46 Momento Cultural (*) Elisabeto Ribeiro Gonçalves A famigerada alegria do conhecimento (Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. João, 8:32) Para Wellington Morais de Azevedo, amigo e médico famigerado Uma tentativa de analisar e interpretar “Famigerado”, mais um exemplo do estilo inovador de Guimarães Rosa (Primeiras Estórias Ed. Nova Fronteira, 2005) O narrador, tranquilo em sua casa, num arraial qualquer, é alertado pelo ruído de um tropel. Curioso, chegou-se à janela para deparar com quatro cavaleiros. Um deles, que parecia chefiar a tropa, postou-se rente a sua porta, equiparado, exato, enquanto os três outros recuaram, mudos. O que queria o chefe, provavelmente um celerado chefiando um bando de malfeitores? Nem ameaçar, nem matar: apenas saber do narrador qual o significado de “famigerado”, que ele nem ouvira ou entendera direito, parecendo-lhe algo como “fasmisgerado... Jornal Oftalmológico Jota Zero | Março/Abril 2013 faz-me-gerado... falmisgeraldo... e familhasgerado. Em resumo a estória se desenvolve entre o medo inicial do narrador e a solução final, com a explicação que ele dera ao cavaleiro. É no curso da história, nas fabulações e conjecturas do narrador frente ao enigma que lhe parecia ser o forasteiro, nos diálogos curtos, nos recursos linguísticos, nas inovações, na revalorização de expressões antigas, algumas já gastas pela força do uso, que Rosa mostra sua força de contista e vai nos deslumbrando, nos prendendo, sem necessidade de nenhuma revelação espetacular, insólita, ao final e como fecho da estória. Cada palavra sua traz uma novidade, cada frase sua, muitas tomadas de empréstimo e reconstruídas do linguajar usual, já é uma permanente fonte de prazerosa e desconcertante surpresa. Não concordo com a opinião de alguns de que Rosa teria criado uma nova língua ou reinventado o português. E nem precisou fazer isso para nos dar conta de sua genialidade e da importância de sua literatura. Rosa simplesmente ( simplesmente?) desceu ao fundo do poço vernacular para catar e selecionar pérolas de uma língua rica, retirar-lhe a camada de mofo, lustrá-las, para exibi-las a nós em toda sua beleza e infinita possibilidade de recursos e significados. Também não concordo inteiramente com a corrente que diz que Rosa é de difícil entendimento. Mesmo porque a beleza de um texto não está na total e exata compreensão do que o autor tinha em mente ao escrevê-lo. Assim, não devemos nos preocupar em decifrar integralmente a intenção ou o propósito do autor. Em outras palavras, ao ser publicada, uma obra ou um livro perde a autoria única e ganha milhões de autores que irão reinterpretando, modificando, reescrevendo mesmo a ideia original segundo sua própria experiência de vida, suas disponibilidades culturais e emocionais. A beleza de um texto não está, pois, no entendimento pleno dos detalhes de cria- Momento Cultural 47 ção, mas na capacidade de nos deslumbrar, de enternecer. Quando criança, não sabia de nada dos fenômenos físicos por trás de um arco-íris, mas não havia para mim nada mais belo, mais encantador, mais deslumbrante que aquela faixa multicolorida atravessando o céu de minha terra ao cessar a chuva. E a total ignorância sobre o fenômeno me alimentava a crença de que ali se encontrava, quase ao alcance da mão, potes e mais potes de ouro, prata e sei lá quanta riqueza mais, na mira de minha cobiça infantil! Paulo Rónai nos diz que “nenhum leitor entenderá a obra de Rosa na íntegra”. Concordo, mas com uma ressalva. Mesmo entendida em parte, esse fragmento já vale pela obra toda, pois nele, como em qualquer outro, Rosa coloca toda sua criatividade, resumindo nele o plano geral da obra e inserindo-lhe indícios, caminhos, referências para que o leitor apreenda e possa deleitar-se como se houvera lido a obra ou o texto por inteiro. Isso é mais verdade porque não é do estilo rosiano montar o enigma ao iniciar o conto, deixando o espetáculo da solução para o final. Não; todo o texto, cada letra, cada frase contém uma estória própria e rica de significados, urdidos com o propósito de espicaçar a curiosidade do leitor, forçando-o a tentar apreender a singularidade de seu estilo, a aparente aridez de sua prosa, com a certeza de, ao final, ter colhido o prêmio e degustado o privilégio da viagem. Ao deparar-se com quatro desconhecidos a sua porta, “tudo, num relance, insolitíssimo”, o narrador, só, indefeso e medroso, confessa o medo que o grupo lhe inspira, principalmente aquele que lhe parece ser o chefe. Sem nada saber do motivo da inusitada visita, o narrador confessa “que o medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava”. Já temos aqui um recurso estilístico muito ao gosto de Rosa: interpor o substantivo (medo) entre dois artigos definidos. Com isso fica-nos a impressão que o medo, além de grande, não tem como evaporar-se, estacionando definitivamente no narrador, minando-lhe a coragem. E nem era para menos: o narrador, diante de uma situação potencialmente ameaçadora, confessa que “o medo me miava”. Diante do perigo podemos ficar imobilizados, sem ação, mudos; podemos gritar, chorar ou até termos reações mais constrangedoras. Mas, miar...? O que o autor quis mostrar usando um verbo deslocado de seu significado e, ainda por cima, pronominalizado? Fico imaginando que essa seria a reação de um gato acuado por um cãozarrão num canto de parede, aguardando o ataque final, definitivo e fatal. Se o medo, o horror o paralisa e lhe tolhe a fuga, que lhe resta fazer, senão miar? O pronome oblíquo direciona o sentimento de pânico para o narrador e a homofonia (me mi(ava) aguça, intensifica mais ainda esse pavor. Também que outro sentimento poderia inspirar-lhe o “cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo?” Esse é outro apelo do autor, ainda mais curioso. A interpolação do substantivo (homem) entre duas interjeições (oh) tem aqui a intenção de magnificar o significado usual da interjeição, que é o de exprimir espanto, surpresa, alegria, admiração, lástima, repugnância e outras impressões, vivas ou súbitas. O narrador quis então, com economia de palavras, falar-nos da extensão, da profundidade e da insegurança que o desconhecido lhe infundira. Também não era para menos, se o “cavaleiro avessado (hostil), estranhão, perverso brusco, sem a-graças (cordialidade) tinha cara de nenhum amigo” Vejamos bem: o cavaleiro não tinha apenas “a cara de poucos amigos”, como usualmente dizemos, na qual podemos discernir, com alguma boa vontade, algum traço de afabilidade; o pronome indefinido (nenhum) anula por completo essa possibilidade: nada de bom, de amigável deixava transparecer “a catadura (cara) de canibal” daquele estranho. Mais adiante vemos novamente o indefinido zerar quaisquer chances da existência de alguém que pudesse aliviar a dúvida do cavaleiro: “por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente...” Mas Damásio Siqueira viera de tão longe em missão de paz, queria apenas que o narrador lhe ensinasse no “no pau da peroba, no aperfeiçoado”, o correto significado de “famigerado”, possivelmente amofinado com a insolência de “um moço do Governo, meio estrondoso (barulhento)”, o qual, possivelmente conhecedor de sua fama, o chamara assim. Aliviado, relaxado, o narrador saciou-lhe a curiosidade: famigerado “é importante, que merece louvor, respeito”, com o cuidado de esconder-lhe o outro sentido – que ou quem tem má fama. E para que não persistisse nenhuma dúvida em Damásio, ele acrescenta: “o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!...” Inquietação apagada, coração leve, o cavaleiro sorriu. Reconheceu a “cisma de dúvida boba, dessas desconfianças”, apertou a mão do narrador e, exultante, partiu. O conhecimento libertou os dois: o narrador, do medo; o cavaleiro, do ódio. (*) Elisabeto Ribeiro Gonçalves, integrante do Conselho de Diretrizes e Gestão do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (gestão 2003/2005) Jornal Oftalmológico Jota Zero | Março/Abril 2013