Texto proferido na Sessão em de Homenagem a Josué de Castro pela
Academia Brasileira de Letras, em 2 de outubro de 2008, Rio de Janeiro.
Profa Elizabeth Accioly
Diretora do INJC/UFRJ
Boa tarde.
Exmo acadêmico Ivan Junqueira representando o Exmo Presidente da
Academia Brasileira de Letras, acadêmico Cícero Sandroni, Exmo
acadêmico Arnaldo Niskier, em nome dos quais cumprimento todos os
membros desta ilustre academia; Ilma Prof. Anna Maria de Castro e
demais presentes.
Em nome do corpo social do INJC, gostaria de agradecer o convite
para participar dessa merecida homenagem ao prof. Josué Apolonio de
Castro.
O prof. Josué de Castro, antes de sua condição como cientista e
acadêmico, foi um visionário, um homem muito à frente de sua época,
um cidadão do mundo cujas vida e obra atravessaram as fronteiras
geográficas e do tempo.
Nascido em 05/09/1908 nos arredores da cidade do Recife, estado de
PE, Josué destacava-se, desde menino, pela inquietude que, na vida
adulta, norteou sua nobre missão, de denunciar o sofrimento humano em
decorrência da fome, a qual tratava como flagelo da humanidade
plenamente evitável.
Exímio observador, passou parte da infância observando o
movimento de homens e caranguejos nos manguezais do rio Capibaribe
no Recife, o que seria por ele denominado, mais tarde, como ciclo do
caranguejo, descrito em seus pormenores e analisado à luz do olhar do
escritor e do cientista em publicações como Homens e Caranguejos em
1965 e O ciclo do Caranguejo em 1966. Nelas descreve a relação
simbiótica entre o homem e o caranguejo, na qual o caranguejo era a
fonte de nutrição das populações que tinham os manguezais como meio
de subsistência e os excrementos humanos, a fonte de alimentação do
crustáceo. Em Homens e Caranguejos conta: “Criei-me nos mangues
lamacentos do Capibaribe, cujas águas fluindo diante de meu olhos
ávidos de criança pareciam estar sempre a contar uma longa história.
Eu ficava horas e horas imóvel, sentado no cais, ouvindo a história do
rio, fitando as suas águas correrem, como se fosse uma fita de cinema.
Foi assim que vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da
fome. Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de
encontrar o que comer”.
Registram seus escritos o auto-reconhecimento como menino
rebelde. Estudou em dois colégios tradicionais do Recife. No primeiro,
não se adaptou à rígida disciplina da instituição. No segundo, passou a
interessar-se pelos estudos graças à influência do educador Pedro
Augusto Carneiro Leão, que Josué reconhecia como uma das figuras
humanas de maior impacto em sua vida.
Não era egresso de família humilde, mas também, não tinha origem
abastada. Iniciou o curso médico, para orgulho de seus pais, Josepha
Carneiro de Castro, professora e de Manoel Apolônio de Castro,
mercador de gado e leite, aos 16 anos, na Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da Bahia, tendo concluído seus estudos na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Formou-se em 1929, aos 21 anos
e, no dia de sua formatura, deixa de comparecer à sua própria colação de
grau para viajar para o México, chefiando uma delegação de estudantes,
por ocasião da posse do Presidente Pascual Ortiz Rubio, ex-embaixador
daquele país no Brasil
Do
México,
Josué
parte
para
os
Estados
Unidos
para
aperfeiçoamento na Universidade de Columbia e no Medical Center em
Nova Iorque.
Amante das artes e da literatura sua veia de escritor desponta quando
ainda era estudante de Medicina, com publicação de contos, artigos e
crônicas em jornais e revistas, antes de tornar-se destacado autor de textos
científicos nas ciências médicas, biológicas, sociais e humanas.
Retornou ao Recife em 1930 e exerceu a medicina, inicialmente,
atuando em consultório privado numa época em que os problemas de
alimentação e nutrição se resumiam, à obesidade, magreza, diabetes, gota
e reumatismo, como ele mesmo relata em seus escritos autobiográficos.
Trabalhou, também, em uma fábrica de tecidos e pôde constatar,
profissionalmente, os efeitos da fome sobre a saúde dos trabalhadores.
Relata Josué: "Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a
verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não
podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo,
compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o
que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não
diretor daqui. A doença desta gente é fome. Pediram que eu me
demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era social. Não era só
do Mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do
continente. Era um problema mundial, um drama universal".
Encantava-lhe o trabalho de Freud, tendo idealizado abraçar a
Psiquiatria como especialidade, mas seu crescente interesse pelos
assuntos de Nutrição mudou radicalmente suas perspectivas e convicções.
Contestou a teoria malthusiana, fundamentada na hipótese de que
enquanto as populações crescem em progressão geométrica, a produção
de alimentos cresce em progressão aritmética, o que justificaria a
necessidade de limitar o crescimento demográfico. Dizia: "Os
neomalthusianos, ao afirmarem que o mundo vive faminto e está
condenado a perecer numa epidemia total de fome porque os homens não
controlam de maneira adequada os nascimentos de novos seres humanos,
não fazem mais do que atribuir a culpa da fome aos próprios famintos".
Defendeu enfaticamente a tese de que a fome era poduto da ação
do homem contra seu próprio semelhante, fruto da cobiça e ganância
impostos por um modelo desenvolvimentista que atrbuía maior
importância à produção de bens de interesse do mercado internacional,
como forma de libertação nacional da dependência externa. "A fome é,
conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males
sociológicos. Está internamente ligada com as distorções econômicas, a
que dei, antes de ninguém, a designação de subdesenvolvimento".
Enxergava a verdadeira liberdade como aquela que respeitava a
dignidade humana garantindo o acesso às necessidades fundamentais do
ser humano, dentre as quais o direito à alimentação adequada, tema da
agenda dos governos em nível mundial nos dias atuais. Dizia-se
„interessado no espetáculo do mundo” e que “A minha medida é o
homem. O resto é paisagem”.
Realizou, em 1932, o estudo “As condições de vida das classes
operárias do Recife” o primeiro inquérito nutricional no país em que
Josué denuciava a gravidade dos efeitos da fome, mascarada à época, por
explicações baseadas em preconceitos raciais e climáticos. Pela primeira
vez são estabelecidas relações diretas entre a produtividade do
trabalhador e sua alimentação, bem como são examinadas suas condições
de vida, seu tipo de moradia e seu salário. Este trabalho foi um marco
referencial na história da nutrição no país. O inquérito forneceu, ainda,
subsídios para estabelecimento do salário mínimo no governo de Getúlio
Vargas, em 1940.
Retorna ao Rio de Janeiro e abre seu consultório médico como
clínico e especialista em doenças da nutrição, em 1936. Mas cada vez
mais, lhe interessava dedicar-se aos seus escritos e foi, gradativamente,
desligando-se do atendimento clínico individual, para dedicar-se à vida
acadêmica e às representações em instâncias e movimentos de combate à
fome.
Suas obras receberam o reconhecimento da comunidade acadêmica
e da opinião pública nacional e internacional como, Geografia da Fome,
em 1946 e Geopolítica da Fome, em 1951, traduzidas para vários
idiomas, dentre outras publicações. Recebeu 2 indicações ao Prêmio
Nobel da Paz e, outra, ao Prêmio Nobel de Medicina. Foi agraciado com
inúmeras condecorações e, por sua mais emblemática publicação
(Geografia da Fome), foi agraciado com o PRÊMIO JOSÉ VERÍSSIMO
da Academia Brasileira de Letras, em 1946. Criou em 1957 a
ASCOFAN- Associação mundial de luta contra a fome, que tinha como
objetivo a adoção de ações visando o conhecimento e o combate à fome
em nível mundial.
É também de sua autoria o 1º inquérito nacional sobre o perfil
nutricional de trabalhadores, em 1932 e o 1º Guia de alimentação da
população brasileira, em 1947.
Na incessante busca do modelo explicativo da fome, tema que
pautou grande parte de seu trabalho como cientista e docente, buscou em
outras ciências a resposta para compreensão do que julgava ser um dos
maiores flagelos da humanidade. Ao tocar em ferida tão profunda, passou
a colecionar correligionários e desafetos; a ser admirado pela ousadia e
eloqüência com que tratava o tema da fome e a ser considerado, no outro
polo, como apologista de idéias que se alinhavam ao comunismo.
“não é só agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vísceras
e abrindo chagas e buracos em sua pele, que a fome aniquila a vida do
sertanejo mas, também, atuando sobre seu espírit, sobre sua estrutura
mental, sobre sua conduta social. Nenhuma calamidade é capaz de
desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a
personalidade humana como a fome” (Prefácio da obra Geografia da
Fome – 1946)
Complementarmente à sua formação na área da saúde, completou
seu estudos em Filosofia e lecionou Medicina, Nutrição, Geografia,
Filosofia tendo sido docente de várias instituições de ensino nacionais e
internacionais. A cátedra trazia-lhe grande satisfação, o que motivou sua
dedicação ao ensino e à pesquisa.
Casou-se com uma ex-aluna, Glauce Rego Pinto e teve 3 filhos:
Josué Fernando, economista; Anna Maria, socióloga e docente
universitária, com quem temos a honra de compartilhar essa homenagem
e a filha caçula, Sônia, geógrafa, atualmente vivendo na França.
Foi um dos fundadores e o 1º diretor do Instituto de Nutrição, da
então Universidade do Brasil, hoje UFRJ, tendo ocupado o cargo entre
1946 a 1954. Durante sua gestão, o Instituto de Nutrição da Universidade
do Brasil-INUB, experimentou grande notoriedade, destacando-se como
instituição de ensino, primando pela qualidade da formação de pessoal e
pela pesquisa na área de alimentação e nutrição. Em 1996, por ocasião do
aniversário de 50 anos, o Instituto de Nutrição da UFRJ incorporou o
nome de seu patrono, passando a chamar-se Instituto de Nutrição Josué
de Castro, o INJC.
Josué de Castro sagrou-se deputado federal por PE em 2 mandatos e
como parlamentar reafirmou na tribuna do Congresso Nacional sua
missão de denunciar a fome e as mazelas do modelo econômico. Não se
considerava, contudo, bom político. Disse certa vez: “Não sou homem de
partido e fui um mau deputado- não pedi emprego para ninguém”. Nada
mais apropriado e contemporâneo para uma reflexão, às vésperas de novo
processo eleitoral no país, no próximo dia 5. Através do projeto de lei 11
de 1959, de sua autoria, apresentou à Câmara dos Deputados o embrião
da que teria sido a 1ª proposta nacional de reforma agrária, que definia os
casos de desapropriação por interesse social e dispunha sobre sua
aplicação.
O golpe militar de 1964 impôs-lhe 10 anos de cassação dos direitos
políticos, quando ocupava o cargo de chefe da delegação brasileira na
ONU, em Genebra. Apesar do visível abatimento pelo exílio forçado,
continuou trabalhando no combate à fome e contribuindo para a formação
de jovens universitários, uma de suas grandes paixões.
Pregava que a paz no mundo dependia, em grande medida, da
distribuição mais equânime das riquezas e recursos naturais. Proferiu
certa vez: “não podemos viver num mundo partilhado por 2/3 que não
comem e, tendo consciência das causas de sua fome, se revoltam, e 1/3
que come bem – às vezes demais – mas que já não dorme com medo da
revolta dos 2/3 que não comem”.
Em seu círculo de convivência dialogou com grandes nomes das
artes plásticas, como Cândido Portinari (que retratou Josué), Cícero Dias,
Di Cavalcanti e Flávio Shiró, com grandes escritores como Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Raquel de Queiróz, Cecília Meireles, Jorge
Amado e João Cabral de Melo Neto.
Foi médico da família do presidente Getúlio Vargas, amigo do
presidente Juscelino Kubitschek, foi recebido ou recepcionou chefes de
Estado e o Papa Pio XII.
Tornou-se o primeiro brasileiro a Presidir o Conselho da FAO.
“Minha grande emoção foi sentar na cadeira da presidência , olhar um a
um dos representantes das grandes potências e recordar os mocambos do
Recife onde se reproduzia o ciclo do caranguejo, onde viviam outros
meninos de rua, como eu tinha sido. Pensei comovido, na tremenda
responsabilidade que carregava(..)”
Reconhecia o papel da educação para a transformação social: “O
subdesenvolvimento é uma forma de subeducação. De subeducação, não
apenas do Terceiro Mundo, mas do mundo inteiro, para acabar com ele,
é preciso educar bem e formar o espírito dos homens, que foi deformado
por toda parte. Só um novo tipo de homens capazes de ousar pensar,
ousar refletir e de ousar passar à ação poderá realizar uma verdadeira
economia baseada no desenvolvimento humano e equilibrado”.
Josué era também, um apologista da paz, entendendo que esta só
poderia er alcançada na medida do alcance de uma distribuição mais
equitativa da riqueza. Afirmava: “Não se chegará jamais à paz com um
mundo dividido entre a abundância e a miséria, o luxo e a pobreza, o
desperdício e a fome. É preciso acabar com esta desigualdade social”.
E também: “Há dois caminhos à nossa frente: o caminho do pão e o
caminho da bomba. É preciso escolher rápido. Eu quero simbolizar pelo
caminho do pão, este da justiça social, para dar pão a todas as pessoas
do mundo”.
Sua obra ao longo dos anos tem inspirado trabalhos acadêmicos
desde monografias, teses, dissertações, livros e outras formas de
reconhecimento
como
crônicas,
documentários
em veículos
de
comunicação de massa, documentários para o cinema, homenagens
acadêmicas como patrono de turmas, a concessão do nome a
estabelecimentos de ensinos, centros de estudo, entidades acadêmicas
discentes, instâncias de vigilância alimentar e nutricional. Todas essas
manifestações, sem dúvida, ajudam a manter viva a memória e
representam o reconhecimento do legado de sua obra.
Durante o regime militar a memória de JC permaneceu adormecida ,
mas não pereceu para os que lhe conheceram e com ele conviveram e
para os que comungavam das mesmas idéias e sentimentos. No INJC
quase nada resistiu à ação do tempo e do esquecimento premeditado,
durante o regime militar. Um restrito acervo guardado em condições
tecnicamente indesejáveis ficará para ser cultuado e preservado pelas
próximas gerações, para que o trabalho e a luta desse ilustre brasileiro
não tenham sido em vão.
O legado de JC para a vida nacional permanece vivo e se
consubstancia em ações, políticas e programas governamentais na área de
A&N e dos movimentos sociais de combate à fome e à pobreza, mais
destacadamente nas 2 últimas décadas.
Em que pese os avanços tecnológicos na área de Alimentação e
Nutrição, estima a FAO que, em 2007, o total de famintos no mundo era
da ordem de 923 milhões. A julgar pela atual conjuntura econômica, com
aumento do consumo, uso de matéria prima alimentar para o agronegócio,
falta de políticas de produção e abastecimento para o consumo humano, a
quebra de safras provavelmente resultantes das alterações climáticas e
ambientais em conseqüência da nefasta ação do homem sobre o meio
ambiente, dentre outros, já pode-se afirmar que estamos vivendo uma
crise sistêmica, agravada mais recentemente com a tendência de quedas
monumentais das bolsas de valores já que, nos dias atuais, alimentos
básicos como milho, arroz e soja também constituem ativos financeiros.
A preocupação de Josué de Castro com a garantia do acesso
universal à alimentação suficiente, adequada, segura e ecologicamente
sustentável,
mantém-se,
portanto,
absoluta
e
rigorosamente
contemporânea.
Resgatar a memória de JC no ano de seu centenário de nascimento é
quase uma obrigação cívica, um exercício de reconhecimento da
influência de sua obra e trajetória no tempo presente e para as gerações
futuras.
O INJC reafirma seu compromisso em cultuar a memória de seu
patrono e fundador e permite-se, respeitosamente, exaltar o espaço de
homenagem concedido pela ABL ao ilustre cidadão do mundo, Josué de
Castro, no ano de seu centenário de nascimento e 35 anos após sua
partida.
Obrigada
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Discurso Diretora do INJC na ABL - Instituto de Nutrição Josué de