesquisa é sempre simultaneamente intelectual, emocional e relacional. O papel do professor é relacionar os momentos fortes, assegurar a memória coletiva e confiá-la a certos alunos, pôr à disposição de certos alunos, fazer buscar ou confeccionar
os materiais requeridos para o experimento. Durante cada sessão, o interesse diminui18.
Esta tarefa supõe uma profunda competência técnica de um professor apaixonado, que transmite a paixão pela descoberta aos alunos,
criando identidade do aluno com o projeto de pesquisa. Mas Perrenoud vai além. Sugere que o professor saiba administrar a diversidade de
aprendizagens no interior da sala de aula. Apoia-se, neste caso, na concepção de zona de aprendizagem proximal elaborada por Vygotsky.
Neste caso, o educador precisa saber diagnosticar suas turmas, explorando seu equipamento físico , seu condicionamento e até mesmo os
conflitos sociocognitivos que ocorrem ao longo das aulas. Vygostsky acreditava que o desenvolvimento de uma pessoa está diretamente vinculado à sua estrutura física: um aluno com 15 anos estará mais maduro para certas atividades que um outro de 5 anos; um aluno cego terá
uma percepção do espaço diferente de um aluno não cego, e assim por diante19.
Mas este condicionante físico é apropriado em função da história de socialização da pessoa. Em outras palavras, o condicionamento que
sofre no processo de socialização (primário e secundário) gera uma leitura específica sobre o mundo. Crianças que possuem pais que lêem
diariamente sentem-se confortáveis (porque é um hábito cotidiano) ao serem instigadas a ler. O mesmo não ocorre com crianças cujos pais
sentem uma profunda insegurança ao pegar um texto em suas mãos. Mas o mais significativo é que um aluno aprende não apenas com seu
professor ou família. Aprende com os estímulos que recebe ao longo do dia. Um colega de turma que elogia um desenho ou que critica sua dificuldade de compreensão de uma solução matemática, estimula positivamente ou negativamente seu companheiro de aula a se relacionar
com certas competências ou habilidades. Portanto, o professor precisa saber diagnosticar e cruzar esse conjunto de variáveis que influenciam
no desenvolvimento cognitivo e afetivo de seus alunos. a partir desse diagnóstico, está apto a criar situações de desenvolvimento (as zonas
de aprendizagem proximal), criando subgrupos na sala de aula, que criam estímulos de aprendizagem mútuos.
Esta tarefa também não é de fácil condução. O desenvolvimento dos alunos não se faz em um ano letivo. Ele ocorre (como revelam as
recentes pesquisas da psicologia e neurologia) em ciclos plurianuais. Piaget, inclusive, já havia proposto esta interpretação em seus textos
escritos na década de 30. Assim, os professores necessitam acompanhar seus alunos ao longo de seus ciclos de formação, para que possam
adquirir uma visão longitudinal dos processos de formação. Perrenoud afirma que a experiência cotidiana do professor o impede de ter essa
visão, porque se centra nos objetivos anuais, de curto prazo. O verdadeiro desafio, diz o autor, é o domínio da totalidade da formação de um
ciclo de aprendizagem e, se possível, da escolaridade básica[...] para inscrever cada aprendizagem em uma continuidade a longo prazo, cuja
42
O Desafio do Educador
lógica primordial é contribuir para a construção das competências visadas ao final do ciclo ou da formação. Enfim, o professor precisa avaliar
continuamente as aquisições dos alunos, os condicionantes de seu desenvolvimento, as angústias e bloqueios específicos, as tarefas mais
penosas, o significado do estudo e os projetos pessoais de cada aluno. As competências profissionais que são exigidas para tal tarefa podem
ser assim listadas: a) saber observar uma criança; b) dominar o procedimento metodológico da observação e ação pertinente; c) saber construir situações didáticas; d) saber negociar seu projeto didático; e) ter domínio dos aspectos afetivos e relacionais da aprendizagem e possuir
cultura psicanalítica básica; f) saber considerar as resistências familiares e saber identificar os pais como pessoas complexas, para além da
noção de responsáveis legais pelo seu aluno20.
Em suma, o professor precisa saber diagnosticar o desenvolvimento psico-pedagógico de seus alunos, saber planejar ações pedagógicas
a partir da leitura do diagnóstico e precisa saber avaliar. Sinteticamente, este é o metíer do professor e é através dele que poderá garantir o
direito a aprender. O professor, portanto, é um protagonista da garantia do direito a aprender. Não depende totalmente de iniciativas governamentais. Mas, sozinho, será portador de mudanças tímidas e localizadas. Para garantirmos o direito a aprender, nos dias de hoje, necessitamos construir uma nova escola, aberta à comunidade, que assuma seu papel social de socialização e humanização dos homens, que garanta
tempo individual e coletivo para professores pesquisarem, avaliarem e testarem ações pedagógicas. O direito a aprender não se resume à
superação de dados estatísticos de evasão e repetência. Pouco significa, em termos pedagógicos, reduzirmos o absurdo índice de repetência
no ensino fundamental (25,8% de nossos alunos de 1 a a 6a série haviam repetido em 1997), que nos coloca como campeões no ranking mundial de repetência escolar. Tem pouca valia sabermos que a expectativa de estudo do brasileiro é pouco superior a 13 anos. Esta afirmação baseia-se nos próprios dados oficiais sobre o resultado final do processo educacional na qualidade de vida de um aluno. Nos últimos três anos,
apenas 50% dos jovens brasileiros (entre 14 e 25 anos de idade) conseguiram seu primeiro emprego, mesmo aqueles portadores de diplomas
e qualificações. As indústrias metalúrgicas não contratam pessoas sem experiência profissional e a idade média para contratações gira ao
redor dos 35 anos. Não basta, portanto, uma vaga escolar ou a permanência do aluno na escola. É necessário reconstruirmos a solidariedade
social, uma educação acolhedora, que possua significado real na vida dos educandos e da própria comunidade em que a escola está inserida.
Precisamos de currículos significativos. Só então, garantiremos o direito a aprender.
NOTAS:
no Brasil. São Paulo, Cortez Editora, 1997
3 Para um aprofundamento a respeito da concepção pedagógica dos jesuítas, ver o ensaio de João 6 SANDER, Benno (1995): Gestão da Educação na América Latina. Campinas, Autores Associados.
Adolfo Hansen, «A Civilização pela Palabra», in: LOPES, Eliane Marta Teixeira (org): 500 Anos de
7 Ver, por exemplo, o ensaio de Godfrey, Neale (1995): Dinheiro não dá em Árvore:: Como introduzir
Educação no Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.
seu filho no mundo das finanças, São Paulo, Editora Best Seller.
4 VPhilipe Ariès, em seu clássico estudo intitulado História Social da Criança e da Família, sustenta
que até o século XVII, as famílias ocidentais não se sentiam responsáveis pela educação dos seus 8 Ver LIPOVETSKY, Gilles (2000): A Terceira Mulher. São Paulo, Companhia das Letras.
filhos, transferindo esta obrigação aos preceptores . Crianças eram consideradas seres desprovidos
de interesse. A palavra infância teria como radicais linguísticos o prefixo de negação in e o verbo 9 Ver HOCHSCHILD, Arlie (1989): The second shift: working parents and the revolution at home.
latino fari (falar), o que conferia a ausência de fala ou ser em silêncio. Assim, a criança, considerada New York, Viking Pengui
até o século XVII como aquele que ainda não falava (ao redor dos sete anos de idade), era objeto do
discurso alheio. O adolescente, que era definido como aquele que possuía entre oito e trinta e cinco 10 Na Europa, quando o pedido de divórcio é apresentado por apenas um dos cônjuges, em 70%
anos de idade, estaria apto para a reprodução e o trabalho. Para ele, caberia a educação social. Na dos casos é a mulher que toma a iniciativa. Este índice chega a 65% nos EUA. Apesar da signifiGrécia Antiga, a paidéia buscava adaptar o cidadão à cidade, estabelecendo a solidariedade. Em cativa autonomia, o mercado de trabalho continua discriminando os sexos. Nos EUA, 80% das
Creta e Esparta, os jovens eram treinados para o companheirismo. Muito jovens ainda, eram leva- mulheres ativas são secretárias, empregadas ou vendedoras.
dos para fazer refeições comuns (andria) e eram orientados por mestres (paidonomos). A tradição
de educar crianças e jovens através de órgãos e preceptores externos à família sobrevive até o início 11 Ver HUDSON INSTITUTE, Charter Schools in Action Proyect. Final Report 1997, in www.edexceldo século XVIII. Ver SCHMITT, Jean-Claude, & LEVI, Giovanni (orgs.): História dos Jovens, volume 1. lence.net/chart/charttoc/htm .
São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
12 Ver BEJAR, R. G. (1997): «Concertación y compromiso: Dinámica de la reforma educativa en
5 Na verdade, até o século XIX, havia uma profunda distinção social em relação à educação infantil El Salvador, 1989-1986», in: Senderos de cambio. Génesis ejecución de las reformas educativas en
em nosso país. Os abandonados, entregues às Rodas de Expostos, eram educados por religiosos, América Latina y el Caribe. Washington, USAID AED. Um programa similar vem sendo desenembora hoje se tenha claro que o índice de mortalidade infantil verificado nessas instituições era volvido na Guatemala (PRONADE) apoiado em Comités Educativos (COEDUCA), cujas funções
extremamente alto. O bastardo era um excluído, por princípio. Dos oito aos doze anos de idade, são: contratar professores, pagar seus salários, prover a alimentação dos alunos, adquirir material
as crianças eram consideradas adultos-aprendizes e vestiam-se de acordo com sua camada social. escolar e didático, supervisionar a assistência e desempenho de professores e definir o calendário e
Eram chamados de «moleques» os nascidos em casa de senhor ou filho de escravos. Mas também grade horária. Esses comitês são compostos por pais de alunos.
significava canalha, patife ou pessoa de pouca idade. No caso das crianças de famílias abastadas,
a educação ficava entregue às primas (ensinando canto e piano), amas (contando histórias e tradições), tios (introduzindo os livros na vida dos sobrinhos). Mães ensinavam a rezar e costurar. Num
texto de um viajante estrangeiro, afirma-se que «os pais brasileiros vivem com as crianças ao redor
e as estragam a mais não poder [...] uma criança brasileira é pior que um mosquito tonto [...] no
Brasil não existem crianças no sentido inglês [...] a menor menina usa colares e pulseiras e meninos
de 8 anos fumam cigarros. Em outro relato sustenta-se que os meninos crescem na vadiagem e
na má-criação e, como os pais os deixam, desde a infância, quase que exclusivamente entregues à
guarda e ao convívio dos negros, tornam-se naturalmente parecidos com estes, em todos os sentidos [...] A educação das meninas é negligenciada quase da mesma maneira e também elas são, em
geral, deixadas aos cuidados das negras». Ver LEITE, Mriam L. Moreira, «A infância no século XIX
segundo memórias e livros de viagem», in FREITAS, Marcos Cezar (org.): História Social da Infância
13 Ver, a respeito, JOSSERAND, Florent-Nové (1987): L’Etonante Histoire des Maisons Familiales
Rurales. Paris, Editions France-Empire
14 Outras experiências brasileiras devem merecer análise específica por objetivarem a participação
ativa dos pais, num processo integrado de formação de crianças e adolescentes. Embora não seja o
objetivo deste texto realizar um inventário dessas iniciativas, vale destacar a experiência realizada
no Colégio Estadual Dr. Hélio Souza Bueno, de Nova Olinda, Tocantins. Nessa região do Bico do Papagaio, na divisa com o Maranhão, as 18 turmas de 5.ª a 8.ª série do colégio têm pais conselheiros
de turma. São pais que vão à escola, voluntariamente, duas vezes ao mês, para ver a freqüência
dos alunos, rendimento escolar, boletins, faltas, questões de disciplina e também participar de momentos de descontração, como aulas de conto ou de leituras. Cada pai trabalha e fiscaliza a turma
onde seu filho estuda.
43
O Desafio do Educador
15 Ver PUIG, Josep e outros: Democracia e Participação Escolar. São Paulo, Moderna, 2000.16 Ídem,
íbidem, p. 30.
16 A tutoria é um espaço oficial, reservado na grade horária das escolas espanholas, onde o professor-tutor acompanha individualmente seus alunos, conversa com as famílias, conduz sessões de
educação-ética e assembléias, além de atividades festivas.
17 Ver, a respeito, PERRENOUD, Philippe. Dez Novas Competências para Ensinar. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2000.
18 Idem, ibidem, página 37.
19 Oliver Sacks, ao analisar o desenvolvimento cognitivo de surdos foi levado a compreender um
mundo específico, uma comunidade e cultura peculiares. Sentiu a comunidade de surdos como
«uma nova luz,”étnica”, como um povo, com uma língua distinta, com sensibilidade e cultura próprias». Na leitura labial, os surdos vêem, mas não ouvem voz, o que para os que ouvem é algo
inusitado (a voz visual), tal como, para eles, é inconcebível ouvir uma voz. Para o autor, os surdos
são portadores de linguagens e estruturas de cognição específicos. Ver SACKS, Oliver (1998): Vendo
Vozes: uma viagem no mundo dos surdos. São Paulo, Companhia das Letras
20 Este rol de competências baseia-se na proposição de Perrenoud. Fernando Hernández, em seu
livro Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho (Porto Alegre, Artes Médicas, 2000),
sugere como instrumento de avaliação o portfólio. Assim como artistas produzem pastas (seus
portfólios) em que apresentam o conjunto de suas obras, propõe-se que o educando construa uma
pasta onde apresenta, inicialmente, os objetivos que deseja alcançar (ou aqueles definidos em
acordo com a sala de aula) ao longo de um período. Aos poucos, o aluno registra e comenta seus
progressos e dificuldades, selecionando experiências e evidências desse processo de aprendizagem
(atividades realizadas na sala de aula, comentários, textos produzidos). O professor, então, dialoga
com esses registros comentados (o portfólio supera o registro simplificado de um diário), procurando analisar o que o aluno aprendeu, se considera suficiente ou outros critérios que o professor explicita aos alunos. Utilizo, pessoalmente, este recurso como base do sistema de autoavaliação que
emprego nas minhas turmas do Curso de Psicologia, na PUC-Minas. A partir de critérios definidos
em comum acordo com os alunos (normalmente, os alunos sugerem indicadores de assiduidade,
motivação, leitura de textos, trabalho em equipe, contribuições no desenvolvimento do trabalho
em sala de aula e eu agrego indicadores voltados para a aquisição de competências técnicas e de
sociabilidade), inicia-se o processo de construção dos portfólios individuais, que podem merecer,
esporadicamente, uma leitura e comentários da minha parte.
44
O Desafio do Educador
Interdisciplinaridade21
1. POR QUE INTERDISCIPLINARIDADE?
Seria possível iniciarmos a resposta à pergunta que abre esse artigo com uma breve história ocorrida anos atrás. Num encontro de formação de professores do ensino básico, perguntei, à título de provocação: “Quando um fruto cai de uma árvore, aparece uma legenda, ao lado,
indicando que aquele é um fenômeno da física?”. A pergunta parecia tão sem lugar que os presentes ficaram atônitos.
Mas a resposta, embora óbvia, não se incorpora ao currículo tradicional. Por este motivo, a conversa continuou. A conversa girou a partir
da resposta menos óbvia:
“Não. Não aparece legenda alguma. Mas, se você perguntar a qualquer de seus alunos o que ocorreu, com certeza citará várias áreas
do conhecimento para explicar o fenômeno. Dirá, talvez, que o solo estava seco, que o prédio construído ao lado havia criado uma sombra
enorme (prejudicando o desenvolvimento da árvore), que tinha percebido algumas pragas nas folhas, que o fruto já estava maduro, e assim
por diante.”
O currículo tradicional, tal como formulado por Tomáz Tadeu22, formatado em matrizes verticalizadas, sem conexão entre um conhecimento específico e outro, não auxilia na conexão entre conhecimentos e, portanto, entre teoria e prática. Porque fala de um mundo apartado, absolutamente distinto da realidade. O mundo é interdisciplinar. É assim que nossos olhos o percebem. A física se relaciona com a
geografia e a ocupação do espaço pelos humanos e suas culturas. A linguagem se relaciona com as origens históricas da nossa colonização e
da incorporação de expressões de outras culturas que estiveram presentes na nossa formação social.
Nosso cérebro assimila o mundo a partir desta compreensão cruzada e integrada. O neurologista Oliver Sacks nos ensina que tudo o que
vemos são interpretações do cérebro. Se não reconhecemos, não enxergamos23. Mas se o mundo é interdisciplinar e o que as escolas ensinam
é linear e compartimentado, o que é estudado seria útil para a vida cotidiana?
Assim, o objetivo de todo currículo que é socializar o educando, fica em suspeição. A pergunta inicial, a partir daí, fica mais nítida. Se o
mundo é assim, por que dividimos, em sala de aula, o mundo em disciplinas departamentalizadas?
O conceito de currículo interdisciplinar nasceucomo uma profunda crítica ao modelo de disciplinas separadas, com tempos e temas próprios, avaliações específicas e até mesmo objetivos pedagógicos que nem sempre coincidem. Piaget já havia demonstrado que esta separação
tinha algo deirracional. Porque o aluno, que está em processo de formação, é obrigado a articular o conhecimento adquiridos nas aulas de
física, química, histórica e geografia. Aulas que foram planejadas e executadas isoladamente por seus professores. Nenhum dos educadores
sabe o que efetivamente o seu colega vai propor aos seus alunos. Há, nisto, uma profunda inversão de papéis. Porque os professores, que têm
mais conhecimento que os educandos, teriam que indicar as relações entre áreas de conhecimento. É evidente que faz parte de seu métier
que, afinal, é o de colocar o educando em contato com o mundo real, socializando-o.
Seria o caso, portanto, de tentarmos compreender de onde surgiu a crença que o aluno, sozinho, conseguiria fazer os vínculos entre áreas
de conhecimentos que se apresentam na sala de aula absolutamente divorciadas.
Piaget procurou compreender a lógica desta estrutura curricular e sistematizou outras possíveis24.
Vejamos, primeiro, uma apresentação genérica da matriz curricular tradicional, com conteúdos e áreas de conhecimento apartadas.
Denominarei esta estrutura de “matricial”, para reforçar que é organizada a partir de matrizes isoladas, mônadas curriculares. Tal estrutura
define sequências de conteúdos e pré-requisitos próprios. Mas, nem sempre, seleciona objetivos pedagógicos distintos dos de outras disciplinas. Este é o caso, à título de ilustração, do aprendizado da interpretação de signos ou interpretação de texto. Do ponto de vista cognitivo,
são objetivos comuns de muitas áreas de conhecimento e acionam as mesmas conexões nervosas, ramificadas a partir dos neurônios isodendríticos. Seria, portanto, salutar que os exercícios de aprendizagem que tivessem como objetivo o estímulo de tais propriedades cognitivas
fossem empregados articuladamente. Mas no currículo de tipo matricial esta possibilidade é uma mera casualidade. Os exemplos ofertados
pelos educadores para desenvolver um conceito de sua área elegem situações concretas que poderiam ser os mesmos empregados por
educadores de outras disciplinas. Seria o caso da pergunta inicial deste texto que elegeu o fruto de uma árvore como experimentação. Mas
a partir de múltiplos exemplos e ilustrações, com sequências temáticas distintas, com estímulos cognitivos divorciados, de que maneira o
educando poderá perceber conexões entre as diversas aulas?
45
O Desafio do Educador
Piaget sistematizou outras possibilidades de desenho curricular, a saber:
1. Multidisciplinaridade, que ocorre quando, para solucionar um problema, busca-se informação e ajuda em várias disciplinas, sem que
tal interação contribua para modificá-las ou enriquecê-las. Muitas vezes, é desta forma que o Brasil está incluindo os temas transversais, que
elege um tema central a partir do qual as diversas áreas de conhecimento procuram explorá-lo;
2. Interdisciplinaridade, em que a cooperação entre várias disciplinas provoca intercâmbios reais, existindo reciprocidade;
3. Transdisciplinaridade, etapa superior da integração, quando se constrói um sistema total, sem fronteiras sólidas entre disciplinas. Normalmente, a experiência transdisciplinar gera uma nova área de conhecimento, como é o caso da Ecologia, que incorporou biologia, direito,
economia, sociologia, entre outras.
2. ORIGEM DO CURRÍCULO DE TIPO MATRICIAL
O divórcio curricular teve início no final doséculo XIX, quando a indústria crescia e se espalhava pelo mundo com tanta força que começaram a estudar como fazer um trabalhador render mais e o que ele deveria saber para render mais. Naquela virada de século, Frederick
Taylor25 havia construído as bases da teoria sobre gestão de mão-de-obra. Na prática, estudou como cada trabalhador poderia desenvolver
movimentos e ritmos mais regulares e produtivos, evitando excessos ou movimentos desnecessários. Taylor criou uma nova lógica de administrar uma empresa26.
Um outro autor, na mesma época, procurou aplicar esta teoria de Taylor à educação: Joseph Mayer Rice. Rice elaborou um método de
gerenciamento científico da educação. Seus objetivos eram: desenvolver conhecimentos e hábitos nos alunos que auxiliassem no desenvolvimento das indústrias e, ao mesmo tempo, que pudessem ser mensurados a partir de uma escala de aquisição (ou assimilação) de conteúdos27. Na prática, as suas propostas geraram algumas novidades, que aplicamos até hoje automaticamente, naturalizando algo que possuía
um objetivo datado e específico:
1. Salas de aula. As salas passaram a ter níveis separados por série, que adotam um optimum de conhecimento mínimo por período (daí
nasce a concepção de seriação);
2. Módulo-Aula. O dia escolar foi fragmentado em unidades de aula de 35 a 45 minutos, a partir das quais Rice pensou em conteúdos a
serem desenvolvidosem sequência, a partir da noção de pré-requisito, ou seja, o que estudo hoje é base para o que estudarei amanhã, como
uma produção em série de uma fábrica daquela época;
3. Hierarquia de conteúdos no currículo escolar. O currículo passou a definir uma hierarquia de conteúdos, a partir de sua importância na
produção das indústrias
onde a matemática surgia no topo, seguida pela física, química, biologia, psicologia e, finalmente, as ciências sociais.
Houve, obviamente, uma série de outrasiniciativas que competiram com a concepção taylorista nas elaborações curriculares subsequentes.
Este é o caso das experimentações da Escola Nova28. Das teorias positivistas de formação moral, apoiadas na hierarquização de regras
espelhadas na vida militar(que introduziram os esboços da educação física nas escolas). Também foi o caso da introdução de modelos inspirados na visão liberal-democrática de John Dewey29 ou escolas experimentais baseadas em Dalton, Motessori e Lubienska30.
Contudo, pouco a pouco, e principalmente a partir dos programas de cooperação Brasil-EUA após a segunda guerra mundial, o modelo
taylorista (somado às proposições deFranklin Bobbitt) se tornou hegemônico em nosso país. Somente nos anos 1980 e 1990 as concepções
norte-americanas e anglo-saxônicas foram gradativamente abrindo espaço para leituras europeias, em especial, latinas, que sugeriam um
foco maior na peculiaridade do desenvolvimento do educando que no resultado final. A ideia central de padrão (que estava desde o início em
Taylor) foi se aplicando a todo sistema educacional: padronizou-se o que deveria ser estudado e como (e o que) deveria ser avaliado. Esta é a
base conceitual das avaliações sistêmicas disseminadas pelo MEC e Secretarias Estaduais de Educação do Brasil na atualidade.
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O Desafio do Educador
A hierarquização não ocorreu apenas em relação aos conteúdos curriculares. Também envolveu o próprio sistema educacional. Com
efeito, o sistema educacional ocidental (principalmente o de origem anglo-saxônica) passou a conceber as séries iniciais como locus da formação de operários e a universidade como espaço para formaçãodos altos cargos de especialistas que tentariam planejar o que e como
produzir. O diagrama apresentado a seguir apresenta a estrutura lógica dos níveis de ensino forjados a partir da orientação taylorista:
Rio Grande do Sul
ENSINO FUNDAMENTAL
ENSINO UNIVERSITÁRIO
OBJETIVO
Formar operários
especializados e
hábitos de consumo e
comportamento.
Formar especialistas de
nível superior,
responsáveis pelo
planejamento e
produção fabril.
CONTEÚDO ESCOLAR
Memorização e
padronização. Gerar
comportamento
disciplinado e previsível.
Aprofundamento das
especializações e
desenvolvimento de
capacidades de pesquisa
e liderança.
3. MUDANÇAS SOCIAIS E IMPACTOS SOBRE CONCEPÇÃO CURRICULAR
A crença na estrutura matricial de currículo começou a ser abalada com a explosão tecnológica que se fez sentir a partir dos anos 1980,
com a crise do modelo fordista31 e introdução da robótica, da biotecnologia e sistemas de comunicação online que aumentaram o ritmo de
produção e de inovação, exigindo maior autonomia do trabalhador na tomada de decisão e maior flexibilidade. Com a informática, internet e
biotecnologia, qualquer setor industrial passou a ter que criar ao menos três produtos novos por ano. Assim, todas empresas passaram a exigir mais velocidade e criatividade de seus empregados. São marginais os setores que continuaram em ritmo do período anterior (como alguns
segmentos do comércio varejista). Contudo, são segmentos que não conseguem se capitalizar a ponto de ingressar na lógica de competição
do século XXI. E o resultado foi a diminuição de hierarquias. Alguns especialistas em processos e rotinas administrativas chegaram a afirmar que uma empresa não poderia ter mais que oito níveis hierárquicos para ganhar velocidade. A ideia era simples: excesso de hierarquias
aumenta a distância entre diagnóstico, inovação e produção. A demora da chegada de uma novidade até o operário que a adotará diminui o
ritmo da fábrica e da competição. Cria o que se denomina de “treadmill”, ou seja, uma esteira rolante que joga a empresa para trás. Novos
modelos de produção foram sendo criados e importados. Do Japão veio o modelo de equipes de 10 a 15 operários (chamadas de “células de
produção”) produzindointegralmente uma mercadoria (um carro, por exemplo), substituindo a esteira elétrica pelo trabalho interdisciplinar
da equipe.
A partir daí, a educação ocidental começou a ser pressionada pelas novas competências técnicas exigidas para o trabalho com novas
tecnologias. A demanda passoua figurar em muitos ensaios de economistas. Nos anos 1990 as exigências de requalificação e certificação
profissional foram alçadas ao campo das políticas públicas. O perfil do especialista foi substituído pelo do polivante, o co-responsável pelas
inovações, a capacidade de liderança, de trabalho em equipe. Em alguns lugares do mundo, como na Volvo (Suécia), o chefe de uma equipe
passou a ser eleito pelos operários, porque tinha que ter liderança e empatia, motivando suas equipes.
Ora, a noção de treinamento do início do século XX, em que todosoperáriosadquiriam conhecimentos padronizados, foi perdendo importância.
47
O Desafio do Educador
Outros motivos contribuíram para que o antigo modelo hegemônico deorganização curricular fosse colocado em dúvida. Uma delas foi o
processo de redemocratização do Planeta. A década de 1980 foi cunhada pela ciência política como a democratização mundial e emergência
de conceitos humanistas. Este foi o momento que o tema dainterdisciplinaridade ganhou espaço nas reformas educacionais.
Assim, confluíram, a partir do final da década de 1990, vários fatores que instigaram a revisão do conceito de conteúdo escolar. Nesta
trilha aberta, muitos autores recuperaram a pluralidade que forma o conteúdo escolar, como foi a contribuição de Jacques Delors, ao sugerir
os quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (retraduzido como conteúdos
factuais, conceituais, procedimentais e atitudinais)32.
4. O CONCEITO DE INTERDISCIPLINARIDADE
O conceito de interdisciplinaridade é trabalhado de inúmeras maneiras no Brasil. Nossa experiência educacional é baseada no modelo
criado por tayloristas, o que dificulta sobremaneira a sua aplicação prática. Isto porque muitos técnicos e gestores da educação pública brasileira receberam bolsas de estudo para estudar currículo e gestão nos EUA. Já nos anos 1950, a preocupação brasileira com o tema currículo
era grande. O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) chegou a criar centros de formação técnica regionais em São Paulo, Recife,
Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, com o objetivo de promoverem cursos sobre currículos. Neste período, foram introduzidas as ideias
de conhecimento estudado como instrumento para definir comportamentos. No final dos anos 1950, a influência norte-americana se acentuoucom a assinatura do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino
Elementar (para produção de material didático a ser usado no “treinamento” de professores) 33. Lembremos que currículo é uma palavra
latina que significa pista de corrida, ou seja, a pista criada pela qual o aluno percorrerá. Mas nos EUA esta “pista” foi sintetizada na hierarquia
de conteúdos34, ou seja, na organização funcional do conhecimento para se alcançar algum objetivo (no caso, a formação para o desenvolvimento industrial). Enfatizaram os conteúdos lógico-matemáticos e linguísticos (além de alguns conteúdos das ciências naturais, muito
empregados na produção industrial). O currículo passou a ser entendido como programa de aprendizagem planejada35.
Na Europa, em algumas localidades, foram desenvolvidas teorias que compreendiam o currículo como plano de estudos sobre a realidade. E foi esta a concepção que começou a ser discutida no Brasil a partir de 1990, com as reformas educacionais e, depois, a introdução dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
A diferença em termos práticos é abissal. Porque quando o educador organiza as disciplinas como hierarquia, enfatiza na sala de aula
e nas avaliações a memorização das fórmulas e informações que compõem cada disciplina e sua aplicação prática para gerar um resultado
esperado. A sala de aula passa a ser mais um espaço da certeza, da resposta padronizada, do currículo prescritivo. Por seu turno, quando o
currículo é pensado como disciplinas que se subordinam à realidade, o espaço de aula passa a ser o espaço de dúvidas, em busca de soluções,
da pesquisa, realçando os instrumentos metodológicos da construção da busca de uma resposta. Assim, quando a realidade é o centro do
currículo (e não a própria disciplina e os objetivos que elas buscam atender) a sala de aula se revela dinâmica, justamente porque a realidade é
dinâmica, ao contrário da prescrição curricular da estrutura tradicional, de natureza doutrinária. A pesquisa passa a ser o centro dos estudos
em sala de aula, já que tudo está cambiando e os alunos precisam acompanhar esta mudança contínua. Os alunos e professores tornam-se investigadores e as disciplinas passam a oferecer conceitos, ferramentas e informações que ajudam a entender melhor o que ocorre, as
tendências. A dúvida emerge porque muitas teorias foram construídas antes do mundo atual e, portanto, não respondem perguntas que
aparecem hoje. Assim, as “leis” apresentadas pelos alunos passam a ser contextualizadas como tentativas humanas para explicação da realidade. As “leis” passam a ser datadas e não mais regras definitivas. Os conflitos entre pesquisadores, as várias correntes teóricas passam a
apresentar cores que antes a sala de aula não promovia. O surgimento da física quântica é interpretado em toda sua dramaticidade histórica
por ter se chocado com os newtonianos. Noções de ruídos ou relatividade conceitual se instalam como base para a humildade científica.
A sala de aula passa a ser,então, espaço de construção de conhecimento.
Mas há outra mudança importante, que diz respeito ao tema deste texto: se a realidade é o centro do estudo, e se a realidade é interdisciplinar, o currículo passa a ser obrigatoriamente interdisciplinar.
A partir daí, as escolas brasileiras experimentaram uma transição metodológica. Não apenas uma, mas várias. Nos anos 1990, foram
introduzidos parâmetros curriculares nacionais baseados em concepções pedagógicas fundadas na noção de ciclos de formação, de multi
e interdisciplinaridade. Contudo, esta inovação criou uma transição inacabada, pois não alteramos a lógica funcional e administrativa das
escolas. Em outras palavras, o professor continuou tendo tempo exíguo para analisar suas turmas e produzir currículo, o que conflitou com
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O Desafio do Educador
a proposta do educador ser protagonista da produção curricular. As avaliações sistêmicas, todas apoiadas na lógica do currículo prescritivo
(e não no processo peculiar e individual de aprendizagem) solapou ainda mais o que se anunciava como atualização da concepção curricular
no Brasil.
Muitos professores se perguntaram como implantar avaliação diagnóstica se possuía tão pouco tempo para corrigir provas objetivas que
pouco avaliavam além da memorização? Como valorizar a diferença de processos de desenvolvimento cognitivo de cada aluno se os professores não são contratados em regime de dedicação exclusiva, o que os obriga a trabalhar em dois ou até três turnos?
Instalamos, de certa maneira, a esquizofrenia educacional em nosso país.
Retornemos a Jean Piaget para compreender as exigências administrativas que o currículo interdisciplinar impõe. Piaget afirmava que os
conflitos cognitivos eram os motores da aprendizagem, ou seja, ninguém assimila qualquer informação que não lhe seja interessante e relacionada ao conhecimento construído anteriormente36. Algo que AntonioDamasio (Professor de Neurociência da Universidade da Califórnia)
comprovaria nos anos 1990: há uma íntima relação entre razão e emoção.
Se retomamos a classificação de modelos curriculares construídos por Piaget, tendo em mente sua preocupação a respeito da motivação
do estudante a respeito do que aprende, seria possível pensarmos em níveis de cooperação entre as disciplinas escolares.
O currículo multidisciplinar ocorre, na prática da sala de aula, quando, para solucionar um problema, incorpora informação, conceitos e
metodologias de várias disciplinas, ainda que separadamente. Já a interdisciplinaridade sugere a cooperação entre várias disciplinas desde o
planejamento semanal das aulas, nas questões formuladas nas avaliações, exigindo intercâmbios e reciprocidade.
Assim, a multidisciplinaridade é um primeiro passo para superar o divórcio entre várias disciplinas. Mas não totalmente. Da perspectiva
do aluno, há relação entre uma aula e outra em função de um tema comum (o tema transversal). Mas do ponto de vista do educador, o distanciamento ainda existe e poucos sabem o que o outro está lecionando ou quais objetivos pedagógicos elegeu.
A interdisciplinaridade já atua na aproximação dos dois polos: aproxima as disciplinas que são apresentadas de maneira articulada aos
alunos e aproxima um professor de uma disciplina de outro. Para tanto, não basta um tema comum. É necessário que todos professores de
um mesmo projeto (ou turma de alunos) se encontrem frequentemente, analisem o plano de aula comum, a interface de cada disciplina com
as outras e o impacto deste projeto no desenvolvimento integral dos alunos. Exige tempo de diagnóstico e planejamento coletivo e espaço
para alteração do plano de aulas na medida em que o impacto é distinto do esperado.
O ENEM, quando foi criado, tinha um objetivo superior até mesmo daquele proposto pelo currículo interdisciplinar. Orientava-se por situações-problema que obrigassem o aluno a articular e fundir vários conceitos e conhecimentos de várias áreas para formular uma resposta
original. Algo que exigia uma evidente mudança da proposta curricular em todas redes de ensino básico. Mudanças que nunca vieram de
maneira sistemática.
Muitos outros autores enveredaram por uma tentativa de aprofundar esta distinção37.
Destaco uma conceituação realizada por Erich Jantsch (citado por JurjoSantomé): a da Disciplinaridade Cruzada. Muitos educadores brasileiros a confundem com interdisciplinaridade. Esta modalidade curricular ocorre quando uma área de conhecimento (ou disciplina) domina
as demais a partir de um projeto aparentemente comum. Quando das comemorações dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil,
esta prática se tornou comum, quando história dominava os projetos em que a área de exatas aparecia como figurante ou apoio.
Outro autor que merece citação é CesareScurati, que identificou o que denominou de Interdisciplinaridade Heterogênea38, quando ocorre
uma soma enciclopédica de informações, sem paradigma que as unifique; ou a pseudo-interdisciplinaridade, quando se estabelece um modelo teórico para ser trabalhado abstratamente entre disciplinas diferentes); ou a Interdisciplinaridade Auxiliar, quando se utiliza metodologia
de uma disciplina específica em outra, distinta).
O projeto interdisciplinar, portanto, vem sendo utilizado como denominação para práticas que não são necessariamente interdisciplinares. Porque a interdisciplinaridade pressupõe uma profunda crença na cooperação entre disciplinas. Na prática, exige uma importante
reengenharia na gestão dos educadores, objetivando aproximar várias áreas de conhecimento. Muitas disciplinas acreditam que existem
pré-requisitos conceituaise de procedimentos específicos que impedem a constituição de um projeto
interdisciplinar. Em outras palavras, teriam que seguir uma sequência de conteúdos que vai acumulando e evoluindo gradativamente,
aumentando a complexidade do raciocínio. Se cada disciplina estiver presa a tal sequência, o diálogo entre várias disciplinas torna-se impossível.
49
O Desafio do Educador
Refletindo esse impasse, SverreSjölander indicou, com bom humor, dez etapas que ocorrem em quase todas tentativas de implantação
de projetos interdisciplinares39:
(1) Cantando as velhas canções. Os pesquisadores consomem muito tempoapresentando seu trabalho e seus problemas;
(2) Todos os que estão do outro lado são imbecis. Começam a ser detectadas deficiências nas propostas e na realização do trabalho, geralmente dos demais. Muitos abandonam a iniciativa nesta fase;
(3) Refugiando-se em abstrações. Na tentativa de estabelecer fundamentos comuns, inicia-se a fase de abstrações gerais, o que facilita
acordos. Nem sempre o grupo supera esta fase;
(4) Mal-estar. É a fase de discussão dos termos técnicos, descobrindo termos muitoténcios
generalizados, discrepâncias no vocabulário. Muitas vezes, o grupo começa a criar jargão específico;
(5) Pulando de pedra em pedra. Começam a concentrar sua atenção em determinadas áreas onde as discussões fluem, como metodologia ouexperimentações;
(6) Jogo de contas. É a construção de uma estrutura e linguagem comuns;
(7) A ameaça do fracasso. É o momento do desespero. Sentem-se obrigados, normalmente, a produzir um relatório sobre as atividades
já desenvolvidas ou avaliação dos resultados, num esforço de síntese;
(8) Que está acontecendo comigo? Percebem que mudaram. Após superarem a fase anterior, ao descreverem aos seus colegas os resultados do grupo interdisciplinar, se dão conta a importância das outras disciplinas com quem interagiram;
(9) Tentando conhecer o inimigo. É o momento que aflora o interesse de estudo sobre as outras disciplinas;
(10) O verdadeiro começo. Para Sjölander, agora é que tem início o trabalho interdisciplinar.
Os 10 pontos são marcados pela ironia do autor. O que ele sugere é que a produção de um projeto interdisciplinar exige tempo e diálogo
entre áreas de conhecimento que se estranham porque historicamente estiveram divorciadas. É necessário superarmos dois séculos de sentimento separatista e discriminador entre as diversas especializações, para o projeto interdisciplinar ter início.
5. COMO PENSAR UM PROJETO INTERDISCIPLINAR?
Este capítulo pretende ser o mais operacional de todo artigo.
Comecemos por construir um roteiro de discussão e implantação. Obviamente queeste roteiro não dispensa a própria experiência e intenção do professor. É apenas uma maneira de procurar articular, na prática, vários princípios que foram indicados nos capítulos anteriores. São
eles:
1º PRINCÍPIO: A REALIDADE COMO INÍCIO
Se a proposta interdisciplinar parte da noção que o mundo não é especializado em fenômenos explicados por uma única disciplina, é coerente afirmarmos que o projeto interdisciplinar deve partir da análise da realidade do aluno e de sua comunidade.Ele pode, ainda, partir
de temas ou problematizações levantados pelos alunos. Contudo, é preciso ter claro que houve, nos últimos anos, certa permissividade em
relação ao papel protagonista do aluno na definição de temas ou eixos temáticos de pesquisa escolar, numa desvirtuação do que se denominou projeto de trabalho. Uma proposta curricular nunca é espontaneísta, porque se trata de uma condução consciente, de formação e
socialização do educando. Assim, a escolha do tema não parte apenas da intenção do aluno, mas da articulação de algo que lhe motive com
os objetivos pedagógicos do projeto. Enfim, todo projeto procura gerar uma “zona de aprendizagem proximal” (para citar o famoso conceito
criado por Lev Vygotsky). Se fizermos apenas o que o aluno deseja e já sabe, não impulsionaremos o seu desenvolvimento. Será algo parecido
50
O Desafio do Educador
com um imã encostado no metal. Mas também se elaboramos um projeto muito distante do nível de desenvolvimento dos alunos, seria algo
próximo de um imã tão distante do metal que não conseguiria mover nada, dado que o campo magnético estaria muito longe. A “distância”
correta (do plano em relação ao nível do desenvolvimento) é construída a partir de diagnósticos e análises dos professores.
2º PRINCÍPIO: RESPEITAR A HISTÓRIA E PECULIARIDADE DE CADA DISCIPLINA
Um segundo princípio adotado é o de que as áreas de conhecimento possuem uma história. O projeto interdisciplinar não deve fazer política de terra arrasada com esta história. Deve dialogar a partir dela, ampliando seus horizontes. Uma possibilidade concreta para que este
princípio se realize é criar discussões entre professores de várias disciplinas a partir de problemas comuns (instrumentos de avaliação ou
problemas de desenvolvimento dos alunos). A partir dos problemas comuns, acrescentar, pouco a pouco, as ações e objetivos de cada disciplina, procurando fundamentar os caminhos a partir da lógica de cada área de conhecimento. Trata-se de colocar em prática algo que tantos
autores da área educacional sugeriram: devemos começar pelo presente, por algo que impacta a todos e somente depois buscar suas causas
no passado. Enfim, começamos por algo comum, do momento, e abstraímos pouco a pouco. A partir daí, procuramos cruzar informações e
diagnósticos para construir os temas articuladores a partir dos conceitos estruturadores de cada disciplina e do diagnóstico comum realizado pelo corpo docente40.
3º PRINCÍPIO: ORGANIZAR A PARTIR DA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
Um terceiro princípio diz respeito ao espaço, tempo, recursos pedagógicos e organização escolar. Estes itens devem, por lógica, ser definidos após se esboçar o plano de atividades e os temas articuladores, que orientam o que se vai dialogar e construir na escola. Dependendo
do projeto, a sala de aula pode ser um espaço secundário (como num projeto de pesquisa sobre problemas de um bairro) ou insuficiente.
Recentemente, uma professora de português de São João del Rei decidiu, em conjunto com a professora de história, desenvolver estudos
com seus alunos dentro de um cemitério. O local inusitado prendia a atenção dos alunos que estudavam a história das famílias a partir das
informações e inscrições encontradas nas lápides. Estudavam hábitos, procuravam articular informações, formas de redação, religiosidade.
A sala de aula se tornou espaço complementar e não principal. Os recursos pedagógicos também devem estar diretamente vinculados ao
projeto interdisciplinar. Quais livros adotar? Como definir a linha teórica do recurso pedagógico?
4º PRINCÍPIO: O COLETIVO COMO COMEÇO, MEIO E FIM
Um quarto princípio é que um projeto interdisciplinar precisa preservar o espaço e o papel do coletivo de educadores enquanto elaboradores e sujeitos deste projeto. Assim, é fundamental que se esboce um programa de formação em serviço, em que o professor reelabore
constantemente o seu projeto num espaço coletivo, de cooperação.
Os quatro princípios pode ser empregados como guias metodológicos para a construção da prática interdisciplinar. Uma prática, que por
seu turno, pode ser arquitetada a partir de alguns passos a serem observados, a saber:
A ) Diagnóstico Sócio-Cultural
Onde são sistematizadas as condições sócio-econômicas das famílias dos alunos, relação do aluno e de seus pais com o mercado de trabalho, acesso aos bens culturais e de sociabilidade (Igreja, bibliotecas, cinema e outros), características de bem-estar social do bairro (segurança, saneamento, saúde, cultura, educação e outros). O acompanhamento que as famílias dispensam aos filhos/alunos também deve
compor este diagnóstico. Esta ação pode ser desencadeada a partir de uma pesquisa quantitativa (através da aplicação de um questionário)
ou qualitativa (entrevistas em profundidade ou grupos focais), ou a articulação das duas metodologias. Paulo Freire sugeria a formação de
“círculos de cultura” nos quais os educandos falavam de sua vida e experiência para se construir a “palavra geradora”, por onde se iniciava o
processo de alfabetização. O princípio aqui é o mesmo.
51
O Desafio do Educador
B ) Competências e Objetivos Pedagógicos
É possível, nesse momento, definir as competências básicas e objetivospedagógicos que devem ser perseguidos (formação ética, capacidade de interpretação e criação, competências gerais por área de conhecimento, sociabilidade e outros). Esta sugestão é passível de discussões.
Nos últimos anos, muitos autores criticam a adoção de competências por seu caráter instrumental do saber. Esta é a opinião de Tomas Tadeu
e outros educadores que acreditam que a competência está diretamente vinculada aos interesses do mercado de trabalho. As competências, contudo, são inerentes à formação humana. Seria o caso de citarmos o conceito de inteligências múltiplas que sugere competências
específicas (que se articulam e que estão estimuladas pelas experiências sociais) para várias modalidades de inteligência. A crítica absoluta
ao conceito de competências pode jogar o projeto pedagógico numa aventura espontaneísta ou impressionista. Um caminho possível é cada
área ou disciplina identificar seus conceitos-chave e, a partir deles, desencadear uma busca de competências interdisciplinares41.
C ) Temas Articuladores
Com base nos itens A e B, é possível eleger temas articuladores que darão sustentação ao desenvolvimento do projeto curricular.
D ) Plano de Atividades
Quando se define um plano de atividades, tendo como eixo os temas articuladores (ou tema articulador) eleitos anteriormente. O plano
de atividades deve contemplar estratégias de pesquisa, problematização, enturmações temáticas, sistematização, publicização, desenvolvimento de ações sociais (práticas concretas) e avaliação.
E ) Organização de Tempos e Espaços Escolares
O planejamento do currículo interdisciplinar ou transdisciplinar exige uma nova organização dos tempos pedagógicos, da carga horária
e redefinição do uso dos equipamentos (salas de aula, recursos pedagógicos etc.). Nesta etapa, procura-se repensar a organização do módulo-aula, das formas de enturmação, do núcleo básico de professores-referência (módulo de aprendizagem), tempos coletivos de preparação
e avaliação da programação.
Toda proposta curricular é um processo de construção e não um documento acabado.
O projeto interdisciplinar, portanto, deve ser produto de uma profunda interação entre alunos, professores e sua comunidade. É um
produto que nasce da experiência concreta e de uma grande dose de generosidade entre educadores das diversas disciplinas. Um esforço que
reinaugura o sentido da palavra profissão para a categoria de professores: professar, ou ainda, ter fé.
Bibliografia
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52
O Desafio do Educador
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VERÁSTEG, Rosa de Lourdes Aguilar. Dewey e a proposta democrática na Educação. Revista Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012.
VIDAL, Diana Gonçalves. “Escola Nova e Processo Educativo”, In LOPES, Eliane Marta Teixeira et al. 500 Anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
NOTAS:
32 Jacques Delors foi Presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995. Foi autor e organizador
do relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, inti21 Originalmente publicado em Produção de Materiais Didáticos para a Diversidade: práticas de tulado: Educação, um Tesouro a descobrir (1996), no qual foram apresentados os Quatro Pilares
memória e patrimônio numa perspectiva interdisciplinar. Belo Horizonte: Labepeh;Secad;CAED/ da Educação.
UFMG, 2010.
33 Ver, a respeito, MOREIRA, Antonio Flavio. Currículos e Programas no Brasil. Campinas: Pa22 Ver, SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currí- pirus, 1997.
culo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. O autor sugere que o currículo tradicional se inspirou na
organização fabril, pautado pela eficiência, produtividade, organização e desenvolvimento. Em 34 Vale ressaltar que embora a divisão de disciplinas tenha sido pregada e teorizada nos EUA,
outras palavras, formatado a partir de um conteúdo essencialmente técnico com objetivo de foi de lá que nasceu um de seus maiores críticos: John Dewey, fundador da Escola Ativa nos EUA.
Anísio Teixeira, o grande educador brasileiro que criou as Escolas Parque, trouxe de sua viagem
moldar comportamentos e conhecimentos úteis à produção industrial.
aos EUA, em 1927, as ideias de Dewey para o Brasil, sugerindo a flexibilidade curricular. Dewey
23 Ver, em especial, SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte. Sete Histórias Paradoxais, São- criticava a compartimentação da cultura em matérias e lições. Acreditava que esta estratégia
educacional sobrecarregava os alunos de fragmentos sem conexão, que só eram aceitos em funPaulko: Editora Companhia das Letras, 1995.
ção da repetição ou autoridade do professor. A Escola da Gestalt (alemã) também se insurgiu
24 PIAGET, Jean. Problemas gerais da investigação interdisciplinar e mecanismos comuns. Lisboa, contra a departamentalização do conhecimento. Afirmava que o conhecimento era fruto da
Bertrand, 1973. Ver, também, do mesmo autor, L’epistemologiedesrelationsinterdisciplinaires. IN: soma de percepções ou informações preexistentes e que as percepções apresentam-se como
APOSTEL, L.; BERGER, G.; BRIGGS, A.; MICHAUD, G. (org.). L’interdisciplinarité: problemes d’en- unidade, com significado desde o início.
seignementet de recherchedanslesuniversites. Paris - France, Organization de Coperationetde35 Ver, em especial, TYLER, Ralph. Princípios Básicos de Currículo e Ensino. Porto Alegre: Globo,
veloppementÉconomiques, 1973.
1974.
25 Esta teoria foi elaborada por Taylor na década de 1890, em Baltimore (Maryland, EUA), na
fábrica Bethlehem Steel Company. Após realizar vários estudos sobre os movimentos dos ope- 36 PIAGET, Jean. O Juízo Moral na Criança. São Paulo: Summus, 1994. Neste livro, Piaget adverte
rários que transportavam as barras de ferro-gusa, percebeu que poderia aumentar a carga trans- que a memória depende da atividade e uma verdadeira atividade supõe o interesse. (p. 49). Não
portada de 12,5 toneladas homem/dia para 47 toneladas homem/dia. Para demonstrar seus cál- por outro motivo que a palavra decorar tem origem do latim decor, que significa “do coração”.
culos, treinou um operário holandês chamado Schmidt, extremamente avarento, classificado Em outras palavras, sugere que só se lembra quem sente uma forte emoção por aquilo que é
por Taylor como “tão burro... que mais se parecia com um boi”. O aumento de 400% de produ- lembrado.
tividade rendeu a Schmidt um extra de 70 centavos diários.
37 Ver SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto
26 Lembremos a história de vida de Taylor que criou um substrato para sua formulação da ges- Alegre: Artes Médicas, 1998.
tão humana. Frederick Winslow Taylor nasceu em 1856 na Pensilvânia, EUA, e morreu no início
de 1915. Era engenheiro mecânico, mas começou como operário e técnico em mecânica. Ainda 38 Ver SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto
operário analisava como que seus colegas produziam, criticando o desperdício e falta de empe- Alegre: Artes Médicas, 1998.
nho. Passou a analisar os movimentos mais adequados e mais produtivos, avaliando o impacto
sobre o ritmo e produtividade. Logo se tornou chefe de seus colegas o que gerou uma reação 39 Citado em SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integramuito negativa. Alguns chegaram a quebrar máquinas que Taylor descontou do salário de todos. do, op. cit. P. 68.
Nasciam as técnicas da “Administração Científica”, ou seja, a utilização de métodos lógicos na
administração de empresas. Seu foco era a eficiência e eficácia operacional na administração 40 Uma possibilidade de articulação das diversas disciplinas é a de identificação dos conceitos
industrial. O controle que propôs sobre os operários era inflexível e baseava-se em instruções sis- estruturadores de cada área de conhecimento, como instrumentos de aproximação. Cada área
temáticas e detalhadas de como todos deveriam se comportar no trabalho, gerando um padrão de conhecimento possui conceitos estruturantes ou articuladores. Efland sugere a organização
de produção. Para tanto, valorizava o treinamento contínuo para aprendizagem de métodos de de currículos a partir dessas ideias-chave, ou seja, conceitos construídos historicamente em
cada área de conhecimento que se organizam a partir de temas-problema. Nos anos sessenta
trabalho.
do século passado, Bruner desenvolveu a noção de conceitos-chave a partir de estruturas de
27 Ver DOLL Jr,. William. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, cada disciplina, buscando facilitar a compreensão e a aprendizagem das disciplinas e a pauta
de estudos por elas construída ao longo de sua história específica. Os conceitos característicos
1997, p. 59.
apontados por esse autor foram: continuidade e mudança na história, vida na biologia e assim
28 Ver VIDAL, Diana Gonçalves. “Escola Nova e Processo Educativo”, In LOPES, Eliane Marta por diante. Bruner destacou, ainda, que cada disciplina conta com um procedimento de pesquisa
e construção de conceitos e que os alunos deveriam conhecê-los para aplicá-los em várias situTeixeira et al. 500 Anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
ações concretas. Diferentes autores desenvolveram essa sugestão e, mais recentemente, Antoni
29 Ver VERÁSTEG, Rosa de Lourdes Aguilar. Dewey e a proposta democrática na Educação. Re- Zabala apresenta uma proposta de abordagem dos conteúdos procedimentais por grandes áreas
vista Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012. Disponível em de conhecimento (meio natural, meio social, artístico, educação física, língua e matemática),
http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano3_04/2-rosa.pdf (acessado retomando a noção de conceitos estruturante. Pozzo esclarece que os conceitos estruturadores
fundam cada área de conhecimento e devem atravessar todos os conteúdos das matérias. Os
em 28/10/13).
conceitos das áreas são princípios (igualdade na matemática, conservação em física, tempo his30 Ver SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Asso- tórico na história) e os das disciplinas são os específicos, que podem ser objetos de estudo em
ciados, 2008, p. 301.
uma unidade bloco de unidades ou projetos.
31 O modelo fordista, concebido por Henry Ford, baseava-se na estrutura sequencial de produção onde o controle dos movimentos do operário era definido pela esteira elétrica. Os operários
se especializaram, a partir daí, em movimentos precisos e rotineiros, desprovidos de qualquer
criatividade.
41 Um autor que procura propiciar uma atividade similar é Fernando Hernandez. Em seu livro
Transgressão e Mudança na Educação: os projetos de trabalho, em especial, o capítulo 3, desenvolve a noção de ideias-chave, ou eixos conceituais que estruturam cada disciplina, explicitando
os procedimentos de cada disciplina.
53
O Desafio do Educador
Desafios Recentes da Educação Popular no Brasil42
Os impasses do participacionismo que se tornaram mais nítidos durante a gestão Lula tiveram, como se pretendeu demonstrar, como
seu maior obstáculo a permanência de traços de práticas tradicionais e patrimonialistas mesmo no interior das organizações populares que
pretendiam enfrentá-los. Contudo, grande parte dos militantes sociais que lideraram o movimento participacionista que convergiu para a
legislação inovadora iniciada pela Constituição de 1988 e na rede gestão pública participativa da década seguinte passou por muitos programas de formação lastreados na educação popular. Este último capítulo procura lastrear as bases conceituais e metodológicas da educação
popular brasileira e seus déficits ou mudanças de percurso que poderiam lançar luz às dificuldades em se superar uma cultura política que foi
rejeitada desde as primeiras articulações do que seriam os novos movimentos sociais.
Comecemos por compreender os princípios norteadores da educação popular que forjou uma rede de lideranças sociais Brasil afora.
Carlos Rodrigues Brandão, num livro que organizou em 1982, conseguiu capturar, na fala de um agricultor do sul de Minas Gerais, o conceito mais acabado de educação popular desenvolvido no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1970 e que atingiu seu ápice na década
seguinte. Antônio Cícero de Sousa, o agricultor entrevistado, residia numa propriedade que ficava entre os municípios de Andradas e Caldas.
Ciço, como é conhecido, descreveu, assim, sua concepção do que seria educação:
Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o
mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto dar roça, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da regra de pobre.
Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi pra mim. Então, “educação”. É por isso que eu lhe digo que a sua é a sua e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha? Que a gente aprende mesmo, pros usos
da roça, é na roça. É ali mesmo: um filho com o pai, a filha com a mãe, com a avó. Os meninos vendo os mais velhos trabalhando. Se um
tipo desse duma educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, com adultos, os velhos, até mulheres, conforme
foi dito, assim num acordo, num outro tipo de união, com o povo todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que
é nossa também, que então juntasse idéia de todos, nós, num assim, assim, então, havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa
do que a gente pensa.
Ciço não era integrante de nenhum movimento social, nem havia se envolvido em qualquer projeto educacional. Se fosse militante de
movimento social dos anos 1980, teria destacado, em sua fala, alguns conceitos caros à luta social do período. Teria falado em autonomia
política (talvez, nomeando-a de independência ou liberdade), não se vinculando a qualquer instituição, partido e muito menos às intenções
de governos. Nos anos 80 era assim. Militantes de movimentos sociais expressavam-se a partir de um ideário construído ao longo da segunda metade dos anos 1970 que articulava conceitos marxistas e cristãos. Daí surgia um poderoso discurso, que se fundava na valorização da
dignidade do homem pobre, da postura anti-institucional, da luta social pela libertação política e econômica e pela organização autônoma
dos pobres em pequenas estruturas de base, locais.
Ciço teria sublinhado, ainda, que qualquer projeto educacional deveria ser libertador, valorizando a cultura do homem simples, constituindo-se num instrumento de politização.
Mas Ciço não era um militante. Mesmo assim, articulou enxada com educação, confirmando que a enxada foi, para ele, uma escola.
Mas, logo em seguida, diz que a educação do “doutor” era, também, a educação que a escola formal lhe oferecia. E completa, destacando o
erro metodológico dos processos educacionais formais que ignoram os códigos populares de comunicação, o ritmo natural do processo de
aprendizagem, a educação como diálogo, troca de intenções.
Este foi o mote dos projetos de educação popular daqueles anos 70 e 80. De todos educadores que inspiraram (e se inspiraram em) tais
elaborações, Paulo Freire foi o que se aproximou mais desta motivação e intenção efetivamente popular. Não por outro motivo, foi e ainda é
uma declarada referência para as iniciativas de educação popular. E que tinha o homem marginalizado social e politicamente como seu alvo.
Não foi coincidência, portanto, que o livro de Brandão tem início com uma fala de um pobre agricultor, dos rincões esquecidos do país.
O tema da cultura do homem simples, que na época se denominava de “cultura popular” era central nesta elaboração. Existiria uma
concretude na vida e no cotidiano do homem simples que era, por si, educativa, porque formava o homem forte, autônomo, marcado pela
sua identidade cultural. Era a educação do Brasil Profundo. Neste cotidiano, por sua vez, não se encontram momentos épicos, porque fala
aos sussurros, diariamente, repetidamente. E, assim, vai ensinando a lição moral do dia-a-dia, aprendendo a ser forte.
54
O Desafio do Educador
Paulo Freire compreendia, do ponto de vista educacional, esta perspectiva do homem simples43. Compreendia a perspectiva de Ciço a
partir de um sincretismo original: a fenomenologia, o marxismo não-ortodoxo de Gramsci e referências do cristianismo engajado. Um sincretismo que, convenhamos, se aproxima em muito do ideário expresso por Ciço. Entendamos, portanto, o projeto popular educacional do
período a partir das proposições de Paulo Freire.
No final dos anos 1980 e início dos 1990, Paulo Freire organizou uma longa conversa com o também educador e militante norte-americano, Myles Horton. Em diversas passagens deste encontro, Freire discorreu sobre a relação entre o saber cotidiano e a formação para a
cidadania, a articulação original das concepções brasileiras de educação popular. Vejamos algumas dessas passagens44:
É interessante pensar constantemente sobre o clima político, o clima social, o clima cultural nos quais estamos trabalhando como educadores. Eu não creio em programas de alfabetização de adultos que sejam simplesmente organizados por alguns educadores em algum
lugar e depois oferecidos para analfabetos em todo o país. Isso não funciona. Lembro que em 1975 houve uma reunião internacional, em
Persépolis, patrocinada pela UNESCO, com o objetivo de analisar alguns relatórios preparados pela própria UNESCO, avaliações de programas de alfabetização de adultos no mundo inteiro. (...) Uma das conclusões que foi colocada no relatório final foi que os programas
de alfabetização de adultos tinham sido eficientes nas sociedades em que o sofrimento e a mudança tinha criado motivação especial nas
pessoas para ler e escrever. (...) As pessoas queriam e precisavam ler e escrever, justamente a fim de ter mais possibilidade de serem elas
mesmas.
O que Paulo Freire tenta, nesta passagem, revelar é a íntima relação entre a politização (ou “instrumentalização política”) do ato de
ler e escrever. Em segundo lugar, sugere que esta motivação, no caso de programas de alfabetização em massa, surge a partir de uma dada
conjuntura política de mobilização e transformação social. Esta é a senha precisa, na teoria freireana, do processo de fusão da dimensão educacional com a política. São instâncias que se entrelaçam numa dinâmica social única. O educando necessita politicamente do aprendizado
para se apropriar de um instrumento político. É um movimento inverso de muitos processos de alfabetização oficial onde o educando era
objeto das intenções políticas, sendo capturado e apropriado pelo mundo letrado. A alfabetização deixa de ser um favor dos privilegiados,
uma política de inserção no mundo que os excluiu, para se constituir num sentimento de libertação. Tom Zé, músico brasileiro, relata que
quando leu pela primeira vez um texto, ainda pequeno, ficou quatro ou cinco dias sentado na soleira de sua casa, pensativo. Nada tinha sido
tão fantástico na sua vida, até então. Ele se perguntava se todos que leram aquelas letrinhas tinham entendido o mesmo que ele. E, então,
percebeu que tudo o que ele achava do mundo estava errado, porque as letrinhas tinham um poder que ele nunca havia imaginado. Tinha o
poder de comunicar sentimentos, de unir os homens de lugares tão distantes. Tom Zé descobriu uma arma de integração, comunicação e poder. Sentiu, ao ler o texto, o mesmo que hoje sentimos ao navegar na internet. Estamos soltos no mundo, envolvidos num poder não visível,
mas compreendido. É este poder da alfabetização, esta compreensão política do seu poder, que Paulo Freire se referia.
Mas esta “politização” necessária do alfabetizando possui uma peculiaridade. A alfabetização e o ensino não podem adotar como função
a organização, mas ser um meio para este fim. Como ressaltava Paulo Freire:
Como é possível para nós trabalhar em uma comunidade sem sentir o espírito da cultura que está lá há muitos anos, sem tentar entender
a alma da cultura? Não podemos interferir nessa cultura. Sem entender a alma da cultura apenas invadimos essa cultura. Meu respeito
pela alma da cultura não me impede de tentar, com as pessoas, a mudar algumas condições que, a meu ver, são obviamente contra a
beleza de ser humano. Deixe-me dar um exemplo concreto. Tomemos uma tradição cultural importante na América Latina que impede
que homens cozinhem. Em última análise, os homens criaram essa tradição e a premissa nas mentes das mulheres é que, se os homens
cozinharem, dão a impressão de não serem mais homens.(...) Tomemos uma segunda comunidade na qual os homens não fazem nada
relacionado com o trabalho doméstico. As mulheres fazem tudo na casa e também no campo, e os homens voltam do campo só para
comer, mas as mulheres também estiveram lá trabalhando. Ora bem, eu sou um educador e estou falando em oficinas com essa comunidade. Minha pergunta é a seguinte: é possível que eu, com relação à minha compreensão de mundo – porque respeito a tradição cultural
dessa comunidade – é possível que eu passe toda a minha vida sem nunca tocar nesse assunto? Sem nunca criticá-los só porque eu respeito sua cultura tradicional? Não, eu não faço isso. Mas eu não estou invadindo ao não fazer isso – isso é, fazendo o oposto, criticando,
questionando os homens e mulheres dessa cultura para que entendam como aquilo está errado de um ponto de vista humano. (...) Eu
insisto: uma coisa é respeitar; a outra é manter e encorajar alguma coisa que não tem nada a ver com a visão do educador. Prefiro ser mais
claro e assumir minha obrigação de questionar, mas é claro, eu sei que tenho a obrigação de questionar aquela cultura e aquelas pessoas.
Não posso começar no dia que chego. Não posso fazer isso. Então a questão não é estratégica, é tática. Estrategicamente eu sou contra
ela. Estou a favor da luta das mulheres. Taticamente posso ficar quieto sobre o assunto seis meses, mas na primeira ocasião que tiver, devo
colocar a questão na mesa, embora nos deixe a todos desconfortáveis. (...)O educador ou educadora como um intelectual tem que intervir. Não pode ser um mero facilitador. (...) O que o educador deve fazer quando ensina é possibilitar os alunos a se tornarem eles mesmos.
E ao fazer isso, ele ou ela vive a experiência de relacionar democraticamente como autoridade com a liberdade dos alunos.
55
O Desafio do Educador
Esta longa passagem da fala de Paulo Freire publicada no livro em que dialoga com Myles Horton expressa o papel político do educador
que se posiciona numa relação entre cidadãos (no caso, educador e educando). Percebe-se a tensão permanente que esta relação provoca,
mesmo na fala de Freire. O educador entende a cultura da comunidade e a respeita, mesmo não aceitando seus valores e práticas, porque se
posiciona como igual e não como possuidor de cultura superior. Mas, como cidadão, posiciona-se assim que ganhar o respeito e confiança
da comunidade em que atua. Por que se silencia até ganhar a confiança da comunidade? Por uma questão tática, como diz Freire. Aqui se
explicita com nitidez a tensão política/educação libertadora que nem sempre foi observada nos cursos de formação de lideranças sociais,
mesmo que tenham se inspirado declaradamente nos princípio freireanos. O educador encontra-se no fio da navalha justamente porque a
sua sensibilidade e leitura da realidade e das relações que estabelece com a comunidade orientam os passos que, como educador, define
para expressar sua crítica às práticas sociais que o incomodam. O cuidado tático não é um mero subterfúgio para convencer. Na concepção
freireana, se impõe para estabelecer um diálogo entre cidadãos iguais. Não é a crítica de um superior, mas o contraponto à realidade e valores
da comunidade. Daí porque Paulo Freire afirma, em dado momento, que o papel do educador é possibilitar os alunos a serem eles mesmos.
Ao questionar como igual, o educador exige um posicionamento do educando, revela possíveis contradições, exige posicionamento frente
à tradição. Em termos psicanalíticos, seria a tarefa de provocar a análise e a construir a autonomia possível do sujeito. Ao “se ver de fora”o
educando passa a se apropriar de suas motivações, ações e valores. Torna-se sujeito. Por este motivo Paulo Freire escreveu tantos textos
destacando o ato de ad-mirar, ver-se de fora.
Esta leitura peculiar do papel da educação popular se espraiou por organizações populares, de assessoria a comunidades pobres, por
organizações confessionais mais progressistas (entre elas, a Igreja Católica e a Metodista), por segmentos do movimento sindical e alguns
movimentos sociais. Esta tensão educacional foi constitutiva, inclusive, de certa crise de identidade de diversas pastorais sociais e organizações de apoio e assessoria a movimentos sociais quando, em meados dos anos 1980, vários movimentos consolidaram suas próprias organizações. A tensão provocada pelos educadores críticos havia gerado sujeitos políticos institucionalizados. E, então, qual passaria a ser o papel
da educação popular no Brasil?
Os casos mais evidentes ocorreram no campo sindical e no movimento de luta pela terra. Centrais Sindicais e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) constituíram, ao longo dos anos 1980, sólidas estruturas educacionais, com concepções e estruturas curriculares próprias. A CUT chegou a criar um sofisticado sistema educacional, o Sistema Nacional de Formação, constituído de escolas sindicais
com corpo técnico fixo, programas de formação permanentes, um conjunto de monitores e assessores educacionais (sociólogos, pedagogos,
historiadores, filósofos), secretarias estaduais de formação, coletivos de formação por categoria. Cursos permanentes (história do movimento sindical, técnicas de negociação coletiva, matemática sindical, técnicas de comunicação, política industrial, organização no local de
trabalho, entre outros) se espalharam pelo país afora. Uma revista específica (Forma & Conteúdo) foi editada para estimular e unificar as
metodologias e currículos de formação sindical.
No caso do MST, o arrojo de sua estrutura educacional foi, também, impressionante.
Um “Manifesto de Educadores e Educadores da Reforma Agrária” publicado em 1997 num jornal do MST, sintetiza os objetivos do seu projeto educacional:
Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso tempo e que ajude no fortalecimento das lutas sociais, e na solução
dos problemas concretos de cada comunidade.(...) Acreditamos numa escola que desperte os sonhos de nossa mocidade, que cultive a
solidariedade, a esperança e o desejo de aprender sempre e de transformar o mundo.Entendemos que para participar da construção desta
escola nós, educadoras e educadores, precisamos construir coletivos pedagógicos com clareza política, competência técnica, valores
humanistas e unidade de ação.Lutamos por escolas públicas em todos os acampamentos e assentamentos de reforma agrária do país e
defendemos que a gestão pedagógica destas escolas tenha a participação da comunidade Sem-Terra e de sua organização.
O professor de um assentamento ou acampamento rural é orientado para criar condições para que alunos tomem decisões e sejam responsáveis por elas. Seu plano de trabalho deve conter: a) situações de estímulo para que os alunos se organizem e trabalhem em grupos; b)
situações de aprendizagem para que tomem decisões por conta própria; c) situações em que planejam e avaliam as ações no coletivo dos alunos; d) situações em que controlam o trabalho e a produtividade; e) situações em que superem os oportunismos dos colegas. Neste aspecto
há uma clara inspiração dos processos de formação de lideranças de movimentos sociais.O MST possui, ainda, material didático específico,
como “Boletins da Educação”, “Cadernos de Educação” e “Fazendo a História”. Como se percebe, esta organização possui uma estrutura articulada de um sistema educacional que se aproxima em muito da estrutura educacional formal brasileira.
Assim, a crise de identidade de tantas organizações que se dedicaram exclusivamente, da segunda metade dos anos 1970 até o final dos
anos1980, à educação popular, exigiu um aggiornamento significativo na última década do século XX. Esta atualização, como afirmamos,
foi ainda mais complexa em virtude da transformação dos movimentos sociais. Uma transformação gerada por sua institucionalização. De
movimentos sociais à organizações, a mobilização social e a explosão de reivindicações populares passaram a sustentar a estruturação e
manutenção da própria organização. A organização teria se tornado um fim, portanto.
56
O Desafio do Educador
Se tal fenômeno se consolidou efetivamente, poderíamos aventar a hipótese, como conseqüência, de uma profunda mudança nos conceitos do que se denominava educação popular. Sua identidade fundacional, libertária, marcada pela tensão entre educador e educando,
teria, então, se alterado?
Para responder tal questão, comecemos recapitulando os principais elementos constitutivos da educação popular brasileira até meados
dos anos 1980.
Eram seus elementos centrais:
(a) Processo educacional de caráter emancipatório. Enquanto metodologia educacional respeita o educando como cidadão, possuidor de
saberes e valores legítimos. Do ponto de vista político, o projeto educacional objetiva estabelecer um processo de constituição de sujeitos
coletivos autônomos. A função educacional libertadora é organizativa, pautando-se pelo respeito e promoção à cultura e valores locais, da
comunidade envolvida no processo educacional, mas criando situações-problema e dilemas. Por dialogar com a fenomenologia, partia da
percepção individual sobre a realidade, cotejava com a percepção de outros educandos e criava questões comuns a serem aprofundadas.
Somente a partir daí surgia uma segunda leitura, a teoria;
(b) Processo educacional como meio. Toda estrutura educacional (currículo e educadores, inclusive) estaria voltada para a constituição
de sujeitos coletivos. Seriam estruturas mediadoras, motivadoras da organização popular, voltadas para o fomento da leitura crítica da
realidade dos educandos. Assim, as estruturas da educação popular não eram auto-referentes (porque mediadoras e dinâmicas, acompanhando o movimento imprevisível dos educandos), se aproximando das características de movimento social e se distanciando da lógica das
organizações. A única possível exceção era a formulação metodológica. Este tema motivava encontros e seminários constantes, de troca de
experiências e aprofundamento conceitual. A tensão educador/educando era um tema recorrente. Alguns textos de apoio que circulavam à
época destacavam o necessário desprendimento do educador em relação à sua residência. Afirmava-se que o educador deveria saber que seu
destino era a organização popular constante. Quando a organização social florescia em determinada região, era chegada a hora do educador
partir para outras regiões, semeando a auto-organização popular, numa declarada atitude missionária;
(c) Cultura anti-institucional. A educação popular possuía uma natureza comunitária. O ideário confessional, que orientava grande parte
das experiências que se disseminaram pelo país na época, contribuiu sobremaneira para o fortalecimento desta característica. Assim, na
medida em que algumas estruturas educacionais se institucionalizavam (escolas paroquiais ou comunitárias, escolas sindicais e outras),
passavam a ser dirigidas por instâncias gerenciais comunitárias. Criava-se, assim, ainda que instintivamente, sistemas educacionais paralelos
aos formais, oficiais. Obviamente que esta situação ganhava contornos políticos a partir do conceito de autonomia política, francamente
difundido nessas experiências à época;
(d) Pedagogia do Oprimido. Tanto os conceitos articuladores, quanto a metodologia educacional empregada orientavam-se por uma
peculiar leitura dos conflitos entre as classes sociais e se posicionavam a favor das classes oprimidas. Daí o respeito à cultura das comunidades oprimidas e a postura gradativamente crítica do educador que deveria questionar os elementos “não-humanistas ou opressivos”
desta cultura. A tensão educador-educando era similar à tensão sujeito-objeto que as metodologias de pesquisa participante ou pesquisa-ação provocavam no mesmo período. Aqui, grande parte das formulações metodológicas foi caudatária das teorias de Paulo Freire. Tomaz
Tadeu da Silva sugere que o marxismo humanista (apoiado em Erich Fromm), a fenomenologia existencialista cristã e a leitura dos críticos
do processo de dominação colonial (Memmi e Fanon) de Paulo Freire teriam colocado ênfase metodológica nos processos de dominação,
em especial, na primeira fase de suas formulações (SILVA, 2003:58). O humanismo cristão de Freire enfatizará a postura “humilde” e a “fé
nos homens”, sustentando o necessário vínculo dos currículos à situação existencial dos educandos. A problematização empreendida pelo
educador, já destacada anteriormente, possui lastros fenomenológicos: o ato de conhecer possuiria uma intencionalidade por parte do educando. O conhecimento não viria de fora da existência do educando, mas se construiria a partir da forma como a realidade se apresentaria na
sua consciência. E é a partir do diálogo entre os homens que este “mundo para a consciência” se materializa, é apreendido. Daí todo processo
educacional adotar como ponto de partida a realidade percebida pelos educandos (temas e palavras geradoras);
(e) Timing do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário. O processo educacional orientou-se pela lógica comunitária, seu
ritmo de aprendizagem cotidiano, marcado pela oralidade, pelas tradições, pela relação com a natureza e/ou pelas relações intersubjetivas.
Não raro, o educador popular estabelecia laços de amizade e confiança mútua com a comunidade, tornava-se seu defensor e freqüentava
os rituais coletivos. O tempo das trocas comunitárias não chegou a ser um objeto de análise no período, mas sempre foi comentado nos
encontros técnicos. Havia duas motivações em relação ao tema para os educadores. Uma delas, de natureza metodológica, de respeito ao
movimento de tomada de consciência e à cultura local. A outra, fundada na clara intenção de formação moral, de valorização do que se
57
O Desafio do Educador
denominava “formação integral do sujeito” e não apenas a formação “instrumental”, voltada para a técnica. Embora não fosse citado em
nenhum documento de referência à época, um texto de Bertrand Russell parece plasmar esta intenção dos educadores populares (RUSSEL,
2002). Segundo este autor, os momentos de despreocupação seriam importantes no processo educativo porque permitem ao educando
avaliar com maior profundidade sua experiência. Sem tais momentos, o processo educacional alimenta a apatia. Critica-se indiretamente o
“culto à eficiência” na educação. Segundo Russell
o divórcio entre os fins individuais e os fins sociais da produção é que torna tão difícil pensarmos com clareza num mundo em que a busca
do lucro constitui o único incentivo ao trabalho. (...) Os prazeres das populações urbanas se tornaram fundamentalmente passivos: ver
filmes, assistir a partidas de futebol, ouvir rádio e assim por diante. (...) A vantagem mais importante do conhecimento “inútil” é, talvez,
a de incentivar a atitude mental contemplativa. O mundo tem revelado uma exagerada tendência para a ação. (...) O que se necessita não
é de tal ou qual informação específica, mas do conhecimento que inspire uma concepção da finalidade da vida humana com um todo.
Não poderia haver expressão mais fiel ao sentido do timing do processo educacional defendida pelas práticas da educação popular dos
anos 1970 e 1980.
O sujeito coletivo eleito como interlocutor privilegiado das práticas do que estamos denominando de educação popular foram os movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1970. Os movimentos sociais fortalecem-se e alimentam-se do mesmo caldo de cultura
que fundamentava as práticas da educação popular brasileira. Um era instrumento da estruturação e conformação do outro. Beatriz Costa
sugere uma genealogia que se inicia no final da década de 1950 (COSTA, 2000). Para a autora, os primeiros anos desta perspectiva educacional são marcados pelas reformas de base e pela revolução cubana, que lhes conferem as características que se mantém até hoje: referência
à justiça social e à democracia e perspectiva de transformação social profunda:
Em geral, era vista como compromisso com as camadas populares e com a sua participação constante nos movimentos e iniciativas. A
educação já não vem com aquele sentido assistencial que tinha nas décadas anteriores, quase que de se preocupar apenas em evitar que
os meninos se tornassem delinqüentes. (...) Havia referências teóricas propostas por Paulo Freire, pelo Movimento Popular de Cultura,
pelos CPCs da UNE (União Nacional dos Estudantes), pelo MEB (Movimento de Educação de Base), por um sem número de iniciativas educacionais voltadas para a valorização e fortalecimento da cultura popular. O personalismo, o solidarismo e o marxismo tiveram grande
influência nesse primeiro tempo (COSTA, 2000:15 e 16).
O conceito de educação popular nasce sob o signo da educação informal, para além (muitas vezes, em oposição) ao formalismo e determinismo escolar. Costa sugere ser “todas aquelas intervenções junto aos grupos populares, no sentido do trabalho educativo”. O conceito,
ainda vago, vincula educação ao movimento de formação cidadã que ocorre nos movimentos sociais. Daí uma tensão permanente entre
educar e politizar, porque a tensão original, fundante, é aquela entre o conceito de educar da militância leninista – muitas vezes adotando
um caráter populista onde o saber só é possível emergir quando ausente do mundo da alienação e dominação – e o conceito de educar de
origem cristã-fenomenológica, presente na obra de Paulo Freire e nas proposições iniciais do MEB (Movimento de Educação de Base) e do
trabalho de organização de base da juventude católica que, mais tarde, dará origem a diversas articulações políticas, como foi o caso da Ação
Popular (AP). Neste último caso, o saber sentido, a consciência do real que brota do percebido e traduzido pelo homem que o vivencia gera
um novo estatuto político-educativo ao mundo cotidiano, desprezado até então pela leitura das organizações leninistas. Assim, a sabedoria
popular ganha estatuto político, como um aprendizado cotidiano. O papel da educação popular seria tensionar esta sabedoria que brota do
cotidiano pensado com o conhecimento nascido da racionalidade científica. Os anos 1970 cruzaram as duas perspectivas formativas, criando
um projeto educacional paralelo ao oficial, não necessariamente informal (embora desejasse a informalidade por mergulhar no movimento
diário da construção do saber do homem simples), mas que continha uma tensão original entre ser uma alternativa ao modelo educacional
vigente e permanecer focalizado nas práticas comunitárias, locais. Uma vocação, enfim, que nunca se define, entre ser universal ou permanecer à serviço da comunidade.
O final dos anos 1980 gerou uma profunda inflexão na trajetória dos movimentos sociais e, conseqüentemente, na proposição das práticas de educação popular. Na medida em que aumentaram seu poder político e, em alguns casos, chegaram a se profissionalizar (gestando um
corpo administrativo permanente, fluxo estável de recursos financeiros, planejamento de ações unificado e orientações e regras de conduta
formalizados no seu interior, assessoria técnica específica), os valores universais e mesmo o ideário humanista-cristão que cimentava a quase
totalidade dos movimentos sociais que se espraiavam pelo território nacional passaram a ser apropriados ou reformulados por cada uma das
organizações que se consolidavam. A unidade do ideário original foi, lentamente, se cindindo num mosaico de movimentos e organizações.
Esta tendência parece se fortalecer no final dos anos 80, quando muitas lideranças de movimentos sociais são lançadas ao parlamento e executivos municipais. O caráter anti-institucionalista e a radical autonomia política dos movimentos sociais sofrem contradições evidentes a
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O Desafio do Educador
partir desta nova realidade. Pode-se afirmar que se forja, a partir de então, uma espécie de “blocos de representações e interesses” no interior
dos parlamentos e até mesmo na captação de recursos financeiros para manutenção das organizações populares.
Ora, se adotamos como premissa que as práticas políticas constituem a natureza dos agentes sociais45, o processo de transformação
dos movimentos sociais em organizações teria provocado uma alteração na natureza, inclusive, das práticas educativas (ou formativas) dos
mesmos. Com efeito, as demandas difusas de tantos movimentos sociais (saúde, educação, terra, moradia, e assim por diante) se unificavam, até então, exclusivamente em função de um discurso humanista-cristão de lideranças populares. Esta engenharia discursiva adotou
como estratégia o apelo emocional que se aproximou, muitas vezes, de uma proposição populista. O discurso emocional e muitas vezes
populista, por sua vez, questionava a capacidade do sistema institucional absorver as demandas concretas difusas. Em suma, é a emoção e
o sentimento de exclusão ou marginalidade frente à ação pública institucional que alimentou a legitimidade do discurso do líder. Daí porque
a passagem de inúmeros líderes ao parlamento e executivo municipais criar um curto-circuito na coesão dos diversos movimentos sociais.
Esta nova realidade política gerou, de imediato, três possibilidades no rearranjo do sistema de representação dos movimentos sociais.
A primeira, orientada pelo afastamento das lideranças em relação aos movimentos sociais dos quais eram oriundos e subsumindo à lógica das burocracias públicas, aproximando-se de uma situação de cooptação institucional.
A segunda, marcada pela separação da prática política dos líderes no interior do sistema institucional em relação ao seu discurso de
legitimação, este último voltado inteiramente para os movimentos sociais. Neste caso, a liderança aumenta o teor emocional, o chiste, e a
ironia em seus discursos, numa clara manutenção da identidade com sua base social, capacitando-se como interlocutor nas negociações no
interior do sistema institucional. Um movimento complexo e delicado, exigindo grande habilidade discursiva e um estoque de legitimidade
da liderança.
Uma terceira possibilidade foi a limitação da pauta da liderança, aproximando-se do que na teoria política denomina-se representação
delegada, ou seja, uma representação restrita aos interesses de um movimento social específico. Neste caso, o discurso genérico e universal
da liderança se dissipou, torna-se menos emocional e mais técnico e propositivo. Ele deixava de ser representante de um ideário genérico,
humanista, e passou a ser defensor de uma pauta e de um público específico.
As três possibilidades46 que se descortinaram para as lideranças sociais na década de 90 do século passado, aquelas que foram alçadas
ao poder institucional, desarticularam, portanto, a lógica política e o ideário original desses movimentos, afetando diretamente o projeto de
educação popular até então implementado.
Em síntese, no caso da liderança ter se tornado um representante delegado no parlamento (ou mesmo, em alguns casos, a partir dos
projetos que desenvolve no Executivo), o projeto educacional de um determinado movimento tendia a se tornar uma base de sustentação de
formação de novas lideranças ou até mesmo de coesão das pautas e práticas da estrutura organizativa que vai se expandindo. Em outras palavras, a representação direta no sistema político institucional transforma o movimento social, através de seu líder, num canal de negociação
direta de demandas. Criou-se, em muitas localidades, uma espécie de neocorporativismo na gestão de políticas públicas específicas, como
no caso de deputados e prefeitos vinculados ao MST ou qualquer outro movimento social que transitou na última década para um modelo de
organização gerencial mais profissionalizado. A despeito da constante mobilização e pressão social que mantém uma organização popular
como o MST, é comum acompanharmos pela imprensa as inúmeras câmaras setoriais onde a participação permanente de suas lideranças é
certa. Obviamente que o projeto educacional de uma organização desta natureza tem como principal objetivo o fortalecimento e coesão da
própria organização.
O segundo tipo de prática da liderança, a que cria um discurso divorciado da prática do líder no interior do sistema político institucional, tende a esgotar a capacidade de mobilização dos movimentos sociais. Uma prática dicotômica desta natureza coloca em permanente
risco a legitimidade da liderança e diminui consideravelmente a capacidade de efetivação e conquista da mobilização de sua base social. Os
militantes dos movimentos sociais não participam diretamente dos fóruns de negociação das demandas, restrito aos seus líderes – agora,
deputados, vereadores, secretários ou prefeitos – dificultando a compreensão das diferenças entre a pauta inicial demandada e a agenda
definida nos acordos.
A terceira possibilidade, marcada pela cooptação institucional do líder, é a mais ofensiva à unidade dos movimentos sociais, desarticulando seu projeto educacional.
Como se percebe, todas possibilidades de relação liderança/movimentos sociais de novo tipo, que emergiram na última década do século
passado, afetaram diretamente os projetos de educação popular do período anterior47.
Retomemos as cinco características básicas daquele projeto e vejamos as alterações mais significativas:
1. Do processo educacional de caráter emancipatório para a aquisição de competências técnicas. Muitas vezes, o caráter emancipatório
foi substituído pelas competências a serem adquiridas nas negociações. São instituídos níveis de formação, distanciando militância de liderança. Em diversos casos, organizações de menor porte contrataram entidades especializadas para desenvolverem programas de formação
específicos. A referência na competência técnica substituiu o foco na autonomia política da comunidade48;
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O Desafio do Educador
2. Do processo educacional como meio para programas formativos como um fim. No caso de diversas organizações, o processo educacional ou formativo transformou-se em fim, gerando recursos na venda de cursos e programas de formação e qualificação. Os educadores se
profissionalizaram e deixaram de adotar o perfil errante de missionário;
3. Da cultura anti-institucional para a institucionalização das ações formativas. Todos projetos educacionais que seguiram esta vertente
se institucionalizaram, criando história e lógica próprias, nem sempre vinculadas à trajetória do público que atendem. São criadas estruturas
permanentes, específicas de cada organização, com materiais de apoio, recursos didáticos, escritórios e auditórios adaptados aos programas
e currículo determinado. Não se torna raro o estabelecimento de convênios desses projetos ou programas educacionais (denominados de
“programas de formação”) com órgãos públicos ou instituições internacionais de fomento ao desenvolvimento de comunidades;
4. Da Pedagogia do Oprimido para a pedagogia do planejamento. São inúmeras as concepções educacionais que passaram a vigorar neste
campo temático. Em grande parte das organizações, são fundidos conceitos pedagógicos com conceitos e práticas de planejamento estratégico. O discurso originalmente classista se transfigurou em capacidade de elaborar e executar projetos sociais, constituindo um mercado
de atuação social e redefinindo o marco teórico (da referência marxista à teoria funcionalista). Muitas organizações, e principalmente fóruns
temáticos ou setoriais, sustentam, contudo, referências com a pedagogia do oprimido. Esta situação, contudo, não é mais a regra;
5. Do Timing do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário para a busca de eficácia. O ritmo e a velocidade dos processos
educacionais passaram a ser definidos, em muitos casos, pela eficácia da execução de políticas públicas o que lhes confere similaridade com
os processos de treinamento e aquisição de competências técnicas.
Como se percebe, o projeto original de educação popular brasileira encontrou-se, nos anos 90 e início do século 21, numa encruzilhada.
Encruzilhada que redefine o caráter popular de seu projeto original. As mudanças esboçadas não ocorreram de maneira única em relação a
todas organizações populares. Com efeito, são várias as nuanças verificadas ao longo do país, revelando maior ou menor grau de radicalidade
no distanciamento do ideário original dos projetos de educação popular. Foram salientadas as mudanças mais significativas em relação ao
projeto de formação de lideranças hegemônico na sua origem, procurando traçar um paralelo com a transição dos movimentos sociais e a
inflexão do petismo (oriundos do mesmo ideário), dando lugar ao lulismo.
Nesses casos, os objetivos educacionais passaram a ser a unidade do discurso, a socialização de regras e normas de conduta, a propagação do ideário fundante (ou original) da organização, as competências necessárias para a prática das diversas instâncias ou segmentos sociais
da organização (militância, corpo administrativo e direção política). Os projetos educacionais dessas organizações populares passaram a ser
auto-referentes e embora mantenham, muitas vezes, o propósito da transformação social, aproximam-se rapidamente de um programa de
formação profissional, que garante o orgulho corporativo que caracteriza as organizações.
Há casos, ainda, de formação de lideranças populares para assumirem tarefas de Estado, dentro da lógica de parcerias assumidas por
parte do que se denominou Terceiro Setor, ao longo da década de 1990. Um exemplo desta proposição é o texto elaborado por Augusto de
Franco, intitulado “Três Gerações de Políticas Sociais” (FRANCO, 2003). Partindo do princípio que o Estado se revelaria insuficiente para a
promoção ou indução do desenvolvimento, sugere uma divisão de tarefas, no campo das políticas sociais, entre Estado, mercado e sociedade
civil. A partir deste princípio, analisa o que denomina de três gerações de políticas sociais.
A primeira geração seria marcada pelas políticas de intervenção centralizada no Estado, articuladas a quatro premissas:
a) O Estado se bastava na execução das políticas sociais;
b) Os benefícios eram apresentados como uma espécie de concessão do poder;
c) Seus serviços não são percebidos como direitos;
d) A gestão governamental não era transparente.
A segunda geração de políticas sociais é denominada pelo autor como “políticas públicas de oferta governamental descentralizada”.
Segundo Franco, esta geração de políticas sociais recebeu a guarida da Constituição de 1988. As características básicas desta geração de
políticas públicas seriam:
a) O Estado já não é percebido como suficiente, mas ainda cumpre um papel quase exclusivo na execução das políticas;
b) Procura-se despartidarizar e despersonalizar a oferta de recursos públicos;
c) Atenção em relação à eficiência, eficácia e efetividade dos programas e ações governamentais;
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O Desafio do Educador
d) A concepção dos programas universais são concebidas pelo centro do poder e a oferta de programas é universal e indiscriminada.
A terceira geração, defendida pelo autor, seria a de políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no desenvolvimento social. Suas características seriam:
a) Estado é insubstituível, mas carece de parcerias com a sociedade e mercado;
b) Política pública não é sinônimo de política governamental;
c) Investir em desenvolvimento é compreendido como investir em capacidades das comunidades.
O texto, a partir de então, sugere que nos anos 90 forjou-se um novo paradigma de administração pública, redefinindo o papel do Estado
em função do processo de privatização e publicização de funções consideradas não exclusivas de Estado, da descentralização da gestão e
controle social de ações governamentais. Deste novo “padrão de relacionamento entre sociedade e Estado” teriam surgido “novas realidades
emergentes”, a saber:
a) Expansão da esfera pública não-estatal;
b) Crescimento do terceiro setor;
c) Surgimento de práticas de responsabilidade social por parte de empresas e instituições da sociedade civil;
d) Conformação de uma sociedade-rede;
e) Adoção de programas focalizados e flexíveis, baseados em múltiplas parcerias, preocupados com o monitoramento e avaliação e voltados para a sustentabilidade.
A leitura política contida nesta proposição distancia-se em muito do paradigma original da educação popular e absorve pacificamente a
possibilidade de gerenciamento público a partir de um pacto de gestão entre organizações da sociedade civil, mercado e agências estatais,
inspirado na elaboração do sociólogo alemão, Claus Offe. Esta elaboração, contudo, vem sendo objeto de debates internacionais sobre a
necessária reforma democrática do aparelho estatal moderno49.
No que interessa ao tema deste capítulo, vale ressaltar que a concepção pedagógica advinda deste dilema pode gerar posturas profundamente distintas. No caso do hibridismo proposto por Offe, e que é absorvido por muitas ONGs como se verifica na análise de Augusto de
Franco, a concepção educacional seria evidentemente híbrida, entre a valorização da capacidade gestora das comunidades locais (fomento
ao capital social) e a transferência (ou difusão) de tecnologias de gerenciamento de políticas públicas. No caso da proposição de democratização do Estado (movimento inverso ao das parcerias), parece haver um ponto de diálogo com os princípios da educação popular brasileira,
acentuando-se o caráter provocativo, de desestabilização dos valores corporativos e localistas da cultura comunitária. Porém, na medida
em que sugere, como objetivo estratégico, a construção de um novo Estado, advém daí uma possibilidade metodológica inovadora. Situa o
Estado no campo da conformação social dos direitos e não na limitada noção de institucionalização de regras e normas. O Estado passa a
conformar-se como dinâmico, porque poroso ao controle social. Por seu turno, a participação da sociedade civil no Estado não se dá através
de suas organizações, mas da criação de uma nova institucionalidade pública, fundada no controle social.
O controle social, tal como sugere Sherry Arnstein, distingue-se da mera consulta, verificação ou feedback, tal como se apresenta no
diagrama construído pelo autor:
NÍVEL 3: PODER DA CIDADANIA
- Controle Social ou
pelos Cidadãos.
- Delegação de Poder.
- Parceria.
NÍVEL 2: PARTICIPAÇÃO
- Controle Social ou
pelos Cidadãos.
- Delegação de Poder.
- Parceria.
NÍVEL 1: NÃO PARTICIPATIVO
- Controle Social ou
pelos Cidadãos.
- Delegação de Poder.
- Parceria.
A escala acima é das mais sugestivas. Arnstein a construiu em 1969 para distinguir
níveis de envolvimento e manipulação dos cidadãos pelos gestores de efetivo
empoderamento e controle da cidadania. Sinteticamente, procurava sugerir
que:
O nível 01, composto pelo que denomina de Manipulação e Terapia não são
participativos. O objetivo é moldar ou alterar a opinião da comunidade em relação à iniciativa do gestor, cuja deliberação já foi tomada anteriormente.
O nível seguinte é composto por Informação, que legitima processos participativos, mas pode ser uma via de mão única no fluxo de informações, sem canal
61
O Desafio do Educador
de resposta. Este nível intermediário também envolve a Consulta, que pode ocorrer via pesquisas de comportamento, encontros comunitários e enquetes públicas. Finalmente, envolve o Apaziguamento (ou Pacificação), uma clara intenção de cooptação de “notáveis” escolhidos
para comitês.
O nível 03, superior, envolve Parceria, Delegação de Poder e Controle Cidadão, propriamente dito.
A Parceria redistribui poder através de negociações entre os cidadãos e os controladores do poder. As responsabilidades pelo planejamento e a tomada de decisões são compartilhadas. Já a Delegação de Poder envolve maioria de representação civil nos comitês com delegação de poderes para tomar decisões. Os cidadãos têm o poder de garantir a responsabilidade pelos programas. Finalmente, no Controle,
ninguém detém a integral responsabilidade pelo planejamento, definição das políticas e gerenciamento do programa.
Relembrando as orientações de Paulo Freire, Benjamin Fleming50 sustenta que a participação não acontece de forma espontânea, alguém gerencia o processo por algum tempo e permite que outros envolvidos exerçam certo controle sobre o que acontece. Mas este líder
ou monitor do processo deve assumir posturas coerentes. Não pode induzir, nem se omitir. São as duas posturas mais freqüentes, por sinal.
Na indução, o líder não cria envolvimento emocional para a participação. Nem sempre intencional, acaba por criar uma relação mais fria,
descompromissada, onde os participantes ouvem mais que falam, ou apenas alguns têm o poder da palavra. A sedução do líder e sua competência técnica criam um aparente consenso e síntese das exposições, sem que elas tenham sido efetivamente construídas coletivamente.
É da mão do líder que nasce a conclusão. Normalmente, é o tempo que define e garante este encaminhamento. Aceleração do tempo dos
encontros, determinado burocraticamente, não possibilita processos de amadurecimento e reflexão dos participantes, premidos pela necessidade de definição de sistematizações. De outro lado, tempo muito elástico presta-se para exposições pessoais longas e idiossincráticas,
individualizando os relatos e personalizando as intervenções em demasia. Nesta segunda situação, o líder parece se ausentar, numa postura
aparentemente democrática, mas que pode revelar uma soberba velada, um posicionamento metodológico que o coloca acima do grupo
(como avaliador constante) ou como sujeito oculto, que não se posiciona e, portanto, não revela suas posições efetivamente.
Esta rápida digressão sugere uma postura política e técnica maduras dos educadores e líderes dos processos participativos. Os capítulos
anteriores desta parte dedicada à mutação recente dos novos movimentos sociais (surgidos na década de 1980) indicam lacunas e impasses
de condução que se distanciam dessas premissas.
Enfim, o que se procurou sustentar é que a trajetória do petismo, superado pelo lulismo, converge com a mutação dos movimentos sociais ao longo da década de 1990. O olha sobre a formação de militantes e líderes dos novos movimentos sociais revela que não houve mera
cooptação por parte do Estado, mas a adoção de uma consciente mudança de rumo e ideário. O anti-institucionalismo deu lugar ao ingresso
na lógica da burocracia estatal. Um movimento paradoxal, mas que explica o mesmo movimento que fez o expoente maior do partido nascido nessas águas.
O anti-institucionalismo, assim, deu lugar ao lulismo.
Bibliografia
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ZANETTI, Lorenzo. “A atuação do passado e os sinais do presente”, In OLIVEIRA, Antonio Carlos e outros. Educação Popular: prática plural, São Paulo: Nova e Rede Mulher, 2000.
62
O Desafio do Educador
NOTAS:
lização do trabalho formativo, este documento retoma o trabalho enraizado no cotidiano das
comunidades, e rejeita o movimento para os trabalhadores, o saber libertador exógeno às práti42 Publicado originalmente em RICCI, Rudá. Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascen- cas sociais da “população que trabalha”. A organização deve, então, surgir do convencimento e
são da Nova Classe Média Brasileira. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Editora não da indução. Daí a leitura peculiar sobre o papel da liderança: “não se trata de apagar a estrela
Contraponto, 2013 (2ª Edição).
de ninguém, mas de acender uma multidão de estrelas. Trata-se da formação de uma rede de
ligações que possa atingir toda a população.”
43 O tema da cultura do homem simples é recorrente na literatura sociológica brasileira. O
estudo recente mais instigante é o de José de Souza Martins. Para o autor o novo herói da vida é 48 Há nuanças entre as entidades que se propõem à desenvolver programas de educação poo homem comum imerso no cotidiano. É que no pequeno mundo de todos os dias está também pular. Encontramos um exemplo no texto produzido por Jean Marc von der Weid, intitulado “A
o tempo e o lugar da eficácia das vontades individuais (...). A partir deste ponto, Martins sugere Trajetória das abordagens participativas para o desenvolvimento na prática das ongs no Brasil”
que o senso comum não seria banal, mas comum porque compartilhado nas relações sociais. E, (publicado pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, Rede AS-PTA, em
por sua vez, as relações sociais cotidianas estariam marcadas pela teatralização, de forma que o 1997). O autor procura criticar as tentativas educacionais para formar agricultores num paradigsujeito, antes de emitir sua opinião, procura entender o que seu interlocutor pensa e deseja. Daí ma distinto do ocorrido com o “pacote tecnológico” da revolução verde. Um dos erros metodoo discurso alegórico de Ciço, que lança ilustrações e figuras de linguagem que possuem a função lógicos apontados foi a difusão de tecnologias alternativas sem respeitar o saber camponês, o
de “pontes” entre discursos diferentes: o cotidiano e o acadêmico ou, a partir da argumentação que gerou um “pacote tecnológico alternativo”. Tais críticas teriam produzido um novo conceito
de Martins, entre o saber negociado cotidianamente e o saber construído nos escritórios. Este de relação com as comunidades e uma proposta metodológica distinta, a partir da década de
saber cotidiano é, portanto, refeito diariamente, a partir da prosa. Assim, a cultura oral e a lenta 90. A palavra-chave passa a ser “participação”. Há uma longa digressão neste documento sobre
temporalidade que marca o cotidiano do “homem simples” são constitutivas da construção das como as relações das comunidades com as ongs são falseadas por uma aparente aceitação,
crenças e verdades deste mundo concreto. Ver MARTIN (2000).
dificultando as transformações almejadas. Sugere, ainda, problemas na formação dos próprios
técnicos, oriundos do meio urbano e de uma metodologia universitária de educação que impede
44 Este encontro foi registrado em livro, publicado em 2003. Ver FREIRE, Paulo & HORTON, a compreensão das comunidades rurais. Daí nasceria a experiência da metodologia de DiagnósMyle (2003).
tico Rápido Participativo de Agrossistemas, oriundo das experiências de “rapid rural appraisal”.
45 Esta observação foi elaborada por Ernesto Laclau. Para o autor “um grupo seria apenas o re- 49 Já no final da década de 1990, Offe debateu com Boaventura Santos sobre esta questão no
sultado de uma articulação de práticas sociais”. As práticas definem seus conteúdos e ideologias, seminário “Sociedades e Reformas do Estado”, realizado em São Paulo, em março de 1998. Seu
e não o inverso. Cf. LACLAU (2003).
texto (“The present historical transition and some basic design options for societal institutions”sugeria justamente a formatação de uma engenharia política híbrida, que articularia Estado, co46 Lorenzo Zanetti faz uma breve incursão sobre esta mudança de paradigma dos projetos munidade e mercado, promovendo uma nova insstitucionalidade pública. Boaventura Santos
formativos elaborados pelas ongs a partir dos anos 80. Sustenta que na década de 80 surgem rebateu esta tese a partir da apresentação do texto intitulado “A reinvenção solidária e participaongs que não se colocavam na perspectiva de intervenção direta no meio popular, procurando tiva do Estado”, sustentando que o hibridismo sempre esteve inscrito no ideário iluminista, mas
produzir novos tipos de conhecimentos e socialização de informações (cita o IBASE como exem- apontando que sua reedição seria anacrônica. Rebateu a relação mercado-Estado sugerida por
plo deste novo paradigma). Destaca, ainda, um novo papel assumido por diversas ongs, posicio- Offe e sugeriu a reforma democrática do Estado, tornando-o mais poroso (denominou a nova
nando-se como atores sociais, com papel próprio a desempenhar que supera a antiga função de configuração de Estado-novíssimo-movimento-social) e da sociedade civil (marcada pelo loca“suporte aos movimentos”. A primeira conseqüência teria sido a necessidade de especialização, lismo e corporativismo). Cf. SANTOS, 1998 e PEREIRA e outros, 1999.
sem se verificar uma atualização das práticas educativas. Cf. ZANETTI, 2000: 54 e 55.
50 “A Participação é a Chave para o Empoderamento”, disponível no web site http://www.scn.
47 Não faltaram tentativas de reedição do paradigma dos anos 70. Num texto publicadono final org/mpfc/modules/par-benp.htm, em 15-01-10.
de 1996, intitulado “Reflexões sobre a educação popular: a retomada do trabalho de base”, a
equipe do Centro de Educação Popular (CEPIS) do Instituto Sedes Sapientae, remonta a experiência de Santarém, ocorrida ao longo dos anos 80. Embora sustente a necessidade de especia-
63
O Desafio do Educador
O protagonismo juvenil e a crise das instituições
modernas1
O CONCEITO DE PROTAGONISMO JUVENIL
A palavra protagonismo significa “O Primeiro”, o principal lutador (proto + agos). Maria Eleonora D. Lemos Rabêllo recorda que a palavra
sugere “a personagem principal de uma peça dramática, pessoa que desempenha ou ocupa o primeiro lugar em um acontecimento”.
Portanto, qualquer projeto que tenha por objetivo incentivar ou promover o protagonismo juvenil parte do princípio que o adolescente
ou jovem possui capacidade política de um cidadão. Esta, talvez, seja a questão teórica a merecer um aprofundamento inicial: a peculiaridade
da cidadania juvenil. A cidadania pressupõe direitos universais, de onde emerge um ser político, que decide sobre o seu destino e o de sua
coletividade. Contudo, segundo o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), o adolescente (aquele que possui entre 12 e 18 anos de idade2) é
um cidadão em formação, merecendo atenção e promoção. Por este motivo, o adolescente é responsável por seus atos, mas é inimputável,
ou seja, não é merecedor de punição, pois é um “cidadão em formação”.
Calligaris chega a afirmar que a adolescência constitui uma “moratória”, já que possui maturidade física e intelectual para ser adulto,
mas não é aceito pelo mundo dos adultos como tal. Afirma que a sociedade dos adultos solicita que o adolescente prove sua autonomia,
mas o impede de transgredir3.
Há, ainda, uma clara distinção no ingresso à adolescência, entre homens e mulheres. Em relação aos sinais de maturação física – e mesmo psicológica – a s mulheres ingressam nessa fase dois ou três anos antes dos homens.
Outro aspecto peculiar é o impacto na formação pessoal da maturação precoce ou tardia. Estudos recentes norte-americanos4 demonstram que meninos que apresentam amadurecimento precoce no ingresso à adolescência são mais equilibrados e mais cautelosos. No caso
das meninas, a tendência é se tornarem menos sociáveis e mais tímidas, em virtude das pressões sociais e culturais a respeito de seu comportamento.
Esta é uma fase importante em que se toma consciência do que o mundo poderia ser, desenvolvendo-se o pensamento abstrato e a
construção de utopias, testando e formando teorias. Lawrence Kohlberg, seguidor de Piaget, imaginava que nessa fase esboçavam-se os princípios morais a partir do reconhecimento de conflitos entre padrões de julgamento. Os dilemas morais são, então, acatados e há a possibilidade – nem sempre confirmada, segundo o autor – do adolescente construir a noção de justiça a partir do critério da eqüidade (ou empatia,
onde o ator se coloca no lugar do outro para julgar as condições concretas e as capacidades que envolvem cada um para, então, julgá-los)5.
Tal peculiaridade6 exige que os projetos de promoção do protagonismo juvenil possuam uma dimensão pedagógica, tendo por objetivo
a construção de espaços de aprendizagem dos atos e processos de negociação cidadã. Aqui faz sentido a sugestão de Antônio Carlos Gomes
da Costa de se procurar promover uma “participação autêntica”. Ou seja, o protagonismo pressupõe, para o autor, a criação de espaços e de
mecanismos de escuta e participação. Para isso, é preciso conceber os adolescentes como fontes e não simplesmente como receptores ou
porta-vozes daquilo que os adultos dizem ou fazem com relação aos adolescentes. Contudo, acrescentaria, não são meros espaços de sistematização de intenções e realização de desejos. É, antes de mais nada, um processo formativo.
Vale, ainda ressaltar, que tais processos formativos devem incluir os recursos familiares e comunitários, desenvolvendo o que James Coleman denominou de capital social: famílias e comunidades que constituem uma rede de apoio potencializam as oportunidades dos jovens.
64
O Desafio do Educador
Antônio Carlos Gomes da Costa não se descuida desta peculiaridade ao afirmar que o protagonismo é um processo e uma conquista
gradual.
Vale, ainda, destacar que a cidadania ativa, em que os direitos civis, políticos e sociais são ampliados para o direito à gerenciar políticas
públicas, juntamente com os governantes eleitos, pressupõe ao menos quatro competências técnicas e políticas:
(a) a capacidade de gerar e manusear informações técnicas que subsidiem a elaboração de planos de trabalho coletivo;
(b) a capacidade de elaboração e projetos de intervenção que superem a demanda individual (característica da noção de cidadania);
(c) a capacidade e oportunidade de gestão de projetos comunitários, públicos;
(d) a capacidade de fiscalização e avaliação de projetos, ações e programas que envolvem a comunidade, no caso, a juventude.
Assim, ao falarmos do protagonismo juvenil estamos sugerindo um projeto pedagógico com uma clara opção participacionista (desde
sua elaboração, os objetivos que persegue, sua execução, avaliação e reformulação), sustentado por um novo estatuto político do jovem,
portador de hábitos e cultura específica.
Mas, afinal, de que jovens falamos?
O CENÁRIO SOCIAL CONTEMPORÂNEO O JOVEM
O arranjo social dos últimos vinte anos é marcado por uma profunda crise de todas instituições modernas: Estado, partidos políticos,
sindicatos, família. Mas, por outro lado, são valorizados os interesses e culturas específicas de comunidades e etnias, agrupamentos sociais
e culturais. Alguns identificam neste cenário o discurso e os valores pós-modernos, cujo denominador comum é a fragmentação social.
Contudo, é possível repensar a crise das instituições modernas como uma possibilidade de reconstrução dos espaços públicos e do próprio processo de socialização dos cidadãos. Em outras palavras, a solução da atual crise pode gerar uma resposta exatamente contrária ao
discurso pós-moderno.
Vejamos dois sinais desta crise e as soluções que se desenham.
A instituição moderna que possivelmente foi mais duramente atingida nos últimos vinte anos foi a família nuclear. Philippe Ariés sustenta que a atenção e acolhimento das crianças e adolescentes pelas famílias é prática recente, desenvolvida a partir do século XVIII. Antes,
eram os aparelhos públicos, mantidos pela comunidade, que educavam e socializavam os jovens. Desde Roma e Grécia da Antiguidade.
Entretanto, a partir das recentes mudanças tecnológicas, o tempo e o espaço do mundo do trabalho invadiram a vida privada com grande
intensidade. As progressivas e abrangentes exigências profissionais (derivadas do perfil polivalente do novo profissional do século XXI) diminuíram o tempo de convívio familiar. Richard Sennett chega a afirmar que o mundo atual é definido pela flexibilidade e risco no trabalho. O
impacto quase imediato é a ruptura da família nuclear, que atinge todas classes sociais.
Na pesquisa “A Voz das Crianças”, realizada pelo UNICEF na América Latina e Caribe, mais da metade das crianças e adolescentes entrevistados afirmaram que não são ouvidos nem em suas casas nem em suas escolas.
O Brasil, que não fugiu à regra, apresenta nos últimos vinte anos um franco crescimento das famílias monoparentais (onde apenas um
dos pais reside com seus filhos), chegando perto de 1/3 das famílias brasileiras. Pesquisas recentes, como as realizadas pela Consultoria em
Políticas Públicas (CPP), revelam que nas famílias de classe média, o tempo de convívio familiar se reduz à 6 horas diárias, sendo que três
delas ocorrem à noite, quando a família sofre uma verdadeira “diáspora tecnológica”, dividida entre aparelhos de televisão e informática. O
diálogo, a troca de interesses, as negociações domésticas, a construção de valores sociais são catapultados do seio familiar. As competências
técnicas e políticas do convívio social de onde emerge o cidadão raramente são aprendidas neste ambiente desestruturado.
A escola, por sua vez, que classicamente é identificada como a instituição da socialização secundária (instituição valorizada por Durkheim,
com aquela onde necessariamente se instala a superação do desejo egoísta -–através da disciplina – para inserção na sociedade de valores e
65
O Desafio do Educador
altruísmo) também sofreu seus reveses. A estrutura racional dos currículos e administração das escolas de ensino fundamental e médio, reforçada com a legislação de 1971, apartou esta instituição da dinâmica social real. A cultura escolar foi, e ainda permanece em grande medida,
articulada na crença de uma missão civilizatória. Em outras palavras, a escola formaria – a despeito dos erros do mundo externo – um cidadão ideal. Os currículos escolares, desde Bobbitt (autor norte-americano que influenciou as políticas educacionais oficiais até o pós-Guerra),
deveriam criar hábitos sociais de uma sociedade moderna e industrial florescente.
Na prática, as escolas ficaram segregadas e pouco dialogaram com o mundo real. O advento do Exame Vestibular radicalizou ainda mais
essa separação entre a educação formal das escolas e as demandas sociais.
Então, onde o jovem aprende nos dias de hoje? Estudos recentes na Europa revelam que a maioria dos jovens aprende e define sua conduta a partir de seus “grupo de iguais”7, formando uma “subcultura” ou “linguagem da adolescência”. Segundo Shorter
As gerações não estão “em conflito” nem é provável que o jovem típico se encontre a fervilhar de raiva dirigida à mãe e ao pai. (...) A verdadeira
descontinuidade é mais sutil, embora não menos aguda.. Há já um século que, na Europa, e é possível que há mais tempo na América do Norte,
a família nuclear tem vindo a guardar seus filhos até eles saírem do ninho, tirando da comunidade o papel de os formar (...). Hoje, o grupo dos
iguais está novamente a assumir a tarefa de socialização dos adolescentes; e, à medida que as crianças se deslocam para a puberdade, as idéias
dos pais acerca do bem e do mal, do certo e do errado e de qual o lado que deve ficar para cima tornam-se para elas cada vez mais irrelevantes.
(...) Num estudo comparativo da América e Dinamarca, perguntou-se a adolescentes entre quatorze e dezoito anos a quem pediriam opinião
para várias coisas. Em ambos os países, o conselho dos iguais sobre as leituras era mais importante que o dos pais (...) os jovens dinamarqueses
obtém muitos mais conselhos úteis dos iguais do que dos pais no campo dos valores e dos problemas pessoais8.
Estamos, portanto, num momento de transição social, onde os canais institucionais de socialização dos jovens – assim como os canais
institucionais de participação política dos adultos – parecem em profunda crise.
UMA NOVA ESCOLA QUE PROMOVA E ACOLHA O PROTAGONISMO JUVENIL
Comecemos pelo canal de socialização dos jovens, na construção do protagonismo juvenil. A crise da família nuclear impele à sociedade
recriar instituições públicas (não necessariamente estatais) que gere situações de aprendizagem para o convívio social.
Hannah Arendt afirmava, afinal, que o papel da educação é humanizar os homens. Não nascemos humanos, mas à medida que enfrentamos dilemas sociais e nos socializamos na aventura humana (transmitida pela linguagem: a dança, a música, a pintura, o teatro, a literatura,
a performance), vamos nos identificando e partilhando a humanidade. Este seria o principal papel da educação.
Entretanto, há pouco sugerimos que o adolescente exige um projeto pedagógico, porque ele é portador de uma fase peculiar de desenvolvimento, tanto emocional, quanto físico ou mesmo social.
Assim, a escola, como aparelho público voltado para a educação e socialização dos homens, para assumir a tarefa de promover o protagonismo juvenil, deveria organizar-se a partir de duas referências: a) a elaboração de projetos pedagógicos centrados no acompanhamento e
peculiaridade do adolescente e; b) construir espaços que promovam a prática política, da explicitação das dúvidas e negociação de interesses
e desejos.
As duas referências destacadas sugerem uma profunda superação da cultura escolar vigente, voltada para resultados e padrões. A escola
taylorista que emergiu no final do século XIX nos EUA e que orientou as políticas educacionais oficiais do Brasil até os anos 70 do século XX,
tinham como referência a formação e consolidação do mundo urbano e industrial.
O currículo passou a privilegiar o aprendizado à obediência e disciplina fabril e os conteúdos conceituais privilegiaram as ciências industriais (matemática, física, química e biologia). No ideário taylorista, o trabalhador deveria assumir um padrão de conduta e de saber muito
específico: tanto o operário (que não deveria pensar, o “homem-boi”), quanto o gerente-diretor da empresa (que planejava, mas não deveria
executar), perseguiam e se enquadravam a partir desse padrão determinado. As escolas, como locais dessa produção de comportamento
social, vincularam-se rapidamente à busca do padrão urbano-industrial taylorista. Por este motivo, ignoraram, ao longo de décadas, os saberes comunitários, os desejos e peculiaridades dos alunos, já que sua função era moldar o homem moderno. Daí a estrutura arquitetônica
66
O Desafio do Educador
fechada e retangular, os espaços funcionalmente divididos, os tempos racionalmente definidos e organizados, os currículos desenhados do
primeiro ao último dia de aula, os recursos pedagógicos que definiam todos conteúdos (mesmo antes de se conhecer o perfil do aluno), os
padrões de avaliação rígidos (em escala, tendo como referência o padrão de homem urbano-industrial, seus saberes e comportamento). A
escola taylorista, enfim, é um equipamento fechado, não aberto aos dilemas públicos, à vida real do aluno. Afinal, estaria à serviço de um
mundo à construir.
Esta breve síntese do projeto educacional e escolar que permeou os projetos educacionais oficiais durante décadas em nosso país sugere
a ausência de condições para o desenvolvimento e promoção do protagonismo juvenil.
Primeiro, porque não dialoga com a peculiaridade do mundo juvenil. Não dialoga com situações heterogêneas, com as dúvidas, com os
desejos, com o mundo dos conflitos e das relações sociais.
Segundo, porque não se sustenta a partir de situações de aprendizagem da prática política e social. Não há lugar para situações onde o
jovem fale sobre si, onde temas sociais e pessoais são debatidos, não consegue articular o espaço escolar com o mundo extramuros.
Não por outro motivo que a pesquisa “A Voz das Crianças”, revelou que somente 8% das crianças e dos adolescentes entrevistados disseram ir à escola por prazer.
Uma escola aberta e promotora do protagonismo juvenil a relação entre alunos e professores e entre a escola e a comunidade, justamente porque abre espaço para os temas da vida dos alunos e da comunidade. Questões relativas à subjetividade, à personalidade dos alunos, à
cultura e aos projetos utópicos ganham relevância na estrutura curricular.
Por seu turno, os espaços escolares se reestruturam e são ampliados porque é a vivência concreta da sistematização das experiências
e dilemas dos jovens e seu confronto com os dilemas sociais que criam situações de aprendizagem para o exercício da cidadania. O espaço
da sala de aula torna-se insuficiente. É necessário que sejam construídos projetos de solidariedade comunitária que, por sua vez, tornam-se
temas de debate e sistematização entre alunos.
Então, a nova escola que emerge a partir do projeto de promoção do protagonismo juvenil pode assumir os contornos de uma nova institucionalidade pública, que responda à crise atual das instituições modernas.
No caso de São Paulo, a experiência do Orçamento Participativo constitui o cenário ideal para a experiência de construção desta nova
escola, possibilitando a ampliação da estrutura curricular (para além de temas transversais pré-definidos e estáticos), a articulação entre
escola-comunidade e a emergência de situações de aprendizagem concretas da prática política.
Neste ponto, Maria Eleonora D. Lemos Rabêllo observa a necessidade de estabelecermos um projeto pedagógico marcado pelo diálogo
com o jovem. O primeiro passo seria a descoberta de como acontece a aprendizagem do jovem. Uma das características dos grupos de jovens
e adolescentes, segundo a autora,
é que ele gosta de ser desafiado quando está aprendendo. Aprendem quando são desafiados a participar de experiências significativas. Nos adultos acontece um processo diferente: primeiro eles identificam os problemas para depois tentar resolvê-los por comparação com experiências
anteriores. Os jovens, ao contrário, sentem necessidade de vivenciar os problemas para depois buscar-lhes a solução. De forma que, a melhor
maneira de tornar a aprendizagem interessante para o jovem é propondo que identifiquem e depois tentem resolver os problemas. O primeiro
passo é identificar por quais temas os jovens têm mais interesses, quer de natureza informativa e ou reflexiva9.
Num esforço de síntese, o desenvolvimento de projetos voltados para a promoção do protagonismo juvenil exige a construção de uma
nova institucionalidade pública (que o acolha e que promova seu desenvolvimento social), a elaboração de um projeto pedagógico que parta
da peculiaridade do processo de desenvolvimento do adolescente e que amplie a noção de tempos e espaços de aprendizagem, além da necessária identificação dos temas de interesse pessoal e social dos jovens.
67
O Desafio do Educador
TEMAS E DILEMAS DO JOVEM BRASILEIRO
Em virtude do estado de “moratória” em que se encontra o jovem, este é o segmento social mais vulnerável à crise de instituições modernas analisadas no início deste texto.
Assim, é necessário destacar as questões que atingem mais duramente os jovens brasileiros, na busca da montagem de uma pauta que
oriente a construção de projetos de promoção do protagonismo juvenil. Não há como ser protagonista numa sociedade que nega seus direitos e onde as condições de sobrevivência e autonomia são extremamente limitadas.
A definição de temas e dilemas que constituem esta “pauta de referência” cumpre, ainda, uma outra função. Através dela é possível
perceber que os projetos que envolvam os jovens são, necessariamente, interdisciplinares. Sua elaboração e gestão implicam, ainda, na superação dos “gestores de programas ou projetos setoriais” na direção de “gestores públicos”, cujo foco é a comunidade e o cidadão e não
as metas setoriais ou dinâmicas administrativas da estrutura burocrática. Com efeito, quando a comunidade ou o cidadão é o foco da ação
pública – e não a sua demanda específica – não há como atendê-los de maneira segmentada, justamente porque as condições concretas
de vida de uma comunidade são determinadas por sua ação política, pelo acesso aos bens culturais e de promoção social, pela estrutura do
mercado de trabalho, e assim por diante.
Novamente, o novo equipamento público que promoverá o protagonismo juvenil necessita integrar programas, secretarias, numa estrutura interdisciplinar10.
Vejamos, portanto, ainda que sinteticamente uma possível pauta que subsidiaria projetos de promoção do protagonismo juvenil11:
(a) Violência
Segundo a pesquisa “A Voz das Crianças”, 43% das crianças e dos adolescentes da América Latina se sentem inseguros no lugar onde
vivem.
Estudo realizado pelo IBGE, a partir de dados coletados entre 1980 e 2001, as mortes causadas por violência diminuem consideravelmente a expectativa de vida dos brasileiros. No caso dos homens, tal fenômeno reduz em 2,4 anos a expectativa de vida.
Os óbitos causados por violência atingem sobremaneira os jovens do sexo masculino entre 15 e 24 anos de idade, no Estado de São Paulo.
Segundo a pesquisa do IBGE, São Paulo apresenta o maior índice de mortes violentas de jovens de todo o país. Em 2000, as mortes violentas
de jovens atingiu 85,6% do total de óbitos registrados para jovens entre 15 e 24 anos.
A tabela abaixo revela o total de homicídios ocorridos em São Paulo e sua evolução, por faixa etária, entre 1980 e 1995.
MUDANÇA DE TAXAS DE HOMICÍDIO E IDADE (SÃO PAULO, 1980-95)
Fonte: Ministério da Saúde/ DataSus
Idade
Total
0-9
10-14
15-17
18-21
22-24
25-29
30-34
35-39
40-44
45-49
50-59
+60
Hom/100 mil
hab. (1980-4)
18,8
1,0
2,2
18,3
38,3
39,6
36,3
33,33
27,9
23,3
19,4
14,6
9,0
Hom/100 mil
hab. (1985-89)
26,6
1,0
3,8
33,6
62,4
55,3
50,6
45,4
38,0
29,1
21,3
16,2
9,9
Hom/100 mil
hab. (1990-95)
30,4
1,0
3,5
38,3
73,3
69,8
61,7
48,7
40,8
31,3
24,4
16,0
8,4
Mudança (%)
(1985-89/
1980-84)
41,4
0
72,7
83,61
62,92
39,65
39,39
36,34
36,20
24,89
9,79
10,96
10,0
Mudança (%)
(1990-95/
1985-89)
14,2
0
-7,8
13,99
17,47
26,22
21,94
7,27
7,37
7,56
14,55
-1,23
-15,15
Mudança (%)
(1990-95/
1980-84)
61,7
0
59,0
109,29
91,38
76,26
69,97
46,25
46,24
34,33
25,77
9,59
-6,67
Vários estudos sugerem que a violência é um fenômeno urbano e que não possui correspondência com renda ou taxa de desemprego12.
O fenômeno da violência contra jovens é internacional. Nos EUA, apenas 27% das mortes de jovens entre 10 e 19 anos possuem causa
naturais. Entre 1985 e 1991, 90% dos assassinatos de jovens nesta faixa etária envolveram arma de fogo (aumento de 154% no período).
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O Desafio do Educador
No caso das ações violentas cujos autores são adolescentes, o principal fator desencadeador é o uso de drogas, como revelam pesquisas
recentes sobre o sistema de atendimento ao adolescente autor de ato infracional13. Por sua vez, a motivação ao uso de drogas é o sentimento
de abandono familiar. Lembremos que a porta de entrada para uso de drogas pesadas entre jovens é a cerveja, muitas vezes incentivada pelos
pais dos usuários.
(b) Ausência de Perspectiva (desemprego juvenil e dificuldade de acesso à educação)
Apenas 33% dos adolescentes de 15 a 19 anos freqüentam o ensino secundário, o acaba por impelir os jovens ao mercado informal e à
condições precárias de trabalho.
Os jovens, nesta faixa etária, são os mais atingidos pelo desemprego dos últimos cinco anos. Em virtude da pouca experiência profissional e redução dos postos de trabalho, 50% dos jovens entre 15 e 24 anos de idade que procuram emprego atualmente não conseguem lograr
qualquer intento, revelando-se o segmento social mais vulnerável ao fenômeno.
(c) Sexualidade, saúde e gravidez precoce
Segundo dados do Ministério da Saúde, a idade de iniciação sexual vem diminuindo nos últimos dez anos. Uma das conseqüências perversas desta realidade é o aumento de disseminação do vírus HIV entre as jovens com 13 a 19 anos de idade em nosso país. Em 2000, 56% dos
casos envolviam este segmento social.
Outra conseqüência que atinge brutalmente os jovens é a gravidez precoce. Jovens entre 14 e 19 anos apresentam o maior crescimento do
índice de gravidez nos grandes centros urbanos do país. Todas outras faixas etárias apresentam declínio do índice, desde 1980.
A ausência de diálogo sobre o assunto é apontado nos estudos especializados como principal causa da gravidez precoce. Em outras palavras, a causa é a desinformação. Nos EUA 64% das jovens grávidas precocemente informaram que nunca haviam discutido sobre métodos
anticoncepcionais na família. Naquele país, 10% das meninas entre 15 e 19 anos engravidam todos os anos14.
A coordenação do programa DST-AIDS, do Ministério da Saúde de nosso país avalia que o ingresso precoce na vida sexual das jovens deve
ser associado ao abandono de preservativos após a estabilização do relacionamento amoroso como perfil de comportamento.
Há, contudo, inúmeras experiências recentes em nosso país que procuram responder e enfrentar os diversos problemas destacados acima.
Este é o caso do trabalho desenvolvido pelo grupo instrumental Uakti, que envolve jovens do Triângulo Mineiro e nordeste do país. O
grupo recupera instrumentos regionais, orienta sua fabricação e desenvolve projetos musicais com jovens. Ao redor de 60 jovens da Favela da
Maré, e com o apoio do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, se apresentam nos espetáculos do grupo Uakti no Rio de Janeiro e São Paulo cujo título
é Dança das Marés.
Na favela da Rocinha, um coral de cantores mirins lançou recentemente um CD, apoiado pelo compositor João Bosco.
Na mesma linha de atuação, professores da Baixada Fluminense criaram uma escola de arte envolvendo jovens.
A arte, como afirma a artista plástica Maria Helena Andrés, atua sobre as emoções e a sensibilidade humana, tornando o crescimento
dos jovens um processo universal. Estudos recentes revelam, inclusive, que projetos de arte e lazer são os mais eficazes na ressocialização de
jovens autores de atos violentos.
No campo educacional, vale destacar as experiências de São Bernardo do Campo. Um conjunto de ações integradas compõem um dos
projetos públicos mais férteis e inovadoras na promoção do protagonismo juvenil. Cito alguns: Tira Dúvidas, onde um médico-visitante de
uma escola pública discute temas relacionados com sexualidade (os temas são retirados de uma caixa fechada onde os alunos colocam
papéis dobrados onde inscrevem o tema que desejam debater); Mix Esportes Radicais, onde, ao longo de um dia, jovens do município apresentam grupos de música (rock ou hip hop) e desenvolvem esportes radicais (alpinismo, bike, skate); Sons da Juventude, quando as escolas
municipais, uma vez por mês, se abrem para realização de apresentações musicais de jovens, das 18 às 22 horas.
Em Belo Horizonte, a ong Oficina de Imagens15 desenvolve vários projetos voltados para o protagonismo juvenil: Latanet, um projeto
onde jovens desenvolvem equipamentos óticos para registrar e discutir sua realidade social: da câmera escura até a utilização da internet;
Programa Prevenção à Violência Sexual Infanto-juvenil, onde monitores promovem discussões sobre o ECA com vários adolescentes de escolas públicas e privadas. Este projeto possui três fases: a) reflexão e discussão sobre o ECA e sexualidade (oficinas de vídeo, site e jornal), b)
montagem de ações comunitárias; c) execução de projetos de intervenção a partir dos produtos que os próprios jovens produziram.
São Paulo poderá dar nova dimensão a todas essas experiências recentes que o país desenvolve a partir da construção do Orçamento
Participativo, envolvendo diretamente os jovens a partir de suas escolas. Seria uma dimensão nova na medida em que articula uma nova
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O Desafio do Educador
concepção de educação e aparelho escolar, amplia a noção de currículo, cria espaços participativos a partir da cultura e desejos dos jovens,
repensa a prática política a partir da particularidade da identidade juvenil.
Pelo OP, poderemos recriar a noção de espaço e prática política.
NOTAS:
do adolescente: a conquista da identidade (onde o adolescente debate consigo mesmo e define
escolhas), o pré-fechamento (aceitação de planos de outrem, sem questionamentos), a mora1 exto produzido para o seminário Estratégias para a implantação do OP Criança na Cidade de tória (como no primeiro caso, debate-se com as decisões, mas exita em definir compromissos
São Paulo, realizado em São Paulo, entre os dias 05 e 07 de dezembro de 2002, organizado pela mais rígidos) e difusão (não se compromete com qualquer decisão, tornando-se incerto ou sem
Coordenadoria de Orçamento Participativo (COOP), órgão vinculado à Secretaria de Governo da objetivos).
Prefeitura de São Paulo.
7 Ver SHORTER, Edward. A Formação da Família Moderna. Lisboa: Terramar, 1995.
2 Define-se, internacionalmente, aquele que possui entre 10 e 20 anos de idade, confundindo-se com o ingresso à puberdade, à vida sexual fértil. Na Antiguidade, adolescente era aquele 8 Idem, ibidem, p. 228 e 291.
que possui de 8 a 35 anos de idade. Além da definição legal, considera-se, no ocidente, que um
adolescente ingressou na vida adulta a partir dos critérios sociológicos (auto-suficiência na es- 9 RABÊLLO, Maria Leonora. O que é protagonismo juvenil? , disponível em http://www.violencolha de carreira ou para contrair matrimônio) e psicológicos (maturidade cognitiva, emocional, ciasexual.org.br/textos/PDF/protagonismo_juvenil_eleonora_rabello.pdf (em 28/11/02).
desenvolvimento de sistema de valores e formação de relacionamentos). No Brasil, 20% da po10 A equipe técnica da CPP elaborou, com esta intenção, uma tecnologia de gestão pública intepulação possui entre 10 e 19 anos de idade (32 milhões de jovens).
grada denominada Gestão Territorial Participativa (GTP), apoiada em Unidades Multifuncionais
Territoriais (UMT) que integrariam equipes multidisciplinares ou interdisciplinares, antes locadas
3 Ver CALIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
em organismos especializados da administração pública. Uma síntese dessa metodologia pode
4 Ver PAPALIA, Diane & OLDS, Sally. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artes Médicas, ser acessada em www.portalcpp.com.br .
2000, p. 315.
12 Ver, a respeito, SAPORI, Luís Flávio & WANDERLEY, Cláudio Burian, “A relação entre desem5 Cito Kohlberg como ilustração para compreendermos a peculiaridade desta fase de desenvol- prego e violência na sociedade brasileira: o mito e a realidade”, In Cadernos Adenauer II: A violênvimento. Contudo, estudos recentes questionam a relação entre capacidade de julgamento e cia do cotidiano. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
atitude concreta moral. Em suma, muitos jovens tecem avaliações morais complexas, com base
na noção de justiça como eqüidade, mas não agem necessariamente em concordância com o jul- 13 Este é o caso de pesquisa realizada pelo Instituto Lumen (PUC-Minas) e a ong AMENCAR,
gamento teórico. Daí a necessidade de aprofundamento de projetos pedagógicos que vinculem sobre o sistema mineiro de atendimento ao adolescente autor de ato infracional, no final dos
anos 90 e início deste século.
os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.
6 Ressaltaria, ainda, o conceito de crise de identidade que envolve o adolescente, segundo Eri- 14 Ver PAPALIA, Diane & OLDS, Sally. Desenvolvimento Humano, op. Cit., p. 350 e 351.
kson. O psicólogo James Marcia, apoiando-se nesta teoria, sugere quatro estados de identidade
15 Ver site www.oficinadeimagens.org.br/projetos/largada .
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O Desafio do Educador
Sobre o Autor
Rudá Ricci é sociólogo e doutor em ciências sociais. Diretor do Instituto Cultiva (www.institutocultiva.com.br ), que se dedica há mais
de uma década à implantação e estudos na área educacional, em especial, voltada para a consolidação da cidadania ativa e capital social.
Começou sua trajetória na área educacional como membro da equipe de Paulo Freire, logo após o retorno do exílio deste que foi o maior
educador brasileiro.
No início do século XXI, quando o país discutia mudanças no sistema de ensino, foi convidado por 154 municípios para auxiliar na discussão sobre a diferenciação entre sistema de ciclos e seriação.
Em seguida, foi coordenador técnico na implantação do sistema de formação continuada que envolveu 135 mil professores da rede estadual mineira (SIAPE).
Autor de dezenas de livros e artigos técnicos sobre educação publicados no Brasil, Argentina, México. Costa Rica, Portugal e Espanha,
entre outros, sendo alguns aqui publicados.
Elaborador do programa Orçamento Participativo Criança (que resultou numa publicação pela Editora Autêntica, de Belo Horizonte).
Assessorou a implantação do OP Criança em Lauro de Freitas e Governador Valadares, além de prestar assessorias pontuais em São Paulo,
Recife e para o programa OP Jovem de Rio das Ostras (RJ).
Foi formulador e consultor do programa de Formação para a Cidadania de Jovens, para a Pastoral da Juventude Leste II (Minas Gerais e
Espírito Santo).
Foi consultor na formatação do programa de especialização e formação de lideranças sociais da Cáritas Brasileira.
Foi consultor para avaliação pedagógica do Circo de Todo Mundo (atendimento de adolescentes em situação de risco de Minas Gerais).
Foi consultor na formulação do projeto pedagógico das escolas cooperativas vinculadas à OCEMG e OCB.
Foi consultor do Programa de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e consultor para avaliação de programas de
desenvolvimento do Banco Mundial.
Foi assessor nacional da Secretaria de Formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Foi consultor nacional do Programa de Educação Fiscal da Receita Federal do Brasil/ESAF. Professor do mestrado em educação, com área
de concentração em currículo.
Assessora as 11 Escolas da Cidadania do Estado de São Paulo, projeto apoiado pela Cáritas Brasileira e dioceses da região.
Consultor na implantação das Escolas da Cidadania de Maringá e Contagem, dentre outras.
Colaborador da Escola de Governo da USP.
Colaborador do programa de Formação Continuada de professores do Ensino Médio do Espírito Santo.
Consultor na implantação da escola em tempo integral e elaboração do currículo municipal de ensino básico de Governador Valadares.
Consultor das secretarias de educação de Volta Redonda (RJ), Belo Horizonte, Betim, Contagem, Governador Valadares, dentre outras.
Consultor educacional do Colégio Santo Agostinho (Belo Horizonte), Colégio Batista (Belo Horizonte), da rede Escravas do Sagrado Coração de Jesus, congregações franciscanas e da Associação de Escolas Católicas.
Consultor do programa de formação dos delegados do orçamento participativo de Recife.
Consultor de formação da Coordenadoria de Orçamento Participativo e da Coordenadoria de Participação Popular do município de São
Paulo.
Consultor do programa de formação de conselheiros do Conselho Estadual de Direitos da Criança e Adolescente do Piauí.
Consultor do programa de formação de extensionistas rurais de Minas Gerais e do Ceará (Projeto Inovar).
Consultor do Sind-UTE em Minas Gerais.
Consultor do Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Municipal de São Paulo (Sinesp-SP).
Foi condecorado com a Medalha Grande Mérito Educacional de Minas Gerais.
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