P.º n.º C.P.2/2008 SJC-CT Certidão negativa de prédios descritos. Duplicação de
descrições.
Responsabilidade
civil
extracontratual
da
Administração
Pública.
Rectificação de registos. Emolumentos.
PARECER
1 – No dia 10 de Fevereiro de 2006, na Conservatória do Registo Predial de…., foi
pedido o registo de aquisição de três prédios (entre outros), a favor de Armindo…, com base
numa escritura de partilha por óbito de Mabília …e marido João…, que, por seu turno, tinha
sido instruída com uma certidão negativa emitida pela referida conservatória em 14 de
Novembro de 2005.
Procedeu-se, para o efeito, à abertura das descrições prediais n.ºs 11 622, 11 625 e 11
627, nos termos do artigo 80, n.º 1, do Código do Registo Predial (CRP).
Apurou-se, posteriormente, que estes prédios correspondiam aos descritos sob os n.ºs 6
662, 6 664 e 6 665, e que se encontravam inscritos a favor de Mabilde …casada com Russel…,
no regime de comunhão geral.
O interessado comunicou à conservatória que o seu pai teria comprado verbalmente os
referidos prédios aos titulares inscritos, nunca tendo formalizado o negócio, acrescentando que
dado o valor diminuto dos mesmos não os teria incluído na partilha se a certidão tivesse sido
bem emitida, pelo que existe culpa dos serviços que devem solucionar o problema que
originaram.
Em 25 de Outubro de 2007 foi anotada a inutilização das descrições abertas em segundo
lugar – 11 622, 11 625 e 11 627 –, por corresponderem a duplicação, procedendo-se à
transcrição das respectivas inscrições de aquisição para os prédios descritos sob os n.ºs 6 662,
6 664 e 6 665, em conformidade com o prescrito no artigo 86.º do CRP.
2 – A senhora conservadora pergunta se, devido à inegável culpa dos serviços, pode
proceder (na qualidade de notária) à elaboração das escrituras de habilitação por óbito de
Mabilde e do Russel (requerendo as certidões de óbito, casamento e nascimento dos filhos
destes) e de compra e venda dos referidos prédios entre os herdeiros daqueles e os herdeiros
1
da Mabília, bem como dos respectivos registos para reatamento do trato sucessivo1, dando-se
por «convolada», desta forma, a escritura de partilha, que é nula na parte em que engloba
bens alheios.
No caso de ser aceite a solução proposta, colocam-se então novas questões atinentes,
designadamente, ao imposto de sisa (que foi pago, ao tempo, por João…, constando como
vendedores a citada Mabilde e o marido, sendo que o IMT, segundo informação do serviço de
finanças, não pode ser agora cobrado uma vez que os prédios já estão inscritos em nome dos
herdeiros) e ao pagamento de selo relativo às escrituras de habilitação e de compra e venda,
sendo que apenas para as escrituras de rectificação está previsto que é da responsabilidade do
serviço – n.º 5 do artigo 198.º do Código do Notariado.
Finaliza, salientado que caso não se resolva a situação a contento dos interessados, estes
pretendem dar dela conhecimento ao Senhor Ministro da Justiça, o que coloca em causa o bom
nome dos serviços, uma vez que, efectivamente, incorreram em culpa ao emitir erradamente a
certidão negativa, sendo que os prédios em causa estavam descritos.
Aguarda, assim, que seja apontada uma via para solucionar o problema exposto,
inclusive quanto aos custos inerentes, a não ser que se entenda que só judicialmente haverá
possibilidade de resolução do mesmo.
3 – Na proposta de remessa dos autos a Conselho salienta-se que a consulta suscita,
antes de mais, a questão de saber se o Instituto ou os seus serviços externos podem,
independentemente de condenação em acção especial intentada para o efeito, reconhecer a
responsabilidade pelo erro e, com a anuência dos interessados, praticar os actos conducentes
à resolução do problema, mesmo que tal implique a restituição de emolumentos e/ou a
dispensa de cobrança de outros.
4 – Descrita a factualidade subjacente aos autos, cumpre agora analisar as questões
primaciais que se colocam e que poderemos reconduzir à responsabilidade civil extracontratual
do Estado e demais pessoas colectivas públicas, cujo regime aplicável se encontra consagrado
no Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro, e à rectificação dos registos errados,
efectuados com base em escritura pública de partilha instruída com certidão do registo predial
1
Aventa ainda uma outra hipótese – a da justificação – que, de seguida, afasta por não decorrido o prazo
necessário para tal, pois que os pais e sogros dos interessados só entraram na posse dos prédios em causa em 1995.
2
que dava como omissos três prédios que, afinal, estavam descritos e tinham inscrições em
vigor a favor de pessoas diversas dos autores da sucessão.
4.1 – Enquadramento legal – Evolução histórica
Resultava do disposto nos artigos 2399.º e 2400.º do Código Civil de 1867 que nem o
Estado nem os funcionários públicos eram responsáveis pelas perdas e danos que causassem
no desempenho das obrigações que lhes fossem impostas por lei, salvo se os funcionários
excedessem ou não cumprissem de algum modo as disposições da mesma lei, caso em que
responderiam a título meramente pessoal e nos mesmos termos que qualquer outro cidadão.
No nosso ordenamento jurídico só com a publicação do Decreto-Lei n.º 19 126, de 16 de
Dezembro de 1930, passou a vigorar o princípio da responsabilidade do Estado, mas ainda
assim circunscrito aos prejuízos causados pela prática de actos ilícitos no contexto da gestão
privada.
No Código Administrativo de 1936 foram também introduzidas duas disposições legais
atinentes à responsabilidade das autarquias locais – artigos 366.º e 367.º.
O Código Civil de 1966 viria a consagrar especificamente a responsabilidade civil
extracontratual do Estado mas apenas quanto à gestão privada (artigo 500.º, em conjugação
com o artigo 501.º), reservando-se para diploma especial a disciplina do regime da
responsabilidade civil por actos de gestão pública.
Tal viria a concretizar-se através do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de
1967, (LRCAP), que fixa o regime legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais pessoas colectivas no domínio dos actos de gestão pública2.
Nestes termos, passaram a coexistir no ordenamento jurídico português dois regimes de
responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas – o da responsabilidade
2
São actos de gestão pública, como escreve Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, 1994, Vol.
II, pág. 138, «os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma
função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coacção, e
independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas».
Segundo PIRES DE LIMA ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 444, a distinção entre actos de
gestão pública e de gestão privada é, normalmente, fácil de se fazer. (…) um conservador que lavra um registo, um
notário que faz uma escritura, estão a praticar actos de gestão pública. Já um director de museu que compra um
quadro para si pratica um acto de gestão privada.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA, de 25 de Setembro de 1993, disponível em www.itij.pt, que
considera que é acto de gestão pública a realização de uma escritura efectuada por um notário uma vez que age no
exercício de uma função do Estado que é a de prosseguir o interesse público de dar forma legal e conferir
autenticidade aos actos jurídicos extrajudiciais.
3
por actos de gestão privada que se rege pelo disposto no Código Civil (artigos 500.º e 501.º) 3,
e o da responsabilidade por actos de gestão pública consagrado na referida LRCAP 4.
Finalmente, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
Entidade Públicas actualmente em vigor foi aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de
Dezembro5, que passou a abranger a responsabilidade civil decorrente do exercício de
qualquer função estadual – jurisdicional, administrativa, política e legislativa.
4.2 – Constituição da República Portuguesa
Não podemos dar por encerrado este capítulo sem que façamos uma breve alusão à Lei
Fundamental do País, pois, consabidamente, esta fixa os parâmetros de validade das restantes
normas.
A Constituição de 1976, sob a epígrafe «Responsabilidade das entidades públicas»,
consagrou no seu artigo 22.º a responsabilidade civil solidária do Estado e demais entidades
públicas com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões
3
Da articulação destes preceitos resulta que, por prejuízos causados pela prática de actos de gestão privada, o
Estado e demais pessoas colectivas públicas são solidariamente responsáveis com os seus órgãos, agentes ou
representantes, pelos danos por estes causados aos particulares no exercício das suas funções.
Trata-se aqui de uma responsabilidade objectiva já que as referidas entidades respondem, independentemente
de culpa, pelos danos causados pelos referidos órgãos, agentes ou representantes no exercício das suas funções.
Se o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas indemnizarem o lesado gozam do direito de regresso
contra o autor do facto danoso, a não ser que haja também culpa da sua parte, caso em que o direito de regresso
existe apenas na medida das respectivas culpas, que se presumem iguais.
4
Veja-se, também, o disposto nos artigos 96.º e 97.º do Decreto-Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, na
redacção introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, que fixam, respectivamente, a responsabilidade
funcional das autarquias locais e a responsabilidade pessoal dos titulares dos órgãos e agentes das autarquias.
5
O artigo 5.º desta Lei veio proceder à revogação do referido Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de
1967.
Segundo consta do parecer que acompanhou a proposta de Lei n.º 56-X, da Assembleia da República,
pretende-se com a nova lei não só aperfeiçoar o regime da responsabilidade civil pelo exercício da função
administrativa, mas também torná-lo extensivo às funções jurisdicional, política e legislativa.
Por isso, consagra-se, em termos amplos, o dever do Estado e demais pessoas colectivas públicas
indemnizarem todo aquele a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e
anormais, sem circunscrever o regime ao exercício da função administrativa como até então sucedia.
Inova-se ainda no que respeita ao exercício do direito de regresso que passa a ser obrigatoriamente exercido
por força do prescrito no artigo 6.º.
4
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação
dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem6.
Deste modo, constitucionalizou-se o princípio geral da responsabilidade civil do Estado e
demais entidades públicas do qual decorre um direito fundamental dos particulares à
reparação dos danos análogo aos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II, da
Constituição (artigo 17.º), proibindo-se também a garantia administrativa (parte final do n.º 1
do artigo 271.º).
Igualmente, a responsabilidade dos funcionários e agentes do Estado e das demais
entidades públicas ganhou tratamento constitucional, dispondo o seu artigo 271.º o seguinte:
«1 – Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são
responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício
das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer
fase, de autorização hierárquica.
2 – É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de
ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se
previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por
escrito.
3 – Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções
implique a prática de qualquer crime.
4 – A lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de
regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.»
5 – Concluída esta breve resenha histórica, atentemos no caso configurado nos autos
que por ter ocorrido em plena vigência do Decreto-Lei n.º 48 051 há-de ser em seu torno das
6
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pág. 168, salientam
que «o princípio da responsabilidade do Estado é um dos princípios estruturantes do Estado de Direito democrático,
enquanto elemento do direito geral das pessoas à reparação dos danos causados por outrem.»
Na mesma senda, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág. 212,
sublinham que «A evidente e importante função reparadora que o instituto da responsabilidade é chamado a
desempenhar e a inserção do artigo 22.º da Constituição na parte primeira da Constituição, relativa aos direitos
fundamentais, revela que o legislador constitucional configura a resposta ao problema da indemnização, não apenas
enquanto princípio objectivo e organizatório, mas também como um instrumento fundamental de protecção dos
particulares».
Nas anteriores Constituições, tal princípio não estava consagrado apesar de se prever, em regra, a
responsabilidade pessoal dos funcionários públicos e de a Constituição de 1933 ter já consagrado o direito à reparação
de qualquer «lesão efectiva» como direito fundamental dos cidadãos.
5
suas normas7 que procuraremos alicerçar a resposta às questões suscitadas, tendo em conta o
princípio geral consagrado no artigo 12.º do Código Civil relativamente à aplicação das leis no
tempo8.
5.1 – O princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos encontra-se
consagrado no artigo 483.º do Código Civil nos seguintes termos: «aquele que, com dolo ou
mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da
violação» (n.º 1). Acrescenta-se no n.º 2 que «só existe obrigação de indemnizar
independentemente de culpa nos casos especificados na lei.»
Na terminologia técnica corrente entre os tratadistas da matéria e a jurisprudência são
apontados como elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual – o facto
voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade9.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas
por actos de gestão pública consagrada no citado Decreto-Lei n.º 48 05110 reveste três
modalidades:
7
Diz-se que certas disposições deste diploma devem hoje ter-se por materialmente inconstitucionais na parte
em que contrariam a responsabilidade solidária da Administração Pública – Vd. José Moreira da Silva, Da
Responsabilidade Civil da Administração Pública por Acto Ilícito, in Responsabilidade Civil Extracontratual da
Administração Pública, coordenação de Fausto Quadros, pág. 165, bem como o acórdão do Tribunal Constitucional n.º
153/90, que conclui pela aplicabilidade do artigo 22.º da Constituição a todos os casos de responsabilidade civil do
Estado e demais entidades públicas. Veja, também, o Ac. do STJ, de 6 de Maio de 1986, in BMJ n.º 357, pág. 362.
No entanto, a Comissão Constitucional no parecer n.º 22/79, de 7 de Agosto, tinha afastado o problema
considerando que o termo «solidariedade» expresso na Constituição pode não ter o sentido da «solidariedade» no
direito civil, estando dependente de vários pressupostos.
8
Este preceito mantém o princípio da não retroactividade das leis, no sentido de que elas só se aplicam para
futuro. E mesmo que se apliquem para o passado – eficácia retroactiva – presume-se que há intenção de respeitar os
efeitos jurídicos já produzidos – PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in Código Civil Anotado, 2.ª edição, pág. 48.
9
Para mais desenvolvimentos sobre o ponto, veja-se ALMEIDA COSTA, in Direitos das Obrigações, 1979, pág. 367
e segs., ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, pág. 518 e segs., e MARCELO REBELO DE SOUSA
e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, in Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2007, pág. 417, bem como o acórdão do STA, de
28 de Maio de 2002, disponível em www.itij.pt.
10
O Prof. Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, 1972, II, pág. 1210, apresenta as soluções
deste diploma divididas em quatro: se o acto for pessoal, existe responsabilidade exclusiva do funcionário; se o acto
for funcional e doloso, existe responsabilidade solidária do Estado e do funcionário; se o acto for funcional com
negligência consciente, existe responsabilidade exclusiva do Estado, com direito de regresso sobre o funcionário; se o
acto for funcional com negligência inconsciente, existe responsabilidade exclusiva do Estado, sem direito de regresso
sobre o funcionário.
6
1 – Responsabilidade por facto ilícito culposo, que decorre de uma conduta reprovada
pela ordem jurídica – artigos 2.º e 3.º.
2 – Responsabilidade pelo risco11, que resulta das regras objectivas de distribuição de
riscos sociais, assentando na ideia de que se determinado dano exorbita da esfera de risco do
lesado, deve outra pessoa responder por aquele, independentemente de ter ou não sido
praticado qualquer facto ilícito e culposo – artigo 8.º.
3 – A responsabilidade por facto lícito12, que se encontra estruturada no artigo 9.º,
assenta no princípio da justa repartição dos encargos públicos.
5.2 – Ora, da observação, ainda que perfunctória, de cada uma destas modalidades e
normas citadas chegamos à conclusão que, para o caso em apreço, apenas nos interessa
considerar a responsabilidade por actos ilícitos, pelo que a esta nos cingiremos.
Impõe-se, por isso, atentar desde já na definição de ilicitude constante do artigo 6.º da
LRCAP, segundo a qual se consideram ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e
regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas
normas e os princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam
ser tidas em consideração.
Tratando-se de situação em que o facto gerador do dano tenha sido praticado pelo titular
do órgão ou agente administrativo fora do exercício das suas funções, ou durante o exercício
delas mas não por causa desse exercício, aí verifica-se responsabilidade pessoal e exclusiva do
Também Freitas do Amaral perfilha posição idêntica in Lições, 1985, III, pág. 492.
O referido diploma, segundo salienta SÉRVULO CORREIA, in Revista da Ordem dos Advogados, de Dezembro de
2001, toma como matriz do âmbito material dessa normação, por um lado, a figura dos actos de gestão pública, como
protótipo do facto causador do dano, e, pelo outro, no tocante aos requisitos ou pressupostos do dever de indemnizar,
as modalidades da responsabilidade subjectiva e objectiva, esta última nas suas subespécies da responsabilidade pelo
risco e da responsabilidade pela prática de actos lícitos.
Cfr., ainda, Gomes Canotilho, in O Problema da Responsabilidade do Estado por actos lícitos, 1970, pág. 139.
11
Não existe na doutrina acordo acerca do exacto fundamento da imputação pelo risco: para a teoria da criação
do risco, a responsabilidade funda-se na exigência de que quem cria um risco responda pelas suas consequências;
para a teoria do risco-proveito, a responsabilidade funda-se na exigência de que quem tira proveito de uma actividade
responda pelos riscos por ela criados; para a teoria do risco de autoridade, a responsabilidade funda-se na exigência
de que quem tem sob o seu controlo uma coisa ou uma actividade responda pelos riscos que elas envolvem - MARCELO
REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, in ob. cit. pág. 433.
12
Cfr., a propósito, VAZ SERRA, Responsabilidade Civil do Estado e dos seus órgãos ou agentes, in BMJ n.º 85,
pág. 485.
7
seu autor13, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 3.º, o que também é de excluir do
âmbito da nossa análise.
Diversa é, porém, a situação se o facto danoso tiver sido praticado pelo titular do órgão
ou agente administrativo no exercício das suas funções e por causa desse exercício, ou seja,
tratando-se de actos funcionais14.
Neste contexto, forçoso é ainda distinguir entre os casos em que o procedimento é
doloso (isto é, quando há intenção de provocar um determinado resultado danoso); daqueles
em que existe negligência grave ou grosseira (quando o facto é praticado com diligência ou
zelo manifestamente inferiores aos exigidos em razão do cargo), e dos que envolvem
simplesmente negligência leve (falta leve).
Tratando-se de procedimento doloso há responsabilidade solidária da Administração e do
autor, como resulta do preceituado no n.º 2 do artigo 3.º; enquanto que no caso de
negligência grave há responsabilidade exclusiva da administração, com direito de regresso
sobre o autor15, por força do disposto no n.º 2 do artigo 2.º.
13
A eventual responsabilidade civil a que dêem lugar os actos não funcionais é estritamente pessoal,
sujeitando-se o seu autor ao regime geral da responsabilidade civil constante do Código Civil.
14
São actos funcionais, segundo MARCELLO CAETANO, in Manual de Direito Administrativo, II, 10.ª edição, pág.
1228, todos aqueles que, embora ilícitos, sejam praticados durante o exercício das funções do seu autor e por causa
desses exercícios.
O artigo 22.º da Constituição bem como os artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 051, exigem,
para que o Estado e demais entidades públicas sejam responsáveis, que as acções ou omissões danosas tenham sido
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício. – Cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, ob. cit.,
pág. 215.
15
O Estado, nos casos de exercício do direito de regresso contra o respectivo agente, assume mais uma posição
de garante da efectivação do direito à reparação do que de responsável pelo dano.
O direito de regresso não existe em três situações: quando haja culpa funcional do serviço; quando o autor do
facto tenha actuado ao abrigo de ordens ou instruções às quais devesse obediência e tenha exercido o seu direito de
representação; e quando a negligência tenha sido ligeira.
No entanto, mesmo nos casos devidos, o direito de regresso quase nunca é exercido pela Administração contra
o titular do órgão ou agente respectivo (mesmo quando o seu fundamento é manifesto), sem sentença judicial, apesar
de não ser necessária para o efeito.
Desta omissão resultam duas consequências graves: por um lado, a Administração acaba por suportar
indemnizações devidas por prejuízos imputáveis especificamente a conduta culposa dos seus agentes; e, por outro,
enraíza-se nos agentes administrativos a ideia de que a Administração não exerce aquele direito retirando às normas
que disciplinam a matéria o efeito de assegurarem o cumprimento do dever de boa administração e de prevenirem
prejuízos aos particulares. – Cfr. FAUSTO QUADROS, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública,
2.ª edição, págs.28 e seguintes.
8
Finalmente,
tratando-se
de
negligência
leve
a
responsabilidade
é
exclusiva
da
administração, sem direito de regresso, como se extrai também do disposto no n.º 1 do citado
artigo 2.º, que considera o autor isento de responsabilidade.
Como corolário lógico do exposto podemos concluir que para responsabilizar o Estado e
demais
entidades
públicas
serve
qualquer
tipo
de
negligência
enquanto
que
para
responsabilizar os titulares dos seus órgãos ou agentes é sempre necessário que se verifique
negligência grosseira – artigos 2.º e 3.º, 2, da LRCAP.
5.3 – Em breve síntese conclusiva, diremos que o direito do particular à reparação dos
danos tem hoje assento constitucional, sendo que os diplomas infra-constitucionais que
regulem a matéria têm de com ela se conformar.
Consequentemente, o Estado e demais entidades públicas têm a obrigação de reparar
toda a lesão efectiva do cidadão, porque ela decorre do disposto no artigo 22.º da Constituição
da República Portuguesa, que reconhece aquele direito como um direito fundamental do
cidadão português análogo aos demais direitos, liberdades e garantias acolhidos no artigo
17.º.
Nestes termos, o Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. tem obrigação de ressarcir
os
danos causados aos
particulares
no
desempenho
das suas
atribuições,
devendo
16
independentemente de condenação em acção especial intentada para o efeito , reconhecer a
responsabilidade pelos erros que cometa (seja directamente seja através de qualquer um dos
seus serviços e respectivos funcionários)17 e praticar os actos conducentes à reparação da
situação lesiva que com eles foram criados, bem como proceder à indemnização devida se for
o caso e nisso acordar com o lesado.
Neste tocante, é indiferente que a questão seja encarada à luz do prescrito no DecretoLei n.º 48 051 ou já em face do disposto no Anexo à Lei n.º 67/2007.
No caso vertente, a reposição na esfera jurídica do particular da posição que existiria se
aquela conduta ilícita não tivesse ocorrido pode passar pelo cancelamento dos registos, desde
que todos os interessados na partilha reconheçam a invalidade desta no que respeita aos
aludidos prédios, nos termos que a seguir apresentaremos.
16
Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, in ob. cit., pág. 463, que refere a possibilidade de acordo entre as partes, e
FAUSTO QUADROS, in ob. cit., pág. 28, salientando a desnecessidade de sentença judicial, embora num contexto alusivo
ao direito de regresso.
17
Quando se utiliza a expressão «Administração ou Administração Pública» é em sentido orgânico, ou seja, a
Administração tomada como uma estrutura composta por diversos serviços, órgãos, funcionários e agentes do Estado
e demais entidades públicas.
9
6 – Posto isto, equacionemos agora o problema concreto dos autos em harmonia com o
exposto.
A Conservatória emitiu uma certidão predial na qual se davam por omissos três prédios,
que instruiu uma escritura de partilha, com base na qual foram requisitados os registos de
aquisição a favor de Armindo …dos prédios que vieram a ser descritos sob os n.ºs 11 622, 11
625 e 11 627.
Posteriormente, apurou-se que afinal os referidos prédios estavam já descritos e com
inscrições em vigor e a favor de pessoa diversa dos autores da sucessão, muito embora,
segundo o interessado, estes tivessem comprado verbalmente os aludidos prédios aos titulares
inscritos e pago até o imposto de sisa correspondente, sem contudo terem procedido à
formalização do negócio.
6.1 – Como é sabido, das requisições de certidões relativas a prédio não descritos deve
constar, além da natureza do prédio, da situação, confrontações e artigo matricial, o nome,
estado civil e residência do proprietário ou possuidor actual, bem como o dos dois
imediatamente anteriores, salvo, quanto a estes, se o requisitante alegar na requisição as
razões justificativas do seu desconhecimento – n.º 3 do artigo 111.º do CRP.
No caso vertente não foram indicados os anteriores proprietários – Mabilde e marido
Russel – o que também revelou alguma incúria dos interessados posto que a posterior não
tiveram dificuldade na obtenção da informação de que os autores da herança tinham comprado
verbalmente os referidos prédios aos titulares inscritos, o que de forma alguma equivale a
dizer que se este elemento tivesse sido fornecido o resultado fosse diferente, seja porque o
funcionário não tenha sido suficientemente prudente e diligente nas buscas efectuadas, seja
por não terem sido feitos os verbetes reais na sequência do registo efectuado a favor da
Mabilde e marido a coberto da ap. 2/19950405 (artigos 24.º e 25.º do CRP), tendo sido, de
qualquer modo, descuradas as mais elementares regras de ordem técnica e de prudência
comum que devem ser tidas em consideração na execução destas tarefas.
6.2 – Parece-nos, assim, que existe o facto voluntário e a sua imputação ao lesante (a
emissão da certidão) a ilicitude (foram infringidas as regras de ordem técnica e de prudência
comum que tinha a obrigação de conhecer e de adoptar), a culpa (que se traduz na censura
dirigida ao autor do acto por não ter usado da diligência que teria, perante as circunstâncias do
caso concreto, um funcionário ou agente típico18), o dano (pagamento de emolumentos em
18
Será culposa a conduta dos titulares de um órgão ou de agente de um ente público quando a conduta
comissiva ou omissiva não corresponde à que é exigível e esperada de um funcionário zeloso e cumpridor.
10
quantia superior à devida) e o nexo de causalidade (pois foi a conduta do funcionário que
originou o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada19), sendo obrigação dos
Serviços proceder à reparação da situação criada.
Mas, mesmo que se entenda que não se verificam os pressupostos cumulativos da
responsabilidade civil extracontratual ainda assim a Administração, na sequência da prática de
acto ilícito violador da posição jurídica do particular, deve proceder à reconstituição na esfera
jurídica daquele da situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse existido, pois é o que
em primeira linha interessa ao particular, que só secundariamente reivindicará a reparação dos
danos provocados por aquela conduta a obter em sede de responsabilidade civil20.
6.3 – Na verdade, se a certidão do registo predial tivesse sido bem emitida os referidos
prédios não tinham sido levados à partilha nem, posteriormente, registados a favor do
Armindo, pelo que se nos afigura que a Conservatória deve cuidar de reconstituir a situação
jurídica que existiria não fosse a ocorrência daquela conduta ilícita.
Para atingir tal escopo, deve proceder à instauração do processo de rectificação dos
registos em causa nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 120.º e seguintes do
Código do Registo Predial.
6.4 – Ora, considerando que a escritura de partilha será nula21 na parte em que refere
como pertencentes à massa dos bens hereditários a partilhar prédios que, na realidade, não
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Cfr. o ac. do STA , de 4 de Julho de 2000, disponível em www.itij.pt.
Com efeito, como salientam MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, in ob. cit., págs. 457 e 458,
a responsabilidade civil e as pretensões ao restabelecimento de posições jurídicas violadas são ambas pretensões
reintegratórias dos particulares perante a Administração, mas não se confundem entre si. (…) a primeira visa
reintegrar as esferas jurídicas dos particulares pelos danos sofridos em virtude da actuação administrativa, operando
por isso para o futuro, as segundas visam eliminar a ilegalidade cometida com a conduta administrativa, agindo por
isso sobretudo sobre o passado.
E, mais adiante, prosseguem (…) as pretensões ao restabelecimento de posições jurídicas subjectivas violadas
são pretensões primárias, pois visam a realização daqueles direitos, possível por não se ter ainda consumado a sua
inutilização prática. Assim, o restabelecimento de direitos ou interesses violados não consiste numa indemnização,
ainda que natural ou específica, que é sempre um sucedâneo do bem danificado, mas na restauração da própria
posição jurídica subjectiva violada.
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Enferma de nulidade a escritura de partilha que englobe prédios que não pertençam ao acervo dos bens
hereditários.
No entanto, tendo em conta o regime do instituto da redução dos negócios jurídicos consagrado no artigo 292.º
do Código Civil aquela nulidade não invalida todo o negócio mas apenas a parte respeitante aos prédios que não
pertencem à massa hereditária, por configurar uma venda de bens alheios – artigo 892.º do Código Civil.
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lhe pertencem, sendo portanto bens alheios, os registos respeitantes a estes bens são
igualmente nulos.
Consequentemente, os registos de aquisição inicialmente lavrados sobre os prédios 11
622, 11 625 e 11 627, e agora já transcritos para os prédios n.ºs 6 662, 6 664 e 6 665,
respectivamente, podem ser cancelados reconhecida que seja, por todos os interessados na
partilha, a invalidade desta na parte respeitante aos prédios em causa.
7 – A reposição da situação jurídica no ponto em estaria não fosse o facto ilícito
praticado colide também com a aplicação do Regulamento Emolumentar dos Registos e do
Notariado, sendo que os registos rectificandos beneficiam de gratuitidade em face do disposto
na alínea a) do n.º 2 do artigo 14.º do RERN.
8 – Nestes termos, a posição deste Conselho vai condensada nas seguintes
Conclusões
Em regra, na nulidade é a própria Ordem Jurídica que não tolera o vício e que não permite que o negócio
chegue a ter eficácia, não aceita que o vício seja sanado, permitindo a sua arguição por qualquer interessado e sem
limite de tempo. – Cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, in Teoria Geral do Direito Civil, pág.741.
Com efeito, o regime das nulidades prevê que estas operam ipso iure ou ipsa vi legis, são invocáveis por
qualquer pessoa e são insanáveis pelo decurso do tempo – artigo 286.º, sendo insanáveis mediante confirmação –
artigo 288.º, a contrario, do Código Civil.
Existem, contudo, excepções sendo uma delas respeitante à nulidade derivada da venda de bens alheios, em
que a lei determina a convalidação do contrato, automaticamente, logo que o vendedor adquira por algum modo a
propriedade da coisa, como decorre do prescrito no artigo 895.º do Código Civil – cfr., neste sentido, CARLOS ALBERTO
DA
MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, pág. 620.
Também a este propósito CARVALHO FERNANDES, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 482, salienta a possibilidade
de validação de negócio nulo, chamando a atenção para a epígrafe do artigo 895.º do Código Civil «Convalidação do
contrato». Como também claramente resulta deste exemplo, a validação do negócio consiste na eliminação do próprio
vício, pela verificação superveniente do elemento em falta.
A sugestão da senhora conservadora no que concerne à elaboração das escrituras de habilitação de herdeiros e
de compra e venda não é enquadrável nas situações de excepção que permitem a convalidação do contrato, além de
que, de qualquer modo, transcendia já o âmbito da reposição da situação jurídica criada pela conduta ilícita da
Conservatória, razão pela qual rejeitamos a assunção da responsabilidade até esse ponto extremo, que se nos afigura
não ter cobertura legal.
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1 – A Constituição de 1976 consagrou a responsabilidade civil solidária do
Estado e demais entidades públicas com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou
agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por
causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou
prejuízo para outrem – artigos 22.º e 271.º.
2 – O Decreto-Lei n.º 47 937, de 21 de Novembro de 1967, aplicável ao tempo
da prática do facto em causa, prescreve que o Estado e demais entidades públicas
(entre as quais se inclui o IRN, I.P., e os seus serviços) têm a obrigação de reparar
toda e qualquer lesão efectiva do cidadão resultante de factos ilícitos praticados no
âmbito de gestão pública – artigos 2.º e 3.º.
3 – Assim, apurando-se que a prática de determinado acto ilícito pelo
funcionário da Conservatória originou a elaboração de registos errados, deve
proceder-se à rectificação dos mesmos nos termos previstos nos artigos 120.º e
seguintes do Código do Registo Predial, repondo-se a situação registral no ponto em
que estaria não fosse a ocorrência daquela conduta.
4 – Pelo cancelamento dos registos em causa não deve ser cobrada qualquer
quantia emolumentar, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 14.º do
Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado.
Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora, Luís Manuel Nunes Martins, Maria Eugénia
Cruz Pires dos Reis Moreira, António Manuel Fernandes Lopes, Maria Madalena Rodrigues
Teixeira, João Guimarães Gomes de Bastos, José Ascenso Nunes da Maia.
Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico de 25 de Junho de 2008
Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 30.06.2008.
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