“Sou morador de rua, mas não sou como aquele ali não”: pessoas em situação de
rua em Recife e as negociações de si mediante o estigma.
Thiago Santos1
Resumo: Este artigo discute as estratégias usadas pelas pessoas em situação de rua, que
habitam o centro do Recife–PE, para conferir a si dignidade mediante o lugar de sujeito
estigmatizado que ocupam. Nesse sentido, faz-se uso do conceito de Estigma, como
desenvolvido por Goffman(2008), o qual indica que o indivíduo que carrega um estigma
é reduzido a uma pessoa estragada e diminuída e que, por definição, não se acredita que
o portador seja humano por completo. A questão é que o estigmatizado sabe o que
significa o estigma que carrega; mas, apesar de serem colocados no polo negativo da
sociedade, guardam os mesmos valores morais que a sociedade em geral. Neste ponto
surge o impasse que se lança o olhar neste trabalho: identificar e demonstrar as
estratégias utilizadas por estes atores para negociar a sua identidade enquanto
moradores de rua mediante a relação com a vergonha de terem sobre si esse estigma,
essa marca depreciativa, e como articulam maneiras para revalidar sua condição moral e
sua dignidade. O recurso à imagem do “cidadão de bem” é sempre presente, na figura
do trabalhador. Contudo, a principal estratégia identificada é a de que os entrevistados
constituem a argumentação de quem são, reafirmando os estereótipos que a sociedade
lança sobre as pessoas em situação de rua para os outros moradores de rua – negando
para si todos os atributos depreciativos.
Palavras-chave: Estigma; População em Situação de Rua; Moralidade; Dignidade;
1
Thiago Santos é mestrando em Antropologia, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA-UFPE).
Introdução: o que é isso que chamamos população em situação de rua?
Não é de difícil percepção que todas as pessoas em situação de rua têm em
comum a condição de pobreza extrema: a imagem de "viver abaixo da dignidade
humana" está escancarada como marca da população em situação de rua nas pesquisas
científicas (LEAL, 2008; SILVA 2009), nas pesquisas oficiais (SUMÁRIO
EXECUTIVO, 2008; Recife, 2006), pelos movimentos sociais (CARTA AO
PRESIDENTE, 2009), pela representação de tal população na mídia (exemplo
https://www.youtube.com/watch?v=noYsAQAqWW4).
Sendo
assim,
como
é
ressignificar a si e ao seu meio no lugar de ser estigmatizado? Suas práticas? Como é
desenvolver táticas de sobrevivência? Como O presente trabalho faz um esforço em
demonstrar como pessoas em situação de rua lidam com essa transição, como
ressignificam a vida social e desenvolvem estratégia de sobrevivência. Este artigo está
baseado nos dados e discussões da pesquisa monográfica intitulada Rios, Pontes e
Outros Corpos: notas sobre a população em situação de rua no centro do Recife.
Na literatura corrente sobre o tema2, percebe-se o consenso de que a população
em situação de rua é formada por um grupo extremamente heterogêneo, Escorel afirma
que “o que todas as pesquisas revelam é que não há um único perfil da população de
rua, há perfis; não é um bloco homogêneo de pessoas, são populações” (ESCOREL,
2000. p.155). Assim, é justamente no esforço de traçar os aspectos nos quais esse bloco
heterogêneo tem seus pontos de intersecção, os quais possibilitam sua definição
enquanto grupo, que Maria Lúcia Lopez da Silva faz uma síntese e enumera tanto os
aspectos que caracterizam o fenômeno, quanto lança mão das características gerais da
população em situação de rua.
Para a Silva(2006), os aspectos que caracterizam o fenômeno podem ser
definidos em seis pontos fundamentais: tem múltiplas determinações, onde tem-se de
um lado fatores estruturais, que estão ligados as questões de desemprego, decorrente
impossibilidade de manter moradia, transformações econômicas que têm grande
impacto social, desapropriações feitas por órgãos governamentais em favor de projetos
de “desenvolvimento”3; e de outro lado temos os fatores biográficos, são eles o
2
SILVA, 2006; Recife, 2006b; VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004; LEAL, 2008; CUNHA, 2009;
SUMÁRIO EXECUTIVO, 2008. Entre outros.
3
No caso do Brasil ao sediar a Copa do Mundo FIFA 2014, houve uma grande mostra da relação entre
2
alcoolismo e a drogadição, vício em jogos, perda total dos bens pelo motivo que seja, o
esfacelamento dos vínculos familiares: são os motivos que estão estritamente
relacionados às experiências individuais. Evidente que essas dois fatores que levam as
pessoas à situação de rua podem ser o motivo único ou podem estar relacionados entre
si. Segundo tem-se o fato de que a situação de rua é uma expressão radical da questão
social4 na contemporaneidade, onde a questão social é um termo que se refere a todos
os fenômenos que podem ser identificados como resultado “naturais” da sociedade
moderna, no que se refere à desigualdade social. Em terceiro, ela é localizada nos
grandes centros urbanos, devido a grande circulação de pessoas e intensa atividade de
comércio, há a oferta de possibilidades de obter recursos vindo de bicos ou de
mendicância, grande oferta de recursos. Em quarto, o preconceito como marca do grau
de dignidade e valor moral atribuído pela sociedade às pessoas atingidas pelo
fenômeno, pois a sociedade cria o estigma do morador de rua, baseada na ética do
trabalho, como “fracassados”, “incapazes”, “vagabundos”, …, e é comum as pessoas
afetadas por estes relatarem essa associação como o ponto que mais dói, sendo este
ainda o reforço intermitente da identidade negativa. Em quinto lugar ela tem
particularidades vinculadas ao território em que se manifesta, ou seja, a percepção
sobre a população de rua, a configuração desses grupos, suas táticas de sobrevivência, a
solidariedade da sociedade a ela vai variar necessariamente com os valores e
características sociais do local onde ela se apresenta. Por último temos a tendência à
naturalização do fenômeno, onde se considera normal que pessoas morem nas ruas,
atribuindo a elas a responsabilidade por não terem conseguido se firmar no mundo do
trabalho e impedindo a percepção de que é fruto de um modelo econômico e
consequentemente obscurecendo as formas possíveis de enfrentamento.
Após caracterizar o fenômeno, Silva(2009) debruça-se sobre as características
gerais da população em situação de rua. De acordo com a autora, a heterogeneidade
dessa população é a característica fundamental de partida: as trajetórias, biografias,
valores, interesses, origem de classe, formação escolar, orientação sexual e religiosa,
4
a adesão ao modelo de Mega Evento e o impacto negativo no âmbito social. Para mais sobre essa
questão, especialmente com estudos sobre Pernambuco, numa perspectiva antropológica ver os
trabalhos recentes produzidos e coordenados por Russel Parry Scott (UFPE/PPGA e FAGES) e, no
serviço social, as discussões de Rudrigo Rafael Souza e Silva sobre direito à cidade.
O debate sobre a questão social se inicia com Marx e tem uma longa tradição que não é homogênea,
pode-se ter um bom panorama do debate acerca através do texto “Cinco Notas Sobre a Questão
Social”, de José Paulo Netto.
3
etc, são tantas as singularidades e subjetividades que fazem com que não constituam um
único grupo ou categoria profissional. Contudo, existe três condições que ela destaca
que devem ser levadas em consideração ao analisar/pensar o grupo, articulando-as entre
si, por serem condições que perpassam todas as variações das tipologias de moradores
em situação de rua. São elas: a pobreza extrema é partilhada e identificável de várias
formas ao analisar os estudos e fazer entrevistas, ela se manifesta na alimentação
precária, na motivação da busca pelo trabalho, nas condições de higiene; é produzida
socialmente e central para estabelecer a relação necessária entre o fenômeno e suas
causas estruturais. A segunda é o fato de que têm os vínculos familiares interrompidos
ou fragilizados, a situação de rua força uma quebra na sociabilidade com a família
possivelmente não só pela situação em si, mas esta é somada a consequência também
dos mesmos motivos que ocasionaram a ida para as ruas. A terceira e mais definidora da
população, é – evidentemente – a inexistência de moradia convencional regular e a
utilização da rua como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou
de forma permanente, esta condição é a definidora e definitiva. Então, o grupo é
definido da seguinte forma:
considera-se população em situação de rua como um
grupo populacional heterogêneo, mas que possui em
comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, em função do que as pessoas que o
constituem procuram logradouros públicos (ruas, praças,
jardins, canteiros, marquises e baixos de viadutos) e as
áreas degradadas (dos prédios abandonados, ruínas,
cemitérios e carcaças de veículos) como espaço de
moradia e sustento, por contingência temporária ou de
forma permanente, podendo utilizar albergues para
pernoitar e abrigos, repúblicas, casas de acolhida
temporária ou moradias provisórias, no processo de
construção de saída das ruas (SILVA, 2009. p.29).
Essa definição é uma síntese muito feliz de uma análise densa dos processos
estruturais que provocaram o surgimento do fenômeno, levando em consideração os
aspectos que os caracterizam como também as características gerais que perpassam
todas as configurações, por mais que suas singularidades as diferenciem.
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Preconceito ou estigma? Considerações sobre os termos.
De acordo com a definição apresentada, uma das características do fenômeno da
população em situação de rua é a de que ela tem o “preconceito como marca do grau de
dignidade e valor moral”. Porém, acredito que uso do termo estigma, como
desenvolvido por Goffman(2008), em detrimento de preconceito, seja mais adequado ao
caso das pessoas em situação de rua. Visto que, ao analisar a definição de preconceito,
temos que ele é:
uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a
membros de um grupo ou categoria social. Como uma
atitude, combina crenças e juízos de valor com
predisposições emocionais positivas ou negativas. (...)
Tecnicamente, por exemplo, qualquer preconceito de base
racial constitui racismo, assim como qualquer preconceito
baseado no sexo é sexismo, como qualquer preconceito
baseado na etnia é etnicismo. Isso significa que
preconceitos dirigidos contra homens é sexismo, e que
preconceitos dirigidos por negros contra brancos é
racismo. (JHONSON, 1995. p.180). (Grifos nosso)
Tomando como base esta definição, identificam-se alguns pontos do conceito de
preconceito: que o preconceito é uma atitude, enquanto tal só existe na ação, na
discriminação; o mesmo preconceito pode se manifestar sobre subalternos e opressores;
e também é usado para negativar ou positivar pessoas ou grupos, não sendo apenas um
recurso usado para diminuir. E muitas vezes o preconceito se manifesta de forma
ambivalente, onde a degradação e positivação ocorrem simultaneamente. Como
exemplo, em sociedades que negros sofrem preconceito de raça, são atribuídas
características negativas, por um lado, que associam o sujeito negro à baixa inteligência
e à natureza, e características “positivas”, por outro, nas quais ele tem ótimo
desempenho físico e aptidão sexual. São essas duas formas juntas que compõe o
imaginário estereotipado sobre o negro, é nesse duplo movimento que o imaginário
social e a identidade social do negro são construídos: na dinâmica ambivalente que o
estereótipo carrega (Bhabha, 2005). A definição e uso de preconceito, nos termos
descritos, é abrangente e ambivalente. Um mesmo estereótipo/preconceito pode
negativar e positivar ao mesmo tempo.
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Goffman diz que quando as marcas pelas quais as pessoas passam a ser
identificadas socialmente são negativas, ali está o estigma; e que, apesar da
multiplicidade de formas que o estigma passa a ser sobreposto aos sujeitos –
abominações do corpo, culpas de caráter individual, tribais de raça, nação e religião –
em todos esses casos
encontra-se as mesmas características sociológicas: um
indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na
relação social quotidiana possui um traço que pode-se
impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção para os outros
atributos seus. (GOFFMAN, 2008. p.14).
Ou seja: não importa o tipo ou de onde ele vem, o estigma é radical. Produz uma quebra
na relação social entre os portadores de estigmas e as outras pessoas. Pois, as
expectativas que os estigmas indicam são tidas como certas e reduzem a identidade do
estigmatizado à marca: essa condição suprime seus outros atributos, outras qualidades,
impossibilitando que ele se mostre algo além do que sua marca indica. Retomando o
exemplo do estereótipo associado ao negro como um estigma, não seria possível o
reconhecimento ou valorização de um outro atributo seu – mesmo que, ao fim e ao
cabo, esse lado "positivo" seja igualmente preconceituoso/discriminatório – como o da
aptidão sexual.
Os dois conceitos a princípio são próximos. Assim como o estigma, o
preconceito também é socialmente construído e baseado em expectativas vindas de
prenoções, tem consequências de segregação, degrada um sujeito e valoriza o seu
oposto. Contudo, ele não tem a expressão radical que o estigma condensa: ao
estigmatizado não existe espaço para dúvida, não existe espaço para "possibilidade de"
ou para a espera de que se prove o contrário – por mais que seus portadores
desenvolvam táticas para superar tal condição. Assim sendo, os dois termos são
possíveis de uso para esse tema; contudo, a ideia de estigma me parece ser muito mais
próxima da experiência das pessoas afetadas pela alcunha de "morador de rua" do que a
ideia de preconceito: O estigma tem potencial analítico que preconceito não tem. O
estigma induz imediatamente a reação, negativa e negativadora, tão logo que se faz
presente. Ao observar as pessoas em situação de rua em "interação" nos espaços
públicos, conversar com elas, ler sobre elas e a questão do descaso, não conseguia
6
associar a ideia "simplista" de preconceito a essa condição: precisava de outro termo
mais condizente.
Quando a ambivalência do termo preconceito fica pelo caminho, sobra a face
crua e negativa dessa noção que podemos tomar como estigma – que indica a profunda
negatividade de ser marcado, que impregna praticamente todas as esferas da experiência
de quem a tem. Não aceitar a ambivalência, está condizente com mais um propósito que
pode ser ilustrado do seguinte modo: o lado negativo da situação de rua é fácil de
identificar, mas e o positivo? Seria a liberdade, o tempo, falta de compromissos, nãotrabalho? Ao encarar a situação de rua como estigma, como marca que indica um mau
radical em si, sem rodeios, evitamos também a possibilidade de romantizar (no sentido
pobre do termo) esta condição, atribuindo a ela a ideia de que "tem um lado bom,
equivalente e compensatório".
Estigma e o estigmatizado.
Ao surgimento e desenvolvimento dessa noção Goffman atribui em primeiro
lugar aos gregos, que criaram o termo para se referir aos portadores de sinais corporais
que eram feitos a ferro e fogo, como em gado para contagem, que evidenciavam alguma
coisa de extraordinário ou mau sobre a índole moral de quem tinha sobre si essa mácula,
servia como um chamariz sinalizando que ali está uma "pessoa marcada, ritualmente
poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos" (ibid p.11). Após
os gregos, a noção foi adicionada de um novo elemento na Era Cristã ao termo, onde
passasse a ter dois sentidos: um no qual estigma representa sinal no corpo de graça
divina e outro, sendo uma alusão médica ao primeiro, percebe-se os sinais no corpo
como distúrbios físicos. Contudo, ao tempo em que Goffman escrevia, disse ele, o
termo era usado amplamente associado à própria desgraça mais do que às marcas
corporais. Ou seja, o estigma no séc. XX está mais próximo das significações socais
relacionadas à degradação, às marcas simbólicas, que antes às marcas físicas
objetivamente, sendo tanto as marcas como as desgraças variáveis de acordo com o
tempo e localidade.
Para conceituar estigma, Goffman parte do princípio de que a sociedade fornece
uma série de normas de categorização específicas para os sujeitos e espaços sociais,
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criamos uma série de identidades e preconcepções sobre os sujeitos e "baseando-nos
nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em
exigências apresentadas de modo rigoroso" (GOFFMAN, 2008. p.12). Essas
preconcepções são percebidas socialmente através de marcas, elementos de
significação, que alocam os sujeitos em determinadas posições que aludem a padrões de
comportamento e previsão de ação. Quando tais marcas são negativas, são percebidas
como estigmas, podendo ser percebidas e estudadas sociologicamente nos “'contatos
mistos' – os momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma 'situação
social', ou seja, na presença física imediata um do outro,"(GOFFMAN, 2008. p.22).
O estigma cria identificações, se consolida na relação entre a identidade social
virtual e a identidade social real. No primeiro caso, os indivíduos respondem e
virtualmente correspondem – pelas já mencionadas – as expectativas normativas,
através de exigências apresentadas de modo rigoroso; o segundo caso é relacionado aos
atributos que o individuo, na realidade, tem. Atributos estes que estão postos em relação
a uma certa identidade/modo de ser dominante, identificado aqui como o sujeito normal
– O Sujeito. O ponto é o de que a identidade social virtual se antepõe a possibilidade de
que existam divergências quanto a identidade social real, resumindo o sujeito à
representação virtual que tem perante a sociedade. Essa relação se estabelece numa
dinâmica perversa na qual:
deixamos de considerá-lo [o portador do estigma] como
uma criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa
estragada e diminuída. Tal característica é um estigma,
especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito
grande (...) e constitui uma discrepância específica entre a
identidade virtual e a identidade real. (...) O termo
estigma, portanto, será usado em referência a um atributo
profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na
realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos.
Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo,
nem honroso nem deshonroso.”(GOFFMAN, 2008. p. 1213).
A identidade social do estigmatizado é, via de regra, negativa e degradada com a função
de diminuir valorativamente sujeitos frente ao sujeito normal; confirmando sua
normalidade, mesmo que as características que são atribuídas como degradantes não
façam sentido em si mesmas. Quando as marcas pelas quais as pessoas passam a ser
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identificadas socialmente são extremamente negativas, ali está o estigma; e que, apesar
da multiplicidade de formas que o estigma passa a ser sobreposto aos sujeitos –
abominações do corpo, culpas de caráter individual, tribais de raça, nação e religião –
em todos esses casos. Como dito anteriormente, não importa o tipo ou de onde ele vem,
o estigma é radical. Produz uma quebra na relação social entre os portadores de
estigmas e as outras pessoas. Pois, as expectativas que os estigmas indicam são tidas
como certas e reduzem a identidade do estigmatizado à marca: essa condição suprime
seus outros atributos, outras qualidades, impossibilitando que ele se mostre algo além
do que sua marca indica.
O estigma é valioso aqui por denunciar a relação na qual se institui extremos
entre um sujeito normal e um outro sujeito depreciado socialmente, marginalizado. Em
consequências desse corte entre identidades, a sociedade acaba por tratar o
estigmatizado como um não-humano, consciente ou não disto, e reafirma em ato e
representação estas marcas a todo momento. Uma questão fundamental levantada em
Estigma (2008), que se (im)põe como central, reside no fato de que "o indivíduo
estigmatizado tende a ter as mesmas crenças sobre identidade que nós temos [sujeitos
normais]; isso é um fato central. Seus sentimentos mais profundos sobre o que ele é
podem confundir a sua sensação de ser uma “pessoa normal”, um ser humano como
qualquer outro" (ibid. p.16). O sujeito normal, a vida ideal, os valores éticos e morais
que são amplamente compartilhados e reafirmados o tempo inteiro são também
referenciais de identidade para o estigmatizado; de forma geral, eles têm os mesmos
referenciais de positivo/negativo e agem no mundo a partir deles. O problema é que o
sujeito estigmatizado sabe que, assim como qualquer outro, não há nada nele que o
torne essencialmente diferente dos ditos normais, e a partir daí, mas curte em carne e
espírito a (in)diferença de ocupar o lugar de Outro vivendo no centro do universo do
Um.
Diferentes se tornando um: chegada às ruas.
A heterogeneidade pela qual a população de rua é composta, sua múltipla
determinação e as diversas trajetórias que levam as pessoas a morar nas ruas,
apresentava-se como um impedimento à pesquisa. Não parecia mostrar onde/em que se
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configuravam como um grupo. O fato de que os diversos informantes vivenciam a
mesma experiência da rua de formas diferentes, tanto a chegada quanto o processo de se
manter nas ruas, parecia mostrar que eram questões muito díspares as que suas
entrevistas suscitavam. Como seria possível entender, por exemplo, que ao Ana Cristina
descrever o seu processo de chegada às ruas vê-se uma maneira que se mostra como
única:
Vim para as ruas por que tive problemas em casa. Tive um
pirraia muito novinha [aos 16 anos], meu pai gostou não.
Aí ficava brigando, brigando, eu me arretei e saí de casa.
Aí ficava aqui na rua, ia em casa ver meu menino e
voltava pra cá. Tive que me acostumar a dormir no chão,
ficar perto do lixo, pedir comida na rua, essas coisas.
Porque não dá pra conseguir emprego, né? E nessa eu fui
ficando e estou até hoje [com 35 anos]. (Ana Cristina.
Diário de Campo, 16 de dezembro de 2014).
E ao Fernando falar sobre sua efetivação na rua de maneira igualmente singular:
Vivia eu, minha mãe e meu irmão. A gente morava
naquele albergue ali ó [apontava prédio em uma
transversal da Rua do Imperador]. Minha mãe morreu tem
5 anos, a gente ficou sem ter como pagar o albergue, por
que ela ganhava mais dinheiro. Começamos a dormir de
vez na rua, fazer mais bicos, comer do lixo. Mas, eu como
do lixo mais não, tem três anos que meu irmão morreu
depois de comer coisa estragada no lixo. (FERNANDO.
Diário de Campo, novembro de 2013)
Ambos estavam narrando sua história de vida, que são muito díspares à princípio,
pareciam não ter nada que pudesse ser conectado entre as duas pessoas para pensar um
lugar-comum; mas que ao decorrer de muitas outras histórias de vida e de chegada às
ruas bem diferentes umas das outras, pontos em comum emergiam com uma certa
nitidez. A influência da trajetória individual sobre a percepção de si é clara: é a biografia
que fornece muito de como os atores se percebem; mas ela tem um limite. Não importa
se a motivação de chegada às ruas foi uma gravidez indesejada ou tentar a vida na
metrópole: a condição atual, a situação de rua, se coloca como sobredeterminante a elas
e os une em muitos aspectos, fortemente no que diz respeito às estratégias de
sobrevivência e percepção sobre si. Tal questão é bem ilustrado nesta passagem:
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Embora essas experiências possam parecer únicas ao
indivíduo, as representações de tais experiências não
surgem das mentes individuais; em alguma medida, elas
são o resultado de processos sociais. […] Isso pode ser
visto em uma série de entrevistas. As primeiras são cheias
de surpresas. As diferenças entre as narrativas são
chocantes e, às vezes, ficamos imaginando se há ali
algumas semelhanças. Contudo, temas comuns começam a
aparecer, e progressivamente sente-se uma confiança
crescente na compreensão emergente do fenômeno. (Bauer
e Gaskell, 2014).
Esse processo foi ficando claro ao longo do tempo no qual mais entrevistas
foram feitas. Com um número maior de entrevistas, de histórias de vidas bem diferentes
contadas, de observar que alguns dos temas comuns que emergiram estavam
intimamente ligados ao ponto no qual a representação social sobre os moradores de rua
é confrontada/sentida pelo próprio morador de rua. No diário de campo, o comentário
sobre a entrevista com Anderson, mostra que:
Anderson considera que parar na rua foi de certa forma
como escolha mesmo, pois “não quis ir morar com minha
mãe, quis ficar por aqui mesmo. Ligo pra ela todo mês.
Mas, não quero morar com ela nem com ninguém não, tá
ligado?”; mas ao mesmo tempo gostaria de sair da rua,
morar numa casa, e acha que a saída é possível através de
conseguir contratação em um emprego que lhe garanta
renda fixa por que “o emprego é o principal pra sair da
rua, né? Tem outras coisas, mas o emprego é mais
importante”. Contudo, ele acredita que conseguir um
emprego é difícil, mais por que ele tem “passagem” do que
por ser morador de rua – ser morador de rua vem como
problema secundário. (Diário de Campo, 16/12/2014).
E o comentário sobre a entrevista de Ana Cristina:
Ana Cristina atribui a saída das ruas à escolha própria,
visto que não queria continuar “brigando, brigando, eu me
arretei e saí de casa”. A imersão nas ruas foi gradual, pois
ela mantinha visitas constantes à sua casa, em Jaboatão
dos Guararapes, para ver seu(s) filho(s) – por vezes
dormia e ficava um pouco lá. Contudo, ela gostaria de sair
das ruas ou ter uma vida mais digna, e referência à
impossibilidade de conseguir emprego como principal
problema. (Diário de Campo, 20/12/2014)
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Em ambos comentários, fica claro que as trajetórias são bem diferentes mas
sinalizam pontos em comum, que estão intimamente ligados à experiência de ser
morador de rua – mesmo que eles não atribuam a essa condição o motivo de sua
dificuldade em conseguir emprego ou sair das ruas.
Então, ficou claro e marcante que as “vozes díspares”, para além de suas
peculiaridades individuais, se unem em coro ao relatar medos e anseios relacionados à
importância do trabalho e a dificuldade conseguirem ser efetivado em um, o cuidado
para não ser associado aos marginais ou de entrar para a marginalidade, a relação com
as drogas, a humilhação da qual são vitimados cotidianamente, o sentimento de ser
invisíveis perante os “cidadãos de bem”, a frequente tentativa de estabelecer a diferença
entre “eu, morador de rua respeitável” e “aqueles outros que não são coisa boa”, a
dificuldade que é se estabelecer nas ruas, como uma luta cotidiana pela vida. Tais
pontos se alçaram muito além de histórias tristes ou trágicas de dimensão estritamente
pessoal, para se consolidarem como bons alicerces para tentar entender como a
experiência de ter nas ruas sua moradia torna-os um grupo e como molda a percepção
sobre si.
Ressignificações de si e o novo-velho mundo.
Chegar às ruas e se estabelecer nela como morador, ser das ruas, é uma
experiência que
(re)modela muito das percepções sobre formas de vivência
convencionais. A casa é algo muito distante, passa a não existir; em consequência, toda
a sociabilidade do ambiente doméstico sofre uma forte alteração: o que e onde se come,
a manutenção da higiene, a noção de intimidade, a percepção sobre família é
transformada. Justamente porque,
Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à
condição de espoliação, enfrentando carências de toda
sorte, mas significa, também, adquirir outros referenciais
de vida social, diferentes dos anteriores baseados em
valores associados ao trabalho, à moradia, às relações
familiares. (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004. p.96).
As entrevistas feitas demonstraram claramente também que essa mudança não é
gradual, na grande maioria dos casos, ela é radical. A aquisição dessa nova forma
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valorativa da vida acontece de forma muito rápida, ao ponto de pessoas – com as mais
diversas biografias – que estão na rua há menos de um ano relatarem, com uma
proximidade muito grande, valores/problemas de quem está nas ruas há uma década.
Como o pouco tempo na rua influência na percepção sobre
si? Aparentemente, Anderson tem o mesmo relato de
percepção que a maioria dos entrevistados: sente-se
diminuído, negligenciado, como se não fosse humano e
não tivesse direitos. A experiência de pouco tempo na rua
seria radical sobre a percepção de si: torna quem está há
10 anos ou 10 meses em não-humano. (Diário de Campo,
12/2014).
O primeiro ponto indicado como problemático é o da dificuldade de conseguir
emprego. No que diz respeito a este tema: Anderson está nas ruas há menos de um ano,
e ao falar sobre sua chegada à rua e sobre os outros problemas que acarreta ocupar tal
lugar, mostra que há uma impossibilidade de conseguir emprego, tanto por ser morador
de rua como por ter tido passagem pela polícia; Ana Cristina indica que não pode
conseguir emprego por que “simplesmente não dá”, a rua sempre foi seu espaço de
obtenção de recursos.
Com exceção de Ana Cristina, todos aludem ao fato de que têm experiência
profissional, têm conhecimentos válidos para desempenhar funções minimamente bem
remuneradas – pedreiro, ajudante de pedreiro, garçom, trabalhos manuais em geral –,
mas que no final das contas essa experiência não vale de nada hoje no mercado. Todos
mostram, de maneira mais ou menos tímida, que seu conhecimento e seu corpo é
desprezado pelos empregadores pelo fato de que ocupam o lugar de moradores de ruas,
sabem que há uma ligação necessária entre a não disponibilidade de emprego para eles e
o estigma que carregam. Este trecho da entrevista com Alcides mostra que:
Já tem um monte de preconceito contra a pessoa que tá na
rua, dizem “tudo é marginal”. Quem vai contratar um
marginal? Fora isso ainda tem muitas outras coisas, não é
só do preconceito também: muita gente na rua não tem
documento, não tem casa, não tem carteira de trabalho...
tudo isso dificulta conseguir emprego ou mesmo estudar
pra ter um trabalhozinho. (ALCIDES, )
As táticas desenvolvidas para superar a não-inclusão no sistema de trabalho são
diversas, e conhecidas como “bicos” ou “oias”: trabalhos esporádicos e informais,
13
normalmente manuais e não exigem nenhum tipo de qualificação. Os mais comuns são:
catador de materiais recicláveis, flanelinha, vendedor de pipoca no centro e ajudante em
atividades braçais como carregar caminhões. Além destes bicos, ainda se tem a
mendicância como forma de sustento. Interessante é pensar o significado atribuído ao
trabalho nessa condição. Além da função primária e prática de garantir o sustento diário,
o trabalho também entra como o passaporte único para a reabilitação social, como a
forma de recuperar a dignidade perdida na vida; também é uma forma de se sentir útil.
A constituição e vínculos de amizade se mostraram como um laço necessário no
dia a dia, com uma certa ressalva para possibilidade de que a confiança pode ter um
preço alto. As entrevistas mostraram que a parceria se estabelece por uma questão de
cuidado mútuo com pertences e estratégias de defesa: nos grupos está, minimamente, a
salvo da violência que pode ser praticada por outras quaisquer pessoas, seja morador de
rua ou não. Além de poder ser uma forma de divisão de trabalho também, onde alguns
mantêm “guardam” o espaço que todos habitam e fazem mendicância, cuidam das
crianças enquanto os outros vão pra catação ou outros tipos de atividade que
complementem a renda.
Uma das entrevistas foi feita com um grupo de aproximadamente cinco
mulheres, das quais três participaram ativamente. Elas estavam cuidando de suas
crianças, de um bebê com meses até outros que estavam na faixa dos 4 anos. Moravam
todas na Praça 17, em frente à Igreja. Todas relataram que estavam lá fazendo uma parte
das tarefas necessárias, como cuidar das crianças e manter seus pertences a salvo.
Raíssa diz que:
Tenho dois filhos e não tem como fazer tudo, meu marido
sai pra cuidar dos carros e pra fazer os corre. Eu fico aqui
cuidando das coisas e dos meninos. Pego ajuda do pessoal
que passam, e também das irmãs de igreja que ajudam. Aí,
junta todo mundo aqui, né? Fica a gente cuidando das
coisas um dos outros, dos filhos também quando precisa.
Não dá pra deixar os meninos soltos por aí. Tem que
confiar no pessoal aqui e ficar de olho pra se sair se pessoa
não prestar.
Seu relato é complementado pelo da companheira Verônica:
Eu mesmo estou aqui tem muito tempo já, criei meus filho
tudo na rua. Sozinha, sem marido, com ajuda dos amigos
14
que a gente faz por aí. Todo mundo ajuda um pouquinho e
a gente vai vivendo. Tenho muita história ruim pra contar
de gente que você confia e bota pra lascar em você, mas
tem muita coisa boa também.
Os dois relatos, de companheiras, indicam a necessidade de se estabelecer
vínculos de amizade para manter-se vivendo minimamente segura. Seja pelo cuidado
material ou pelo cuidado afetivo. Mas, mostram também que é um processo delicado, no
qual a confiança está sempre no limite, sendo provada a cada dia.
Os entrevistados também demonstraram uma quebra clara no que consiste há
como e onde morar e como e onde comer. Não há mais os mesmos parâmetros, em
muitos casos há a perda do parâmetro. No caso da moradia, escolhem áreas centrais,
mas também pesam se conseguiriam conviver com as pessoas que formam os grupos no
lugar e também se seriam aceitos. É notável que haja uma lógica para a escolha dos
pontos de moradia, não se escolhe tal marquise ou tal rua por uma mera falta de opção:
há um jogo intricado de representações sobre quem é o tipo de lá e o de cá. Quando
perguntados sobre as pessoas que moravam em determinados locais de pesquisa, sempre
havia uma descrição como “ali o pessoal é catador e ali é tudo noiado 5”. Como fica
claro nesse trecho da entrevista com Anderson, quando perguntei se ele poderia me
indicar locais onde eu encontrasse mais pessoas para fazer entrevistas, ele respondeu
que:
Tem gente em todo canto por aí, é só prestar atenção.
Agora tenha um pouco de cuidado, por que aqui tem um
pessoal que trabalha, faz os corre e tudo mais, ali na frente
[Rua Duque de Caxias] tem um monte de catador. Agora
do outro lado da ponte [Cais da Alfândega, Recife Antigo]
só tem noiado, que pode te roubar pra comprar droga e tal.
Só tem desses lá. (Entrevista com Anderson. Diário de
Campo)
Ou quando Fernando disse por que não estava próximo das pessoas em situação de rua
enquanto esperava pelo grupo que vinha distribuir sopa: “Eu fico aqui, afastado deles
por que não quero ser confundido, né? Tem uns ali que mexe com coisa errada, aí
quando vem a cobrança tá tudo junto” (Fernando, 11/2013). Isto mostra que a escolha
por morar, em alguma medida, está relacionada com a construção de uma identidade
5
“Noiado” é o termo usado para designar pessoas viciadas em drogas entorpecentes, como crack e
cola.
15
dentro e fora do grupo. Entre eles, o lugar onde se mora também é um símbolo
distintivo de qual é o tipo de vida que se leva.
Reprodução do estigma como estratégia de validação de si.
Um ponto que se mostrou muito forte para pensar os moradores de rua foi a
forma como eles indicavam os outros. Neste ponto intricado, onde muitos dos
preconceitos e estereótipos são (re)afirmados pelos próprios moradores de rua para com
seus colegas. Por que muitos não parecem se enxergar na mesma condição que os seus
colegas, e acabam reconhecendo que os outros são tratados de maneira humilhante e
degradada, mas tentam superar esse ponto não admitindo que são como eles. Assim, a
forma como avaliam seus colegas, se avaliam em última instância, é de acordo com o
estereótipo e humilhação lançados pela sociedade para eles; “o morador de rua assume
de forma extremamente rígida o estigma lançado sobre si, utilizando os olhos da
sociedade para avaliar sua condição social” (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004. p.100).
E aqui reside um forte poder analítico de como as pessoas em situação de rua se
percebem. Pode-se ver uma série de percepções depreciativas usadas para construir uma
identidade positiva sobre si, a partir da negativação de seu semelhante, é como se
pudesse ser resumido da seguinte maneira “aqueles lá, que não fazem parte daqui, são
drogados e não querem nada com a vida. Eu sou trabalhador e quero sair das ruas”. A
primeira vez que tal questão surgiu como significativa durante a pesquisa, anotei no
diário de campo:
Intrigado: não é a primeira vez que entrevistados apontam
outros grupos como problemáticos por considerar que
estes são formados – ou que o espaço é frequentado – por
pessoas envolvidas com drogadição e criminalidade.
Sendo que, nas primeiras entrevistas, o exato local onde
entrevistei Anderson, foi apontado por outros
entrevistados como tendo o mesmo significado negativo.
[1]Pode-se tomar este como certo ou como uma disputa
por
afirmação
de
diferença?
[2]
Há
uma
necessidade/costume de atribuir a outros grupos uma
característica negativa, da qual ele não faz parte, como se
dissesse “existe drogado, existe ladrão, sem dúvida; mas,
este não sou eu, são aqueles lá ou acolá”? Como exemplo
também, a Praça 17 foi apontada como local de usuários
16
por pessoas em situação de rua, comerciantes e
transeuntes; ao passo que lá, os entrevistados não falaram
sobre consumo de drogas ilícitas (cola, crack, maconha
…) e narraram situações em que eram confundidos com
noiados e “pagavam pelo que não fizeram” – como o caso
do roubo da bolsa6. (Diário de campo, 16/12/2014)
Era recorrente a tentativa de todos os entrevistados em se diferenciar de seus
companheiros de situação através da atribuição dos estereótipos negativos, e a aquisição
para si de qualidade socialmente positivadas. Mesmo que não desempenhada
plenamente, mas a demonstração de que tem competência para desempenhar profissões,
vontade de sair das ruas em contraposição aos que estão nas ruas por que querem. Esse
ponto ficou muito forte quando o assunto tratado se referia à moradia. Mas também
sempre presente nos discursos que apontam para a ideia de que tem “gente que tá na rua
por que quer, quer ser marginal, não quer correr atrás de uma vida digna”. Um problema
que se coloca e que nenhum entrevistado se reconhecia como alguém que havia
desistido da busca por dignidade. Até mesmo o caso mais extremo no sentido de afirmar
não querer sair das ruas, como o de Fernando ao relatar que não tem interesse em sair
das ruas, apenas quer ter dinheiro para se alimentar, acreditando não poder ser
relacionado ao que não quer sair da rua – seja qual for o motivo – por que este não quer
sair das ruas por ser uma pessoa sem possibilidade de ser recuperada. Muitos atribuem
ao grupo todas as alcunhas negativas que a sociedade em geral também atribui:
“noiados”, “marginais”, “ladrões” e outros.
Considerações finais.
Algo muito interessante é o fato de que sempre que perguntados sobre valores
vinculados ao ideal de cidadão de bem, os entrevistados falavam no singular, buscando
se diferenciar dos outros. Quando se tratava de características negativas que, de alguma
forma unia a percepção sobre eles, como o sentimento de invisibilidade ou o destrato
das pessoas para com o grupo, os entrevistados nunca falam no singular, no individual:
6
“O caso do roubo da bolsa” foi relatado por uma entrevistada na Praça 17, no qual ela interveio – sem
sucesso – para que uma amiga não fosse levada presa pelo roubo de uma bolsa, pois sua culpa estaria
no fato dela ser confundida com pessoas que frequentavam um lugar tido como de pessoas que
praticavam furtos para manter o vício.
17
nunca se diz, “parece que não sou ninguém, que sou invisível”; mas sempre “parece que
somos”. Mesmo com as variações dos termos empregados, essa frase sempre aparece no
plural, enquanto grupo.
Estas passagens mostram que existe uma intricada rede que influência as
escolhas – seja referente à ocupação, laços de amizade e moradia – que está
intimamente relacionada com uma representação interna ao grupo, de seus valores.
Contudo, a maneira como é demonstrado a sua relação com este meio, o seu lugar neste
meio, é sempre por meio de um desmérito de seus iguais. É invocado, por várias vezes,
o ser “mitológico” do morador de rua que paira no imaginário social como verdadeiro e
vivo, contudo “não sou eu, é aquele outro ali”. Muito pertinente a observação feita por
Vieira(2004), a qual foi reiteradamente constatada em vários momentos durante essa
pesquisa, em que “A forma que o morador de rua encontra de se livrar dessa imagem de
si mesmo é negar a sua prática e seu grupo social, buscando, no nível da representação,
identificar-se com os papéis socialmente aceitos”.(VIEIRA, et. all. 2004. p.101).
Quando fazem a atribuição de qualidades positivas e negativas aos espaços, as formas
de vínculo, aos tipos de trabalho; estão ao mesmo tempo se posicionando dentro dessa
escala gradativa – sempre colocando a si próprio como polo positivo. Nesse contexto,
foi recorrente o discurso, que mudava nas palavras mas mantinha o mesmo sentido, de
que todos referenciavam a ideia de que eu “sou morador de rua, mas não sou como
aquele ali não”.
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atendimento à população de rua adulta em sofrimento psíquico na Cidade do Recife /
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“Sou morador de rua, mas não sou como aquele ali não”: pessoas