O orçamento público como instrumento à efetividade dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro Paulo Roberto Thomsen Zietlow Procurador do Estado do RS, ex-Superintendente da SUSEPE/RS, ex-Conselheiro Penitenciário/RS e Mestrando em Direitos Humanos pela UniRitter UniRitter Laureate International Universitles [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta uma possível correlação entre deficiências dos serviços públicos ofertados, na área prisional brasileira, com a primária tomada de decisões orçamentárias pelos gestores públicos, uma vez que as despesas públicas são relevantes instrumentos de viabilização e efetividade dos direitos humanos dos encarcerados no Brasil. Palas-chave: Orçamento; Ressocialização;Superlotação. Seção I 1. Objeto O presente artigo tem como objeto uma possível vinculação das precárias condições de cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil com a deficiente destinação de recursos orçamentários à manutenção do nosso sistema prisional, cuja população já é a terceira maior do mundo. Nele, analisa-se o parcial X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 descumprimento da LEP frente à insuficiente destinação de recursos à custódia dos apenados, tendo como consequência, a violação dos direitos fundamentais da dignidade dos reeducandos. Em assim sendo, expõem-se a incapacidade - ou a opção gerencial- do estado brasileiro em ressocializar os seus presos, em visível afronta às tendências modernas das funções das penas privativas de liberdade, surgidas após questionamentos do estado liberal burguês e, entre nós, materializadas na LEP. 2. Metodologia O presente estudo desenvolve-se à partir da coleta de dados oficiais sobre recursos destinados ao sistema penitenciário nacional, comparando valores orçados com informações expostas na imprensa e por autoridades sobre a realidade prisional do país. Com base nos dados coletados, utilizando-se o método dedutivo, procura-se obter conclusões sobre a existência de uma relação entre as variáveis investimentos públicos e prestação dos serviços penitenciários. O estudo baseia-se fundamentalmente em expressões numéricas e suas resultantes em estatísticas e informações expressando a realidade prisional. Seção II 1. Introdução Marco na história, a Revolução Francesa viu surgir no horizonte da humanidade, o triunfo do pensamento liberal X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 clássico. Com a ascensão política da burguesia, suprimido estava, definitivamente, o modo de produção feudal. A consagração do modo de produção capitalista também implicou na modificação das relações sociais e de poder, projetando-se nas relações jurídicas e administrativas. Em 1929, outro fato histórico mudaria o curso do pensar humano: a Grande Depressão iniciada com a quebra da bolsa de valores de Nova York. O crash da Bolsa determinou uma nova postura nos pensamentos econômico e social, produzindo inevitável reforma no pensamento liberal clássico do laissez faire. Da nova realidade econômica, acrescida das atrocidades cometidas nas duas grandes guerras mundiais, surgiu a concepção de “Estado do Bem-Estar Social” (Welfare State). O momento posterior à segunda guerra marcaria definitivamente a transformação das concepções de atuação do poder estatal nos campos político, econômico, social e de preservação dos direitos humanos. A primeira guerra, a crise econômica iniciada em 1929, a ascensão e a queda do Nazifascismo trouxeram consigo uma noção de superação do estado liberal clássico, uma vez que este se tornou incapaz de responder a indagações sobre desemprego em massa e das atrocidades cometidas pelos regimes totalitários. O modelo liberal clássico sofreu um revez, na medida em que o Estado mínimo foi incapaz de produzir respostas satisfatórias às demandas sociais e de oposição à violação dos direitos humanos. Neste contexto, o Estado passou a desemprenhar um papel de X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 construtor e aplicador de políticas públicas, com vistas à superação de desigualdades e de efetivação de direitos inerentes à condição de ser humano. A evolução do pensamento humano, e a sua forma de ver e entender os fatos sociais, também se projetou na sanção penal. Com o advento da Idade Moderna mudanças também ocorreram no Direito Penal. Por influência do Iluminismo, cujos questionamentos sobre as funções das penas começaram com a publicação da obra de Beccaria (Dei delliti e delle pene), a Europa do século XIX, veria surgir várias tendências pela defesa da humanização do encarceramento. Na Criminologia, não obstante os movimentos anteriores, o pós segunda guerra, seguindo os postulados do Welfare State, consagrou correntes filosóficas que tinham na sanção penal não uma mera condição para o castigo do infrator, mas um instrumento para a sua ressocialização. Em suma: aquele que viola a lei também é um sujeito de direitos. Desta forma, a prisão, como pena, passou a ser vista como um ente que objetiva a reintegração social e, por via de consequência, a própria proteção da sociedade contra a violência. Ressocializar, além de respeitar os direitos humanos dos apenados, também preveniria o pensamento crime. Dentro mundial que, desta no tendência Brasil, ainda do que tardiamente, foi promulgada a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP).Neste sentido da humanização das penas privativas de liberdade, vários X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 são os termos constantes na LEP. 2. A atividade financeira do Estado e os custos orçamentários das políticas públicas As modernas tendências ideológicas de atuação do poder público, cada vez mais intervencionista, tem um custo. Para que a atuação estatal tenha eficácia, com a efetiva realização das políticas públicas no mundo dos fatos, os seus resultados dependem do quantum alocado em recursos materiais e humanos. Não há como se fazer políticas públicas concretas sem a correlata destinação de verbas orçamentárias, como principal forma de viabilizar os respectivos serviços públicos correspondentes. As necessidades públicas só satisfação com a correlata podem obter a efetiva destinação de recursos públicos, sob pena de se tornarem mera carta de propósitos. A ação planejada pelo Estado à manutenção de suas atividades materializa-se no orçamento público. A priori, através das rubricas orçamentárias, podemos avaliar as prioridades da ação estatal e o seus possíveis efeitos concretos. 3 As condições dos sistemas penitenciários nacional e do RS: a superlotação Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em 2007, a população carcerária brasileira alcançou a expressiva quantia de trezentos e sessenta mil, quinhentos e trinta e nove detentos. Para o citado órgão, X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 integrante da estrutura do Ministério da Justiça, para o mesmo ano, o número de vagas projetadas para ocupação pelos detentos era de 262.690 mil. Em números, portanto, evidenciado o elevado déficit de vagas no sistema, com a consequente superpopulação dos presídios. Na relação das variáveis apenado/vagas, naquele ano, o número oficial de seu déficit, aproximou-se da expressiva quantia de 148 mil. Passados menos três anos, segundo relatórios do citado DEPEN, seguindo a tendência de crescimento exponencial da massa carcerária brasileira, esta atingiu o número de 417 mil e 112 detentos. Incluindo os detidos em cadeias públicas, num total de 496 mil e 251 pessoas sob a custódia penal do Estado. Agência Brasil, com base em dados do Ministério da Justiça, em 24/03/2014, apontando crescimento de 400% da população carcerária nacional em 20 anos, publicou a seguinte e ilustrativa matéria: Dados do Ministério da Justiça (MJ) mostram o ritmo crescente da população carcerária no Brasil. Entre janeiro de 1992 e junho de 2013, enquanto a população cresceu 36%, o número de pessoas presas aumentou 403,5%. Sobre a perspectiva do déficit de vagas em nosso sistema penitenciário, informativo do sítio de noticias G1, com base em dados obtidos juntos às administrações prisionais dos estados, em 22/01/2014, aponta o seguinte: “O Brasil tem hoje um deficit de 200 mil vagas no sistema penitenciário”. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 A evolução do número de encarceramentos em volume inferior à oferta de vagas, tem como consequência a superlotação prisional, variável de grande relevância na deterioração física dos estabelecimentos. A deterioração das condições de prestação do serviço público penitenciário, por sua vez, se projeta, a priori, na reincidência criminosa, cujo índice para egressos do sistema prisional brasileiro, no ano de 2014, foi de 47,4%, segundo do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Outra consequência das precárias condições do nosso sistema prisional é o domínio dos estabelecimentos penais por facções criminosas. Acompanhando o contexto nacional, segundo dados oficiais da SUSEPE, obtidos em sítio de consulta pública, o sistema prisional gaúcho continha, em 08 de abril de 2010, uma população de vinte nove mil, setecentos e dezoito detentos, entre definitivos e provisórios. No período 1995/2009, a população de aprisionados no Rio Grande do Sul cresceu em percentuais superiores à geração de vagas no sistema. Além da carência de vagas, a evolução de pessoal da SUSEPE também não foi adequada ao acréscimo da população sob sua custódia. A figura abaixo, elaborada pelo próprio autor, em função de pesquisas junto ao Departamento de Planejamento da SUSEPE, bem demostra o descompasso entre crescimento de custodiados, pessoal e vagas geradas pelo sistema penitenciário do RS: X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 FIGURA 1: Evolução população carcerária, vagas e servidores SUSEPE entre 1995 e 2009. Evolução da População carcerária e Vagas no Sistema Prisional 30.000 28.388 VAGAS NO SISTEMA 26.591 Pop. Carcerária 25.416 Agentes Penitenciários 25.000 23.683 22.639 20.800 19.801 20.000 16.692 18.059 14862 15.000 12.402 10.984 12.517 13.255 13761 11.071 12.267 12.557 17.108 15.665 15.897 16.037 16.010 16.278 2.079 2.078 2.120 2.101 2.078 2.451 2.472 2.442 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 13.784 14.351 11.356 10.000 8.155 8.728 9.584 5.000 0 1.512 1.475 1.464 1.463 1.439 1.223 1609 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 Fonte: Aquivos pessoais do autor. Base de dados: Deplan/SUSEPE 4. O custo do sistema prisional: a necessidade de maiores investimentos Como referido no início deste artigo, as necessidades públicas são satisfeitas com a respectiva prestação de serviços públicos. A ação planejada pelo ente público materializa-se com dispêndios previamente estabelecidos nos orçamentos. A insuficiência de recursos, via-de-regra, implica deficiência na prestação do correlato serviço, ainda que a capacidade de gestão seja ampliada. Os limites orçamentários em descompasso - e em nível inferior- com as demandas sociais, inevitavelmente trará a insuficiência e/ou a decomposição do serviço estatal. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 Para atendimento de 28.829 detentos, no 2009, a SUSEPE/RS contava como uma previsão orçamentária de R$ 334,65 milhões, segundos dados oficiais de consulta pública, e com a disponibilidade de 3.058 servidores. No orçado; incluídos os recursos para gastos de custódia, transporte, fornecimento de alimentação, serviços de saúde, trabalho, atendimento psicológico e social. Em dados do DEPEN, em relatório já citado, o gasto anual para custódia de toda a população carcerária brasileira, no ano de 2007, foi de R$ 6.983.236.000,80. Nestes valores estão incluídos todos os custos de custódia, pessoal, transporte, alimentação e saúde. A média mensal, na relação custos/detento, foi de R$ 1.580,00. O valor inferior ao salário mínimo adequado à satisfação de necessidades de uma pessoa, previsto pelo DIEESE, em seu Relatório de Estatísticas, para julho de 2009, cujo valor seria de R$ 2.046,99. Para atender à crescente demanda do sistema penitenciário gaúcho, a Engenharia Prisional da SUSEPE, dentre outras medidas, no ano de 2009, elaborou projeto para a construção de um estabelecimento penal na cidade de Bento Gonçalves/RS. A referida construção se daria em uma área total de 6.857,16 metros quadrados, com a geração de 336 novas vagas, no regime fechado. O custo total inicial orçado foi R$ 11.070.752,90, conforme o mesmo Deplan da SUSEPE. Para o seu pleno e correto funcionamento, X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 dentro do que determina a LEP, a nova casa prisional demandaria novos 109 agentes de segurança, 9 auxiliares e 6 monitores. Em um cálculo simples, tomando-se por base o custo na relação construção/preso do planejado presídio de Bento Gonçalves/RS, sem incluir nestes valores a totalidade das despesas de funcionamento de serviços exigidos pela LEP, e considerando como sendo de duzentas mil a carência de vagas no sistema prisional brasileiro, o país precisaria aportar, no ano de 2014, um investimento total de seis bilhões e seiscentos milhões de reais, aproximadamente. (Nota: cálculo obtido pelo valor de construção de R$ 11.070.752,90 dividido por 336 vagas, cujo resultado é de R$ 32.948,66 por vaga x 200.000 vagas de déficit= R$ 6.589.733,86). Seção III Conclusões Diante dos números apresentados neste artigo, ainda que de forma parcial e perfunctória, já é forçoso concluir que o serviço público penitenciário, diante de sua notória precariedade, necessita do aporte de expressivos recursos orçamentários e em valores muito maiores dos que lhe foram destinados nos últimos anos. Ademais, tendo em visita a progressão histórica experimentada pela população prisional brasileira, em percentuais muito superiores ao próprio crescimento populacional do país, estes recursos deverão ser ainda maiores, não se limitando ao próprio resgate do passivo existente. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 A efetividade dos postulados teleológicos da LEP, e do moderno entendimento das funções das pena, dependem de uma efetiva opção política-administrativa de investimentos em uma importante área da segurança pública: o sistema prisional. Para que este não venha a ser dominado totalmente pelo crime organizado, cuja atuação também se projeta para além dos muros dos estabelecimentos prisionais, serão necessários pesados investimentos. Não é por demais se afirmar que se torna ineficaz a adoção de uma política de combate ao crime pelo postulado do Direito Penal Máximo se o mesmo poder público que edita normas jurídicas criminalizadoras de condutas sociais, a pretexto de combater a violência, não destina a exata dimensão de recursos para o seu sistema prisional. O resultado do deficiente serviço de custódia e reinserção de apenados no Brasil, também é gerador de mais violência e segregação social e inicia na opção feita pelo próprio Estado ao elaborar a sua peça orçamentária. Uma destinação inapropriada de recursos para o sistema penitenciário implica, necessariamente, em um serviço público incapaz de atender a sua demanda, cada vez mais crescente. As disposições da LEP permanecem – e permanecerão - letra morta sem a dotação de recursos orçamentários necessários à sua efetividade. Não obstante, embora necessário, resta a seguinte indagação: A sociedade brasileira estará disposta a fazer volumosos X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 aportes de recursos em seu sistema prisional para incluir socialmente aqueles que ela legou à marginalidade? Referências BRASIL, Ministério da Justiça. DEPEN. Relatório anos 2007 e 2010. Disponível em <http://www.justica.gov.br/portalpadrao/> DIEESE..Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socieconômicos. Cesta Básica Nacional. 2014. Disponível <www.dieese.org.br> NAÇÕES UNIDAS. PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. p. 1290). Disponível em <latinamerica.undp.org>), RIBEIRO. Stênio.População carcerária aumentou mais de 400% em 20 anos. Agência Brasil. 2014. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014> REIS, Tiago. G1. Brasil tem hoje deficit de 200 mil vagas no sistema prisional. 2014. Disponível em <g1.globo.com/brasil/noticia/2014.> RIO GRANDE DO SUL. SUSEPE. Relatório Serviços Penitenciários. 2010. Disponível <http://www.susepe.rs.gov.br/capa.php> X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 em X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014