Atenção primaria no Sistema Único de Saúde do Brasil Ligia Giovanella (Ensp/Fiocruz) A atenção básica, denominação empregada para atenção primária no Brasil, com a implementação do Sistema Único de Saúde foi descentralizada para os municípios a partir dos anos 1990. Hoje os mais de 5.500 municípios são responsáveis pela atenção básica com 38 mil unidades básicas de saúde instaladas em todo o país, e, em cooperação com o governo estadual e os outros municípios da região organizados em rede devem garantir atenção especializada e hospitalar para os seus munícipes conforme necessidades. Durante os 25 anos do SUS diversos modelos assistenciais e concepções de APS estiveram e permanecem em disputa na atenção básica no país: uma concepção seletiva com cesta restrita direcionada á população em extrema pobreza, como atenção de primeiro nível, como mero serviço de primeiro contato e pronto atendimento, como atenção primaria integral, estratégia ordenadora de redes, como atualmente preconizado na política nacional de atenção básica. Desde o final dos anos 1990, o Ministério da Saúde assumiu o Programa de Saúde da Família como estratégia para reorientação da atenção básica no país. A concepção de atenção primária da Estratégia de Saúde da Família preconiza uma equipe de caráter multiprofissional que trabalha com definição de território de abrangência, adscrição de clientela, cadastramento e acompanhamento da população residente na área. Pretende-se que a Unidade de Saúde da Família (USF) constitua a porta de entrada preferencial ao sistema de saúde local e o primeiro nível de atenção resolutivo, integrado à rede de serviços mais complexos. A equipe é composta por médico (que deveria ser um generalista), um enfermeiro, um ou dois técnicos ou auxiliares de enfermagem e 5 a 6 agentes comunitários de saúde (ACS), todos com contratos de trabalho integral de 40 horas semanais. Cada equipe é responsável em média por 3.000 pessoas residentes no território delimitado. A equipe de saúde da família deve conhecer as famílias do seu território de abrangência, identificar os problemas de saúde e as situações de risco existentes na comunidade, elaborar programação de atividades para enfrentar os determinantes do processo saúde/doença, desenvolver ações educativas e intersetoriais relacionadas aos problemas de saúde identificados e prestar assistência integral às famílias sob sua responsabilidade. A Estratégia de Saúde da Família encerra em sua concepção mudanças na dimensão organizacional do modelo assistencial ao: constituir a Equipe de Saúde da Família (EqSF), multiprofissional e responsável pela atenção à saúde da população de determinado território; estabelecer o cadastramento das famílias para acompanhamento na unidade da Saúde da Família, entendida como porta de entrada no sistema local e o primeiro nível de atenção na rede de serviços; definir o generalista como o profissional médico da atenção básica; e instituir novos profissionais, os agentes comunitários de saúde, voltados para a atuação comunitária, ampliando assim a atuação da equipe sobre os determinantes mais gerais do processo saúde-enfermidade. Às EqSF pode ser associada uma equipe de saúde bucal composta por cirurgião dentista e auxiliar de consultório dentário ou por técnico de higiene dental. Para ampliar a resolutividade das equipes de saúde da família (EqSF), desde 2008, o Ministério da Saúde incentiva financeiramente a criação de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Os NASFs compostos por outros profissionais de saúde como psicólogo, assistente social, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, profissional da educação física, nutricionista, terapeuta ocupacional, médico ginecologista, médico homeopata, médico acupunturista, médico pediatra e médico psiquiatra. Seu trabalho baseia-se em apoio matricial realizado principalmente por meio de contato direto com as EqSF em encontros periódicos para discutir casos ou problemas de saúde selecionados pela equipe, atender conjuntamente, elaborar projetos terapêuticos e realizar atividades de formação permanente. A Estratégia Saúde da Família expandiu-se ao longo da década de 2000 por todo o país sob forte indução do Ministério da Saúde – por meio dos incentivos financeiros do piso de atenção básica variável que prevê pagamentos adicionais por equipe completa em funcionamento – atingindo em 2013 mais de 94% dos municípios brasileiros com cobertura populacional de 101 milhões de habitantes (53% da população) por meio de 32 mil equipes implantadas e 240 mil ACS trabalhando em todo o país, apoiados por 21 mil equipes de saúde bucal e 1.500 NASF. A população não adscrita a uma equipe de saúde da família acessa a atenção básica em postos de saúde tradicionais ou em unidades de pronto atendimento (UPAs). Atualmente no país estão em funcionamento 38 mil unidades básicas de saúde em grande parte pequenas com atuação de apenas uma equipe, com importante dificuldade de fixação de profissionais, especialmente médicos, em áreas remotas e desfavorecidas. Um olhar sobre as experiências em curso demonstra grande diversidade vis-à-vis às imensas disparidades inter e intra-regionais e às enormes desigualdades sociais que marcam a realidade brasileira. Ainda assim, estudos comparativos entre a Estratégia Saúde da Familia e a atenção básica tradicional mostram resultados mais positivos no acompanhamento e cuidado e no impacto em indicadores de saúde nas áreas com cobertura por EqSF. Atualmente a atenção básica no Brasil passa por importante processo de avaliação. Em 2012 foi implementado o Programa de Melhoria da Qualidade e Acesso na Atenção Básica (PMAQ-AB) que instituiu um componente de qualidade no PAB variável relacionado ao desempenho das equipes. O desempenho das equipes de atenção básica está sendo avaliado a partir de um conjunto de critérios e processo de certificação que inclui uma auto-avaliação, uma avaliação externa e apoio institucional para melhoria. Investimentos para melhoria da infraestrutura para construção e reforma de unidades básicas também estão previstos. Certamente observam-se importantes avanços na expansão da cobertura e melhoria do acesso nestes 25 anos do SUS, todavia permanecem muitos desafios para a garantia do direito à atenção integral. Além das dificuldades de integração da rede e garantia de acesso à atenção especializada e hospitalar, um dos principais problemas da atenção primária no Brasil é a importante dificuldade de fixação de profissionais médicos nas equipes de saúde da família determinada por: insuficiência da disponibilidade de oferta de profissionais de saúde, em especial na região norte e interior do nordeste; competição dos serviços privados (incentivados por subsídios governamentais!) pelos profissionais de saúde que assim deixam de trabalhar no SUS; predomínio de vínculos de trabalho precário no SUS para profissionais de saúde em muitos municípios; e ausência de médicos com formação generalista ou com especialidade em medicina geral e de família. Estas insuficiências resultam em elevada rotatividade de profissionais e equipes incompletas o que obstaculiza o acesso oportuno e a formação de vínculos e acompanhamento longitudinal atributos fundamentais de uma atenção primaria efetiva. Rio de janeiro 20 outubro de 2013