A LUZ DO FOGO
Sophie Jordan
Tradução de
Sónia Mota Maia
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Título: A Luz do Fogo
Título original: Firelight
Copyright: © 2010 by Sharie Kohler
Copyright: © 2011, Publicações Dom Quixote
Revisão: Teresa Martins
Design de capa: Sasha Illingworth
Fotografia de capa: 2010 Ayuber Gray
Pré-impressão: Ideias com Peso
Paginação: Fotocompográfica, Lda.
Impressão e acabamento: Multitipo
1.a edição: Fevereiro de 2011
Depósito legal n.o 322 445/11
ISBN: 978-972-20-4508-7
Reservados todos os direitos
Publicado por acordo com HarperTeen,
uma chancela da HarperCollins Publishers.
Livros d’Hoje
Publicações Dom Quixote
Uma editora do Grupo Leya
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2610-038 Alfragide – Portugal
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À minha querida Catherine
Uma vez que tenhas experimentado voar, andarás, para sempre,
sobre a terra de olhos postos no céu, pois já lá terás estado, e ansiarás
sempre por lá regressar.
Leonardo da Vinci
1
C
ontemplando o lago tranquilo, sei que vale a pena correr
o risco.
As águas estão calmas e sem ondulação. Um espelho polido.
Nem um ténue sopro de vento perturba a superfície sombria.
Uma névoa baixa afasta-se lentamente das montanhas líquidas
que flutuam contra um céu manchado de púrpura. Um sopro ansioso escapa-se dos meus lábios com um estremecimento. O sol
não tardará a nascer.
Azure chega, ofegante. Não se dá ao trabalho de utilizar
o descanso. A sua bicicleta cai no chão com estrondo, junto à minha.
– Não me ouviste chamar-te? Sabes que não consigo pedalar
tão depressa como tu.
– Não queria perder isto.
Finalmente, o sol espreita por cima das montanhas numa fina
linha vermelho-dourada que bordeja o negrume do lago.
Azure suspira a meu lado, e sei que está a fazer o mesmo que
eu – a imaginar o toque da primeira luz da manhã na sua pele.
– Jacinda – diz ela – não devíamos fazer isto. Mas a voz soa-lhe
pouco convicta.
Enfio as mãos nos bolsos e balanço-me sobre os calcanhares.
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– Tens tanta vontade de estar aqui como eu. Olha para aquele
sol.
Antes que Azure pudesse resmungar outro protesto, arranco as
roupas do corpo. Empilho-as atrás de um arbusto e fico de pé
à beira da água, trémula, mas não por causa do frio cortante da
madrugada. Tremo de excitação.
As roupas de Azure caem no chão.
– O Cassian não vai gostar disto – afirma.
Franzo o sobrolho. Como se me importasse o que ele pensa.
Não é meu namorado. Apesar de me ter atacado de surpresa no
dia anterior, durante as Manobras Evasivas de Voo, tentando pegar-me na mão.
– Não estragues isto. Não quero pensar nele agora.
Esta pequena rebelião deve-se, em parte, à minha vontade de
me afastar dele. Cassian. Sempre por perto. Sempre presente.
Observando-me com aqueles olhos escuros. À espera. Tamra pode ficar com ele. Passo muito do meu tempo a desejar que ele
a queira – que o clã o faça escolhê-la em vez de mim. Qualquer
pessoa menos eu. Escapa-se um suspiro dos meus lábios. Detesto
que não me dêem escolha.
Mas ainda falta muito tempo até que esse assunto tenha de estar decidido. Não vou pensar nisso agora.
– Vamos – esvazio a mente e absorvo tudo o que zumbe à minha volta. Os ramos com as suas folhas verde-acinzentadas. Os
pássaros agitando-se à luz da madrugada. Uma neblina húmida
cola-se às minhas canelas. Flicto os dedos dos pés sobre o solo áspero, contando mentalmente o número de seixos por baixo das
plantas dos meus pés. E a pressão do costume começa a instalar-se
no meu peito. A minha aparência humana exterior dissolve-se, desvanece-se, sendo substituída pela minha pele de draki, mais espessa.
O meu rosto endurece, a face torna-se mais afilada, deslocando-se subtilmente, alongando-se. A respiração altera-se enquanto
o meu nariz se modifica, com arestas a emergirem da cana. Os
meus membros descontraem-se e alongam-se. A tracção sobre
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os ossos sabe bem. Ergo o rosto para o céu. As nuvens transformam-se em algo mais do que borrões cinzentos. Vejo-as como se
já estivesse a planar através delas. Sinto a condensação fresca
a beijar-me o corpo.
Não é um processo muito demorado. Talvez seja uma das minhas transformações mais rápidas. Com a mente liberta e límpida, sem mais ninguém por perto além de Azure, é mais fácil. Sem
Cassian e os seus olhares melancólicos. Sem a Mãe com o medo
no olhar. Sem nenhum dos outros, sempre a observarem-me,
a julgarem-me, a avaliarem-me.
Sempre a avaliarem-me.
As minhas asas crescem, ultrapassando ligeiramente o comprimento das minhas costas. Estendem-se à vontade, revelando toda
a sua amplitude e textura delicada. Desenrolam-se no ar com um
murmúrio suave – um suspiro. Como se também elas ansiassem
por soltar-se. Por liberdade.
Uma vibração familiar avoluma-se no meu peito. Quase como
um ronronar. Viro-me e olho para Azure, e vejo-a pronta, linda,
a meu lado. De um azul iridescente. À luz cada vez mais forte,
distingo os matizes de rosa e roxo incrustados no azul-escuro da
sua pele de draki. Um pormenor tão discreto. Nunca tinha reparado.
Só agora compreendo, ao romper da madrugada, quando devemos voar. Quando o clã o proíbe. À noite, há tanto que nos passa despercebido.
Olhando para baixo, admiro o brilho vermelho-dourado dos
meus braços lustrosos. Deixo a mente vaguear. Lembro-me de
um pedaço de âmbar no depósito secreto de jóias e pedras preciosas da minha família. Neste momento, a minha pele tem esse aspecto. Âmbar do Báltico à luz do sol. É enganador. A minha pele
parece delicada, mas é rija como uma armadura. Há muito tempo que não me via assim. Há tempo demais que não saboreava
o sol na minha pele.
Azure ronrona suavemente a meu lado. Os nossos olhos encontram-se – olhos de íris dilatadas e fendas escuras e verticais em
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lugar de pupilas – e sei que já ultrapassou os seus protestos. Fita-me com a íris de um azul incandescente, tão feliz como eu por
estar aqui. Mesmo que tenhamos quebrado todas as regras do clã
para nos esgueirarmos para fora da zona protegida. Estamos aqui.
Somos livres.
Apoiando-me nos calcanhares, salto para o ar. As minhas asas
estalam, as membranas semeadas de veios estendem-se ao erguerem-me.
Com uma pirueta, estou a voar.
Azure está aqui, rindo a meu lado, com um som baixo e gutural.
O vento sopra à nossa volta e o brilho doce do sol beija-nos
a pele. Assim que ganhamos altura suficiente, ela deixa-se cair,
cortando o ar num voo picado estonteante, numa trajectória oblíqua em direcção ao lago.
Franzo o lábio.
– Exibicionista! – grito, e o som da minha voz de draki reverbera-me no fundo da garganta, enquanto Azure mergulha no lago
e permanece debaixo de água durante vários minutos.
Sendo um draki aquático, sempre que entra na água aparecem-lhe guelras na parte lateral do corpo, que lhe permitem sobreviver submersa... bem, para sempre, se assim o quiser. Este
é um dos muitos poderes úteis que os dragões, nossos antepassados, desenvolveram para poderem sobreviver. Claro que nem todos nós conseguimos fazer isto. Eu não consigo.
Eu faço outras coisas.
Pairando sobre o lago, espero que Azure emirja. Por fim, ela
rompe a superfície por entre uma profusão de salpicos cintilantes,
o corpo azul reluzindo no ar, as asas projectando gotículas em todas as direcções.
– Lindo – digo eu.
– Agora tu!
Abano a cabeça e retomo o voo, descendo a pique por entre
o emaranhado de montanhas, ignorando os «anda lá, é tão fixe!»
de Azure.
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O meu poder não é fixe. Daria qualquer coisa para o trocar.
Para ser um draki aquático. Ou um emissor de raios phaser. Ou
um encriptador visual. Ou um ónix. Ou... na verdade, a lista não
tem fim.
Em vez disso, sou o que sou.
Cuspo fogo. Sou o único cuspidor de fogo do clã, desde há
mais de quatrocentos anos. Por causa disto, sou mais popular do
que gostaria. Desde que manifestei o meu poder, aos onze anos,
deixei de ser a Jacinda. Passei a ser a cuspidora de fogo. Este facto
faz com que o clã decida a minha vida como se tivesse o direito
de a controlar. São piores que a minha mãe.
De repente, ouço qualquer coisa para além do assobio do vento e do murmúrio das brumas sobre as montanhas cobertas de neve que me rodeiam. Um som ténue, distante.
As minhas orelhas arrebitam-se. Detenho-me, pairando no ar
denso.
Azure inclina a cabeça; os seus olhos de dragão pestanejam, fixando o olhar.
– O que é isto? Um avião?
O barulho intensifica-se, aproximando-se rapidamente, agora
uma vibração constante.
– É melhor descermos.
Assentindo com a cabeça, Azure precipita-se para baixo. Eu sigo-a, deitando uma olhadela para trás, embora veja apenas o recorte denteado das montanhas. Mas ouço algo mais. Sinto algo
mais.
Continua a aproximar-se.
O som persegue-nos.
– Não deveríamos voltar para as bicicletas? – Azure vira a cabeça para me olhar, o cabelo negro raiado de azul agitando-se como uma bandeira ao vento.
Hesito. Não quero que isto acabe. Quem sabe quando conseguiremos escapar outra vez? O clã vigia-me tão de perto, Cassian
está sempre...
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– Jacinda! – Azure aponta com um dedo azul-incandescente.
Viro-me e olho. O meu coração aperta-se.
Um helicóptero contorna uma montanha baixa, tão pequeno
à distância, mas cada vez maior à medida que se aproxima, cortando a neblina.
– Vamos! – grito. – Deixa-te cair!
Mergulho, arranhando o vento, de asas cingidas ao corpo, pernas esticadas como setas, perfeitamente posicionada para maximizar a velocidade.
Mas não sou suficientemente rápida.
As hélices do helicóptero vergastam o ar num frenesim ensurdecedor. Caçadores. O vento fere-me os olhos enquanto voo mais
rápido do que alguma vez voei.
Azure fica para trás. Grito por ela, olhando para trás, lendo
o desespero sombrio no seu olhar líquido.
– Az, aguenta-te!
Os drakis aquáticos não nasceram para a velocidade. Ambas
sabemos disso. A sua voz distorce-se num soluço e, ao ouvir aquele som irregular, apercebo-me de como ela o sabe bem.
– Estou a tentar! Não me abandones! Jacinda! Não me abandones!
Atrás de nós, o helicóptero continua a aproximar-se. Um medo
amargo reveste-me a boca quando mais dois se lhe juntam, destruindo qualquer esperança de que se tratasse de um helicóptero
casual que andasse a tirar fotografias aéreas. É um esquadrão,
e estão, decididamente, a perseguir-nos.
Terá sido isto o que aconteceu ao Pai? Terão os seus últimos momentos sido assim? Sacudindo a cabeça, afasto aquele pensamento. Não vou morrer hoje – o meu corpo não vai ser cortado e vendido aos bocados.
Aponto as copas das árvores cada vez mais próximas com um
movimento de cabeça.
– Ali!
Os drakis nunca voam junto ao solo, mas não temos alternativa.
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Azure segue-me, avançando aos ziguezagues no meu encalço.
Consegue pôr-se a meu lado, tão apavorada que por pouco não
esbarra com as árvores imponentes. Paro e flutuo no mesmo lugar, o peito agitado pela respiração violenta. Os helicópteros roncam por cima das nossas cabeças, com um barulho ensurdecedor,
transformando as árvores num oceano verde e espumoso.
– Devíamos voltar à forma humana – diz Az, ofegante.
Como se pudéssemos fazê-lo. Estamos demasiado assustadas.
Os drakis nunca conseguem assumir a forma humana quando estão com medo. É um mecanismo de sobrevivência. A nossa essência é de drakis; é dela que retiramos a nossa força.
Espreito através do emaranhado de ramos ondulantes que nos
protegem, com o aroma a pinheiros e floresta a invadir-me as narinas.
– Eu consigo controlar-me – insiste Az, na nossa linguagem
gutural.
Abano a cabeça.
– Mesmo que isso fosse verdade, seria demasiado arriscado.
Temos de esperar que se vão embora. Se virem aqui duas raparigas... logo a seguir a terem avistado dois drakis fêmeas, podem ficar desconfiados – um punho gelado aperta-me o coração. Não
posso deixar que isso aconteça. Não só por mim, mas por todos.
Pelos drakis em toda a parte. O segredo da nossa capacidade de
parecermos humanos é a nossa maior defesa.
– Se não estivermos em casa dentro de uma hora, estamos lixadas!
Mordo o lábio para não lhe dizer que temos mais com que nos
preocupar do que com a possibilidade de o clã descobrir que nos
escapulimos. Não quero assustá-la mais do que já está.
– Temos de ficar escondidas durante algum...
Um outro som mistura-se com o batimento das hélices do helicóptero. Um zumbido grave que se propaga através do ar. Os pêlos finos que me revestem a nuca estremecem. Anda ali mais
qualquer coisa. Mais baixo. No chão. Cada vez mais perto.
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Olho para o céu, os meus dedos longos como garras abrindo-se
e fechando-se, as asas vibrando-me num movimento que quase
não consigo controlar. O instinto impele-me a voar, mas sei que
eles estão ali em cima. À espera. Falcões voando em círculos. Vigio as suas formas escuras através das copas das árvores. O peito
aperta-se. Eles não se vão embora.
Faço sinal a Az para me seguir e escondo-me entre os ramos
grossos de um pinheiro enorme. Embrulhando as asas à volta do
corpo, pressionamo-nos pelo meio das agulhas aguçadas, lutando
contra os galhos que nos arranham. Sustendo a respiração, aguardamos.
É então que o solo ganha vida, fervilhando com uma frota de
veículos: carrinhas, SUV, motos-quatro.
– Não – digo eu, em voz rouca, olhando os veículos e os homens, armados até aos dentes. Na caixa aberta de uma carrinha,
dois homens agachados estão a postos, com um enorme lança-redes à sua frente. Caçadores treinados. Sabem o que estão a fazer. Sabem o que estão a caçar.
Az treme tanto que o ramo grosso sobre o qual estamos agachadas começa a abanar, com um roçagar de folhas. Seguro-lhe
na mão. A moto-quatro vem à frente, movendo-se a uma velocidade
estonteante. O condutor de um SUV aponta para fora da janela.
– Olhem para as árvores – grita, numa voz profunda, aterradora.
Az não pára quieta. Aperto-lhe a mão com mais força. Agora
está uma mota precisamente por baixo de nós. O condutor traz
uma t-shirt preta que se lhe cola ao corpo jovem e musculado.
A minha pele contrai-se de uma forma quase dolorosa.
– Não posso ficar aqui – diz Az a meu lado, mal conseguindo
articular as palavras. – Tenho de ir!
– Az – rosno, e a minha voz grave e ressoante soa ardente e desesperada. – É isso que eles querem. Estão a tentar fazer-nos aparecer. Não entres em pânico.
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