Como definir o que seja a filosofia? Qual seria o caminho mais fácil de compreender o seu sentido? Devemos partir de uma análise etimológica? De uma concepção específica dada por um dos grandes nomes da filosofia? Ou seria melhor partir da experiência filosófica básica? Abrir os nossos dicionários e buscar o sentido da palavra filosofia parece não ser de grande utilidade. A definição dada pode ser caracterizada como uma tautologia, um mero andar em círculos. A definição mais comum de “amor ao saber” já se encontra contido no próprio substantivo, formado pela junção das palavras grega philos (amizade ou amor) e sophia (sabedoria, saber). Começar pela definição dada por um filósofo em especial pode ser um bom caminho, desde que se mantenha em mente o caráter particular desta definição, já que, como alerta o filósofo italiano Nicola Abbagnano (1901-1990), “disparidade das filosofias tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de ‘filosofia’.” Poderíamos, então, tentar começar pela experiência filosófica básica que, experienciável por qualquer indivíduo, poderia ser definida como o desconforto com que aquilo que se nos apresenta numa primeira visada, como o óbvio, o comum, o cotidiano. Para melhor entendermos este desconforto com o óbvio temos de proceder com algumas diferenciações entre esta perspectiva básica da realidade e a “segunda visada” própria da experiência filosófica, ou, para dizer de modo mais simples, entre o senso comum e a atitude filosófica. O senso comum e atitude filosófica Na nossa existência cotidiana fazemos uso de uma série indeterminada de conhecimentos, exercemos constantemente nossa capacidade de avaliar situações, pessoas e coisas do mundo à nossa volta. Negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos a partir de uma base de conhecimento comum, que entendemos ser de domínio de todos e da qual não duvidamos. Esta base de conhecimento nos informa modos de ação e comportamento em cada uma das várias circunstâncias em que podemos nos encontrar no nosso dia a dia: escola, trabalho, cinema, casa, etc. Esta base comum de fundamental importância na nossa vida diária origina-se da experiência cotidiana e é adquirida de forma espontânea através de nosso contato com situações, pessoas e coisas da realidade circundante; a partir dos costumes, práticas e tradições da cultura a qual nos encontramos ligados. A esta tipo de conhecimento compartilhado denominamos de senso comum. Todos nós somos dotados de um senso comum, não obstante o fato de que este varie de sociedade para sociedade, de grupo social para grupo social ou, até mesmo, de grupo profissional para grupo profissional. Adquirido desde a nossa infância, apresenta-se como um saber imprescindível, sem o qual não seria possível nos orientar em nossas atividades mais corriqueiras. No entanto, embora seja de fundamental importância, este tipo de saber é limitado, podendo ser caracterizado como uma leitura superficial da realidade circundante. Os dados com os quais operamos a partir deste tipo de conhecimento são, por assim dizer, os mais básicos da nossa consciência, caracterizando-se como aquilo que o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) chama de atitude natural. O brasileiro Newton Aquiles von Zuben define esta leitura superficial da realidade dizendo que: A atitude natural é aquela na qual habitualmente vivemos. Nesta atitude estamos abertos e dirigidos para a realidade exterior, para o mundo no qual existimos circundados por coisas, pessoas e fatos. Caracteriza esta atitude a crença espontânea nesta realidade. Se aceita, comumente, que cada homem possui um conjunto de representações do mundo, ideias gerais, ou, no sentido vulgar, uma “filosofia espontânea”. No entanto, esta filosofia espontânea é, muitas vezes, incoerente, cada um de nós recebe crenças de origens diversas. Ocorre mesmo que ideias contraditórias coexistem sem que disso se tenha consciência ou que se perceba incompatibilidade entre elas. Esta filosofia espontânea é sempre não refletida, não crítica. Diante disso é mister averiguar se o indivíduo quer atingir o domínio crítico e a consciência dessas ‘opções filosóficas’, ou se deseja permanecer nesta atitude ingênua. A esse tipo de atitude ingênua contrapõe-se a atitude filosófica. Ou seja: em vez da aceitação tácita da realidade tal como nos é dada, procura-se a sua problematização. Em vez, por exemplo, das corriqueiras perguntas “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, que pressupõem sistemas comuns de organização do tempo, passa-se a questionamentos mais profundos: “O que é o tempo?” Quando lanço as perguntas “que horas são?” ou “que dia é hoje” eu pressuponho respostas exatas, baseadas em métodos conhecidos de organização do tempo. O que mais eu acabo por “comprar” com a informação das horas ou do dia é aceito sem questionamentos. Como afirma a autora paulista Marilena Chauí, no simples aquiescer da resposta afirmam-se várias crenças silenciosas: “acredito que o tempo existe, que ele passa, que pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido e o futuro, desejado ou temido.” Uma inocente pergunta, contém, portanto, vários pressupostos não questionados por nós. Nossa vida cotidiana é toda composta de crenças silenciosas, por aceitação tácita de evidências que não questionamos por nós parecerem óbvias. “Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência, na vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.” No entanto, no momento em que tomamos consciência da existência de tais crenças silenciosas e do papel desempenhado por elas em nossa vida cotidiana, no momento em que substituímos as perguntas “que horas são?” ou “que dia é hoje?” pela pergunta “o que é o tempo?”, estamos a tomar uma atitude filosófica, que se caracteriza pelo distanciamento da vida cotidiana e pela indagação das crenças e sentimentos que a alimenta. Atingimos o que se pode chamar de o sentido da ambiguidade, uma desconfiança com aquilo que se mostra como a realidade circundante, com aquilo que aceitamos como corriqueiro, óbvio, dado como certo. Substituímos a aceitação tácita, a crença ingênua na realidade do mundo, pela dúvida: será? O questionar e a filosofia Como afirma Chauí em introdução à sua obra Convite à Filosofia, uma das respostas possíveis à pergunta “O que é a Filosofia?” poderia ser: “a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana, jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido”. Para a autora paulista seria possível discernir duas faces da atitude filosófica, uma negativa e outra positiva. A negativa caracterizar-se-ia pela recusa do senso comum, dos pré-conceitos, dos pré-juízos, daquilo que todo mundo diz e pensa. A positiva diria respeito a certa apropriação da filosofia através da indagação, da decisão de ir além dos dados básicos do mundo circundante: o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores? Espanto e reflexão A atitude negativa é o momento do distanciamento ou, para utilizar uma definição do filósofo macedônio Aristóteles (384 a.C - 322 a.C), o momento do espanto, do estranhamento radical em relação àquilo que considerávamos uma obviedade. Von Zuben alerta-nos para o caráter radical deste estranhamento dizendo que: Estranhar-se perante algo, perante as coisas, é estranhar-se delas, fazer-se estranho a elas. Na atitude natural há um contato ingênuo com as coisas, não há verdadeiros problemas, não há aporia, tudo parece familiar, evidente, inquestionável. Na estranheza ocorre a ruptura, e o trato habitual com as coisas é rompido. Ao nos surpreendermos percebemos logo que as coisas são estranhas a nós e nós a elas. Estranhas no sentido de diferentes, outros; separamo-nos delas. Na estranheza desvelamos o que a familiaridade encobria. Deste contraste entre o familiar e o estranho surge a questão. Na passagem da atitude natural, cotidiana, onde nada é problemático, à atitude teórica ocorre, e mais, é necessária, uma torção, uma conversão que desliga o indivíduo do comércio ingênuo com as coisas. Da atitude natural à atitude teórica ocorre a conversão. Esta conversão é a separação em relação ao que precede e adesão ou enfrentamento do que vem.” A “adesão ou enfrentamento do que vem” de que nos fala von Zuben seria justamente a face positiva da atitude filosófica; seria justamente o momento em que o pensamento, voltando-se sobre si mesmo e sobre a realidade circundante, procura transformar o espanto em compreensão, a ambiguidade em sentido. Passa-se, assim, do estranhamento com o mundo circundante à própria capacidade de pensar, um movimento radical de volta do pensamento sobre si mesmo: reflexão (do latim reflectere: fazer retroceder, voltar atrás). Respondam em seus cadernos as questões abaixo: 1) Como definir o que deseja a filosofia? 2) Qual a diferença entre senso comum com a atitude filosófica? 3) Caracterize a importância do questionar e do espanto para a filosofia.