Saude_11.book Page 79 Monday, April 5, 2004 8:45 PM RESENHAS Saúde em Revista RESENHA 79 Saude_11.book Page 80 Monday, April 5, 2004 8:45 PM 80 SAÚDE REV., Piracicaba, 5(11): 81-85, 2003 Saude_11.book Page 81 Monday, April 5, 2004 8:45 PM Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro ANNA MARIA DE CASTRO (ORG.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 4.a ed., 239 p., R$ 28,00, ISBN 85-200-0663-9 ualquer pesquisa séria sobre a endêmica problemática da fome no Brasil precisa, necessariamente, considerar a obra de Josué de Castro (1908, Recife-1973, Paris). Médico por formação, ele é marco na produção científica sobre a questão da alimentação e no estudo e denúncia da fome, tendo inovado conceitualmente o estudo em tais áreas. Geografia da Fome, de 1946, é sua publicação mais conhecida: encontra-se hoje na 14.ª edição no Brasil, sendo traduzida para 25 idiomas. Fome: um tema proibido, organizado por Anna Maria de Castro, socióloga filha de Josué de Castro, projeta o cenário do fim da década de 1960 e início da de 1970, a partir dos mais recentes escritos dele. A quarta edição deve-se ao ressurgimento do tema fome, adormecido nas últimas décadas e que volta agora à pauta impulsionado pelo destaque às políticas nacionais de segurança alimentar e nutricional. A leitura desses escritos, bem como de toda a obra de Josué de Castro, mostra que seus conceitos e propostas continuam atuais e constituem instrumentos indispensáveis para repensar criticamente a exclusão social em nossos dias, em particular na realidade brasileira e nordestina. O valor principal da obra de Josué de Castro foi o de revelar o fenômeno da fome para a humanidade, indicando que são as relações sociais e econômicas, estabelecidas entre os homens, que o produziram e o mantêm. Os seus escritos fazem compreender a condição humana e seus valores, numa dimensão transdiciplinar, envolvendo aspectos ecológicos, históricos e sociais. Essa publicação trata dos temas centrais da pesquisa de Josué de Castro, porém de forma mais abrangente, relacionado fome aos atuais conflitos da humanidade. O livro foi organizado, a partir de coletânea de artigos, ensaios e conferências, em três partes: a fome, desenvolvimento e subdesenvolvimento e geografia da fome. No capítulo 1 da primeira parte, é apresentado o prefácio do livro Homens e Caranguejos (1966), no qual o autor, num texto autobiográfico, fala de como o fenômeno se revelou a ele: “O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife (...). A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues – homens e caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama” (p. 26-27). Assim, ele identifica os homens que, na década de 30, haviam sido expulsos pela seca e pelo latifúndio e passaram a viver nos mangues, transformando-se em “homens-caranguejo”. Hoje, Q MARIA RITA MARQUES DE OLIVEIRA* Curso de Nutrição – Faculdade de Ciências da Saúde (UNIMEP/sp) *Correspondências: Rod. do Açúcar, Km 156 – FACIS, 13400-911, Piracicaba/SP E-mail: [email protected] Saúde em Revista RESENHA 81 Saude_11.book Page 82 Monday, April 5, 2004 8:45 PM o homem caranguejo saiu do mangue, tem outros nomes e vive na periferia das grandes cidades. Ainda na primeira parte, o capítulo 2 aborda a fome e a explosão demográfica no mundo, criticando os neomalthusianos apavorados com a explosão demográfica, combatendo-os e apontando a fome como o fator causador do desequilíbrio da ordem natural ou biológica no sistema ecológico mundial. O texto é desenvolvido sob dois núcleos centrais: o primeiro deles parte do princípio biológico da “teleonomia”, a propriedade que têm todos os sistemas vivos de desempenharem suas funções num ritmo e dinâmica que favoreçam ao máximo a sobrevivência da espécie, visto que os maiores coeficientes de natalidade e mortalidade são encontrados nos países subdesenvolvidos. Entretanto, os índices de sobrevivência são superiores aos de mortalidade, que o autor atribui a um desenvolvimento tecnológico defeituoso, dissociado do desenvolvimento social, obtido com estratégias de sobrevivência estabelecidas, especialmente, a partir do progresso da microbiologia e da química. Assim, “embebidas num caldo de antibióticos, as crianças já não morrem no primeiro ano de vida (...). E essa a causa fundamental da chamada explosão populacional que faz sobreviver um grande número de indivíduos que não vão produzir nada, ou quase nada, mas vão aumentar as massas populacionais...” (p. 46). O segundo núcleo está centrado na constatação de que o desenvolvimento tecnológico na época de Josué de Castro já havia atingido patamar para produzir alimentos suficientes para alimentar o planeta. Considerando-se toda a produção mundial, o déficit energético era então de 15% e a deficiência de proteínas, uma grande preocupação. Hoje em dia, como naquela época, dois terços da humanidade passam fome, enquanto a produção mundial de alimentos teve aumentos expressivos, especialmente nos países desenvolvidos, assim como a deficiência protéica já não nos preocupa como antes. No Brasil, as diferenças sociais se ampliaram, o número de excluídos cresceu, junto com o aumento da expectativa de vida. O valor médio de energia disponível para consumo da população também aumentou, assim como os índices de obesidade e doenças crônicas. As deficiências nutricionais da população brasileira descritas por Josué de Castro, com base na metodologia da época, não apresentam mais o mesmo perfil, nem por isso deixaram de ser preocupantes. Se antes a fome e a pobreza representavam o resultado do neocolonialismo, atualmente representam o resultado do processo de globalização da economia neoliberal. No capítulo 3 da primeira parte a fome é apresentada como uma forma social capaz de desestabilizar a paz mundial. Josué de Castro dividia a sociedade entre os que não dormem porque têm fome e os que comem, mas não dormem com medo dos que têm fome. Fala das implicações da fome coletiva sobre a personalidade humana: é nos períodos de catástrofes e de fome que aparecem os bandidos e os santos, o que explicaria o surgimento dos cangaceiros e dos místicos religiosos tão característicos do Nordeste. A baixíssima capacidade de produção e de compra das populações famintas compõe “massas parasitas que pesam bastante em um dos pratos da economia mundial”, constituindo-se em centros de agitação social. A parte dois do livro é composta por três capítulos que abordam estratégias para o desenvolvimento, a ciência e a poluição. Nas palavras 82 SAÚDE REV., Piracicaba, 5(11): 81-85, 2003 Saude_11.book Page 83 Monday, April 5, 2004 8:45 PM de Josué de Castro, “Na verdade o subdesenvolvimento não é a ausência de desenvolvimento, mas o produto de um tipo universal de desenvolvimento mal conduzido. (...) Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem” (p. 104-105). O fracasso dos planos de desenvolvimento dos países subdesenvolvidos é atribuído às leis que regem o comércio internacional, à ajuda insuficiente dos organismos internacionais, à má utilização dos recursos, à instabilidade e ilegitimidade dos governos e à falta de um projeto efetivo de desenvolvimento nesses países. Hoje, temos um governo mais estável, eleito pelo voto da maioria, a confiança dos investidores mundiais vem aumentando, a economia apresenta ares de melhora, mas o índice de desenvolvimento humano nem as reformas necessárias ao impulso desses índices aconteceram. Para Josué de Castro “Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda” (p. 136). A terceira e última parte do livro trata da geografia da fome, apresentando em seu primeiro capítulo a introdução do livro Sete Palmos de Terra e um Caixão, escrito especialmente a pedido de uma editora americana. Apresenta a sua sociologia participante do autor, oposta à sociologia clássica, na busca de um retrato sociológico do Nordeste, apontando-o como uma área de tensão, de certa forma ameaçadora, que estaria chamando a atenção dos dirigentes do mundo. O segundo capítulo apresenta uma avaliação da Conferência de Nova Déli sobre o Comércio e o Desenvolvimento (1968), relacionando-a ao encontro de Bandung (1955), “Conferência dos Povos de Cor”, que representou o marco para a tomada de consciência para a questão da fome no mundo. No intervalo entre as duas conferências, o desenvolvimento econômico e os auxílios dos países ricos aos países pobres ficaram muito aquém do desejado. O propósito da Conferência de Nova Déli – o de discutir e estabelecer normas mais justas para o comercio internacional – foi mais uma vez deixado em último plano. Entretanto, a conferência teve sua importância política, evidenciando as diferenças entre os dois mundos. O livro traz ainda uma cronologia da vida e obra de Josué de Castro, que, se estivesse vivo, veria que a exclusão social imposta pelo atual modelo de desenvolvimento é, sem dúvida, ainda maior e mais desafiadora que em sua época. Saúde em Revista RESENHA 83 Saude_11.book Page 84 Monday, April 5, 2004 8:45 PM 84 SAÚDE REV., Piracicaba, 5(11): 81-85, 2003