CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DISCURSO COTIDIANO NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER Marcos Paulo A. de Jesus – Bolsista PET - Filosofia / UFSJ (MEC/SESu/DEPEM) Orientadora: Profa. Dra. Glória Maria Ferreira Ribeiro - DFIME / UFSJ (Tutora do Grupo PET Filosofia) Resumo: Neste trabalho tomamos como objeto de investigação o parágrafo 15 (“O ser dos entes que vêm ao encontro no mundo circundante”) da obra “Ser e Tempo” 1927, do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Neste parágrafo ele trata da mundanidade do mundo demonstrando as vias de acesso ao ser dentro do mundo. Para compreender esta dinâmica vamos trabalhar os fenômenos: ocupação, instrumento, manual e circunvisão na tentativa pensar como estes se estruturam no cotidiano de nossa existência. Palavras-chave: Cotidiano, mundo, mundanidade circundante. E ste estudo busca compreender o discurso cotidiano tomando como base teórica o pensamento do filósofo Martin Heidegger. Nessa investigação, nos ocuparemos da sua obra principal “Ser e Tempo” de 1927, cuja tradução escolhida é a de Márcia Sá Cavalcante Schuback, realizada pela Editora Vozes na sua 14º edição. Heidegger em Ser e Tempo realiza uma analítica existencial visando o redimensionamento da questão sobre o sentido do ser. Segundo Heidegger, o homem é o ente privilegiado porque somente ele é capaz de, ao existir, compreender o ser. Por isso o nosso filósofo elege a existência do homem para ser objeto da sua analítica. Segundo Heidegger, a estrutura fundamental da existência humana é a estrutura “ser-no-mundo”. A partir dessa estrutura não se pode pensar em separado o homem do mundo. Mundo nada mais é do que as possibilidades do homem de ser junto às coisas, com os outros e ser em função de si mesmo. Mundo que na compreensão heideggeriana, se manifesta como a trama de remissões que se estabelece entre os entes que vêm ao encontro do homem no mundo. Por conseguinte, o ser do homem e o ser do mundo são o mesmo ser. Ser este que, por seu lado, se dá sempre em ato. Ou seja, é somente como ato de ser que se pode pensar o modo próprio do homem se fazer no mundo e como mundo. Essa relação entre o homem e o mundo não é uma relação que se estabelece entre duas substâncias. Para Heidegger, homem e mundo não se encontram numa relação de dicotomia. Não se trata de dois entes que possuem duas naturezas distintas como quer a tradição metafísica. Homem e mundo traduzem um único e mesmo fenômeno. Na tentativa de compreendermos o modo como esse fenômeno se revela no cotidiano de nossa existência, nós iremos analisar o parágrafo quinze de “Ser e Tempo”, intitulado: “O ser dos entes que vêm ao encontro no mundo circundante”. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Marcos Paulo Alves de Jesus -2- Para evidenciar a sua compreensão do que seja o homem e a relação deste com o mundo, Heidegger irá denominá-lo Dasein (existência), em nosso trabalho utilizaremos a tradução brasileira de Márcia de Sá Cavalcante, qual seja: pre-sença. Pois bem, a pre-sença assume o significado do homem lançado no mundo diante das suas possibilidades de ser. Contudo, de imediato e na maioria das vezes, este mundo se revela como já estando pronto. Heidegger nos diria: de imediato nos vemos lançados num mundo já determinado, isto porque já estamos sempre lançados numa compreensão prévia do que são as coisas – compreensão que nos dá a ilusão de que tudo já se encontra determinado. Esse caráter prévio não se explica, em sua base ontológica, por nenhuma idéia de antecipação temporal. Ou seja, não sabemos previamente o que são as coisas porque nós possuiríamos uma idéia antecipada do que elas seriam, ou pelo fato de elas já se encontrarem feitas e prontas dentro do mundo. Para Heidegger, esse caráter prévio de nossa compreensão se explica pelo fato de que os entes com os quais nos relacionamos no mundo, nada mais são do que as possibilidades de ser do próprio existente. Por isso, a pre-sença já sempre sabe, já sempre compreendeu o que são as coisas que lhe vêm ao encontro o mundo. Contudo, isso não a redime de ter que realizar cada possibilidade de ser que se abre para ela no mundo e como mundo. É no horizonte destas possibilidades que Heidegger abre a compreensão das vias de acesso ao ser construindo a idéia de mundo circundante. E na tentativa de demonstrar fenomenologicamente como este acesso se dá no cotidiano, iremos analisar os fenômenos: ocupação, instrumento, manual e circunvisão. O acontecimento do ser-no-mundo é demonstrado através da análise do ente pre-temático na ocupação cotidiana. O ente pre-temático é aquele que se encontra a mão, ou seja, no seu uso se tem um conhecimento prévio de sua serventia já que não é preciso apreendê-lo para depois usá-lo. Ao fazer o uso do lápis, por exemplo, já se compreende antecipadamente o que é o lápis e para que ele serve. A pre-sença está no mundo orientada por um senso de utilidade, onde qualquer relação que ela estabeleça com as coisas parece ter um sentido bem definido. Ao olharmos as coisas sobre esta ótica elas sempre servem para isso ou para aquilo, como se fossem prolongamentos de nossa vontade. Mas a verdade é que tomamos o lápis à mão e o empregamos na tarefa de escrever, pois surge a possibilidade da escrita. Possibilidade que garante a transferência do lápis para o desempenho de tal função. Aqui o lápis se apresenta como um ente pretemático que não é um objeto em que teorizamos primeiro e depois usamos, mas é a lida que revela a função na qual ele descobre o seu ser. Como nos aponta Heidegger [...] é o que se mostra na ocupação do mundo circundante. Aqui, o ente não é objeto de um conhecimento teórico do “mundo” e sim o que é usado e produzido “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Considerações acerca do discurso cotidiano no pensamento de Martin Heidegger -3etc. O ente fenomenologicamente pré-temático, ou seja, usado, o que se acha em produção, torna-se acessível ao transferirmo-nos para tais ocupações1. A lida que envolve o ente pre-temático é a ocupação cotidiana, na qual nós usamos as coisas para isto ou para aquilo. Nessa lida as coisas se descobrem em seu ser-para, ou seja, na sua serventia à medida exata em que o homem igualmente se descobre em seu ser isto ou aquilo. Por exemplo: na lida, na ocupação da escrita, o lápis se descobre em seu ser para escrever à medida em que o homem se descobre em seu ser escritor. É na ocupação cotidiana que o “ser-para” das coisas se descobrem. Continuando com o exemplo acima, o lápis em seu ser-para escrever se encontra em latência, na espera da relação com a pre-sença para ganhar significado. Neste sentido, quando o lápis é usado em um ambiente de estudo, seu destino é escrever, mas se o emprego para brincar ele se traduz em seu ser-para como brinquedo. Deste modo o lápis revela o seu ser-para de acordo com o horizonte de significância no qual a pre-sença se encontra lançada. Esse ente pré-temático que transferimos para a ocupação é o que Heidegger denomina instrumento (aquele que se encontra à mão na ocupação). Por meio da ocupação o instrumento revela o seu ser na lida no qual é empregado. Sendo assim o instrumento nunca é algo que traz consigo um significado já determinado. A ocupação é que revela o ser-para do instrumento que está sempre em relação de remissão com os outros instrumentos. Por exemplo: O lápis só revela seu ser-para a escrita quando utilizado para esse fim numa conjuntura onde sala, mesa, cadeira e papel se instrumentalizam dando sentido a esta ação de escrever. O instrumento não é algo sozinho, mas, sempre se remete a um todo instrumental que o acompanha, pois quando utilizo o lápis, ele se remete aos outros objetos do estudo. Essa remissão é que aponta a essência do instrumento na ocupação cotidiana. Essa descoberta do lápis para a escrita só é possível por dois fatores: o manual e a circunvisão. O manual é que determina o modo de ser do instrumento na lida cotidiana. Quando o lápis se encontra em cima da mesa ele é um ente intramundano na espera de ganhar seu significado no mundo. Para que ele possa assumir o caráter de instrumento é preciso que se encontre em uso na ocupação. Assim o manual determina o modo de ser do instrumento quando este se encontra a mão na lida cotidiana. O ser-para do instrumento ou a maneira que ele será utilizado é regido pelo manual. Então lida que envolve os instrumentos é que desvela o manual, pois “por maior que seja o grau em que se visualize precisamente a ‘configuração das coisas’ na qual elas aparecem desta ou daquela maneira nunca se conseguirá descobrir o manual”.2 1 HEIDEGGER, Martin. In: Ser e Tempo. Tradução por Márcia Sá Cavalcante Schuback. ParteI - §15. Petrópolis: Vozes, 14ª ed. 2005, p.108 2 Ibidem, p.111 “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Marcos Paulo Alves de Jesus -4- Para que o manual possa revelar o ser-para do instrumento é necessário que os vários modos de lidar com o instrumento se projetem no mundo. Estes modos de lidar com os instrumentos são infinitos já que pre-sença se encontra lançada na existência tendo como tarefa realizar cada possibilidade de ser no mundo. Então maneira em que o ser-para do instrumento pode assumir no mundo necessita de uma visão para se guiar. A circunvisão é esta visão que orienta o que se encontra recolhido à mão no manual e possibilita a compreensão dos entes no mundo. Ao se adentrar em um ambiente de estudo, a mesa, caderno e o lápis ganham significado por meio da circunvisão, já que não pensamos a relação que estabelecemos com estes entes de modo separado ou em uma ordem cronológica, mas eles sempre nos aparecem como um todo. Vamos tentar visualizar esta dinâmica neste exemplo: quando me dirijo a uma biblioteca com a intenção de estudar o prédio, mesas, livros, computadores se apresentam como possibilidades que a circunvisão abre entorno da intenção que me leva a biblioteca. Deste modo posso utilizar o ambiente da biblioteca de diversos modos: estudar, ler, pesquisar etc. Essas diversas formas de utilizar o ambiente da biblioteca são orientadas pela circunvisão que é a visão que clareia o manual. A circunvisão é que da um tônus familiar, pois guia a pre-sença nesta relação que ela estabelece com as coisas no mundo. Sendo assim toda esta dinâmica até aqui trabalhada podemos afirmar que fazem parte de um “discurso cotidiano” que na compreensão heideggeriana é uma trama que envolve o acontecimento do Ser no mundo que se manifesta em nossas ações mais rotineiras. E os fenômenos até aqui tratados formam uma teia remissiva que revigora as relações entre a pre-sença e o mundo. Assim podemos afirmar que o discurso cotidiano se traduz como mundo circundante. Os fenômenos que envolvem o mundo circundante: ocupação, instrumento, manual e circunvisão, possibilitam uma análise ontológica desta relação entre o ser e os entes no mundo que Heidegger nos apresenta como momentos essenciais desta mundanidade: Mundanidade é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial da pre-sença.3 Isto é, a mundanidade circundante é um vigor que proporciona que o ser possa se desvelar no mundo. Assim podemos pensar o mundo circundante tem sua origem como horizonte de significância em que a pre-sença se encontra lançada. Este estar lançado no mundo faz com que pre-sença assuma esse mesmo mundo como uma tarefa a ser realizada. E na compreensão deste fenômeno no qual a pre-sença se encontra indissociavelmente ligada 3 Ibidem, p.104 “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Considerações acerca do discurso cotidiano no pensamento de Martin Heidegger -5- ao mundo é que podemos pensar o cotidiano e entender esse vigor que faz o mundo se recriar a todo instante. Referências Bibliográficas HUZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. 243 p. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução por Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes. Parte I. 14ª ed. 2005. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006