O FENÔMENO DO MUNDO EM HEIDEGGER
Guilherme Pires Ferreira (Bolsista – PET Filosofia)
Glória Maria Ferreira Ribeiro (Orientadora - Tutora do Grupo PET Filosofia)
Agência financiadora: MEC/SESu
Resumo: A indagação pelo sentido do ser, proposta por Martin Heidegger, assumirá a
forma de uma analítica existencial do ente humano concebido como presença. Compreende-se tal
analítica como o estudo dos momentos estruturais da presença. Dentro desta analítica o
fenômeno do mundo quase impõe como fundamental isto porque o principal modo de a presença
se projetar na existência é como ser-no-mundo – é, no fenômeno do mundo que a presença
ganha seu ser através de um fazer.
Palavras-chave: mundo, ser – no - mundo, ocupação, ente, ser.
H
eidegger ao elaborar a questão sobre o sentido do ser, elege o homem
(concebido como presença) como o ente que será questionado em seu ser. Isto é, por ter
uma primazia ôntica / ontológica em relação aos demais entes (uma vez que ao ser a
presença coloca em jogo o seu próprio ser e ao mesmo tempo pré-compreende este ser),
o filósofo empreenderá uma analítica existencial deste ente como modo de acesso a
elaboração da questão sobre o sentido do ser.
Compreende-se tal analítica como a análise dos momentos estruturais (estudo
fenomenológico dos modos de ser fundamentais) em que a presença se projeta na
existência. Ao empreender tal analítica, Heidegger vê que o primeiro destes momentos
estruturais será o mundo. Isto é, visto que o principal modo de a presença se projetar na
existência é como ser-no-mundo, faz-se mister a compreensão do que significa este
fenômeno.
Estas determinações do ser da presença, todavia, devem agora ser
vistas e compreendidas a priori, com base na constituição de ser que
designamos de ser-no-mundo. O ponto de partida adequado para a
analítica da presença consiste em se interpretar esta constituição. (2006,
p.98)
“Em sentido fenomenológico determinou-se a estrutura formal de fenômeno como o que
se mostra enquanto ser e estrutura de ser” (2006, p. 110). Assim sendo, ao perguntar
pelo fenômeno de mundo não devemos nos ater nem às coisas naturais (natureza como
substância), nem às coisas dotadas de valor, uma vez que, segundo Heidegger, ambas
são entes que se dão “no” mundo. Ou melhor, são determinações ou modos específicos
de ser no mundo. E sendo “no-mundo” tais entes já o pressupõe. Desta forma, Heidegger
propõe que nos atenhamos no fenômeno por ele determinado como “mundanidade do
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mundo em geral”, que é aquele em que ao mesmo tempo somos e estamos.
“Mundanidade é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento
constitutivo de ser-no-mundo” (2006, p.111). E como o modo fundamental de ser da
presença é esta estrutura ser-no-mundo, verifica-se que a analítica da mundanidade se
encontrará, como dissemos, dentro da analítica da própria presença.
Segundo Heidegger, ao nos atermos a uma análise do mundo como mundanidade
(fenômeno), evitaremos o desvio da tradição filosófica que interpretou constantemente o
mundo como uma coisa (substância), notadamente a tradição cartesiana. Ao fazê-lo a
tradição ignorou que o mundo, visto dessa forma, é uma determinação do ser da
mundanidade, que vem ao encontro a um modo específico de ser da presença. Ou seja,
o mundo visto como coisa (res extensa) não é senão um modo determinado de ser, que
vem ao encontro junto à presença e que se desvela a partir de um conjunto de relações
próprias (ocupação) estabelecidas com e a partir daquela. Assim sendo, tal concepção
ignora inclusive a noção de presença (homem como compreendido como um projeto –
um ente que se encontra lançado no mundo), considerando esta como uma de suas
determinações, qual seja: homem (sujeito) que se contrapõe ao mundo (objeto). No
entanto, é importante ressaltar que este modo de a presença encarar a si mesma e ao
mundo, e que foi assumido pela tradição faz parte do próprio modo de constituição
ontológica da presença cotidiana; ou melhor, constitui-se cmo uma possibilidade de a
presença visualizar a si e ao mundo como coisas (res) determinadas e opostas uma (res,
substância) a outra, assumindo determinações distintas e independentes. Afirma-se isso,
pois, a própria dinâmica do ser que se subtrai frente ao ente leva à aparência de sua
estaticidade. Ou melhor, é próprio da presença cotidiana, devido ao encobrimento
(dissimulação) do ser frente ao ente, ver a si e ao mundo como algo já dados. Tal fato
gerará o fenômeno da decadência da pré-sença, que nada mais é do que a noção de que
a mesma possui de já estar, tanto ela própria quanto mundo, prontos.
Visto que a analítica da presença englobará à da mundanidade, como esta se dará? Ou
melhor, como analisar o fenômeno da mundanidade dentro do horizonte da analítica da
presença? Para tanto, responde Heidegger, é necessário que a mundanidade seja vista
no seu ponto mais próximo à presença cotidiana. “Para se ver o mundo é pois necessário
visualizar o ser-no-mundo cotidiano em sua sustentação fenomenal” (2006, p.113). Esta
instancia mais próxima da presença cotidiana em que pode ser visualizada a
mundanidade será denominada por Heidegger como “mundo circundante”. Conceito este
que pretende abranger a característica de “circundar”, “abarcar” diferentes esferas e
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mundos (entendidos aqui como os diversos âmbitos das relações da presença cotidiana).
E como é possível analisar este mundo circundante? Responde Heidegger,
Passando por uma interpretação ontológica dos entes que vêm ao
encontro dentro do mundo circundante poderemos buscar a
mundanidade do mundo circundante (circumundanidade). (2006. p.114)
Isto é, a partir da análise fenomenológica do ser dos entes que se determinam junto à
presença cotidiana, torna-se possível a visualização da estrutura do ser-no-mundo
cotidiano, ou seja, o mundo circundante.
Mas, porque tal análise nos permitirá visualizar tal estrutura? A resposta estaria no fato
de que os entes que vêm ao encontro no mundo circundante têm seu ser fundamentado
junto à estrutura ser-no-mundo cotidiano. Isto é, é junto ao modo de lidar (de se projetar)
da presença (ser-no-mundo cotidiano) que o ser dos entes vem ao encontro (se dá) no
mundo circundante.
E qual seria este modo de lidar do ser no mundo cotidiano, junto ao qual o ser dos entes
vem ao encontro? Segundo Heidegger, este modo fundamental seria a ocupação. Isto é,
estamos sempre lançados numa ocupação, através da qual lidamos com o mundo. Uma
evidência de tal fato, é que a nossa compreensão acerca do mundo se baseia muito mais
numa lida com ele do que numa teorização do mesmo. Ou seja, compreendemos de
imediato uma caneta no uso que dela fazemos e, nesse uso, prescindimos de uma
análise teórica.
Mas o que nos levou a afirmar que é junto a esta ocupação (que é o modo fundamental
de projeção do ser-no-mundo) que o ser do entes vem ao encontro?
Segundo
Heidegger, a própria compreensão do ser dos entes que acontece na ocupação é
possibilitada pelo fato de ser junto a ela que o ser dos entes se determinam enquanto
tais. Ou seja, é na ocupação que se atualiza as possibilidades veladas no ser de ente.
“Aqui o ente não é objeto de um conhecimento teórico do “mundo” e sim o que é usado,
produzido, etc”. (2006, p.115). Para exemplificar, pensemos numa foice, que ganha seu
“ser foice” junto ao ato do camponês ceifar o roçado. Porém, se usado num combate,
esta foice se tornará uma arma. Heidegger denominará este ente, com os quais o ser no
mundo se ocupa, como instrumento (ZEUG). Desta forma, o instrumento só “é” dentro de
uma circunstância, não cabendo em nenhuma teoria que dê conta de seu ser. Ou seja,
quando damos uma significação a um instrumento, o fazemos a partir de uma relação
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instaurada entre nós e tal ente. Tal relação é permitida pela própria estrutura da presença
(que sempre somos) que é a de sempre estar lançada numa ocupação. Essa ocupação,
como veremos adiante, gerará mundo uma vez que determina o ser dos entes nela
envolvidos, quais sejam, o dos instrumentos e da própria presença. Assim sendo, tanto
camponês e foice se determinarão enquanto tal no ato da ceifa. Então, qualquer teoria
sobre o que seja determinado ente parte de uma ocupação na qual tal ente está numa
relação junto à presença.
Mas, o que é propriamente este instrumento? Ou melhor, qual é o modo de ser do
instrumento que permite com que ele tenha tal característica, qual seja: a de seu ser vir
ao encontro junto à ocupação ? “Rigorosamente um instrumento nunca é” (2006, p.116)
Com essa afirmação, Heidegger se refere ao caráter de “instrumentalidade” do
instrumento. Ou seja, este ente sempre é um “ser-para”, que ganha seu ser dentro de um
sistema de relações (um todo) no qual sempre veremos sua referência a algo. Este todo
relacional, o filósofo chamará de totalidade instrumental.
Para visualizarmos este todo instrumental, retomemos o exemplo da foice. Esta se
descobre como tal ao ser usada para ceifar o campo. E junto a esta significação do
instrumento foice, todo mundo ao seu redor será também significado como mundo da
agricultura. Isto é, o campo será aquele que deverá ser limpo e cultivado. O sol que ali
bate será um peso a mais para o camponês e uma das principais condições para que a
planta possa germinar, a chuva fonte de vida ou de morte para a colheita, etc.
No entanto, é necessário ressaltar que, apesar de ser junto à ocupação que o ser dos
entes vêm ao encontro, esta dinâmica (de tornar presente, determinar, o ser de um ente
pela ocupação) não é determinada pela presença. Ou melhor, não é por uma vontade
consciente (reflexiva) que se determina o ser dos instrumentos na ocupação, ou mesmo a
própria ocupação. Pelo contrário, é pelo próprio ato do uso (ou da necessidade de uso
que se impõe desde o mundo no qual nos vemos lançados) que o ser do instrumento
vem ao encontro. Essa dinâmica é pré-reflexiva, uma vez que a abertura (determinação
do ser dos entes no todo instrumental) é anterior a qualquer teorização. Assim, é pela
necessidade de martelar que o martelo se apresentará enquanto tal, e não por uma
antecipação do que este seja. “O próprio martelar é que descobre o “manuseio”
específico do martelo “ (2006, p.117). Assim, uma pedra pode se revelar como martelo se
o martelar assim determinar.
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Heidegger chamará esta capacidade do instrumento (ser-para) de se revelar enquanto tal
de manualidade. E é esta que dirige a visão do ser-no-mundo cotidiano para o encontro
do ser dos entes na ocupação. Esta visão por sua vez, será denominada como
circunvisão, que é a visão que identifica imediatamente e de modo pré-reflexivo o todo
instrumental. Isto é, é a visão que identifica como instrumento de trabalho do campo, a
foice e o próprio campo como tarefa a ser realizada, no momento em que o camponês se
põe a ceifar.
Pois bem, o modo como o ser dos entes vem ao encontro no mundo circundante se
determina quando a presença se vê lançada numa ocupação (modo de lidar), na qual
instaura-se um todo instrumental (que é percebido pela circunvisão) que por sua vez
abarca todos os entes que ali se relacionam, determinando-os como insrumentos (ser
para).
Mas, em que tal análise nos ajudou a perceber o fenômeno “mundo” que se descobre
como mundanidade? A resposta, como nos aponta Heidegger, estaria no fato de que a
mundanidade enquanto tal, não seria outra coisa senão este próprio vir ao encontro dos
entes que se dão no mundo circundante. Ou seja, o mundo não seria nada além das
possibilidades de ser dos entes que vêm ao encontro junto à presença cotidiana e,
portanto, as possibilidades de ser da própria presença cotidiana.
Assim, a presença no seu momento fundamental, ser-no-mundo, não seria nada além de
o homem se relacionando com as coisas (instrumentos), com os outros (as demais
presenças) e consigo mesmo. Afirma-se isso tendo em vista que, ao ocupar-se, que é o
principal e primeiro modo da presença se projetar, ela o faz em relação a estes três
“momentos” (coisas, outros, e a si mesmo).
Vemos então, que Heidegger caminha no sentido da superação da tradição metafísica ao
propor um conceito de mundo como fenômeno dinâmico, que se atualiza nas relações
instauradas junto à presença. Ou melhor, ao abandonar a concepção de mundo como
substância (res extensas = objeto) que se contrapõe ao homem (sujeito); evidenciando o
mundo na sua relação de co-pertenciamento com a presença, o filósofo dispensa a
necessidade de um suporte metafísico que regulamente tal relação.
Referências Bibliográficas:
HEIDEGGER,Martin. Conferencias e escritos filosóficos. Sao Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os
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Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007
FERREIRA, Guilherme Pires
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pensadores)
______________Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006. 598 p.
STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre "Ser e Tempo". Petropolis: Vozes, 1988. 132 p.
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