Número: 30 Título: Esse impalpável mas não menos denso sentimento de lonjura e proximidade: a crítica de uma razão colonial. Autor@: Teresa Cunha, Celina M. dos Santos Data: Março 2006 Palavras Chaves: Timor-Leste, Cooperação, Paz Referência(s): www.ajpaz.org.pt/agitancos.htm Acção para a Justiça e Paz (AJP) Rua São João - 3130-080 Granja do Ulmeiro – Portugal [email protected] - www.ajpaz.org.pt TU UT TU (T) 239642815 - (F) 239642816 - (TMV) 96 2477031 UT CRIAÇÃO DE UMA PLATAFORMA DE SOLIDARIEDADE COM TIMOR-LESTE No âmbito da Visita Oficial do Presidente da República Democrática de Timor-Leste a Coimbra, Kay Rala Xanana Gusmão Pavilhão de Portugal, 12 de Março de 2006 1 Esse impalpável mas não menos denso sentimento de lonjura e proximidade: a crítica de uma razão colonial. Teresa Cunha Portugal, na sua singular imaginação de si mesmo, como um povo de sonhos maiores do que nós1, viu através da televisão, a extraordinária violência com que o povo de Timor-Leste se confrontou nas primeiras semanas de Setembro de 1999. Desta vez, o drama era protagonizado pelo poder colonial da Indonésia. A ironia trágica2 destes acontecimentos agudizou 1 Lourenço, Eduardo (1999), A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva, pp. 177. Este autor argumenta ainda que o nosso problema nunca foi o da ‘identidade’, mas do próprio excesso com que nos vivemos, em suma, o da nossa hiper-identidade que historicamente nos adveio não só desse facto da nossa intensa singularidade, como suplemento que lhe foi agregado quando nos tornámos ‘senhores da conquista da Guiné, Etiópia, etc. Eduardo Lourenço (1983), ‘Crise de Identidade ou Ressaca Imperial’, Prelo. 1, Out./Dez, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 15-22, p. 17. Também o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama a atenção para uma construção do imaginário português que assenta numa mitificação da sua centralidade no sistema mundo. Nas suas palavras, durante séculos, a cultura portuguesa sentiu-se num centro apenas porque tinha uma periferia (as suas colónias). Santos, Boaventura de Sousa (1997), Pela Mão de Alice – O social e o politico na pós-modernidade. Porto: Afrontamento. Ainda Margarida Calafate Ribeiro trata este tema em que Portugal se vê como o império como imaginação do centro. Ribeiro, Margarida Calafate (2004), Uma História de Regressos. Império, guerra Colonial e Pós-colonialismo. Porto: Afrontamento, pp. 15. 2 Expressão usada por Miguel Vale de Almeida num artigo publicado no jornal “Público” no dia 13 de Setembro de 1999, com o título, Timor, Portugal e a esquerda. ainda mais o sentimento de perplexidade desses dias. As televisões, os jornais, as rádios ampliavam, pelas imagens e pelas palavras, esses sentimentos contraditórios de lonjura e proximidade com um povo ao qual a nossa história colonial e a nossa imaginação imperial nos ligava há séculos e, ao mesmo tempo, do qual fôramos abruptamente cortados pela emergência feliz, para nós, da democracia trazida pela Revolução dos Cravos. Em Setembro de 1999, Timor-Leste foi um misto de apego melancólico e de raiva cidadã. Entre esta melancolia e esta raiva parecia estar também a convicção de que havia de ser possível fazer prevalecer uma opinião pública nacional acordada do sonho do império, apesar de uma classe política prolongadamente negligente e descomprometida com a sua história colonial3. A criatividade e a irreverência das iniciativas pela libertação de Timor-Leste4 cobriram o país como uma imensa e insuspeitada onda, vinda do tasi feto5 índico até à costa atlântica de Portugal. Em Setembro de 1999, ao contrário do que tinha acontecido até aí6, Timor-Leste colocava nas ruas milhares de pessoas, parava o trânsito e transformava a vida privada e pública das cidadãs e cidadãos em Portugal, numa prolongada jornada de luta e na aprendizagem súbita de ‘quase tudo’ sobre aquele lugar tão longínquo. As personagens da libertação ou da ocupação tornaram-se nomes comuns nos lábios das pessoas; toda a gente conhecia datas e antecedentes; reavivou-se a memória sobre os massacres que vinham a acontecer desde 1975 e tudo parecia compreender-se e fazer sentido. As expressões dos 3 Os movimentos portugueses de solidariedade com Timor-Leste e algumas personalidades denunciaram repetidamente e publicamente, durante duas décadas, aquilo a que chamaram o descaso político da sociedade, dos políticos e dos Governos portugueses acerca de Timor-Leste. Retomando esse debate, num artigo publicado no jornal “Público”, no dia 11 de Setembro de 1999, com o título, A terceira traição, José Manuel Barata-Feyo afirma que nas duas décadas que se seguiram a 1975 o conjunto da classe politica portuguesa nunca acreditou sinceramente na causa de Timor. 4 A este propósito consultar a imprensa do último trimestre de 1999. 5 Tasi feto é a expressão em tétum que designa o mar da costa norte da ilha de Timor-Leste e que quer dizer, literalmente, mar mulher. 6 Com excepção de alguma mobilização social depois de ter sido conhecido o ‘massacre do cemitério de Stª Cruz’ que ocorreu em Díli em 1991. Contudo é de notar que esta mobilização foi parcial e pouco consequente em termos políticos. cartazes, bandeiras, autocolantes, títulos dos jornais e slogans pintados por todo o lado, denunciavam uma sociedade globalmente mobilizada em torno de acontecimentos que se transfiguraram, rapidamente, em uma causa. Talvez nesses dias densos e profundamente emocionantes de Setembro de 1999 a nossa hiper-identidade tenha vivido, um ponto de fuga onde se cruzou a nossa realidade amarga e a nossa utopia7. De facto, parece que o que se passou em Portugal no seguimento do anúncio dos resultados do Referendo em Timor-Leste foi uma majestosa manifestação de uma consciência emancipatória de si e dos seus fantasmas e, ao mesmo tempo, da guerra e da violência que acontecia naquela pequena ilha do Sudeste asiático. Convém, no entanto, não esquecer que o sentido mais profundo desta manifestação de solidariedade cumulada com as dores pela liberdade, nada deve ter a ver com ligações históricas imaginadas e ainda alimentadas por alguns. Eduardo Lourenço não deixa de chamar à atenção que não cabe a nós, os portugueses medir esse impalpável mas não menos denso sentimento de ‘distância cultural’ que separa, no interior da mesma língua, esses ‘novos’ imaginários.8 É necessário não perder de vista a especificidade das/os timores relativamente ao povo português e a sua reivindicação firme de independência, não apenas da Indonésia mas também do seu passado colonial com Portugal. Trinta e um anos após a queda do regime fascista do Estado Novo e trinta anos após a declaração da independência dos países africanos de língua oficial portuguesa e de Timor-Leste, muitas feridas permanecem por cicatrizar. Os processos de reconciliação são difíceis e precisam de muito tempo de outro tempo que não apenas o dos Tratados Internacionais e dos relógios institucionais; necessitam de resgatar as diversas memórias, as memórias divergentes, e reconstruir o ambiente propício a um novo encontro expresso nas diversas 7 Eduardo Lourenço (1983), ‘Crise de Identidade ou Ressaca Imperial’, Prelo. 1, Out./Dez, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 15-22, p. 21. 8 Lourenço, 1983; Lourenço, 1999: 192. línguas portuguesas em que estamos a dizer e a escrever as nossas histórias póscoloniais. Nestas línguas portuguesas em que, de um lado e de outro do planeta se afrontaram os fantasmas e os quebrantos e se disse, sim à liberdade e sim à dignidade, naqueles dias longos de Setembro de 1999. É a partir deste contexto politicamente complexo e emocionalmente intenso que se torna imprescindível pensar em Timor-Leste não como parte de uma história apenas aparentemente comum9 mas como parceiro das histórias que ainda estão por contar. Coimbra, tal como no passado, pode tornar-se parceira de esta história comum que está por inventar, desta vez assente no diálogo responsável e justo entre Portugal e Timor-Leste. Tendo a memória da tragédia mas também a da alegria da independência, cumpre-nos agora sermos capazes de realizar um futuro em que todas/os tenhamos a ganhar em dignidade, amizade e uma vida melhor. É neste sentido que penso que Coimbra pode ser a cidade dos Direitos Humanos, a cidade dos conhecimentos mas também deve ser a cidade de um humanismo cosmopolita, informado e solidário. Com Timor-Leste e com o seu Povo saberemos encontrar a justa forma de continuarmos seguindo a história, desta vez independentes mas, profundamente, amigos. 2 Cooperar é também construir a Paz. Celina M. dos Santos Hoje, estamos aqui para falar de cooperação e de solidariedade com o Povo de Timor-Leste, porque precisamos todos os dias de repensar e reforçar os laços que nos unem com TimorLeste e com o Mundo. 9 Como Margarida Calafate Ribeiro diz, o pós-colonialismo surge de um sentimento de necessidade de elaborar uma visão critica de entendimento da história colonial, dando voz àqueles que a sofreram ou, por outras palavras, registando, problematizando e desconstruindo a memória da história colonial escrita pelo colonialismo, ao confrontá-la com outras memórias desta história aparentemente comuns. (2004), Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Afrontamento, pp. 17. Mas, quando falamos destas problemáticas, temos igualmente de ter sempre em mente a história dos povos que é muitas vezes, e neste caso é-o em especial, uma história feita de violências, opressões e ocupações. Tudo isto traz ainda mais exigências para a nossa solidariedade, porque a envolve de necessidades e condições particulares. Poderemos encontrar muitas formas de fazer cooperação – umas mais eficazes, outras menos, umas mais paternalistas, outras menos, umas mais estruturais, outras menos. Porém, o que fará a diferença entre todos os tipos de cooperação que conhecemos é talvez o sentimento e o sentido de solidariedade, por isso, é importante insistir numa cooperação imbuída de solidariedade. Ela abre caminhos para a escuta activa e o diálogo, para relações de cooperação verdadeiramente horizontais e inclusivas. Ela é um dos instrumentos de vigilância que temos e que nos permite adequar a nossa acção à realidade. E assim terá de ser se queremos de facto ajudar Timor-Leste juntando-nos às vozes, aos conhecimentos e às energias de muitas Mulheres e muitos Homens que já existem em Timor-Leste; assim terá de ser, se é com elas e com eles que queremos fazer caminho. Sabemos que a independência de Timor-Leste, sendo uma grande vitória e uma grande conquista, sobejamente conhecida de todas e todos, é igualmente verdade que ela não resolveu, por si, todos os problemas. E, por isso, a solidariedade não pode ser apenas um sentimento, tem de se traduzir em actos e acções concretas. As opressões e as violências continuam, persistem. Entre estas opressões e violências poderíamos contar, por exemplo, a fome e a falta de meios de subsistência de pessoas e famílias, o não acesso e bens básicos como cuidados de saúde ou água potável, a falta de habitações condignas, a não oportunidade de se educar e de se formar pessoal e profissionalmente, a exclusão ou não-inclusão de pessoas dos debates públicos, a violência contra as mulheres, entre muitas outras. Mas também a opressão da insegurança física, da ameaça à integridade, do medo da violência (re-)intaurado no quotidiano e na condução desta Nação. A par da definição dos problemas que queremos e podemos ajudar a resolver e a par das alternativas que queremos ajudar a construir, temos de responder também a uma outra pergunta, como e com quem fazê-lo. É aqui também que, na óptica da AJP, nos parece fundamental um longo e sério trabalho com as Mulheres de Timor-Leste. Não apenas porque são excluídas (sendo-o em todo o Mundo), mas também porque elas ocupam lugares fundamentais na sociedade, lugares de influência e de multiplicação de resultados, e porque transportam consigo inúmeros contributos de que não podemos abdicar nestes tempos tão frágeis e tão complexos. Por outro lado, é igualmente fundamental o trabalho com as jovens e com os jovens de TimorLeste. É aqui também que lançamos bases, dentro e fora das escolas, para uma Cultura da Paz, para uma sociedade democrática, participativa e inclusiva que respeita os Direitos Humanos e não exclui. Na verdade, poderíamos dizer que este é um projecto para o Mundo, se bem que as escalas do desafio variem de lugar para lugar. Durante a ocupação colonial de Timor-Leste, muitas pessoas e grupos, entre os quais a AJPaz, mantiveram a convicção de que a Independência de Timor-Leste era condição absoluta de Paz e Justiça. Era condição porque permitia a autonomia, a liberdade e a soberania de um Povo sobre o seu país, a sua sociedade, a sua cultura, os seus recursos, isto é, sobre o seu Presente e o seu Futuro, sobre a sua História. Durante todo este tempo, também lutámos, como nos foi possível, para denunciar a violência, a destruição, as mortes, as violações dos Direitos Humanos e do Direito Internacional. E trabalhámos para mostrar a justeza da demanda de independência e da viabilidade de um Futuro Diferente e Melhor. E essa convicção mantêm-se, apesar das dúvidas, dificuldades, dilemas e morosidade de mudanças tão urgentes e fundamentais. Foram muitos os projectos, acções e plataformas em que estivemos e nos quais fizemos seminários, manifestações, acções de rua, campanhas, lobby, etc. Porém, por outro lado, todo um outro conjunto de projectos foi sendo posto em marcha visando o futuro, procurando construir relações e diálogos solidários. Estes são projectos que chamamos de Solidariedade Internacional e que são também de Educação para a Paz, para os Direitos Humanos e para o Desenvolvimento. Este esforço de construir cá e lá uma Cultura da Paz passou, e passa ainda, pela edição de livros, de artigos de opinião e de álbuns de fotografias, mas também de cursos de língua e cultura timorenses, formação de dirigentes associativos e de voluntárias/os. Neste caminho fomos descobrindo a solidariedade de muitas pessoas, mas em especial descobrimos e conhecemos as vozes das mulheres de Timor-Leste, cansadas da guerra e construindo a paz. Os diálogos com estas mulheres levam-nos a concluir que muito trabalho tem de ser feito a nível nacional e internacional, mas também ao nível local e comunitário e com pessoas e grupos específicos. É verdade que hoje a cooperação, que queremos manter muito além da Independência de Timor-Leste, exige de todas e todos nós um novo esforço de reflexão sobre as necessidades e as condições, que são outras. Teremos de re-inventar projectos que já existem e procurar outros que ainda não foram inventados, porque a tónica não é mais, felizmente, a Independência, mas sim a Paz, a Paz em todas as dimensões da Vida, a Paz que garante a Dignidade de todas as Pessoas e Criaturas. E a tónica não será apenas suprir necessidades ou atender a crises, a tónica e o repto são suprir todas as necessidades e carências, ao mesmo tempo que criamos e inventamos um Outro Timor-Leste e Um Outro Mundo, lançando sementes que perdurarão no tempo e no espaço. A tónica é erradicar a violência como solução para as diferenças, para ultrapassar dificuldades, como estratégias de poder e influência; a tónica, é portanto, a participação, a democracia e a justiça. Precisamos continuar e re-descobrir o que de melhor temos para partilhar nas nossas relações de cooperação com Timor-Leste e o que é mais necessário partilhar, e seguramente, todas e todos teremos lugar e contributos. E isso não acontecerá sem um amplo e permanente diálogo com as Mulheres e os Homens de Timor-Leste. Talvez essa seja mesmo uma condição prévia, um projecto primeiro, abrir espaços de diálogo entre pessoas e comunidades, lá e cá, espaços de desvelem as realidades, que articulem e complementem esforços. Antes de terminar, gostaria de assinalar alguns elementos e princípios que a partir da nossa experiência e aprendizagem nos parecem fundamentais: O desenvolvimento e organização auto-sustentável das comunidades, disseminando o acesso à cobertura de necessidades básicas e criando mecanismos de subsistência; A inclusão digna e visível de todas as pessoas nestes processos, sem esquecer as Mulheres e as/os Jovens; Criação e consolidação de espaços públicos onde cidadãs e cidadãos se organizem e participem E finalmente, A construção de uma Cultura da Paz que capacite as pessoas e as comunidades para serem protagonistas das suas vidas e que comprometa com a não-violência, com a dignidade humana, com a solidariedade, a democracia e a participação.