1 REIFICAÇÃO NA SOCIEDADE CAPITALISTA CONTEMPORÂNEA: A NEGAÇÃO DO SER SOCIAL ÉTICO EMANCIPADO Lívia Neves Ávila1 RESUMO Este estudo propõe uma reflexão acerca do rebatimento das condições contemporâneas do modo de produção capitalista na sociedade, com foco no ser social como um ser portador de objetivações. Faz ainda, uma análise de como essas objetivações são ou não efetivadas, elevando a ética como uma objetivação central de estudo no presente trabalho. Trata-se de um trabalho bibliográfico com abordagem qualitativa, que permite uma melhor apreensão do movimento do real. Para tal, discute os fundamentos do modo de produção capitalista e seu movimento na contemporaneidade. Logo é realizada uma discussão sobre o fetichismo da mercadoria, alienação e reificação como base de sustentação do debate das condições atuais do ser social. Posteriormente, é apontado o conhecimento elementar sobre a existência ética que é necessária para a existência do ser social ético emancipado. Em seguida, é feito um resgate do processo de reificação do ser social e estende-se no mesmo momento à discussão do modo capitalista de comportar e da ética burguesa, como um trio de fenômenos que nega o ser social objetivado como ser ético emancipado. Palavras-chave: Ser Social. Ética. Ético Emancipado. Reificação. 1 Aluna do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do grupo de pesquisa “Liga dos Comunistas – núcleo de estudos marxistas” (CNPq), desde 2009 e ex bolsista do programa de extensão CDC – Centro de Difusão do Comunismo com 04 ações de extensão articuladas para estudar, debater e realizar a crítica à ordem do capital. Realizou intercâmbio acadêmico na Universidade de Coimbra – Portugal, com fins investigativos a respeito da sociedade portuguesa e seu comportamento diante da ordem capitalista contemporânea. Participou do Projeto Rondon do Ministério da Defesa durante a operação “São Francisco” no estado de Sergipe - SE. Fez parte do Centro Acadêmico de Serviço Social na gestão “Chama” e se envolveu, durante toda a graduação em organizações de eventos estudantis e participou de diversas palestras, oficinas, minicursos e congressos com temáticas variadas dentro do Serviço Social, o que demonstra engajamento e interesse pela área. 2 INTRODUÇÃO O presente artigo trás uma breve reflexão acerca do movimento do capital na sociedade do modo de produção capitalista. Para tal, serão abordados conhecimentos elementares e centrais do movimento do capital como o trabalho, ser social e a mercadoria como centro das relações capitalistas. Trata-se de um trabalho de desconstrução do movimento cotidiano que nos esconde traços que marcam a sociedade capitalista. Compreender os principais mecanismos que estão atrelados e movimentam a sociedade capitalista é uma imposição para se conseguir um avanço à essência dos fenômenos da sociedade capitalista contemporânea. Em sequencia será abordada a questão do fetichismo e da alienação na sociedade capitalista contemporânea. Esses fenômenos causam a reificação da sociedade em geral, bem como da consciência do ser social e de suas objetivações, inclusive a ética, fazendo-o regredir diante de sua auto-realização pelo processo de trabalho. Esse movimento da reificação nega o ser social como ser ético emancipado e o limita na completude de seus direitos humanos. Modo de produção capitalista: características elementares O modo de produção capitalistaI, característica evidente na sociedade contemporânea, representa um extraordinário e absoluto desenvolvimento das forças produtivas, remetendo-se ao trabalho e presumindo o domínio humano sob a natureza, o que possibilita o ser social adquirir consciência de si mesmo como sujeito histórico, como Marx (2012:211) salienta: Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, como sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil a vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. 3 Do mesmo modo que foi possibilitado o surgimento do ser social e relações que engrandeçam as capacidades humanas, o mesmo movimento viabilizou também artifícios para a negação das mesmas capacidades. Trata-se da contradição que expressa o mais significante grau de desenvolvimento do ser social e seu maior grau de alienação. Segundo Netto (1981), o paradoxo coloca a contradição: como pode a atividade prática – o trabalho – do ser genérico consciente que é o homem conduzir não ao seu florescimento pessoal, ao despertar das duas potencialidades, mas, ao contrário, à sua degradação? É a resposta para essa pergunta que será trazida por Marx, em uma análise do fenômeno geral da alienaçãoII, onde o autor parte de uma constatação concreta que exprime o fato de que no capitalismo o trabalhador fica mais pobre em função da riqueza que produz, cria mercadorias e se torna também uma mercadoria como outra qualquer. Esse fenômeno ocorre quando há um estranhamento em relação ao produto do trabalho pelo próprio trabalhador. O trabalho e o produto dele aparecem ao trabalhador como algo independente dele e como poderes que o dominam, como algo misterioso. Como explica Netto (1981:57) dizendo que “no trabalho alienado, o trabalhador não se realiza e não se reconhece no seu próprio produto; inversamente o que ocorre é que a realização do trabalho, a produção, implica a sua perdição, a sua despossessão: o produto do trabalho se lhe aparece como algo alheio, autônomo”. E ainda, como explica Marx: O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. (MARX, 2012:71) Dessa forma, o trabalho realiza sua própria negação, pois ao invés de se “objetivar como atividade prática positiva, que é a manifestação da vida, manifesta-se como atividade prática negativa, que é a alienação da vida” (NETTO, 1981:56). Diante disso, percebe-se que o homem, como trabalhador, se desconhece como sujeito e se perde, segundo Netto (1981:56), “no trabalho alienado, o trabalhador não se realiza e não se reconhece no seu próprio produto; inversamente, o que ocorre é a realização do 4 trabalho, a produção, implica a sua perdição, a sua despossesssão: o produto do trabalho se lhe aparece como algo alheio, autônomo”. O processo de alienação não ocorre apenas na relação entre o homem e o trabalho. Como já vimos que é o trabalho que permite que o homem coloque todas suas capacidades em prática, as mesmas são igualmente negadas pelo processo da alienação e o ser social se torna um alienado em todas as esferas da vida. A vida se torna alienada. O homem, para colocar todas suas capacidades em prática, ou objetivar sua práxisIII, precisa responder às necessidades de forma consciente e livre. Na maneira em que a atividade humana é alienada seu caráter social e consciente é negado. Acontece que todo o desenvolvimento adquirido pelo homem no exercício do trabalho, incluindo seus sentidos, são perdidos, pois o homem é desumanizado na alienação e seu trabalho se torna apenas utensílio para sobrevivência. Barroco relata o processo de desumanização do homem na alienação: A humanização do homem é uma conquista histórica do gênero humano, o que inclui o enriquecimento dos seus sentidos; logo, também depende de sua apropriação de manifestações e exigências que possam motivas e ampliar suas capacidades de modo a se apropriar da riqueza humana. Quando os sentidos são aprisionados pela alienação, essas condições de estreitam, o que equivale a desumanização e ao empobrecimento de seus sentidos. (BARROCO, 2010:36) Algumas características da sociedade burguesa são construtoras da alienação, como a propriedade privada e a divisão social do trabalho, que sustentam o sistema de trocas, a valorização da posse e o dinheiro. Na sociedade capitalista contemporânea alienada, os indivíduos são dominados pelo dinheiro e buscam nele a satisfação para suas necessidades e o mesmo, com seu forte poder de troca, media relações sociais. Segundo Barroco, alienação pode ser então entendida, portanto: Compreendida dessa forma, enquanto expressão subjetiva da exploração concreta e forma peculiar de apreensão da realidade em sociedades estruturadas a partir da divisão social do trabalho e da propriedade privada, a alienação, nos termos apresentados por Marx, em 1844, apresenta-se como a expressão de um fenômeno geral que – surgindo a partir do nascimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho, quando o trabalho se converte em meio de exploração e o seu produtoem objeto alheio – se objetiva através do não reconhecimento dos homens em suas ações, de um estranhamento do indivíduo, em face de si mesmo e dos 5 outros homens, e de outras manifestações indicativas da não apropriação por parte dos indivíduos – de sua condição de sujeitos da práxis. (BARROCO, 2010:38) O produto do trabalho que é estranhado pelos trabalhadores, a mercadoria e seu caráter misterioso – o fetichismo da mercadoria – é discutido por Marx como um mecanismo da alienação no modo de produção capitalista, chamada de reificação, em sua obra O Capital, onde faz a Crítica da Economia Política. Para discutir a respeito do procedimento alienante oculto na mercadoria e sobre o mistério que a envolve, Marx discorre sobre o valor do trabalho e da mercadoria. Na sociedade capitalista, a mercadoria é um objeto que tem um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso diz respeito às propriedades da mercadoria e sua utilidade para o sujeito. O valor de troca não tem a ver com o valor de uso e sim com necessidades sociais e do mercado. Ele é necessário para que as mercadorias sejam trocadas. A abstração das diferenças concretas das mercadorias possibilita que elas sejam igualadas à essência da produção: serem produto do trabalho humano. Esse movimento permite que duas mercadorias diferentes sejam trocadas. O trabalho concreto para a produção das mercadorias não é considerado na troca. O que se considera é o tempo socialmente gasto, que também não é suficiente para agregar um valor na troca, pois não leva em conta todas as particularidades do trabalho. Daí decorre a questão da mercadoria ser algo misterioso, pois o trabalhador não se reconhece nela. Suas características sociais são escondidas e apresentadas como características materiais. Segundo Marx (1983:71),“ o misterioso da forma mercadoria, consiste portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos”. Desta forma, as relações sociais também são comprometidas, uma vez que se tornam relações sociais entre coisas, ou relações sociais reificadas. Quando os produtos do trabalho parecem ter vida própria e se tornam a base da relação entre os homens, as relações sociais assumem uma forma ilusória de uma relação entre coisas 6 e desta forma é naturalizada pela sociedade capitalista, fragmentando a vida social e impedindo os sujeitos de enxergar o movimento real. Reificação, ética e ser social: A negação do ser social objetivado como ser ético emancipado A ética é uma objetivação constituinte da práxis, ou seja, é uma objetivação humana. É mais uma construção histórica do homem e é considerada uma categoria que expressa seu modo de ser na realidade sócio-histórica. Diante disso, está a necessidade de um estudo dos fundamentos do ser social anterior a um estudo dos fundamentos da ética, ou seja, para a compreensão bem sucedida da categoria ética se faz necessário a compreensão do ser social, o que lhe é próprio e seu modo de ser, assunto trabalhado no preâmbulo deste trabalho. Para Barroco, diante desta compreensão, “a ética diz respeito à prática social de homens e mulheres, em suas objetivações na vida cotidiana e em suas possibilidades de conexão com as exigências éticas conscientes da genericidade humana” (BARROCO, 2010:16). Sabe-se então que ética está presente na vida do ser humano por ser uma objetivação construída historicamente e que a mesma, por fazer parte da produção material da vida é intrínseca ao ser social e se manifesta teórica e praticamente das mais variadas maneiras, independente da sociedade na qual ele está inserido. Diante de uma visão da ética em sua plenitude ou de uma ética emancipatória, o ser social amplia seu domínio sobre a natureza e sobre si próprio e na medida em que se desenvolve torna-se um ser consciente e livre. No que se trata da liberdade, remete-se à capacidade de escolhas conscientes. Barroco cita Marx e Lukács ao discutir sobre a liberdade: Para Marx, a liberdade não consiste na consciência da liberdade ou das escolhas, mas na existência de alternativas e na possibilidade concreta de escolha entre elas [...] Lukács considera que: A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do “alto” e nem sequer uma parte integrante – de origem misteriosa – do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que 7 nas suas consequências dilata – objetivamente e de modo contínuo – o espaço no qual se torna possível. (BARROCO, 2010:26) Vale salientar que emancipação diz respeito a fazer escolhas livres que estimulam as capacidades do indivíduo, sua auto-reflexão e autonomia. Um indivíduo emancipado se torna livre da dominação de qualquer lógica em qualquer sociedade. O ser provido da ética emancipatória é suscetível de um senso moral que constantemente coloca sua consciência à prova e o obriga a fazer uso de sua liberdade em suas escolhas. Essa dupla inseparável, senso moral e consciência, imputam valores e decisões que conduzem a ação com consequência para o próprio indivíduo e para outros. Essa estrutura sustenta os juízos de valores que nada mais são do que a união dos juízos de fato – juízos que dizem respeito às coisas, o que são, como são e porque são – a uma concepção cultural, ou seja, agregar a um determinado acontecimento a sua opinião, fato que norteia a concepção moral dos indivíduos. Aos olhos da ética emancipatória, somos pessoas, seres sociais que não devem ser tratados como objetos, pois os valores éticos são expressões e garantias da nossa condição de sujeito e esse fato proíbe moralmente a sua manipulação. Dessa forma, para que se materialize a conduta ética plena é necessário que o indivíduo seja consciente e conheça a diferença entre o bem e o mal, ou seja, consciência e responsabilidade são condições indispensáveis na vida ética. Portanto o ser ético emancipado é um ser livre e não um ser passivo que se deixa levar. É um sujeito ativo, que controla seus impulsos, conhece a essência das relações, que não tem suas escolhas orientadas por algo já determinado e nem seus julgamentos dominados. Para Chauí (1997:338): Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre a passividade e a atividade. Passivo é aquele que se deixa governar arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstancias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade. Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem se submeter-se cegamente a ele, responde 8 pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo. Destarte, a existência ética descrita acima, justifica um modo de ético-moral, ou seja, um campo de objetivações ético-morais que permite a existência de um sujeito ético emancipado. Esse último então, se põe mais alto que as necessidades e pensa no outro próximo, sendo elementar que não entre na condição de um indivíduo egoísta. Compete relevar aqui que as ações éticas estão evidenciadas em todas as esferas da vida humana e estão longe de pertencer a uma esfera social particular. A naturalização da existência ética como uma objetivação, camufla o importante fato de ela ser uma criação histórico-cultural e no embalo dessa situação, as sociedades tendem a naturalizar valores éticos que sejam funcionais à garantia e manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade. Nesse sentido, a intenção e a tendência das sociedades são que nossas condutas, ações e comportamentos se moldem pelas condições em que vivemos nas famílias, escolas, religiões, etc., para que sejamos formados pelos costumes já naturalizados. Como consequência se tem a reprodução dos valores propostos, que parecem inquestionáveis e enrijecidos na sociedade. Na sociedade classista em que vivemos, uma classe dominante determina uma orientação moral, que advém dos interesses econômicos capitalistas e que se dissipa por toda a sociedade e todas as classes como uma orientação moral única e indubitável e todos os indivíduos se subordinam à ela como uma exigência de integração social. Essa orientação moral, na sociedade contemporânea se manifesta na ética burguesa instaurada na sociedade capitalista. Fronte a isso, sabe-se que o ser social é constituído pelo trabalho e que tal constituição além de ter proporcionado a materialização das objetivações do ser social, proporcionou um desenvolvimento extraordinário do mesmo. Esse desenvolvimento inspira o ser social e suas extraordinárias potencialidades e objetivações, incluindo a objetivação do ser ético. No entanto, o ser social na sociedade capitalista contemporânea fica submetido a uma situação de blindagem de suas capacidades pela alienação e relações reificadas e todas as potencialidades que lhe pertencem são negadas pelo mesmo movimento que as possibilitaram. 9 Na sociedade do capitalismo contemporâneo, a vida do ser social se torna reificada como um todo e seu caráter social é negado. Na discussão imbricada nos trechos acima a respeito da ética emancipatória, percebe-se que para um ser social se objetivar como ser ético pleno é imprescindível que ele possa responder à todas as questões e necessidades do ser humano de forma consciente e livre. Ora, sabe-se que reificação sugere relações sociais mercantilizadas - ou seja, relações sociais vividas na aparência onde os indivíduos não são “proprietários de si”, logo são dominados por uma ideologia, e vivem relações distorcidas sem ter o mínimo de consciência sobre isso – isso se opõe claramente à existência ética emancipatória de um ser social. Dar existência a tal afirmação apenas, pode não ser suficiente para a compreensão perfeita do fenômeno indicado. É necessário que saia-se da análise aparente do objeto de estudo para ir de encontro à essência da sociedade capitalista reificada, mais precisamente das relações sociais reficiadas seja alcançada. Importa analisar o porquê da negação do ser social como um ser ético emancipado e é essencial a penetração na essência da reificação das relações sociais e na moral criada e imposta pelo modo de produção capitalista: o ethos burguês e a ética capitalista. A reificação, fenômeno diretamente relacionado à alienação e ao fetiche da mercadoria, é tema essencial para o entendimento das condições atuais do ser social. Dessa forma, elevar-se-ia aqui ao ponto central, que traz a questão das relações sociais superficiais e coisificadas e a não percepção do indivíduo dessa condição – sugere a perdição do sujeito e a sua negação diante de suas objetividades. Para Mészáros (2006:98) “embora o sistema monetário atinja seu clímax como o modo capitalista de produção, sua natureza mais íntima não pode ser entendida num contexto histórico limitado, mas sim no quadro ontológico mais amplo do desenvolvimento do homem por intermédio do seu trabalho, isto é, do autodesenvolvimento ontológico do trabalho, pelas intermediações necessárias relacionadas com a sua necessária auto-alienação e reificação numa determinada fase (ou fases) se seu processo de auto-realização.” Para sustentar essa condição de regresso da auto-realização do ser social, não basta apenas a usurpação no mundo do trabalho e a supervalorização do produto do trabalho – a coisa – como o problema central que sabe-se ser. Como relata Lukács (2012:193), “a mercadoria não é um problema isolado [...] mas um problema central e 10 estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”. É necessário também outras artimanhas. Desta forma, o mundo burguês, com sua excelência em criar artifícios astuciosos, tem seu jeito especial de determinar o comportamento do sujeito submetido a célula central das relações capitalistas – a mercadoria. E a essa forma de se comportar se agrega toda a vida exterior e interior da sociedade. Para Lucáks (2012:98): Nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento do objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo. É a esse sentido de “submissão da consciência dos sujeitos às formas nas quais essa reificação se exprime” que Lucáks se refere. E é nesse caminho que a sociedade burguesa apoiada na divisão social do trabalho vai barganhar para influenciar de maneira decisiva as formas de objetivação dos sujeitos e o processo de reificação de sua consciência para que a troca de mercadorias satisfaça qualquer necessidade de sua vida. Para que a consciência dos sujeitos se torne um reflexo da moral capitalista e seja expansível para cada greta da sociedade, a elite burguesa vai padronizar e fazer parecer natural um “modo capitalista de se comportar, ou ethos burguês” regido por “leis naturais” também chamadas de ética burguesa. Para isso, segundo Lucáks (2012:214) “o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura”. Diante disso, para entender-se a respeito do que se trata de fato esse modo capitalista de se comportar, importa fazer uma apreensão dos sujeitos sociais, como agem, se portam e encaram as situações constantes da vida cotidiana. Os sujeitos na sociedade capitalista são vítimas de uma sociabilidade regida pela mercadoria que produz comportamentos coisificados e dão imensa importância para a posse material, a competitividade entre indivíduos e o individualismo. 11 Barroco (2010), demarca o que é o modo capitalista de se comportar, as atitudes, ações, necessidades e peculiaridades dos sujeitos sociais com a consciência reificada. Esse modo exala desejo de posse e transforma as escolhas dos sujeitos, capacidades e sentimentos em desejos de adquirir algo material, pois para esse sujeitos o dinheiro é a satisfação máxima que tudo compra. O utilitarismo moral também é algo marcante no modo capitalista de se comportar, pois as relações entre os sujeitos são valorizadas segundo sua utilidade material – satisfação das necessidades materiais. Essa valorização está voltada para a quantificação da utilidade material e não para a qualidade das relações humanas e seus valores. Pode-se realçar também a homogeneização das necessidades, fato que exprime a redução das necessidades ao “ter”, ao possuir algo material. Os indivíduos dominados pelo ethos burguês são individualistas e egoístas, pensam apenas na sua ascensão, no seu bem. São totalmente voltados ao “seu eu” e seguem a liberdade da ética burguesa: a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro, ou seja, um ser social é livre sem o outro. Para o sujeito individualista, o outro é sinônimo de estorvamento, objeto descartável. Para esses, não existe uma ética fundada em valores comuns. Sendo assim, o individualismo reproduz a ética impessoal e permite que as relações sejam superficiais e fragmentadas. Os valores morais fazem parte da lógica mercantil e se tornam, no modo capitalista de comportar, objetos de consumo, que podem ser comprados. A moral como mercadoria é reproduzida diariamente e toda a fragmentação da realidade que rodeia esses indivíduos em todas as esferas da vida cria uma sociabilidade que torna a ética uma instância abstrata. Nesse quadro, várias dimensões da vida não são apreendidas como totalidade e o indivíduo fica alienado em partes da sua vida, valorizando-as como dimensões opostas. Para Barroco (2010:161) “o modo de ser capitalista se reproduz e se legitima eticamente através do sistema de normas, deveres e representações pertinentes às necessidades objetivas de (re)produção da sociabilidade mercantil; nesse sentido, precisa da ideologia dominante, enquanto conjunto de ideias e valores que buscam a coesão social favorecedora da legitimação da ordem burguesa.” 12 Ou seja, o fato de o consumo de objetos – ou o consumo de quase tudo que existe na superfície terrestre – fornecer integração social e identidade social é funcional para manter o modo de produção capitalista. Logo, na sociedade de classes a moral faz parte da ideologia que contribui para a legitimação da ordem dominante. Contribui para a disseminação, fortalecimento e reprodução de uma cultura, ou um modo de se comportar, favorável ao capitalismo. Essa moral e essa ética impostas são reproduzidas como um sistema normativo, onde é preciso que todos aceitem para legitimar o cenário e ocultar as contradições impostas. Desta forma, o ethos burguês e a ética burguesa são reproduzidos e são valores da realidade dominante. É nesse sentido que a ideologia dominante da sociedade de classes unifica as contradições e dissimula a realidade impedindo os indivíduos de alcançarem a essência da mesma, possibilitando a reprodução da reificação. Percebe-se então que a consciência do ser social está tomada, dominada por leis que foram implantadas para beneficiar um sistema e uma pequena classe humana e ao mesmo tempo para destruir as capacidades objetivas do ser social, pois, segundo Lucáks (2012:211) “a estrutura da reificação, no curso do desenvolvimento capitalista, penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais profunda, fatal e definitiva”. Lucáks releva sobre a consciência do ser social: Embora essas formas do capital estejam objetivamente submetidas ao processo vital do próprio capital, à extração da mais-valia na própria produção, elas só podem ser compreendidas, a partir da essência do capitalismo industrial, mas aparecem na consciência do homem e da sociedade burguesa, como formas puras, verdadeiras e autênticas do capital. Para a consciência reificada, essas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, justamente porque nelas se esfumam, a ponto de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados à satisfação real de suas necessidades. Tais relações são ocultas na relação mercantil imediata. O caráter mercantil da mercadoria, o modo quantitativo e abstrato da calculabilidade aparecem aqui sob sua forma mais pura. (LUCÁKS, 2012:210211) Por ser um movimento essencial à reprodução do modo de produção capitalista e funcional à ordem burguesa, as maneiras de agir e a moral são sem o menor pudor da classe dominante, impostas, e passam sempre despercebidas aos olhos do ser social 13 que esta submetido a elas. Lhe parecem naturais e de vida própria. O sujeito social não toma conhecimento da totalidade, vive na aparência e desconhece a essência da própria realidade em que vive. Esse artifício de naturalizar esse modo de se comportar e a ética burguesa é imprescindível para manter a ordem, como relata Lucáks (2012:220): “Trata-se de uma intensificação ainda mais monstruosa da especialização unilateral na divisão do trabalho, que viola a essência humana do homem”. Nesse sentido, não é de interesse da classe burguesa que o ser social tome conhecimento da realidade em que vive, pois seria difícil desta forma manter um controle das atitudes do mesmo. Para Lucáks (2012:226-227), “esse sistema de leis deve não somente se impor aos indivíduos, mas ainda jamais ser inteiramente e adequado cognoscível. Pois o conhecimento completo da totalidade asseguraria ao sujeito desse conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a economia política.” Diante disso, a reificação geral penetrou nas objetivações do ser social, inclusive a ética – objetivação aqui tratada em destaque – e a deixou condenada por não ser realizada em sua essência, em sua plenitude – voltada para a emancipação. Ou seja, os indivíduos não são providos de capacidade para ser um ser ético emancipatório em pleno capitalismo contemporâneo, pois estão reificados e tem suas capacidades negadas. Para Lucáks (2012:221), “a submissão necessária e total do burocrata individual a um sistema de relações entre coisas, a ideia de que são precisamente a sua “honra” e o seu “senso de responsabilidade que exigem dele semelhante submissão, tudo isso mostra que a divisão do trabalho penetrou na ética – tal como, no taylorismo, penetrou no “psíquico”.” Em determinado momento de sua obra, Barroco (2010), lembra que nas relações sociais - de todas as formas – o ser social sempre se depara com exigências de sua consciência, racionalidade e subjetividade, ou seja, exige que o ser social coloque em prática sua existência ética – exigência constante. Ora, voltemos então a questão do ser social ético pleno. Nota-se que diante de todo o movimento do ser social na contemporaneidade, dominado pelo capital, fica clara a distância do mesmo e da existência ética emancipatória. Configuram-se como dois pontos opostos. Se para o ser social ser um ser ético emancipado é necessário que haja livre e consciente e o ser social contemporâneo é um ser alienado e privado de 14 suas próprias objetividades não atendendo os princípios da existência ética plena, a sua objetivação que se relaciona a ética emancipatória é constantemente negada e o impede de agir como tal. É como se um ser ético emancipado fosse (x) e o ser social representasse (-x), ou seja, as condições do ser social na contemporaneidade negam o ser social objetivado como ser ético emancipado e afirmam o ser social ético-burguês. É no desenrolar de todo esse processo que se percebe o ser social tratado como um maquinário irracional, preso, alienado e vislumbrado com uma sociedade que vive na superficialidade. Esse sujeito desconhece cada vez mais sua autorealização e serve de manutenção da mesma ordem que o destrói. Tudo isso causado por uma estrutura social fundada na divisão social do trabalho que domina e degrada tudo ao mesmo tempo. O que impede a efetivação da práxis ética plena é a estrutura fundada na divisão social do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção: ninho da reprodução de relações sociais superficiais e desiguais, de exploração do homem pelo homem e de alienação. A efetivação do ser social ético emancipado só se torna possível em uma sociedade para além do capital, onde os valores da existência ética plena poderão realizar-se em sua completude e os seres sociais serão passíveis do seu “eu” e conscientes da sua essência. Assim todas as atividades desempenhadas estarão direcionadas para suas escolhas pessoais, em vez de comportar-se de acordo com a padronização imposta pela sociedade do mercado. Quando as determinações na produção material da vida se alterarem – apropriação coletiva do processo de trabalho e dos produtos do trabalho – estarão dadas as condições básicas para a existência do ser social emancipado, portanto, para uma ética emancipada e digna para o desenvolvimento humano. 15 REFERÊNCIAS BARROCO, Maria Lucia S. Ética – fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2010. CHAUÍ, Marilena. A existência ética. In: Convite à filosofia. São Paulo, Editora Ática, 1997. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. MARX, Karl. Manuscritos econômico - filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010. ______. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. ______. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. São Paulo: Victor Civita, 1983. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. NETTO, José Paulo e BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2008. ______. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981. 16 NOTAS I Modo de produção diz respeito às forças produtivas e às relações de produção. As primeiras são 1) os meios de trabalho: instrumentos, ferramentas, instalações etc., assim como a terra; 2)os objetos de trabalho: as matérias que o homem utiliza para trabalhar(matérias brutas ou já modificadas pela ação do trabalho); 3) a força de trabalho: a energia humana empregada no processo de trabalho(como o uso dos meios de trabalho) a fim de transformar os objetos de trabalho em objetos úteis em termos do atendimento de necessidades. As relações de produção são relações técnicas (especialização do trabalho, tecnologia etc.), sendo subordinadas às relações sociais de produção, determinadas pelo regime de propriedade dos meios de produção fundamentais (NETTO E BRAZ, 2008, p. 58-59). II Em 1844 Marx analisou o fenômeno geral da alienação condensando suas anotações em um conjunto de manuscritos que só foram publicados em 1932, com o título de Manuscritos ecnômicos-filosóficos. (MARX, 2010). III A práxis envolve o trabalho, que, na verdade, é o seu modelo – mas inclui muito mais do que ele: inclui todas as objetivações humanas. (NETTO E BRAZ, 2008, p. 43).