O papel dos educadores em tempos de crise: estabelecer limites, incentivar o respeito e a autossuperação
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Júlio Furtado*
Estamos vivendo tempos de crise. Não estamos falando especificamente de crise financeira ou de crise
política. Estamos falando de crises de verdades e de valores. O que sempre foi considerado certo, de repente, deixanos em dúvida. As atitudes que sempre foram recomendadas para certas situações com nossos filhos e alunos, hoje
nos deixam inseguros, pois não estamos convictos de seus efeitos. Somos uma geração de educadores marcada
pela dúvida e pela culpa. Dúvida sobre o que fazer e culpa por colocar limites. Podemos resumir nosso momento
como uma transição entre a disciplina do medo e o medo da disciplina. Talvez seja porque já sabemos das
consequências desses dois extremos.
Esses extremos estão no centro da crise que vivemos como educadores. Não temos sabido direito a hora de
diminuir a proteção e de aumentar o cuidado. Talvez tenhamos esquecido até mesmo o real sentido de proteger e de
cuidar. Proteger envolve decidir pelo outro. Quem protege escolhe o que é melhor para o outro, excluindo-o da
escolha e da decisão. “Você vai ficar em casa, pois na rua está muito tumultuado e você pode se perder!”. Eis uma
situação típica de proteção. A decisão é unilateral e não pressupõe diálogo. Cuidar envolve oferecer escolhas,
explicar suas consequências e disponibilizar-se para ajudar, caso seja necessário. Envolve análise de consequências
e uma escolha por parte do outro. “Na rua tem muita gente e você pode se perder. Se isso acontecer, você vai ficar
nervoso e começar a chorar por não saber voltar pra casa. Se você quiser ir, assim mesmo, não vá muito longe! Leve
o celular e ligue para mim caso se perca”. Nessa situação, o elemento escolha define claramente o cuidado. Embora
assuste, é por meio do cuidado que fazemos crescer. Cuidar educa. Proteger, embora necessário, não.
É certo que estamos lidando com uma geração mais questionadora, mais agitada, mais exigente e que
perdeu um pouco os referenciais de respeito, mas também me parece verdade que nós, pais e professores, estamos
com alguns problemas para desempenhar essa tarefa. Pelos depoimentos que obtenho ao conversar com pessoas
que viveram outros tempos, no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1970, pais e professores
colocavam limites e não sofriam tanto por isso. Parece que alguns fatos, ao longo das três últimas décadas,
colaboraram para que nascesse em nós uma grande dificuldade no desempenho dessa função.
A primeira questão que me vem à mente é o mito do trauma, tão difundido na década de 1960, apoiado pela
“Psicologia do Sim”, que condenava toda e qualquer forma de repressão. Trazemos reminiscências dessa psicologia
que nos cria certa dúvida sobre o fato de ser mesmo eficaz um “não” convicto, sonoro e tranquilo em uma
circunstância em que se faz necessário. Ficamos na dúvida se a frustração realmente não traumatiza e se nossas
crianças e jovens vão conseguir sobreviver a ela.
A mudança no papel da mulher na família também trouxe, a reboque, algumas dificuldades na colocação de
limites. Quando a mãe vivia em casa e podia ser mãe em horário integral, o estabelecimento de limites se dava de
forma natural, até porque esse era um dos quesitos para que ela fosse considerada uma boa mãe. O pai era o
provedor, somente convocado a educar em situações extremas. A mãe era a educadora oficial. O mundo mudou e a
mulher teve que encarar o mercado de trabalho. O convívio com os filhos foi reduzido, quando muito, à hora de
acordar, na agitação de aprontar para a escola, e à noite, diante do cansaço e do estresse após um dia de trabalho.
Essa nova rotina da mulher fez nascer uma mãe culpada, que carrega o sentimento de “abandonar a cria”. Como
continuar estabelecendo limites com tranquilidade e sem culpa?
Outro fenômeno, também ocorrido no seio familiar, foi a reconfiguração da família em função do advento do
divórcio. O aumento da frequência de rompimentos de casamentos e de consequentes perdas de guarda dos filhos
trouxe consigo o aumento da dificuldade de colocar limites. Institucionalizou-se aí o estilo paterno e o estilo materno
de educar, que, em boa parte das vezes, não caminham juntos. A figura paterna, até então ausente do processo
educativo, surge agora atônita, diante do papel de “educador quinzenal”, que nasce em meio à culpa da própria
circunstância. É o tempo para ser pai, utilizado para conquistar e cativar o amor dos filhos. Como impor limites e
conquistar o amor simultaneamente em um tempo tão escasso? A figura materna foi mantida no posto. Continua com
a mãe (que na maioria dos casos fica com a guarda dos filhos) a responsabilidade de educar, já que convive mais
tempo com as crianças.
As mães, por sua vez, com a separação, perdem a cumplicidade paterna (quando essa existia) e “perdem a
mão” no estabelecimento de limites, ora exagerando, ora relaxando no rigor. Tanto a situação da mãe quanto a do
pai são agravadas com um novo casamento, que passa a ser uma parceria conjugal, mas não se legitima como uma
parceria educativa. Não são raros os conflitos no novo casamento que tenham como “pano de fundo” a não
legitimidade do padrasto ou madrasta de colocar limites nos filhos do outro.
Diante de toda essa reconfiguração das relações educativas, surge um professor (não esqueçamos que o
professor também está inserido em todo esse processo familiar) perdido diante da tarefa de colocar limites em um
grupo de crianças ou adolescentes, que passou a chegar à escola sem os limites mínimos com os quais costumavam
chegar em outros tempos. Com a árdua tarefa de ter que colocar limites de forma coletiva e individual, o professor
transita entre a compreensão permissiva e a intransigência castradora, passando a considerar a tarefa de educar, o
pior dos martírios.
Diante dessa crise, certamente nos orientam algumas ações que são essenciais para que não nos percamos
nesse mar de dúvidas. Incentivar a autossuperação é a primeira delas. Para que isso seja possível, precisamos
substituir a censura pelo apoio e criar um clima para uma conversa aberta que favoreça o autoconhecimento e a
superação das dificuldades por meio da potencialização das forças e do controle estratégico das fragilidades. É
essencial, também, aprender a adiar o prazer em um mundo que convida o tempo todo à satisfação desenfreada. A
segunda ação é desenvolver habilidades essenciais à sobrevivência em um futuro próximo. Dentre essas
habilidades, destacam-se a autonomia, a seletividade, a flexibilidade, a interação, a serenidade e a resiliência. Por
fim, é fundamental ajudá-los a desenvolver a educação da vontade. Está mais do que provado que o que nos move
não é a inteligência, mas a vontade. Uma pessoa muito inteligente, mas fraca na administração de sua vontade não
sai do lugar. Por outro lado, alguém de inteligência média, mas com alto potencial de domínio de sua própria vontade,
atinge seus objetivos com relativa facilidade.
Uma das principais consequências da reconfiguração das relações educativas é o fato de vivermos, hoje, em
uma sociedade com baixíssimo índice de maturidade emocional e com elevado índice de carência afetiva. Em uma
sociedade assim, passa a ser frequente o pavor de não ser amado e surge a dificuldade de se olhar a criança e o
jovem com olhos de educador, ou seja, com os olhos de quem já superou todos os conflitos típicos dessas fases do
desenvolvimento humano. Aliado a tudo isso, a crise de valores que assola nosso mundo em transição nos impede
de ter certeza quanto à atitude certa a tomar. Somos reféns da dúvida, da culpa e do sofrimento que ambas
acarretam. Nossos filhos e alunos já perceberam isso e armam-se de “certezas circunstanciais” para atingir a nossa
frágil convicção de educar. “Você está sendo injusto!”; “Mas você dorme tarde sempre que quer!”; “Professora, você é
a única que não deixa!”; “Pai, você bebe cerveja, por que eu não posso!?”. Lançam ataques cruéis para a nossa
geração de adultos portadores de uma consciência confusa e culpada que, muitas vezes, nos aniquila e nos impede
de dizer com carinho, tranquilidade e firmeza um sonoro e necessário NÃO. E, na maioria das vezes, é isso que
nossas crianças e nossos jovens necessitam e, bem lá no fundo, até desejam.
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Júlio Furtado é doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Havana, Cuba; mestre em Educação
pela UFRJ; pedagogo; psicólogo; professor de Geografia; diplomado em Psicopedagogia pela Universidade de
Havana, Cuba; autor de vários livros.
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