Prefácio
Sarah de Vogüé
Jean‑Jacques Franckel
Denis Paillard
Esta coletânea apresenta um conjunto de oito capítulos fundamentados
no referencial teórico que ficou conhecido como “Teoria das Operações Pre‑
dicativas e Enunciativas” de Antoine Culioli, ou, simplesmente, Teoria das
Operações Enunciativas.* Eles ilustram, de diferentes pontos de vista, a força e
a especificidade desta teoria, mais precisamente, o modo único como apreende
a linguagem por meio da diversidade das línguas e dos textos e como conduz
o incessante vaivém entre o empírico e o formal. Se este vaivém é próprio
de toda abordagem científica, em nosso referencial, a metodologia de análise
adquire uma característica particular, resultando, de um lado, em um trabalho
de formalização original, verdadeiramente próprio a seu objeto de estudo, de
outro, em uma revelação de dados e fenômenos até então despercebidos, o
que lhes confere, por vezes, o estatuto de “descobertas”.
A teoria de Antoine Culioli é, portanto, indissociavelmente, uma teoria
formalizante, posto que modela novas ferramentas teóricas, e uma teoria dos
observáveis. As observações que alimentam a formalização são enunciados ou
fenômenos que, recolhidos na proliferação da língua, não necessariamente se
impõem de imediato, e cuja pertinência, na busca por coerência, demanda um
esforço de abstração e um rigor de raciocínio ainda mais intenso por estarem
ancorados em fatos de língua precisos e inéditos. Como bem observa Culioli,
não há “linguística sem observações profundamente detalhadas; observáveis
sem problemáticas; problemáticas que não conduzam a problemas; problemas
* N. dos orgs.: Para referir às coletâneas de artigos de Antoine Culioli intituladas Pour une linguistique de
l’énonciation I, II e III, utilizamos, respectivamente, as siglas ple i, ple ii e ple iii, seguidas da página da edição
trabalhada.
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Linguagem e enunciação
sem a procura de solução; soluções sem raciocínio; raciocínio sem sistema
de representação metalinguística; sistema de representação metalinguística
sem operações, em particular, sem categorização; categorização sem transca‑
tegorial”.1 Nesse encadeamento, lê-se o próprio movimento da dinâmica que
articula essas exigências sine qua non, as quais vinculam o extremo detalhe
das observações a uma representação metalinguística em si dinâmica, funda‑
mentada em operações e transcategorial.
A permanente manipulação dos fatos de língua que a metodologia decor‑
rente dessa concepção de teórico põe em prática constitui a condição para evitar
que “as hipóteses não se cristalizem em certezas, as operações em procedimentos
de etiquetagem, em suma, que o espírito, i.e. a inquietude e a curiosidade, aban‑
done rapidamente a empreitada, quando a impaciência de se chegar a um fim
se sobrepõe à racionalidade paciente (sobretudo quando essa racionalidade não
afasta os fenômenos que poderiam incomodá‑la, mas, ao contrário, se esforça
para considerá-los em sua complexidade)”.2 Com efeito, observa‑se aqui uma
espécie de “cartão de visitas” próprio a esse movimento teórico, que consiste em
trazer à tona dados originais geralmente ignorados ou deixados de lado como
secundários ou sem interesse. Percebem‑se pouco a pouco nesses dados, por
trás de seu aspecto por vezes quase lúdico, formas de coerência que permitem
postular novas relações entre fatos já conhecidos, mas antes considerados como
qualitativamente diferentes, estabelecer vínculos entre dados que pareciam sim‑
plesmente justapostos ou independentes, dar conta de novos efeitos por meio
dos mesmos operadores, propor explicações a fenômenos profundos, que, por
fim, parecem fundar uma filosofia da linguagem e do conhecimento.
Ao mesmo tempo, e dado o mesmo movimento, uma característica im‑
portante dessa teoria, aqui ilustrada por diferentes análises, consiste em fazer
com que os fundamentos de um certo número de noções gramaticais sejam
reconsiderados: O que é uma palavra? O que é um verbo? Uma preposição? As
preposições decorrem de um funcionamento homogêneo? Quais são e em que
consistem as fronteiras entre “categorias”? O que é uma língua? Nessa teoria,
nenhuma definição, inclusive a das noções tidas como as mais “elementares”,
é considerada como dada, por ser na transparência aparente do elementar que
o desconhecido vem à superfície de modo mais opaco.
Podemos, por fim, estabelecer o que resume essa primeira aproximação
da teoria: nela, a linguagem é considerada apenas por meio do que as formas
permitem dizer. É a ancoragem nas formas que esclarece o próprio termo de
enunciação com o qual essa teoria se identifica de bom grado.
Prefácio
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Com relação ao emprego desse termo na teoria culioliana, cabe, antes,
notar que a linguagem é comumente abordada de duas maneiras: como objeto
correspondendo a um material verbal, a um conjunto de formas dotadas de
entonação, que se apresenta conforme um determinado arranjo e organização;
como atividade relativa aos que a praticam e a manifestam (em produção, em
compreensão), e que corresponde a uma atividade fundamental do homem.
Ora, com frequência, ocorre uma clivagem entre as duas abordagens (ver
em particular a clivagem linguístico/cognitivo ou ainda linguístico/pragmá‑
tico), o que faz com que as formas sejam compreendidas como “meios” ou
“instrumentos” empregados pelo sujeito falante. A abordagem culioliana na
qual se inscrevem os textos aqui apresentados visa, ao contrário, a não mais
separar as formas dos sujeitos: trata-se não de sujeitos que utilizam formas,
mas de formas que marcam e constroem sua presença, formas que traçam a
atividade dos sujeitos (sob a ótica que essas formas lhes conferem). A presença
dos sujeitos não tem nada de heterogênea ou de transcendente às formas: ela
lhes é inerente. Trata‑se, portanto, de uma teoria de formas que constroem, de
múltiplas maneiras, posições intersubjetivas, modos de asserção, de interroga‑
ção, de injunção, de exclamação, de concessão etc. A atividade de linguagem
pela qual nos interessamos é, assim, inteiramente definida pelo que as formas,
seus arranjos e as restrições manifestadas por esses arranjos delineiam. Nessa
atividade, só é considerado o que as formas permitem dela dizer.
A abordagem da enunciação assim conceitualizada traz uma série de
consequências, em particular para a questão da referenciação. Com efeito, a
linguagem não é a reprodução, a transcrição ou a codificação de um referen‑
te: ela constrói valores referenciais que, como construções enunciativas que
são, não repousam em nenhum outro elemento de estabilidade além do que a
enunciação pôde construir.
A linguagem não se insere em relações “transparentes” com o mundo ou
o pensamento; ela determina formas de pensamento ao dizer o mundo de um
modo que lhe é próprio. Ao mesmo tempo em que se busca dizer, aos outros
e a nós mesmos, coisas com palavras que querem dizer algo sobre o mundo, o
mundo, por sua vez, também quer dizer algo, não existindo mais do que uma
superposição parcial desse “algo” em questão. A enunciação é atravessada por
estes três processos fundamentais que cada um dos textos aqui apresentados
esmiúça a seu modo: representação, referenciação, regulação.
Representação: a linguagem não é um instrumento, uma tradução ou
um código que permitiria passar do pensamento ao verbo (supondo‑se que
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Linguagem e enunciação
pudéssemos saber ao certo o que é “O pensamento”). A linguagem é consti‑
tutiva de uma forma de pensamento, entre outras. Ela constrói representações
mentais de uma determinada natureza, que apreendemos como sendo “o
sentido” (não unívoco, não estabilizado, não acabado) do que dizemos e com‑
preendemos quando falamos, escrevemos, lemos e interpretamos. A questão
que se coloca é a de determinar o sentido das palavras. Ele nos é familiar
em seu uso corrente, mas nos escapa a partir do momento em que buscamos
defini-lo e que nos encontramos confrontados à variação dos sentidos que
elas apresentam.
Referenciação: trata-se de operações por meio das quais a linguagem
permite dizer algo do mundo, tornando‑o parte integrante de um querer dizer
(querer dizer a respeito do mundo / querer dizer do mundo). Por meio das for‑
mas, exprime‑se algo a propósito de um estado de coisas que é – como capta
tão bem o termo inglês aboutness – isso do que se fala ao dizer o que se diz.
Os arranjos de formas são a materialidade das línguas e consistem em formas
que constituem um modo particular de apreender o mundo. A referenciação
é uma construção, o mundo apreendido como dito do modo como é dito. A
partir do momento que o mundo entra na ordem do dizer, só lhe resta a forma
que lhe confere este dizer, de modo que ele se inscreve em uma lacuna a se
preencher ou reformular, sempre, entre o informulável e o formulado. Em suma,
o mundo, quando da ordem do dizer, é, então, o lugar em que se exprime o
irredutível distanciamento entre o dizer e o querer dizer, de todas as maneiras
possíveis (sofrimento, falha, criatividade, recurso poético, reformulação, ga‑
guejos, recursos a outros modos de referenciação).
Regulação: a enunciação põe em jogo relações interenunciativas ou,
mais precisamente, pontos de vista, que são posições enunciativas. Posições
enunciativas que, como dissemos, são, não posições de indivíduos falantes
em sua singularidade de indivíduos, mas posições estabelecidas e marcadas
de modo organizado, estruturado, pelos arranjos de formas na língua. É o que
se verifica, por exemplo, em todas as marcas que permitem construir formas
de intimação, de injunção, concessão, como pode se observar nas chamadas
“palavras do discurso”.
Os textos ora apresentados, publicados em um espaço de vinte e cinco
anos, são os de três autores que trabalharam em estreita colaboração, desen‑
volvendo as vias abertas por este quadro teórico em direções que não foram
as necessariamente tomadas pelo próprio Culioli. Esse conjunto representa
apenas uma pequena amostra dos trabalhos que emanam desse referencial.
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Para além da heterogeneidade que o período abarcado pode lhes confe‑
rir, depreendem-se desses textos algumas ideias centrais: preferir, à ilusão do
estável (definições, conceitos, objetos de análise), a busca por processos de
estabilização; preferir, à busca por categorias gerais uniformemente repre‑
sentadas nas línguas, a busca pela invariância como modo de raciocínio que
permite apreender a variação; apreender a linguagem não como atividade a
ser definida por si só, mas como indício de uma atividade a ser reconstituída,
cuja especificidade será determinada em toda sua dimensão simbólica.
Notas
1 A. Culioli, “Préface”, ple ii e ple iii, Paris, Ophrys, 1999.
2 Idem.
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