Cap 18 TOMÁS DE AQUINO Ramiro Marques Tomás de Aquino discute o conceito de felicidade em várias partes da sua extensa obra filosófica e teológica. Na Suma de Teologia, o conceito de felicidade ocupa as questões 3 (definição), 5 (como se atinge a felicidade?), 21 (as consequências dos actos humanos) e, no livro III da Suma Contra os Gentios, ocupa os capítulos 27 (a felicidade não é sinónimo de prazeres corporais), 32 (a felicidade não consiste nos bens do corpo), 37 (a felicidade consiste na contemplação de Deus), 48 (a felicidade completa não é possível nesta vida) e 63 (a felicidade completa satisfaz todos os desejos humanos). Tomás de Aquino identifica a felicidade completa com a beatitude. Nesta vida, a felicidade completa não está ao alcance dos homens. Toda a felicidade terrena é sempre provisória e intermitente. O facto de os homens viverem com a certeza da sua finitude impede que alcancem a felicidade completa. É do conhecimento comum que os homens desejam sempre aquilo que não têm e muitas vezes se desinteressam dos bens que alcançaram. A insatisfação permanente é própria da condição humana e só a visão de Deus (beatitude) permite que o intelecto alcance a essência da causa primeira, na união com Deus. Nesta vida, só é possível aceder a uma felicidade parcial e incompleta. A felicidade completa exclui todo o mal e não deixa de fora desejos por satisfazer. Ora, é próprio da condição humana a existência de desejos que nem o homem mais poderoso e venturoso é capaz de alcançar. O carácter transitório da vida impede os humanos de alcançarem o desejo inacessível da preservação sem fim. Embora trágico, esse facto revela a igualdade da condição humana, pois, a morte do corpo é o destino comum a todo o ser que vive, por mais poderoso que pareça ser. Mas, em que consiste a felicidade parcial, a tal felicidade que é acessível nesta vida? Tomás de Aquino passa em revista o pensamento de Aristóteles, com quem se identifica em grande parte, acrescentando-lhe a noção agostiniana da iluminação divina e da Cidade Deus. Desde logo, recusa a identificação da felicidade com os prazeres corporais. Na ordem da natureza, o prazer é o resultado de uma função e não o contrário. Por isso, se uma função não é a última finalidade, o prazer que resulta dela não pode ser a finalidade culminante. Resulta daqui que os prazeres corporais não são a finalidade última do homem e são, pelo contrário, meios para a prossecução de certos fins: por exemplo, os prazeres da comida são meios para a preservação da vida e os prazeres sexuais dirigem-se para a necessidade natural da procriação. Mas também recusa identificar a felicidade com os bens do corpo, pela simples razão de que a alma é superior ao corpo. Se não fosse assim, não faria sentido afirmar a superioridade dos homens em relação aos animais ou a superioridade de alguns animais dotados de alguma inteligência (como o chimpanzé, o cão e o golfinho) em relação a outros animais inferiores. Se admitirmos a superioridade da alma em relação ao corpo, temos de concordar na supremacia dos bens da alma (inteligência, sabedoria, prudência, etc.) em relação aos bens do corpo (força, velocidade, destreza, beleza, etc.) Admitir o contrário seria considerar que os bens comuns aos homens e aos animais são superiores aos bens que só os homens possuem, já para não mencionar o facto de haver alguns animais que ultrapassam o homem em bens corporais (são mais rápidos, mais fortes ou vivem mais tempo). Feita esta argumentação, Tomás de Aquino está em condições de afirmar que a felicidade completa consiste na contemplação divina, a qual se confunde com a contemplação da Verdade e a satisfação completa de todos os desejos, para além dos limites temporais e físicos que impõem a escassez e a finitude de todos os bens. O Doutor Angélico não faz mais do que cristianizar a noção aristotélica da felicidade associada à vida contemplativa. A prova de que a felicidade última reside na visão de Deus está no facto de que não sendo possível nesta vida encontrar a felicidade completa, impõe-se que a mesma se alcance para além dela. Se a razão que explica a não possibilidade do alcance da felicidade completa nesta vida consiste na temporalidade e finitude de todos os bens nesta vida, impõe-se que os bens associados à outra vida não dependam de nenhuns outros bens e, portanto, sejam completamente autosuficientes. Até a noção aristotélica da felicidade associada à vida contemplativa não preenche as condições da felicidade completa, porque é sabido que quanto mais sabemos mais desejamos saber e mais temos a noção de que sabemos pouco. A felicidade completa não pode admitir a existência de mal, porque ela se confunde com o bem perfeito e infinito e todos sabemos que, nesta vida, não há a possibilidade de viver completamente livre dos males - quer dos males do corpo, como a sede, a fome e a doença - quer dos males da alma, como a ira, o orgulho, a soberba ou a inveja. Não há ninguém que, por vezes, não seja assediado e vencido pelas paixões desordenadas, sendo conduzido para a prática de acções que excedem a medida virtuosa, quer seja por excesso quer seja por deficiência. São essas as razões pelas quais ninguém é completamente feliz nesta vida. Apesar do reconhecimento do carácter parcial e transitório da felicidade nesta vida, o mestre dominicano não deixa de acentuar que a aproximação à felicidade é possível e está ao alcance de todos os humanos. Mas uma tal aproximação exige uma vida temperada e ordenada por um amplo conjunto de virtudes morais e, sobretudo, a iluminação divina que só a fé pode proporcionar. E aqui é preciso recorrer ao conceito de inclinações naturais para perceber melhor como é que é possível levar uma vida virtuosa e, portanto, próxima da felicidade, mesmo sem possuir as virtudes intelectuais. Só assim, Tomás de Aquino, à semelhança de Paulo de Tarsus e de Agostinho de Hipona está em condições de alargar a toda a gente a noção de vida virtuosa e de felicidade parcial. Por inclinações naturais, Tomás de Aquino quer dizer a capacidade inata, que resulta da lei divina e da presença divina na nossa natureza humana comum, do reconhecimento e da preferência do Bem, comum a todos os humanos. Tomás de Aquino complementa a noção de conhecimento racional, que partilha com Aristóteles, com a ideia de um conhecimento por inclinação natural, conciliando, desta forma, a razão e a fé, como meios indissociáveis de procura da Verdade. E como não é possível ao homem ver as coisas sensíveis e físicas sem a presença da luz, também só consegue ter a visão intelectual de Deus, através da luz da glória, a qual não é um fenómeno físico mas um fenómeno espiritual. Atendendo a que Deus é espírito, faz sentido que Ele só se deixe ver através da luz da glória que, para exercer essa função, não pode ser uma substância material nem resultar de um fenómeno físico. Todos os humanos são dotados de um conhecimento por inclinação natural para aceitarem a iluminação da luz divina e naturalmente são capazes de se elevarem à visão intelectual da substância divina. Há um certo desejo nos humanos, enquanto seres intelectuais, de conhecerem a verdade e nisso se distinguem de todos os animais, uma vez que só os humanos dispõem de curiosidade intelectual. Nesta vida, o conhecimento da verdade alcança-se através da vida contemplativa, mas todos sabemos que os homens são diferentemente dotados de condições para levar uma vida contemplativa, não estando esta ao alcance de todos. Mesmo os humanos que dispõem de condições intelectuais e materiais para levarem uma vida contemplativa, têm a noção de que lhes foi negado acesso a toda a verdade, resultando daí a natural insatisfação humana e o reconhecimento da precaridade e finitude dos conhecimentos. Mas Deus, que é omnipotente e omnisciente, não podia negar essa possibilidade, reservando-a para o momento que coincide com a visão de Deus. Como Deus não é uma substância material (não é imanente, mas não à regionalização! transcendente), a visão de Deus não está ao alcance de substâncias materiais. É por isso que os homens enquanto vivem não podem aspirar a essa visão, embora lhes seja possível uma visão intelectual da substância divina. Só a alma, como substância espiritual e eterna pode aspirar à visão de Deus e com ela à felicidade completa, porque se esgota em si mesma e não depende de coisa nenhuma. O que é a lei natural e que relação existe entre a lei natural, natureza humana e acção moral? Tomás de Aquino foi o grande filósofo do século XIII que estabeleceu uma síntese entre o pensamento aristotélico e a tradição cristã. Um dos seus maiores contributos para a ética foi, sem dúvida, a teoria da lei natural (1) ou seja, a defesa da existência de directivas e comandos verdadeiros e absolutos da acção humana, os quais resultam da vontade divina e da natureza humana comum. O preâmbulo da lei natural impõe-se pela sua simplicidade: faz o bem e evita o mal. Este preceito é comum a todos os homens em todas as culturas e em todos os tempos. É um preceito imutável e perene, embora dele possam derivar outros preceitos, uns afirmativos, outros negativos, que, nuns casos obrigam absolutamente e sem excepções e, noutros casos, admitem excepções impostas por particularismos circunstanciais. Os preceitos que derivam da lei natural admitem adaptações às circunstâncias, na justa medida em que as acções morais são sempre singulares. Tomás de Aquino, dá-nos a seguinte definição de lei natural (2): a lei natural é a forma particular do homem participar na lei eterna, através da qual Deus governa o universo. Toda a criatura existe controlada pelo governo de Deus, mas a criatura racional, isto é, o homem, encontra-se, além disso, dependente da Providência Divina. Ou seja, existe para atingir determinados fins superiores. À semelhança da ética teleológica de Aristóteles, o grande filósofo cristão considera que a criatura racional move-se em direcção à sua finalidade apropriada e essa finalidade, sempre que contribui para uma maior perfeição e uma maior completude, é um bem. A finalidade última do homem é a beatitude perfeita, a qual se confunde com a visão de Deus. Na vida terrena, a felicidade é sempre incompleta, porque nunca satisfaz totalmente e completamente o sujeito. Ou seja, é sempre transitória. Quando Tomás de Aquino afirma que toda a acção humana responde a uma finalidade e que essa finalidade tem o carácter de um bem, não faz mais do que lembrar Aristóteles. Toda a acção se dirige para a obtenção de um bem e, por essa razão, podemos afirmar que o bem é aquilo para que todas as coisas se dirigem, afirma Aristóteles no início da Ética a Nicómaco. O bem é, então, o mesmo que a finalidade da acção humana. Se a acção humana se dirige para o bem, então como explicar as inclinações erradas e as más acções? Aristóteles resolve este dilema fazendo a distinção entre bens reais e bens aparentes. O que acontece com frequência é que os homens confundem bens aparentes com bens reais e isso acontece ou por deficiência da razão, por falta de informação, pelo não uso da informação existente ou pela deficiência da vontade. Tomás de Aquino faz sua esta argumentação e aceita a existência de critérios que nos permitem distinguir os bens aparentes dos bens reais. Estamos perante um bem real quando satisfaz uma necessidade que nos torna mais perfeitos e mais completos. Dito por outras palavras, um bem real é o que nos faz aproximar da nossa finalidade última, a felicidade (ainda que imperfeita) na terra e a beatitude (felicidade perfeita) no céu, ou visão de Deus. E chegados aqui, importa distinguir as finalidades instrumentais da finalidade culminante. As primeiras são as que concorrem para se alcançar a felicidade, a única finalidade culminante. A segunda é a finalidade que se persegue apenas por ela própria, isto é, que já não depende de coisa nenhuma nem concorre para nenhuma outra finalidade. E como podemos explicar a existência de uma finalidade última? É que se não existisse uma finalidade última, então teríamos que admitir que a nossa existência não passaria de um contra-senso, um facto sem significado e em vão. Tomás de Aquino fez sua a teoria aristotélica da finalidade última, mas cristianizou-a, introduzindo-lhe a concepção agostiniana da cidade de Deus: a finalidade última, isto é a beatitude, não é alcançável neste mundo, mas apenas na outra vida, mediante a visão de Deus. A abordagem de Aquino à noção de finalidade última acolhe o conceito de bem, ou ratio boni, como lhe chamou, identificado com o carácter da bondade. O bem é o que nos aproxima da perfeição. A felicidade, ainda que imperfeita, é o resultado para que tende verdadeiramente toda a acção humana. Não é possível identificar a felicidade com uma única finalidade ou um único tipo de bens. A perfeição do homem não se esgota nas riquezas, na honra, na fama, nos prazeres, nem tão pouco no saber teórico. Na verdade, só a visão de Deus pode esgotar a felicidade, identificando-se com ela, na perfeição, porque dispõe para além do tempo, isto é, não cessa, não é intermitente nem transitória, como fatalmente é a felicidade terrena. Uma das consequências disto é que, para Tomás de Aquino, a felicidade é impossível nesta vida. Na vida terrena, só podemos descortinar uma aproximação à felicidade, a qual é fruto do bom uso de uma pluralidade de virtudes intelectuais e morais. O conceito de lei eterna exige a defesa da lei divina e de uma natureza humana comum. É fácil, na verdade, identificar um conjunto de inclinações naturais comuns aos homens e aos outros seres vivos e outras inclinações naturais reservadas apenas aos homens. Primeiro, os homens partilham com as outras substâncias a autopreservação de acordo com a sua natureza. Segundo, os homens partilham certas inclinações com os outros animais, como a necessidade de se associar com o sexo oposto para fins de procriação, a educação das crias, etc. Terceiro, há nos homens inclinações racionais que só pertencem aos homens, como a necessidade de livre escolha e a curiosidade intelectual, por exemplo. Para além da defesa da lei divina e da natureza humana comum, a ética de Tomás de Aquino incorpora, também, a existência de inclinações naturais. O que é que o filósofo quer dizer por inclinações naturais? E que lugar ocupam no seu sistema ético? Para Aquino, há bens que os homens partilham com as outras criaturas, alguns bens que os homens só partilham com algumas criaturas e outros bens que lhe são peculiares. Se o bem humano pode ser definido como o bem que é peculiar ao homem enquanto agente racional, então esse bem tem de contribuir para a sua perfeição enquanto ser racional que ocupa uma determinada posição na hierarquia universal da natureza assim disposta por Deus. Se o homem se define por ser um agente racional, então a actividade racional constitui a sua finalidade e o seu bem possível, enquanto limitada pela imperfeição e incompletude inerentes à vida terrena. O bem culminante, o supremo bem, confunde-se com a visão de Deus, ou a contemplação intelectual do Divino, a qual só é possível na outra vida. A visão naturalista de Tomás de Aquino leva-o a considerar como inclinações constituintes do bem humano, não só as que são peculiares ao homem enquanto agente racional, mas também as que ele partilha com os outros seres, como a função reprodutiva, por exemplo. Como explicar essa abrangência? Tomás de Aquino não se limita a reconhecer essas inclinações naturais como constituintes do bem humano, pela simples razão de se tratarem de finalidades e, logo, bens. Mas para que assim seja, importa que essas inclinações (por exemplo, a actividade reprodutiva) sejam humanizadas, quer dizer, sejam perseguidas, não apenas instintivamente, mas dependentes do exercício da razão, tornando-se, por isso, acções conscientes. Permeadas e controladas pela razão, essas inclinações tornam-se racionais, deliberadas, voluntárias e responsáveis e, dessa forma, passam a ter o carácter de bens. A lei natural não é o mesmo que o reconhecimento racional de imperativos físicos, nem se limita a ser um juízo de como devemos agir ignorando a teleologia da nossa componente física. A lei natural relaciona-se com as nossas inclinações, permeadas e controladas pela razão, e prescreve como é que nós devemos alcançar as nossas finalidades. Nessa medida, a prudência, ou princípio da boa deliberação, é inerente à lei natural e todas as pessoas detêm a capacidade para a desenvolver, com excepção das que revelam severas limitações psicológicas ou físicas. Então, a lei natural não é mais do que um comando da razão, tal como a razão não excede os limites das capacidades que Deus deu aos homens para extraírem da lei natural os preceitos necessários à boa conduta. A lei natural permite-nos derivar dela as directivas que nos permitem compreender e realizar o bem, ou seja, deliberar e executar as acções que nos tornam mais perfeitos e mais completos. O facto de qualquer pessoa no uso da razão concordar com o preceito de que os homens devem perseguir as acções que os tornam mais perfeitos e mais completos e evitar o que os afasta da perfeição é suficiente para justificar a existência quer da lei natural quer da natureza humana comum. Não há conceito de humanidade possível, seja qual for a cultura ou etnia, que não incorpore a preâmbulo da lei natural: o que está certo é fazer o bem e evitar o mal. Claro está que esse facto não invalida a existência de diferentes interpretações na forma como se aplica o princípio geral às situações concretas, mas essa divergência não invalida a universalidade da lei natural. Embora seja possível admitir a existência da lei natural sem a ancorar na lei divina (veja-se o caso de Aristóteles), a lei natural não pode prescindir do conceito de natureza humana. Para além disso, é necessário reconhecer que o homem é um ser dotado de inteligência, capaz de compreender o que faz e com o poder para determinar os seus fins. Por outro lado, o homem é uma estrutura ontológica, com uma natureza comum, capaz de identificar racionalmente as suas necessidades e dotado de uma racionalidade que lhe permite identificar as finalidades que correspondem necessariamente à sua constituição essencial e à sua estrutura ontológica, finalidades essas que são comuns a todos os homens, tal como é comum a todos os pianos, independentemente do seu tamanho, cor e material de construção, serem feitos para produzir os sons que os pianos podem produzir. Contudo, ao contrário dos pianos que são matéria destituída de razão e, portanto, escapa-lhes a possibilidade de eleger as suas finalidades, os homens, porque são dotados de razão, podem ou não colocar-se ao serviço das finalidades prescritas pela sua natureza. É, por isso, que se diz que o homem é capaz de fazer o bem e de fazer o mal e que, num caso e noutro, é um ser dotado de responsabilidade. É, também, por isso que as acções humanas são acções morais. Todos os seres da natureza têm a sua própria lei natural, ou seja, o seu modo normal de funcionamento. O que distingue os homens dos outros seres da natureza, é a sua capacidade para eleger os seus próprios fins e para escolher os meios adequados à perseguição desses fins. Por isso é que a lei natural do homem é uma lei moral, ao contrário do que acontece com a lei natural dos outros seres da natureza. E isso é verdade porque o homem é o único ser dotado de liberdade, na medida em que obedece ou desobedece à lei natural de forma livre e voluntária. Sobre o argumento ontológico da lei natural, ou seja, a normalidade de funcionamento do homem ancorada na sua essência, parece-me suficiente o que foi dito atrás. Passemos agora ao argumento gnoseológico da lei natural. Embora a lei natural não seja uma lei escrita, ela pode ser do conhecimento de todos e os crentes sabem quem a promulgou. Qualquer homem dotado de razão pode conhecer, com mais ou menos esforço, a lei natural, na medida em que todos os homens, em todos os lugares e em todas as épocas, concordam que o que está certo é fazer o bem e evitar o mal. Onde começa a divergência é na forma como se deve aplicar os princípios gerais às situações concretas. Essa divergência é fruto da imperfeição humana e resulta de os homens serem dotados de livre arbítrio, sendo-lhes permitido optar entre o bem e o mal. Essa imperfeição humana é evidente no facto de os homens estarem confrontados com inúmeros acidentes que podem corromper o seu juízo moral. À medida que a consciência humana evoluiu, foi possível ir conhecendo, cada vez mais, a lei natural e os seus diversos preceitos. As civilizações e diferentes culturas humanas dão-nos conta desse fenómeno. Contudo, a lei natural e o conhecimento da lei natural não são a mesma coisa. Para que a lei natural tenha força de lei e possa condicionar as leis morais e as leis positivas, é preciso que ela seja conhecida. Como é que a lei natural foi sendo conhecida? O exercício da razão humana muito contribuiu para tal. Tomás de Aquino responde que a razão humana descobre os preceitos da lei natural através da orientação das inclinações da natureza humana, ou seja, não só através do conhecimento racional, mas também através do que Tomás de Aquino chama de conhecimento através da inclinação. Na obra de Tomás de Aquino, é possível reconhecer que o conhecimento racional é a forma de identificação dos preceitos da lei natural e que, com o recurso à prudência, é possível identificar os meios adequados à prossecução dos fins. Contudo, os homens não se limitam a estar sujeitos à lei natural e à providência divina. Os homens, como seres racionais, participam quer da lei natural quer da providência divina. Esta participação, e não apenas sujeição, distingue os homens de todos os outros animais, na perspectiva de Tomás de Aquino, para quem é através da inclinação natural para o que deve ser, comum a todos os homens, que reside a participação na lei natural. Então, o que deve ser é acessível a todos os homens, independentemente do seu grau de cultura ou de educação, porque o processo de derivação das normas, leis positivas e leis morais a partir da lei natural não é um processo estritamente lógico e dedutivo, exigindo, também, o uso da synderesis, ou intuição moral directa, com o objectivo de atingir os princípios básicos e exercer a razão prática para aplicar esses princípios à variabilidade e contingência das circunstâncias. Fica, assim, explicado por que razão fazem parte da natureza humana comum as seguintes inclinações e capacidades naturais: o desejo de conhecer; a curiosidade intelectual; a procura e descoberta do transcendente; a razoabilidade e a capacidade para escolher de forma livre e responsável. A explicação que Tomás de Aquino dá para a existência destas inclinações e capacidades naturais comuns reside na natureza divina da criação: a luz da razão natural, impressa em cada um de nós por Deus, e que faz com que todos sejam capazes de discernir o que é bom e o que é mau. Neste particular, Tomás de Aquino afasta-se do seu mentor intelectual, Aristóteles, mas não anda longe de uma certa concepção clássica, expressa na voz interior de Sócrates que o avisava das acções que devia evitar. Do preâmbulo da lei natural é possível fazer derivar um punhado de preceitos igualmente universais: preserva a tua vida de uma forma que seja adequada à racionalidade humana; sê justo; não mintas; sê corajoso; não tomes para ti o que não te pertence; protege e educa as tuas crianças; procura atingir o máximo de conhecimentos que fores capaz; não ofendas os outros sem necessidade; respeita o teu próximo, etc. A defesa da lei natural implica a tomada de posição a favor de alguns valores morais absolutos. Os valores morais absolutos não admitem excepção, mas os actos podem escapar a esses preceitos morais absolutos devido às circunstâncias especiais e excepcionais que condicionam o acto. Alguns desses preceitos são negativos, outros são afirmativos. Dos primeiros, podemos destacar: não matar, não cometer adultério e não mentir. Por que razão estes preceitos não admitem excepções? Pelas simples razão de que a sua violação ameaça o ideal humano. Se a sociedade aceitasse excepções a estas leis morais, estaria a minar a confiança entre as pessoas e impedia a existência de critérios de avaliação do bem e do mal. Para além dos preceitos negativos, importa ter presente os preceitos formulados de forma afirmativa: sê generoso, sê justo, sê corajoso, sê temperado. Estes preceitos afirmam apenas um ideal humano que está conforme à finalidade última do homem, mas nada dizem sobre os meios para se ser generoso, justo, corajoso e temperado, deixando uma grande margem de liberdade e de opções na forma como cada homem pode concretizar esse ideal humano. A teoria da lei natural deixa uma grande margem de manobra para a expressão das individualidades pessoais e das circunstâncias da acção. Isso é assim, porque embora haja uma enorme pluralidade de necessidades individuais (no sentido de que o João sente mais a falta de livros do que o António e de que a Maria sente a necessidade de praia e a Manuela de montanha), é possível reconhecer a existência de necessidades comuns a todos os homens. A única maneira de emitir juízos morais de validade universal é reconhecer que há necessidades comuns a todos os homens, ou seja, necessidades que concorrem para a definição do que é humano e sem as quais o humano ficaria incompleto. Temos uma parte animal da nossa natureza que é comum aos restantes animais: precisamos de comer, de beber e de dormir (necessidades biológicas). Todo o ser humano precisa de ver preenchidas as suas necessidades biológicas em ordem a poder suster e prolongar a vida. Temos uma parte racional da nossa natureza que nos distingue dos outros animais e que nos impele para a vida em sociedades organizadas, onde o livre arbítrio e a liberdade de acção têm de estar asseguradas para podermos levar uma vida condizente com a nossa racionalidade: precisamos de ter voz nos assuntos do governo da polis, exprimir as nossas opiniões e estabelecer relações sociais livres e justas com outros. A liberdade de acção, a livre escolha, a livre expressão e a livre associação são direitos que derivam da lei natural, isto é, que dizem respeito a necessidades comuns a todos os homens e sem a satisfação das quais a racionalidade humana ficaria incompleta ou distorcida. Nesta medida, não será trair o pensamento de Tomás de Aquino afirmar que os regimes totalitários, de esquerda e de direita, são regimes que violam a lei natural. A teoria das necessidades comuns a todos os homens conduznos a argumentar a favor da teoria da existência de bens reais comuns a todos os homens, isto, é bens que concorrem para alcançar a finalidade última e sem os quais a racionalidade humana ficaria incompleta ou distorcida. Entre esses bens reais, é justo destacar o desejo de conhecimento, expresso na seguinte máxima: todos os homens e mulheres devem procurar o conhecimento até ao limite das suas possibilidades e condições. O desejo de liberdade é outro bem real comum a todos os homens, expresso na seguinte máxima: os homens e as mulheres precisam de liberdade porque possuem, naturalmente, livre escolha e necessitam de liberdade de acção para exercer a livre escolha. O desejo de viver em paz constitui outro bem real comum, expresso na seguinte máxima: os homens e as mulheres precisam de viver numa sociedade onde haja paz, porque a paz proporciona-lhes as condições de vida necessárias e indispensáveis em ordem a procurarem a felicidade. Tomás de Aquino distingue entre preceitos primários e preceitos secundários da lei natural. Os secundários não são relativos, ou seja, não admitem excepções. Contudo, a aplicação dos princípios gerais às situações concretas pode conduzir a que as circunstâncias do acto sejam tais que o acto deixe de fazer parte do tipo de actos proibidos pelo preceito. Por exemplo, o preceito: devolve o que não te pertence. Estamos perante um preceito secundário que impõe absolutamente. Contudo, podemos estar perante uma situação em que um indivíduo levado por uma súbita loucura nos exige a devolução de uma arma que lhe tínhamos pedido emprestada para ir à caça e que, uma vez devolvida ao seu legítimo proprietário, nos faz ter razoáveis receios de que ele possa usar a arma para nos matar ou para matar outras pessoas. Neste caso, as circunstâncias que envolvem o acto de devolver algo que não nos pertence alteraram o carácter do acto, tendo este deixado de pertencer aos actos abrangidos pelo preceito "devolve o que não te pertence". A lei natural lida com os direitos e deveres relacionados de uma forma necessária com o primeiro princípio: faz o bem e evita o mal. É por isso que os preceitos da lei natural residem na própria natureza das coisas, sendo invariáveis e universais. Dela derivam todas as outras leis humanas que merecem o nome de leis: o direito internacional ou lei das nações e as leis positivas. Todas elas são prolongamentos da lei natural que vão determinando e especificando tudo aquilo que a lei natural deixou por especificar. Quando as leis positivas violam a lei natural, não merecem a designação de leis. E, nesses casos, coloca-se a questão da legitimidade da desobediência civil. Mas, essa questão, igualmente desenvolvida por Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, merecia um outro texto. Tomás de Aquino dedicou o tratado incompleto Sobre a Realeza (3) ao estudo da natureza do Estado e do melhor regime político e as questões 90 a 97 da Suma de Teologia ao estudo das leis positivas. Aquino começa o tratado pela definição da palavra rei: quando uma coisa se dirige para um fim, e é possível escolher o caminho, alguém tem de indicar a melhor maneira de atingir esse fim. Tal como um barco precisa de um piloto que o conduz ao porto, também um país precisa de um monarca que o guie na prossecução dos seus fins, os quais se enquadram nos limites da procura de felicidade para os súbditos. Tal como cada homem tem uma finalidade para a qual se dirigem todas as acções da vida, o conjunto dos homens que formam um país implica a existência de muitas maneiras diferentes para atingir os objectivos comuns. Como animal social, o homem converge para os outros homens em ordem a atingir objectivos comuns, obrigando-se a aceitar a autoridade do Estado para manter a ordem e a segurança e entregando essa autoridade nas mãos de um monarca capaz de governar, assegurar os interesses comuns e permitir que os fins sejam atingidos. De outra forma, cada homem ficava limitado à prossecução dos seus fins privados sem haver possibilidade de acautelar o bem comum. Em todas as coisas que são ordenadas em função de uma finalidade, há sempre uma parte que governa o resto. No homem, essa parte é a razão. Num grupo de homens também tem de haver quem dirige o grupo para que não se perca de vista o bem comum e o mesmo se passa com o país. A necessidade de haver quem governe resulta do simples facto de os homens serem livres de procurar quer o caminho certo quer as direcções erradas. É por isso que o governo de um país pode desempenhar as suas funções bem ou mal. O governo desempenha bem as suas funções quando mobiliza adequadamente os meios para atingir a finalidade adequada, ou seja, a prossecução do bem comum e a felicidade de todos ou, pelo menos, do maior número possível. Quando o governante se fasta desse objectivo, optando, ao invés, pelo bem individual ou o bem de grupos restritos em prejuízo do bem comum, estamos perante um governo injusto e perverso, justificando-se a oposição dos governados, embora a insubordinação deva ser usada como último recurso e apenas para evitar males maiores. Tomás de Aquino, seguindo de perto a Política de Aristóteles, caracteriza vários tipos de governos justos e mostra preferência pela realeza moderada, capaz de assegurar dois critérios fundamentais do bom governo: participação do povo e tomada de decisões a cargo de um monarca preocupado com o bem comum e detentor de virtudes morais e intelectuais. Quando o governo está a cargo de um grande número de cidadãos poderosos, como quando um grande grupo de guerreiros ou de homens muito ricos governa uma cidade, estamos perante uma oligarquia. Quando o governo está nas mãos de um pequeno número de homens virtuosos e sabedores, chamamos a esse governo de aristocracia. Quando o governo está nas mãos da multidão de cidadãos pobres, estamos perante uma democracia. Quando o governo está concentrado nas mãos de um soberano, que governa com o consentimento do povo e em nome do bem comum, estamos perante uma monarquia, seja ela hereditária ou eleita. Identificados os vários tipos de governo, Tomás de Aquino convida o leitor para fazer um exame daquele que será o melhor tipo de governo, começando por perguntar se é melhor um grupo ser governado por muitos ou apenas por um homem? O inquérito é conduzido a partir do ponto de vista da finalidade do governo, a qual é, nem mais nem menos, do que a prossecução do bem comum. Para se compreender a argumentação de Aquino, importa ter presente a teoria política de Aristóteles, desenvolvida, magistralmente, no tratado A Política. Há guerras justas ou a guerra é sempre uma actividade moralmente condenável? Numa altura em que os movimentos pacifistas convivem com as intervenções belicistas em nome da universalidade dos direitos humanos, convém saber o que Tomás de Aquino pensa da guerra. O filósofo não tem dúvidas em afirmar que há guerras justas, mas avisa que é necessária a presença de três condições. Primeiro, a pessoa que decreta a guerra deve ter autoridade para o fazer. As pessoas vulgares não podem mobilizar a população para a guerra nem tão pouco decretar guerras privadas contra outras pessoas. As sociedades organizadas delegam a responsabilidade de decretar a guerra em autoridades políticas com legitimidade para o fazerem em nome do bem comum. Essa autoridade é legítima sempre que a guerra constituir o único e derradeiro meio para a defesa do bem comum face aos inimigos externos. Segundo, é preciso que haja uma causa justa que justifique a guerra contra um inimigo externo. Ou seja, a guerra só pode ser justificada quando há ofensas de tal forma graves que não podem ser reparadas de outra forma. A terceira condição é que, da parte de quem decreta a guerra, haja a recta intenção de atingir um bem maior e de evitar um mal maior. Justificando-se com as palavras de Agostinho de Hipona, na Cidade de Deus, o nosso filósofo afirma que a guerra pode ser um acto de paz se for feita para assegurar a paz e para impedir a propagação do mal. Ou seja, a guerra pode ser justa se 1) for decretada por quem autoridade para tal, 2) for feita em nome da paz e para evitar males maiores, 3) estiver ao serviço do bem comum contra o inimigo externo e 4) for feita de maneira a reduzir ao mínimo a crueldade e a avidez. Podem a segurança e a tranquilidade públicas ser postas em causa por um acto de sedição ou de revolta popular? Tomás de Aquino, fazendo justiça ao espírito comunitarista medieval, não mostra qualquer simpatia pelas revoluções e guerras civis. Note-se que as guerras civis não entram nas várias espécies de guerras justas justificadas por Aquino, pelo simples facto de que uma guerra só pode ser justa se for conduzida contra um inimigo externo. Apesar disso, Tomás de Aquino aceita a revolta contra a autoridade, desde que essa revolta se destine a libertar a sociedade de um tirano que impõe a sua autoridade através da crueldade e divisões internas e coloca o bem comum ao serviço de interesses particulares. Ou seja, embora a sedição seja, em si mesma, moralmente condenável, porque provoca a divisão daquilo que deve estar unido, a revolta contra um tirano pode justificar-se se estiverem asseguradas as seguintes condições: 1) o tirano não tem autoridade legítima para exercer o poder, 2) o tirano exerce o poder com crueldade e coloca o bem comum ao serviço de interesses particulares, 3) o acto de revolta contra o tirano é exercido com o mínimo possível de recurso à força e 4) há grandes. probabilidades de que a substituição do tirano por uma autoridade legítima traga bem estar e paz para a comunidade. A ética de Tomás de Aquino é uma ética situada, preocupada com o concreto e profundamente embrenhada nos problemas da vida. Vejamos qual é a posição de Tomás de Aquino face a questões da vida real, como a mentira, a desobediência, a usura, a fraude, o roubo e o homicídio. Iremos começar esta demanda intelectual em torno dessas questões da vida real com a posição de Aquino acerca do roubo. O filósofo começa por perguntar se os bens materiais são pertença natural do homem. Os bens materiais podem ser olhados de duas maneiras. Do ponto de vista da sua natureza, apenas pertencem e obedecem a Deus e assim é porque Deus tem o poder para dar e tirar. Do ponto de vista do seu uso, o homem tem um direito natural às coisas materiais, uma vez que a sua vontade e a sua razão podem retirar benefícios desses bens materiais. Os bens materiais existem para usufruto do homem, uma vez que é próprio das coisas imperfeitas serem usadas em benefício das mais perfeitas. Esse facto é reforçado no Génesis, quando Deus afirma: "vamos fazer o homem à nossa imagem e semelhança e ele reinará sobre o peixe do mar" (4). Quererá isto dizer que a propriedade privada é um direito natural do homem? Na verdade, a propriedade privada não é uma parte constituinte da lei natural, mas foi acrescentada à lei natural, graças à inteligência e racionalidade humanas. A propriedade privada é preferível à propriedade comum por várias razões. Primeiro, cada um cuida melhor daquilo que é seu do que daquilo que é de todos. Segundo, a gestão do património é mais eficientemente organizada quando existe responsabilidade individual, pois se todos fossem colectivamente responsáveis pela gestão de tudo, reinaria a anarquia e a maior das confusões. Terceiro, a paz é mais facilmente garantida quando cada um é proprietário de alguma coisa. Tomás de Aquino não diz que a propriedade privada faz parte da lei natural. Para sermos rigorosos, teremos de referir que o que faz parte da lei natural é a propriedade comum, no sentido de que tudo o que existe pertence a Deus e não a qualquer homem em particular. Contudo, pelas razões apontadas atrás, a propriedade privada foi acrescentada à lei natural pela inteligência humana, mas os homens obrigam-se a fazer um bom uso dela, não esquecendo a função social da propriedade e a obrigação moral de distribuir parte dessa propriedade pelos mais necessitados. A prova de que a propriedade privada não pertence à lei natural é que, em caso de necessidades extremas, tudo pertence a todos, não sendo moralmente errado a partilha da propriedade em comum, durante o período em que vigorar essa necessidade extrema, como por exemplo, após a ocorrência de grande calamidades naturais ou guerras extremamente destrutivas. Nessas alturas, as coisas que alguns têm em grande abundância devem ser usadas para minorar as necessidades dos muitos carenciados. Em casos desses, tomar como seu uma pequena parte daquilo que outro tem em grande abundância não pode ser considerado um roubo. Tomás de Aquino quer dizer com isto que o roubo é permitido apenas em caso de grande necessidade e quando há situações excepcionais que exigem a partilha, pelos mais necessitados, de parte dos bens daqueles que os têm em excessiva abundância. Vejamos, de seguida, o que o filósofo nos tem para dizer acerca da fraude. Aquino começa por perguntar se é legítimo vender alguma coisa por um custo superior ao seu valor. Para responder a essa pergunta, recorre a Aristóteles (5) que afirma haver duas espécies de trocas comerciais. Uma delas é necessária e natural. Consiste na troca de um produto por outro ou num produto pelo dinheiro necessário à compra de um bem necessário à vida. A outra espécie é a troca de dinheiro por dinheiro, com o objectivo de ganhar mais dinheiro e não de adquirir bens necessários à vida. A primeira espécie é natural e necessária porque concorre para a satisfação de necessidades naturais. A segunda espécie não visa uma finalidade necessária e natural, mas não constitui, em si, algo vicioso ou mau, a não ser que atinja os limites da usura ou da fraude, isto é, se converta apenas numa maneira de vender coisas que valem menos do que o preço pedido por elas ou se submeta apenas à finalidade de acrescentar dinheiro ao dinheiro. À semelhança do estagirita, Tomás de Aquino não condena o comércio, mas avisa para os malefícios da usura e da fraude. O comércio é justo e necessário quando tem como finalidade a satisfação das necessidades naturais, tanto de quem vende como de quem compra. É possível ver, no pensamento de Aquino, uma crítica ao capitalismo financeiro e à ganância desenfreada que, com ele, anda associada. A procura excessiva de ganhos, com o único objectivo de acrescentar dinheiro ao dinheiro ou de acumular bens materiais que não satisfazem necessidades naturais, constitui uma actividade viciosa. Vejamos, de seguida, a questão da desobediência. Até que ponto é necessário e é correcto obedecer? Quando se justifica a desobediência? As acções humanas dependem da vontade humana, mas estão sujeitas ao comando estabelecido pela hierarquia, segundo a qual as forças superiores movem as forças inferiores. Dessa forma, é natural que as relações humanas obedeçam a uma hierarquia de comando, mas é necessário que o comando cumpra determinados requisitos, sem os quais perde a legitimidade para se fazer obedecer. Há duas situações em que um sujeito deixa de ser obrigado a obedecer às ordens dos seus superiores: primeiro, se esse comando for contrário ao comando de um poder hierarquicamente superior; segundo, um sujeito não é obrigado a obedecer a uma ordem de um superior, caso o superior esteja a exceder a sua autoridade, ou seja, ordene algo que está acima da sua autoridade. Para além disso, nenhum homem tem o dever de obedecer a outro homem em matérias que têm a ver com a sua consciência interior ou com a educação dos seus filhos, porque, nessas matérias, nenhum homem é superior a outro e todos devem obediência a Deus. O povo deve obediência à autoridade política apenas quando essa autoridade política exerce as suas funções tendo em vista o bem comum. Quando a autoridade política se move em função de interesses particulares, pondo em risco o bem comum, deixa de ter legitimidade para exigir a obediência dos súbditos. Contudo, o povo só pode depor a autoridade política, em último recurso e para evitar males maiores. Ao fazê-lo, deve ter a noção exacta de que essa é a única forma de evitar males maiores e que, com essa acção, há uma probabilidade grande de tornar a repor a verdadeira função da autoridade política, ou seja, a procura do bem comum. Enquanto o roubo e a desobediência admitem excepções aos preceitos "não roubarás" e "obedece aos teus superiores", a mentira é um mal que se mantém em todas as circunstâncias, pelo facto de ser um mal em si mesmo. Quando mentimos, estamos a usar palavras que deturpam o que temos no pensamento e, nessa medida, a mentira prejudica aquele a quem mentimos, para além do facto de estarmos a utilizar símbolos da realidade de uma forma desordenada, distorcida e propositadamente falsa. Não há, por isso, qualquer justificação para a mentira e nem sequer vale a pena argumentar com a necessidade de evitarmos males maiores. Nesse caso, é preferível o recurso à omissão, sendo-nos permitido esconder a verdade para evitar um mal maior. Convenhamos, no entanto, que esconder a verdade não é tão grave como deturpar deliberadamente a verdade. Quando Tomás de Aquino escreveu a Suma de Teologia, a presença da Igreja na definição e orientação de padrões morais e na emissão de conselhos práticos era constante na vida das pessoas. Basta lembrar que, no século XIII, os povos da Europa eram profundamente comunitários e a vida social girava em torno de pequenas comunidades naturais como a família. Uma das facetas da vida em que a Igreja dava uma orientação precisa era a dimensão sexual. Esse facto compreende-se, tendo em conta que as sociedades da época eram profundamente ancoradas no casamento para toda a vida e na família alargada, considerada como uma unidade de produção auto-suficiente e um microcosmos onde as pessoas encontravam afecto, segurança e bem estar. Não admira, por isso, que o adultério fosse considerado um pecado mortal e uma falta social grave porque punha em causa todo o equilíbrio social baseado no casamento para toda a vida, na família alargada e na responsabilidade familiar pela educação dos filhos. Tomás de Aquino considerava que o adultério era um pecado mortal e uma falta social grave, por várias razões. Em primeiro lugar, o adúltero coloca em causa a principal finalidade da família, que é a procriação e a educação dos filhos. É preciso lembrar que, no século XIII, não havia métodos contraceptivos seguros e, portanto, uma relação adúltera tinha grandes probabilidades de ter como consequência o nascimento de um ou mais filhos, colocando problemas gravíssimos, como por exemplo, quem iria proteger, alimentar e educar essas crianças ou a que família essas crianças iriam pertencer? Em segundo lugar, uma relação adúltera implica sempre o tomar para nós aquilo que não nos pertence e, muitas vezes, anda acompanhada da mentira e da dissimulação, minando as relações de confiança entre as pessoas e colocando a parte mais fraca dessa relação, regra geral a mulher, numa situação de exploração e de dependência. Por outro lado, como a relação adúltera, naquela época, resultava quase sempre no nascimento de filhos fora do matrimónio, era a mulher que carregava, quase sempre sozinha, o fardo de proteger, alimentar e educar os filhos nascidos dessa relação. Tomás de Aquino dedicou longas páginas da Suma de Teologia à análise dos pecados mortais relacionados com os prazeres do sexo. A promiscuidade e a homossexualidade foram tratados, por ele, com uma atenção muito especial, uma vez que ameaçavam a estabilidade das relações comunitárias das sociedades medievais, baseadas na defesa da lei natural, da família tradicional e do bem comum. A promiscuidade constitui uma actividade moralmente condenável por ser contrária à natureza do homem, não enquanto animal, mas enquanto um ser racional, dotado de vontade, livre arbítrio e tocado pela graça divina. O homem e a mulher devem manter uma relação duradoura que, em condições ideais, deve durar a vida inteira. Essa relação para toda a vida assenta em dois pressupostos fundamentais da vida do casal: o amor conjugal e procriação e educação dos filhos. A promiscuidade atenta contra os dois pressupostos e, por isso, é condenável à luz da lei divina e à luz da lei natural e das leis positivas. Repare-se: se fosse natural um homem ter relações sexuais com diversas mulheres e vice-versa seria impossível, por um lado, saber quem é o pai da criança que nasce fora do matrimónio e, por outro lado, o homem e a mulher ficariam desprovidos de tempo e de energia para amar e proteger o ser amado. A homossexualidade é, igualmente, condenada com o argumento de se tratar de uma actividade anti-natural. Entenda-se aqui por anti-natural, como contrária à lei natural que orienta e regula o processo de deliberação e de decisão dos homens enquanto seres dotados de razão e participantes da providência divina. Se fosse natural a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, o homem e a mulher seriam, ambos, dotados de aparelhos reprodutores, como acontece, aliás, com algumas espécies de seres vivos mais elementares. Aquilo que é apropriado é o que a natureza determina. Acresce, no caso dos humanos, que a razão tem a capacidade para iluminar a natureza, tornando a lei natural compreensível para todos. Dessa forma, a prática de actos sexuais anti-naturais não é justificável nem à luz da lei natural, nem à luz da inteligência e razão humanas. Tomás de Aquino não chegou a abordar a possibilidade de a natureza cometer erros, podendo haver homens e mulheres que sejam, por natureza, atraídos para pessoas do mesmo sexo ou até psicologicamente orientados em função de um género sexual oposto ao seu. Apesar de não ter analisado esta possibilidade, é possível descortinar na sua obra a sugestão da castidade para esses casos, uma vez que Aquino defende a possibilidade de uma pessoa ser feliz sem actividade sexual concreta. Vejamos, por último, a pior das ofensas morais: o homicídio. Tirar a vida a outra pessoa, sem ter autoridade para tal, é um crime e é uma grave ofensa moral. Contudo, Aquino admite a pena de morte decretada pelas autoridades judiciais, em casos de ofensas graves e quando a eliminação física do criminosos constitui uma necessidade a fim de assegurar o bem estar da comunidade. Mas fazer justiça pelas próprias mãos é um acto inteiramente condenável por Tomás de Aquino. O que é que o filósofo nos diz acerca do homicídio em legítima defesa? O acto de nos defendermos a nós próprios pode produzir dois efeitos: salvar a nossa própria vida e matar o atacante. Uma vez que é natural que cada um queira preservar a sua vida, não podemos considerar a legítima defesa como um acto imoral, desde que não haja intenção de matar. Contudo, o uso desproporcionado da força em legítima defesa constitui um acto ilícito. E que dizer da pessoa que mata outra por acidente? Neste caso, temos de analisar se houve falta de cuidado do agente causador da morte e se essa falta de cuidado pode ser imputável ao desleixo ou imprudência do agente. Se for esse o caso, então estamos perante homicídio por negligência, o qual é moralmente censurável e merece castigo. Se a morte foi causada por um acidente que não resultou do desleixo ou imprudência do agente, estamos perante um homicídio acidental que não é moralmente censurável. A distinção que Tomás de Aquino faz entre o homicídio acidental e o homicídio por negligência mantém, hoje em dia, uma actualidade surpreendente, nomeadamente na apreciação jurídica e policial das mortes provocadas por acidentes de viação, em particular dos atropelamentos na via pública e dos desastres de viação provocados por ultrapassagens perigosas, condução imprópria ou excesso de velocidade. Se a sociedade quiser combater mais eficazmente a mortalidade rodoviária terá que sancionar com penas maiores as mortes provocadas por excesso de velocidade, ultrapassagens perigosas, condução imprópria e condução sob o efeito de drogas. Notas 1) Tomás de Aquino desenvolveu a teoria da lei natural em vários tratados reunidos na Summa Theologiae. Há inúmeros ensaios 2) 3) 4) 5) explicativos da teoria da lei natural. Ao leitor interessado em aprofundar o assunto, recomendo: Paul Sigmund (1988) (Ed.). St. Thomas Aquinas on Politics and Ethics.Nova Iorque: Norton; Ralph McInerny (1997). Ethica Thomista. Washington, DC.: The Catholic University of America Press. A leitura da obra de um dos maiores neotomistas do século XX, Jacques Maritain, também é muito útil: Moral Philosophy (Nova Iorque: Scribner`s, 1964). Aquino dá-nos esta definição no Tratado da Lei, Artigo 2 da Questão 94 da Summa Theologiae. Escrito entre 1265 e 1267 e deixado por acabar, o tratado Sobre a Realeza, foi objecto de um pedido feito pelo rei de Chipre. Génesis, 1: 26 Aristóteles, Política, 1, 9