“Sou morador de rua, mas não sou como aquele ali não”: pessoas em situação de rua em Recife e as negociações de si mediante o estigma. Thiago Santos1 Resumo: Este artigo discute as estratégias usadas pelas pessoas em situação de rua, que habitam o centro do Recife–PE, para conferir a si dignidade mediante o lugar de sujeito estigmatizado que ocupam. Nesse sentido, faz-se uso do conceito de Estigma, como desenvolvido por Goffman(2008), o qual indica que o indivíduo que carrega um estigma é reduzido a uma pessoa estragada e diminuída e que, por definição, não se acredita que o portador seja humano por completo. A questão é que o estigmatizado sabe o que significa o estigma que carrega; mas, apesar de serem colocados no polo negativo da sociedade, guardam os mesmos valores morais que a sociedade em geral. Neste ponto surge o impasse que se lança o olhar neste trabalho: identificar e demonstrar as estratégias utilizadas por estes atores para negociar a sua identidade enquanto moradores de rua mediante a relação com a vergonha de terem sobre si esse estigma, essa marca depreciativa, e como articulam maneiras para revalidar sua condição moral e sua dignidade. O recurso à imagem do “cidadão de bem” é sempre presente, na figura do trabalhador. Contudo, a principal estratégia identificada é a de que os entrevistados constituem a argumentação de quem são, reafirmando os estereótipos que a sociedade lança sobre as pessoas em situação de rua para os outros moradores de rua – negando para si todos os atributos depreciativos. Palavras-chave: Estigma; População em Situação de Rua; Moralidade; Dignidade; 1 Thiago Santos é mestrando em Antropologia, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA-UFPE). Introdução: o que é isso que chamamos população em situação de rua? Não é de difícil percepção que todas as pessoas em situação de rua têm em comum a condição de pobreza extrema: a imagem de "viver abaixo da dignidade humana" está escancarada como marca da população em situação de rua nas pesquisas científicas (LEAL, 2008; SILVA 2009), nas pesquisas oficiais (SUMÁRIO EXECUTIVO, 2008; Recife, 2006), pelos movimentos sociais (CARTA AO PRESIDENTE, 2009), pela representação de tal população na mídia (exemplo https://www.youtube.com/watch?v=noYsAQAqWW4). Sendo assim, como é ressignificar a si e ao seu meio no lugar de ser estigmatizado? Suas práticas? Como é desenvolver táticas de sobrevivência? Como O presente trabalho faz um esforço em demonstrar como pessoas em situação de rua lidam com essa transição, como ressignificam a vida social e desenvolvem estratégia de sobrevivência. Este artigo está baseado nos dados e discussões da pesquisa monográfica intitulada Rios, Pontes e Outros Corpos: notas sobre a população em situação de rua no centro do Recife. Na literatura corrente sobre o tema2, percebe-se o consenso de que a população em situação de rua é formada por um grupo extremamente heterogêneo, Escorel afirma que “o que todas as pesquisas revelam é que não há um único perfil da população de rua, há perfis; não é um bloco homogêneo de pessoas, são populações” (ESCOREL, 2000. p.155). Assim, é justamente no esforço de traçar os aspectos nos quais esse bloco heterogêneo tem seus pontos de intersecção, os quais possibilitam sua definição enquanto grupo, que Maria Lúcia Lopez da Silva faz uma síntese e enumera tanto os aspectos que caracterizam o fenômeno, quanto lança mão das características gerais da população em situação de rua. Para a Silva(2006), os aspectos que caracterizam o fenômeno podem ser definidos em seis pontos fundamentais: tem múltiplas determinações, onde tem-se de um lado fatores estruturais, que estão ligados as questões de desemprego, decorrente impossibilidade de manter moradia, transformações econômicas que têm grande impacto social, desapropriações feitas por órgãos governamentais em favor de projetos de “desenvolvimento”3; e de outro lado temos os fatores biográficos, são eles o 2 SILVA, 2006; Recife, 2006b; VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004; LEAL, 2008; CUNHA, 2009; SUMÁRIO EXECUTIVO, 2008. Entre outros. 3 No caso do Brasil ao sediar a Copa do Mundo FIFA 2014, houve uma grande mostra da relação entre 2 alcoolismo e a drogadição, vício em jogos, perda total dos bens pelo motivo que seja, o esfacelamento dos vínculos familiares: são os motivos que estão estritamente relacionados às experiências individuais. Evidente que essas dois fatores que levam as pessoas à situação de rua podem ser o motivo único ou podem estar relacionados entre si. Segundo tem-se o fato de que a situação de rua é uma expressão radical da questão social4 na contemporaneidade, onde a questão social é um termo que se refere a todos os fenômenos que podem ser identificados como resultado “naturais” da sociedade moderna, no que se refere à desigualdade social. Em terceiro, ela é localizada nos grandes centros urbanos, devido a grande circulação de pessoas e intensa atividade de comércio, há a oferta de possibilidades de obter recursos vindo de bicos ou de mendicância, grande oferta de recursos. Em quarto, o preconceito como marca do grau de dignidade e valor moral atribuído pela sociedade às pessoas atingidas pelo fenômeno, pois a sociedade cria o estigma do morador de rua, baseada na ética do trabalho, como “fracassados”, “incapazes”, “vagabundos”, …, e é comum as pessoas afetadas por estes relatarem essa associação como o ponto que mais dói, sendo este ainda o reforço intermitente da identidade negativa. Em quinto lugar ela tem particularidades vinculadas ao território em que se manifesta, ou seja, a percepção sobre a população de rua, a configuração desses grupos, suas táticas de sobrevivência, a solidariedade da sociedade a ela vai variar necessariamente com os valores e características sociais do local onde ela se apresenta. Por último temos a tendência à naturalização do fenômeno, onde se considera normal que pessoas morem nas ruas, atribuindo a elas a responsabilidade por não terem conseguido se firmar no mundo do trabalho e impedindo a percepção de que é fruto de um modelo econômico e consequentemente obscurecendo as formas possíveis de enfrentamento. Após caracterizar o fenômeno, Silva(2009) debruça-se sobre as características gerais da população em situação de rua. De acordo com a autora, a heterogeneidade dessa população é a característica fundamental de partida: as trajetórias, biografias, valores, interesses, origem de classe, formação escolar, orientação sexual e religiosa, 4 a adesão ao modelo de Mega Evento e o impacto negativo no âmbito social. Para mais sobre essa questão, especialmente com estudos sobre Pernambuco, numa perspectiva antropológica ver os trabalhos recentes produzidos e coordenados por Russel Parry Scott (UFPE/PPGA e FAGES) e, no serviço social, as discussões de Rudrigo Rafael Souza e Silva sobre direito à cidade. O debate sobre a questão social se inicia com Marx e tem uma longa tradição que não é homogênea, pode-se ter um bom panorama do debate acerca através do texto “Cinco Notas Sobre a Questão Social”, de José Paulo Netto. 3 etc, são tantas as singularidades e subjetividades que fazem com que não constituam um único grupo ou categoria profissional. Contudo, existe três condições que ela destaca que devem ser levadas em consideração ao analisar/pensar o grupo, articulando-as entre si, por serem condições que perpassam todas as variações das tipologias de moradores em situação de rua. São elas: a pobreza extrema é partilhada e identificável de várias formas ao analisar os estudos e fazer entrevistas, ela se manifesta na alimentação precária, na motivação da busca pelo trabalho, nas condições de higiene; é produzida socialmente e central para estabelecer a relação necessária entre o fenômeno e suas causas estruturais. A segunda é o fato de que têm os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a situação de rua força uma quebra na sociabilidade com a família possivelmente não só pela situação em si, mas esta é somada a consequência também dos mesmos motivos que ocasionaram a ida para as ruas. A terceira e mais definidora da população, é – evidentemente – a inexistência de moradia convencional regular e a utilização da rua como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente, esta condição é a definidora e definitiva. Então, o grupo é definido da seguinte forma: considera-se população em situação de rua como um grupo populacional heterogêneo, mas que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, em função do que as pessoas que o constituem procuram logradouros públicos (ruas, praças, jardins, canteiros, marquises e baixos de viadutos) e as áreas degradadas (dos prédios abandonados, ruínas, cemitérios e carcaças de veículos) como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente, podendo utilizar albergues para pernoitar e abrigos, repúblicas, casas de acolhida temporária ou moradias provisórias, no processo de construção de saída das ruas (SILVA, 2009. p.29). Essa definição é uma síntese muito feliz de uma análise densa dos processos estruturais que provocaram o surgimento do fenômeno, levando em consideração os aspectos que os caracterizam como também as características gerais que perpassam todas as configurações, por mais que suas singularidades as diferenciem. 4 Preconceito ou estigma? Considerações sobre os termos. De acordo com a definição apresentada, uma das características do fenômeno da população em situação de rua é a de que ela tem o “preconceito como marca do grau de dignidade e valor moral”. Porém, acredito que uso do termo estigma, como desenvolvido por Goffman(2008), em detrimento de preconceito, seja mais adequado ao caso das pessoas em situação de rua. Visto que, ao analisar a definição de preconceito, temos que ele é: uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou categoria social. Como uma atitude, combina crenças e juízos de valor com predisposições emocionais positivas ou negativas. (...) Tecnicamente, por exemplo, qualquer preconceito de base racial constitui racismo, assim como qualquer preconceito baseado no sexo é sexismo, como qualquer preconceito baseado na etnia é etnicismo. Isso significa que preconceitos dirigidos contra homens é sexismo, e que preconceitos dirigidos por negros contra brancos é racismo. (JHONSON, 1995. p.180). (Grifos nosso) Tomando como base esta definição, identificam-se alguns pontos do conceito de preconceito: que o preconceito é uma atitude, enquanto tal só existe na ação, na discriminação; o mesmo preconceito pode se manifestar sobre subalternos e opressores; e também é usado para negativar ou positivar pessoas ou grupos, não sendo apenas um recurso usado para diminuir. E muitas vezes o preconceito se manifesta de forma ambivalente, onde a degradação e positivação ocorrem simultaneamente. Como exemplo, em sociedades que negros sofrem preconceito de raça, são atribuídas características negativas, por um lado, que associam o sujeito negro à baixa inteligência e à natureza, e características “positivas”, por outro, nas quais ele tem ótimo desempenho físico e aptidão sexual. São essas duas formas juntas que compõe o imaginário estereotipado sobre o negro, é nesse duplo movimento que o imaginário social e a identidade social do negro são construídos: na dinâmica ambivalente que o estereótipo carrega (Bhabha, 2005). A definição e uso de preconceito, nos termos descritos, é abrangente e ambivalente. Um mesmo estereótipo/preconceito pode negativar e positivar ao mesmo tempo. 5 Goffman diz que quando as marcas pelas quais as pessoas passam a ser identificadas socialmente são negativas, ali está o estigma; e que, apesar da multiplicidade de formas que o estigma passa a ser sobreposto aos sujeitos – abominações do corpo, culpas de caráter individual, tribais de raça, nação e religião – em todos esses casos encontra-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para os outros atributos seus. (GOFFMAN, 2008. p.14). Ou seja: não importa o tipo ou de onde ele vem, o estigma é radical. Produz uma quebra na relação social entre os portadores de estigmas e as outras pessoas. Pois, as expectativas que os estigmas indicam são tidas como certas e reduzem a identidade do estigmatizado à marca: essa condição suprime seus outros atributos, outras qualidades, impossibilitando que ele se mostre algo além do que sua marca indica. Retomando o exemplo do estereótipo associado ao negro como um estigma, não seria possível o reconhecimento ou valorização de um outro atributo seu – mesmo que, ao fim e ao cabo, esse lado "positivo" seja igualmente preconceituoso/discriminatório – como o da aptidão sexual. Os dois conceitos a princípio são próximos. Assim como o estigma, o preconceito também é socialmente construído e baseado em expectativas vindas de prenoções, tem consequências de segregação, degrada um sujeito e valoriza o seu oposto. Contudo, ele não tem a expressão radical que o estigma condensa: ao estigmatizado não existe espaço para dúvida, não existe espaço para "possibilidade de" ou para a espera de que se prove o contrário – por mais que seus portadores desenvolvam táticas para superar tal condição. Assim sendo, os dois termos são possíveis de uso para esse tema; contudo, a ideia de estigma me parece ser muito mais próxima da experiência das pessoas afetadas pela alcunha de "morador de rua" do que a ideia de preconceito: O estigma tem potencial analítico que preconceito não tem. O estigma induz imediatamente a reação, negativa e negativadora, tão logo que se faz presente. Ao observar as pessoas em situação de rua em "interação" nos espaços públicos, conversar com elas, ler sobre elas e a questão do descaso, não conseguia 6 associar a ideia "simplista" de preconceito a essa condição: precisava de outro termo mais condizente. Quando a ambivalência do termo preconceito fica pelo caminho, sobra a face crua e negativa dessa noção que podemos tomar como estigma – que indica a profunda negatividade de ser marcado, que impregna praticamente todas as esferas da experiência de quem a tem. Não aceitar a ambivalência, está condizente com mais um propósito que pode ser ilustrado do seguinte modo: o lado negativo da situação de rua é fácil de identificar, mas e o positivo? Seria a liberdade, o tempo, falta de compromissos, nãotrabalho? Ao encarar a situação de rua como estigma, como marca que indica um mau radical em si, sem rodeios, evitamos também a possibilidade de romantizar (no sentido pobre do termo) esta condição, atribuindo a ela a ideia de que "tem um lado bom, equivalente e compensatório". Estigma e o estigmatizado. Ao surgimento e desenvolvimento dessa noção Goffman atribui em primeiro lugar aos gregos, que criaram o termo para se referir aos portadores de sinais corporais que eram feitos a ferro e fogo, como em gado para contagem, que evidenciavam alguma coisa de extraordinário ou mau sobre a índole moral de quem tinha sobre si essa mácula, servia como um chamariz sinalizando que ali está uma "pessoa marcada, ritualmente poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos" (ibid p.11). Após os gregos, a noção foi adicionada de um novo elemento na Era Cristã ao termo, onde passasse a ter dois sentidos: um no qual estigma representa sinal no corpo de graça divina e outro, sendo uma alusão médica ao primeiro, percebe-se os sinais no corpo como distúrbios físicos. Contudo, ao tempo em que Goffman escrevia, disse ele, o termo era usado amplamente associado à própria desgraça mais do que às marcas corporais. Ou seja, o estigma no séc. XX está mais próximo das significações socais relacionadas à degradação, às marcas simbólicas, que antes às marcas físicas objetivamente, sendo tanto as marcas como as desgraças variáveis de acordo com o tempo e localidade. Para conceituar estigma, Goffman parte do princípio de que a sociedade fornece uma série de normas de categorização específicas para os sujeitos e espaços sociais, 7 criamos uma série de identidades e preconcepções sobre os sujeitos e "baseando-nos nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso" (GOFFMAN, 2008. p.12). Essas preconcepções são percebidas socialmente através de marcas, elementos de significação, que alocam os sujeitos em determinadas posições que aludem a padrões de comportamento e previsão de ação. Quando tais marcas são negativas, são percebidas como estigmas, podendo ser percebidas e estudadas sociologicamente nos “'contatos mistos' – os momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma 'situação social', ou seja, na presença física imediata um do outro,"(GOFFMAN, 2008. p.22). O estigma cria identificações, se consolida na relação entre a identidade social virtual e a identidade social real. No primeiro caso, os indivíduos respondem e virtualmente correspondem – pelas já mencionadas – as expectativas normativas, através de exigências apresentadas de modo rigoroso; o segundo caso é relacionado aos atributos que o individuo, na realidade, tem. Atributos estes que estão postos em relação a uma certa identidade/modo de ser dominante, identificado aqui como o sujeito normal – O Sujeito. O ponto é o de que a identidade social virtual se antepõe a possibilidade de que existam divergências quanto a identidade social real, resumindo o sujeito à representação virtual que tem perante a sociedade. Essa relação se estabelece numa dinâmica perversa na qual: deixamos de considerá-lo [o portador do estigma] como uma criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande (...) e constitui uma discrepância específica entre a identidade virtual e a identidade real. (...) O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem deshonroso.”(GOFFMAN, 2008. p. 1213). A identidade social do estigmatizado é, via de regra, negativa e degradada com a função de diminuir valorativamente sujeitos frente ao sujeito normal; confirmando sua normalidade, mesmo que as características que são atribuídas como degradantes não façam sentido em si mesmas. Quando as marcas pelas quais as pessoas passam a ser 8 identificadas socialmente são extremamente negativas, ali está o estigma; e que, apesar da multiplicidade de formas que o estigma passa a ser sobreposto aos sujeitos – abominações do corpo, culpas de caráter individual, tribais de raça, nação e religião – em todos esses casos. Como dito anteriormente, não importa o tipo ou de onde ele vem, o estigma é radical. Produz uma quebra na relação social entre os portadores de estigmas e as outras pessoas. Pois, as expectativas que os estigmas indicam são tidas como certas e reduzem a identidade do estigmatizado à marca: essa condição suprime seus outros atributos, outras qualidades, impossibilitando que ele se mostre algo além do que sua marca indica. O estigma é valioso aqui por denunciar a relação na qual se institui extremos entre um sujeito normal e um outro sujeito depreciado socialmente, marginalizado. Em consequências desse corte entre identidades, a sociedade acaba por tratar o estigmatizado como um não-humano, consciente ou não disto, e reafirma em ato e representação estas marcas a todo momento. Uma questão fundamental levantada em Estigma (2008), que se (im)põe como central, reside no fato de que "o indivíduo estigmatizado tende a ter as mesmas crenças sobre identidade que nós temos [sujeitos normais]; isso é um fato central. Seus sentimentos mais profundos sobre o que ele é podem confundir a sua sensação de ser uma “pessoa normal”, um ser humano como qualquer outro" (ibid. p.16). O sujeito normal, a vida ideal, os valores éticos e morais que são amplamente compartilhados e reafirmados o tempo inteiro são também referenciais de identidade para o estigmatizado; de forma geral, eles têm os mesmos referenciais de positivo/negativo e agem no mundo a partir deles. O problema é que o sujeito estigmatizado sabe que, assim como qualquer outro, não há nada nele que o torne essencialmente diferente dos ditos normais, e a partir daí, mas curte em carne e espírito a (in)diferença de ocupar o lugar de Outro vivendo no centro do universo do Um. Diferentes se tornando um: chegada às ruas. A heterogeneidade pela qual a população de rua é composta, sua múltipla determinação e as diversas trajetórias que levam as pessoas a morar nas ruas, apresentava-se como um impedimento à pesquisa. Não parecia mostrar onde/em que se 9 configuravam como um grupo. O fato de que os diversos informantes vivenciam a mesma experiência da rua de formas diferentes, tanto a chegada quanto o processo de se manter nas ruas, parecia mostrar que eram questões muito díspares as que suas entrevistas suscitavam. Como seria possível entender, por exemplo, que ao Ana Cristina descrever o seu processo de chegada às ruas vê-se uma maneira que se mostra como única: Vim para as ruas por que tive problemas em casa. Tive um pirraia muito novinha [aos 16 anos], meu pai gostou não. Aí ficava brigando, brigando, eu me arretei e saí de casa. Aí ficava aqui na rua, ia em casa ver meu menino e voltava pra cá. Tive que me acostumar a dormir no chão, ficar perto do lixo, pedir comida na rua, essas coisas. Porque não dá pra conseguir emprego, né? E nessa eu fui ficando e estou até hoje [com 35 anos]. (Ana Cristina. Diário de Campo, 16 de dezembro de 2014). E ao Fernando falar sobre sua efetivação na rua de maneira igualmente singular: Vivia eu, minha mãe e meu irmão. A gente morava naquele albergue ali ó [apontava prédio em uma transversal da Rua do Imperador]. Minha mãe morreu tem 5 anos, a gente ficou sem ter como pagar o albergue, por que ela ganhava mais dinheiro. Começamos a dormir de vez na rua, fazer mais bicos, comer do lixo. Mas, eu como do lixo mais não, tem três anos que meu irmão morreu depois de comer coisa estragada no lixo. (FERNANDO. Diário de Campo, novembro de 2013) Ambos estavam narrando sua história de vida, que são muito díspares à princípio, pareciam não ter nada que pudesse ser conectado entre as duas pessoas para pensar um lugar-comum; mas que ao decorrer de muitas outras histórias de vida e de chegada às ruas bem diferentes umas das outras, pontos em comum emergiam com uma certa nitidez. A influência da trajetória individual sobre a percepção de si é clara: é a biografia que fornece muito de como os atores se percebem; mas ela tem um limite. Não importa se a motivação de chegada às ruas foi uma gravidez indesejada ou tentar a vida na metrópole: a condição atual, a situação de rua, se coloca como sobredeterminante a elas e os une em muitos aspectos, fortemente no que diz respeito às estratégias de sobrevivência e percepção sobre si. Tal questão é bem ilustrado nesta passagem: 10 Embora essas experiências possam parecer únicas ao indivíduo, as representações de tais experiências não surgem das mentes individuais; em alguma medida, elas são o resultado de processos sociais. […] Isso pode ser visto em uma série de entrevistas. As primeiras são cheias de surpresas. As diferenças entre as narrativas são chocantes e, às vezes, ficamos imaginando se há ali algumas semelhanças. Contudo, temas comuns começam a aparecer, e progressivamente sente-se uma confiança crescente na compreensão emergente do fenômeno. (Bauer e Gaskell, 2014). Esse processo foi ficando claro ao longo do tempo no qual mais entrevistas foram feitas. Com um número maior de entrevistas, de histórias de vidas bem diferentes contadas, de observar que alguns dos temas comuns que emergiram estavam intimamente ligados ao ponto no qual a representação social sobre os moradores de rua é confrontada/sentida pelo próprio morador de rua. No diário de campo, o comentário sobre a entrevista com Anderson, mostra que: Anderson considera que parar na rua foi de certa forma como escolha mesmo, pois “não quis ir morar com minha mãe, quis ficar por aqui mesmo. Ligo pra ela todo mês. Mas, não quero morar com ela nem com ninguém não, tá ligado?”; mas ao mesmo tempo gostaria de sair da rua, morar numa casa, e acha que a saída é possível através de conseguir contratação em um emprego que lhe garanta renda fixa por que “o emprego é o principal pra sair da rua, né? Tem outras coisas, mas o emprego é mais importante”. Contudo, ele acredita que conseguir um emprego é difícil, mais por que ele tem “passagem” do que por ser morador de rua – ser morador de rua vem como problema secundário. (Diário de Campo, 16/12/2014). E o comentário sobre a entrevista de Ana Cristina: Ana Cristina atribui a saída das ruas à escolha própria, visto que não queria continuar “brigando, brigando, eu me arretei e saí de casa”. A imersão nas ruas foi gradual, pois ela mantinha visitas constantes à sua casa, em Jaboatão dos Guararapes, para ver seu(s) filho(s) – por vezes dormia e ficava um pouco lá. Contudo, ela gostaria de sair das ruas ou ter uma vida mais digna, e referência à impossibilidade de conseguir emprego como principal problema. (Diário de Campo, 20/12/2014) 11 Em ambos comentários, fica claro que as trajetórias são bem diferentes mas sinalizam pontos em comum, que estão intimamente ligados à experiência de ser morador de rua – mesmo que eles não atribuam a essa condição o motivo de sua dificuldade em conseguir emprego ou sair das ruas. Então, ficou claro e marcante que as “vozes díspares”, para além de suas peculiaridades individuais, se unem em coro ao relatar medos e anseios relacionados à importância do trabalho e a dificuldade conseguirem ser efetivado em um, o cuidado para não ser associado aos marginais ou de entrar para a marginalidade, a relação com as drogas, a humilhação da qual são vitimados cotidianamente, o sentimento de ser invisíveis perante os “cidadãos de bem”, a frequente tentativa de estabelecer a diferença entre “eu, morador de rua respeitável” e “aqueles outros que não são coisa boa”, a dificuldade que é se estabelecer nas ruas, como uma luta cotidiana pela vida. Tais pontos se alçaram muito além de histórias tristes ou trágicas de dimensão estritamente pessoal, para se consolidarem como bons alicerces para tentar entender como a experiência de ter nas ruas sua moradia torna-os um grupo e como molda a percepção sobre si. Ressignificações de si e o novo-velho mundo. Chegar às ruas e se estabelecer nela como morador, ser das ruas, é uma experiência que (re)modela muito das percepções sobre formas de vivência convencionais. A casa é algo muito distante, passa a não existir; em consequência, toda a sociabilidade do ambiente doméstico sofre uma forte alteração: o que e onde se come, a manutenção da higiene, a noção de intimidade, a percepção sobre família é transformada. Justamente porque, Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa, também, adquirir outros referenciais de vida social, diferentes dos anteriores baseados em valores associados ao trabalho, à moradia, às relações familiares. (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004. p.96). As entrevistas feitas demonstraram claramente também que essa mudança não é gradual, na grande maioria dos casos, ela é radical. A aquisição dessa nova forma 12 valorativa da vida acontece de forma muito rápida, ao ponto de pessoas – com as mais diversas biografias – que estão na rua há menos de um ano relatarem, com uma proximidade muito grande, valores/problemas de quem está nas ruas há uma década. Como o pouco tempo na rua influência na percepção sobre si? Aparentemente, Anderson tem o mesmo relato de percepção que a maioria dos entrevistados: sente-se diminuído, negligenciado, como se não fosse humano e não tivesse direitos. A experiência de pouco tempo na rua seria radical sobre a percepção de si: torna quem está há 10 anos ou 10 meses em não-humano. (Diário de Campo, 12/2014). O primeiro ponto indicado como problemático é o da dificuldade de conseguir emprego. No que diz respeito a este tema: Anderson está nas ruas há menos de um ano, e ao falar sobre sua chegada à rua e sobre os outros problemas que acarreta ocupar tal lugar, mostra que há uma impossibilidade de conseguir emprego, tanto por ser morador de rua como por ter tido passagem pela polícia; Ana Cristina indica que não pode conseguir emprego por que “simplesmente não dá”, a rua sempre foi seu espaço de obtenção de recursos. Com exceção de Ana Cristina, todos aludem ao fato de que têm experiência profissional, têm conhecimentos válidos para desempenhar funções minimamente bem remuneradas – pedreiro, ajudante de pedreiro, garçom, trabalhos manuais em geral –, mas que no final das contas essa experiência não vale de nada hoje no mercado. Todos mostram, de maneira mais ou menos tímida, que seu conhecimento e seu corpo é desprezado pelos empregadores pelo fato de que ocupam o lugar de moradores de ruas, sabem que há uma ligação necessária entre a não disponibilidade de emprego para eles e o estigma que carregam. Este trecho da entrevista com Alcides mostra que: Já tem um monte de preconceito contra a pessoa que tá na rua, dizem “tudo é marginal”. Quem vai contratar um marginal? Fora isso ainda tem muitas outras coisas, não é só do preconceito também: muita gente na rua não tem documento, não tem casa, não tem carteira de trabalho... tudo isso dificulta conseguir emprego ou mesmo estudar pra ter um trabalhozinho. (ALCIDES, ) As táticas desenvolvidas para superar a não-inclusão no sistema de trabalho são diversas, e conhecidas como “bicos” ou “oias”: trabalhos esporádicos e informais, 13 normalmente manuais e não exigem nenhum tipo de qualificação. Os mais comuns são: catador de materiais recicláveis, flanelinha, vendedor de pipoca no centro e ajudante em atividades braçais como carregar caminhões. Além destes bicos, ainda se tem a mendicância como forma de sustento. Interessante é pensar o significado atribuído ao trabalho nessa condição. Além da função primária e prática de garantir o sustento diário, o trabalho também entra como o passaporte único para a reabilitação social, como a forma de recuperar a dignidade perdida na vida; também é uma forma de se sentir útil. A constituição e vínculos de amizade se mostraram como um laço necessário no dia a dia, com uma certa ressalva para possibilidade de que a confiança pode ter um preço alto. As entrevistas mostraram que a parceria se estabelece por uma questão de cuidado mútuo com pertences e estratégias de defesa: nos grupos está, minimamente, a salvo da violência que pode ser praticada por outras quaisquer pessoas, seja morador de rua ou não. Além de poder ser uma forma de divisão de trabalho também, onde alguns mantêm “guardam” o espaço que todos habitam e fazem mendicância, cuidam das crianças enquanto os outros vão pra catação ou outros tipos de atividade que complementem a renda. Uma das entrevistas foi feita com um grupo de aproximadamente cinco mulheres, das quais três participaram ativamente. Elas estavam cuidando de suas crianças, de um bebê com meses até outros que estavam na faixa dos 4 anos. Moravam todas na Praça 17, em frente à Igreja. Todas relataram que estavam lá fazendo uma parte das tarefas necessárias, como cuidar das crianças e manter seus pertences a salvo. Raíssa diz que: Tenho dois filhos e não tem como fazer tudo, meu marido sai pra cuidar dos carros e pra fazer os corre. Eu fico aqui cuidando das coisas e dos meninos. Pego ajuda do pessoal que passam, e também das irmãs de igreja que ajudam. Aí, junta todo mundo aqui, né? Fica a gente cuidando das coisas um dos outros, dos filhos também quando precisa. Não dá pra deixar os meninos soltos por aí. Tem que confiar no pessoal aqui e ficar de olho pra se sair se pessoa não prestar. Seu relato é complementado pelo da companheira Verônica: Eu mesmo estou aqui tem muito tempo já, criei meus filho tudo na rua. Sozinha, sem marido, com ajuda dos amigos 14 que a gente faz por aí. Todo mundo ajuda um pouquinho e a gente vai vivendo. Tenho muita história ruim pra contar de gente que você confia e bota pra lascar em você, mas tem muita coisa boa também. Os dois relatos, de companheiras, indicam a necessidade de se estabelecer vínculos de amizade para manter-se vivendo minimamente segura. Seja pelo cuidado material ou pelo cuidado afetivo. Mas, mostram também que é um processo delicado, no qual a confiança está sempre no limite, sendo provada a cada dia. Os entrevistados também demonstraram uma quebra clara no que consiste há como e onde morar e como e onde comer. Não há mais os mesmos parâmetros, em muitos casos há a perda do parâmetro. No caso da moradia, escolhem áreas centrais, mas também pesam se conseguiriam conviver com as pessoas que formam os grupos no lugar e também se seriam aceitos. É notável que haja uma lógica para a escolha dos pontos de moradia, não se escolhe tal marquise ou tal rua por uma mera falta de opção: há um jogo intricado de representações sobre quem é o tipo de lá e o de cá. Quando perguntados sobre as pessoas que moravam em determinados locais de pesquisa, sempre havia uma descrição como “ali o pessoal é catador e ali é tudo noiado 5”. Como fica claro nesse trecho da entrevista com Anderson, quando perguntei se ele poderia me indicar locais onde eu encontrasse mais pessoas para fazer entrevistas, ele respondeu que: Tem gente em todo canto por aí, é só prestar atenção. Agora tenha um pouco de cuidado, por que aqui tem um pessoal que trabalha, faz os corre e tudo mais, ali na frente [Rua Duque de Caxias] tem um monte de catador. Agora do outro lado da ponte [Cais da Alfândega, Recife Antigo] só tem noiado, que pode te roubar pra comprar droga e tal. Só tem desses lá. (Entrevista com Anderson. Diário de Campo) Ou quando Fernando disse por que não estava próximo das pessoas em situação de rua enquanto esperava pelo grupo que vinha distribuir sopa: “Eu fico aqui, afastado deles por que não quero ser confundido, né? Tem uns ali que mexe com coisa errada, aí quando vem a cobrança tá tudo junto” (Fernando, 11/2013). Isto mostra que a escolha por morar, em alguma medida, está relacionada com a construção de uma identidade 5 “Noiado” é o termo usado para designar pessoas viciadas em drogas entorpecentes, como crack e cola. 15 dentro e fora do grupo. Entre eles, o lugar onde se mora também é um símbolo distintivo de qual é o tipo de vida que se leva. Reprodução do estigma como estratégia de validação de si. Um ponto que se mostrou muito forte para pensar os moradores de rua foi a forma como eles indicavam os outros. Neste ponto intricado, onde muitos dos preconceitos e estereótipos são (re)afirmados pelos próprios moradores de rua para com seus colegas. Por que muitos não parecem se enxergar na mesma condição que os seus colegas, e acabam reconhecendo que os outros são tratados de maneira humilhante e degradada, mas tentam superar esse ponto não admitindo que são como eles. Assim, a forma como avaliam seus colegas, se avaliam em última instância, é de acordo com o estereótipo e humilhação lançados pela sociedade para eles; “o morador de rua assume de forma extremamente rígida o estigma lançado sobre si, utilizando os olhos da sociedade para avaliar sua condição social” (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004. p.100). E aqui reside um forte poder analítico de como as pessoas em situação de rua se percebem. Pode-se ver uma série de percepções depreciativas usadas para construir uma identidade positiva sobre si, a partir da negativação de seu semelhante, é como se pudesse ser resumido da seguinte maneira “aqueles lá, que não fazem parte daqui, são drogados e não querem nada com a vida. Eu sou trabalhador e quero sair das ruas”. A primeira vez que tal questão surgiu como significativa durante a pesquisa, anotei no diário de campo: Intrigado: não é a primeira vez que entrevistados apontam outros grupos como problemáticos por considerar que estes são formados – ou que o espaço é frequentado – por pessoas envolvidas com drogadição e criminalidade. Sendo que, nas primeiras entrevistas, o exato local onde entrevistei Anderson, foi apontado por outros entrevistados como tendo o mesmo significado negativo. [1]Pode-se tomar este como certo ou como uma disputa por afirmação de diferença? [2] Há uma necessidade/costume de atribuir a outros grupos uma característica negativa, da qual ele não faz parte, como se dissesse “existe drogado, existe ladrão, sem dúvida; mas, este não sou eu, são aqueles lá ou acolá”? Como exemplo também, a Praça 17 foi apontada como local de usuários 16 por pessoas em situação de rua, comerciantes e transeuntes; ao passo que lá, os entrevistados não falaram sobre consumo de drogas ilícitas (cola, crack, maconha …) e narraram situações em que eram confundidos com noiados e “pagavam pelo que não fizeram” – como o caso do roubo da bolsa6. (Diário de campo, 16/12/2014) Era recorrente a tentativa de todos os entrevistados em se diferenciar de seus companheiros de situação através da atribuição dos estereótipos negativos, e a aquisição para si de qualidade socialmente positivadas. Mesmo que não desempenhada plenamente, mas a demonstração de que tem competência para desempenhar profissões, vontade de sair das ruas em contraposição aos que estão nas ruas por que querem. Esse ponto ficou muito forte quando o assunto tratado se referia à moradia. Mas também sempre presente nos discursos que apontam para a ideia de que tem “gente que tá na rua por que quer, quer ser marginal, não quer correr atrás de uma vida digna”. Um problema que se coloca e que nenhum entrevistado se reconhecia como alguém que havia desistido da busca por dignidade. Até mesmo o caso mais extremo no sentido de afirmar não querer sair das ruas, como o de Fernando ao relatar que não tem interesse em sair das ruas, apenas quer ter dinheiro para se alimentar, acreditando não poder ser relacionado ao que não quer sair da rua – seja qual for o motivo – por que este não quer sair das ruas por ser uma pessoa sem possibilidade de ser recuperada. Muitos atribuem ao grupo todas as alcunhas negativas que a sociedade em geral também atribui: “noiados”, “marginais”, “ladrões” e outros. Considerações finais. Algo muito interessante é o fato de que sempre que perguntados sobre valores vinculados ao ideal de cidadão de bem, os entrevistados falavam no singular, buscando se diferenciar dos outros. Quando se tratava de características negativas que, de alguma forma unia a percepção sobre eles, como o sentimento de invisibilidade ou o destrato das pessoas para com o grupo, os entrevistados nunca falam no singular, no individual: 6 “O caso do roubo da bolsa” foi relatado por uma entrevistada na Praça 17, no qual ela interveio – sem sucesso – para que uma amiga não fosse levada presa pelo roubo de uma bolsa, pois sua culpa estaria no fato dela ser confundida com pessoas que frequentavam um lugar tido como de pessoas que praticavam furtos para manter o vício. 17 nunca se diz, “parece que não sou ninguém, que sou invisível”; mas sempre “parece que somos”. Mesmo com as variações dos termos empregados, essa frase sempre aparece no plural, enquanto grupo. Estas passagens mostram que existe uma intricada rede que influência as escolhas – seja referente à ocupação, laços de amizade e moradia – que está intimamente relacionada com uma representação interna ao grupo, de seus valores. Contudo, a maneira como é demonstrado a sua relação com este meio, o seu lugar neste meio, é sempre por meio de um desmérito de seus iguais. É invocado, por várias vezes, o ser “mitológico” do morador de rua que paira no imaginário social como verdadeiro e vivo, contudo “não sou eu, é aquele outro ali”. Muito pertinente a observação feita por Vieira(2004), a qual foi reiteradamente constatada em vários momentos durante essa pesquisa, em que “A forma que o morador de rua encontra de se livrar dessa imagem de si mesmo é negar a sua prática e seu grupo social, buscando, no nível da representação, identificar-se com os papéis socialmente aceitos”.(VIEIRA, et. all. 2004. p.101). Quando fazem a atribuição de qualidades positivas e negativas aos espaços, as formas de vínculo, aos tipos de trabalho; estão ao mesmo tempo se posicionando dentro dessa escala gradativa – sempre colocando a si próprio como polo positivo. Nesse contexto, foi recorrente o discurso, que mudava nas palavras mas mantinha o mesmo sentido, de que todos referenciavam a ideia de que eu “sou morador de rua, mas não sou como aquele ali não”. 18 BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Cintia Maria da Cunha. Loucos nas ruas: um estudo sobre o atendimento à população de rua adulta em sofrimento psíquico na Cidade do Recife / Cintia Maria da Cunha Albuquerque. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. BAUER e GASKELL (org.). Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ : Vozes, 12ª ed. 2014. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005. CARTA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, 2009. Censo e análise qualitativa da população em situação de rua na cidade do Recife. Disponível em http://www.recife.pe.gov.br/pr/secsocial/populacaorua.php FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo / Simone Miziara Frangella. 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VIEIRA, Antonieta da Costa; BEZERRA, Eneida Maria Ramos; ROSA, Cleisa Moreno Maffei (orgs.). População em situaçao de rua: Quem é, Como vive, Como é vista. 3. ed. São Paulo : Hucitec, 2004. 19