GÊNESE DE NOVA FRIBURGO: H I S T O R I A DE U M A PESQUISA Por M a r t i n Nicoulin Gênese de Nova Friburgo saiu do prelo em 1973. N a o pretendo resumir as 364 páginas de um livro que narra a fundaçâo da cìdade de Nova Friburgo por emigrantes suiços, no começo do século X I X . Penso que ninguém ignora a existencia dessa cidade brasileira no Estado do Rio de Janeiro, que forma com Petrópolis, e Teresópolis o conhecido triángulo urbano da Serra do Mar. Meu propósito hoje é contar a primeira etapa da elaboraçâo desse livro sobre Nova Friburgo: a busca dos documentos. 1. E s c o l h a do tema Antes de mais nada o porque da opçâo por esse tema. Jovem estudante da Universidade de Friburgo, influenciado pelas preocupaçôes do presente e atento às liçôes do passado, já me interessava pela chamada quinta Suiça. (Com efeito, a Suiça contemporanea näo vive a fase da imigraçao e a história näo mostra que a Confederaçâo Helvética viveu muito tempo o fenòmeno inverso, o da emigraçâo?) N a época isso nao passava de simples inclinaçao psicológica desprovida de coordenadas geográficas e históricas precisas. Mas estas últimas foram-nos reveladas na Universidade de Friburgo pelo professor Roland Ruffieux em suas prelecçôes sobre o mundo atlàntico. A partir dai, a America Latina se tornou nossa terra de eleiçao, nosso campo de observaçâo. As buscas começaram nos arquivos federáis de Berna, onde pesquisámos as relaçÔes da Confederaçâo Suiça com uma América Latina modelada por Espanha e Portugal. O Brasil realçou-se logo no sub-continente pela importancia e a qualidade de suas relaçôes com a Suiça. Um fato, em particular, atraiu nossa atençâo: a fundaçâo de Nova Friburgo em 1820. Surgiu entáo a idéia de consagrar nossa tese de doutoramento a essa emigraçâo. O exame da literatura existente sobre a matèria fortaleceu nossa escolha. Foi curto o tempo passado ñas bibliotecas, pois poucos foram Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 182 Martin Nicoulin os autores que trataram do acontecimento. Duas obras destacavam-se ñas estantes. A primeira intitulada Terre! Terre! Récit historique de l'émigration suisse au Brésil en 1819, publicada em Friburgo, Suiça, em 1939. Trata-se de um «relato», que a despeito do título nada contém de científico. É mais, como observou um crítico francés, um romance exótico das Cartas friburguenses. A segunda obra, a de Pedro C u r i o : Como Surgiu Friburgo, publicada em Nova Friburgo em 1944 e reeditada em 1974, revelou-se decepcionante. Este livro levanta questoes fundamentals às quais nao responde: como surgiu e foi negociado o projeto de urna emigraçâo suiça para o Brasil? Quantos emigrantes havia? Qual era a origem geográfica e sócio-economica desses candidatos ao Novo Mundo? Que vitalidade teve a colònia? Esse magro balanço bibliográfico levou-nos a uma constataçâo fácil e pretensiosa: Nova Friburgo esperava um historiador. 2. P r i m e i r o contato corn os documentos Visto que a Nova Friburgo do Brasil tira seu nome da Friburgo helvética, foi nos arquivos do Estado desta última cidade que ocorreu o primeiro contato com os documentos. Quatro grandes pastas ainda testemunham a emigraçâo dos friburguenses para o Brasil. Esses documentos permitiram a realizaçâo de um dos objetivos principáis da pesquisa, isto é, o estudo quantitativo e qualitativo dos emigrantes. Uma lista impressa e datada de 20 de junho de 1919 destacava-se de toda a documentaçâo. Publicada por conta do Estado e assinada pelo diretor da polícia central, possuia garantías de autenticidade e era definitiva, pois a saída dos friburguenses para o Novo Mundo ocorreu no domingo, 4 de julho de 1919. Graças a esse documento, o número de emigrantes foi calculado com exatidäo suficiente. Além disso, tal lista possibilitou um primeiro enfoque dessa populaçao, pois o nome e sobrenome do pai de familia ai figuravam, bem como profissao e lugar de origem. Mas como determinar, nao a estrutura familiar, mas individuai dessa emigraçâo? Em outras palavras, como estabelecer o estado civil de cada emigrante? Felizmente Friburgo conservou os primeiros registros de inscriçao feitos pelas prefeituras. A consulta de tais registros permitiu-nos solucionar o problema. Depois, com a verificaçâo dos recenseamentos efetuados no can tao em 1811 e 1818, suprimiram-se Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM Gênese de N o v a Friburgo 183 as imprecisôes, esclareceram-se as diìvidas e preencheram-se as lacunas. Foram assim descobertas e identificadas 870 pessoas. Para cada emigrante havia urna fidia na quai figuravam os seguintes dados: sobrenome, nome, idade, estado civil, profissäo, domicilio e lugar de origem. Começou entao urna primeiro fase de exploraçâo. A geografia punha em evidência as regioes migratórias, a estatística estabelecia os caracteres demográficos dessa populaçao, e os meios sociais eram classificados pela sociologia. Contudo essas iniciativas permitiam apenas urna análise muito geral do fenómeno. Para compreendê-lo melhor e determinar suas causas, era necessàrio descer a um nivel mais particular, focalizar situaç6es concretas e típicas. Muitas vezes o prefeito tinha anotado a condiçao do futuro brasileiro. Essas indicaçôes revelaram-se preciosas, mas insuficientes. Foi entao que se tornou cativante o exame dos documentos elaborados por tabelioes. Casos humanos precisos vieram à luz, surgiram destinos e dramas: o fazendeiro com pagamento de aluguel atrasado, o pobre camponês endividado liquidando seus bens, o artesao vendendo sua casa para financiar a viagem . . . Todos viam no Brasil o remédio para suas dificuldades. Às vezes, a terra de Cabrai atraía o verdadeiro pioneiro, como no caso de agricultores que confiavam a gerência de seu pedaço de chao a um administrador. N o entanto, o registro dos tabelioes informava somente sobre as categorías económicas dessa emigraçâo. Ora, nessa partida para a América do Sul, o fator económico nao explicava tudo. As motivaçôes sociais tinham também sua importancia. Era necessàrio apontar com precisâo os homens e as mulheres que fugiam da sociedade que os tinha «marginalizado», que abandonavam um regime político, etc. . . . Foram os arquivos dos tribunals e a correspondencia política que revelaram seus nomes. Para caracterizar ainda essa sociedade migratória, procurámos utilizar a última possibilidade oferecida pelos arquivos de Friburgo, que possuem a lista das bagagens dos emigrantes. Em que medida, a análise desses objetos podia refletir mentalidades? Esboçou-se um grupo interessante. Os emigrantes desta categoria levavam muitas roupas de tecidos variados. Tinham também embarcado com equipamento diversificado e pesado. Acessórios como péndulos, relógios, escrivaninhas, moinhos de café, traiam bem-estar financeiro. Seus livros ecusavam as intençôes de urna elite; nao sòmente missais como também obras sobre comércio e agricultura. Os fardos que os acompanhavam Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 184 Martin Nicoulin continham até o símbolo do emigrante conquistador. Estes levavam sacos de sementes para plantar. Este grupo, porém, representava apenas 22 % dos emigrantes. 3. U r n a tournée helvética Os arquivos de Friburgo serviram também para o estudo de outras dimensôes dessa emigraçâo, sobretudo a política seguida pelo governo. Revelou-se logo, no entanto, que Friburgo seria apenas urna etapa na pesquisa. A fundaçao de N o v a Friburgo nâo foi sòmente obra friburguense: outros cantóes forneceram contingentes. Era, por isso, necessàrio seguir suas pegadas. Impôs-se entâo urna série de visitas a varios arquivos cantonais. N a Suiça de expressâo francesa: Genebra, Lausanne, Neuchâtel, Sion. N a Suiça de expressâo alema: Aarau, Berna, Lucerna e Soloturno. O resultado desse giro por várias cidades helvéticas foi geralmente positivo, em que pesem os obstáculos encontrados. Primeiro, a leitura de manuscritos em alemäo constituía um problema e exigía iniciaçâo na escritura gótica. Em seguida, nao existia, de urna maneira gérai, indicaçôes específicas sobre a questâo, de modo que a tenacidade e a imaginaçâo do pesquisador eram o único meio de afrontar o ceticismo e a indolencia dos arquivistas, e reconstituir as peças de um dossiê. Finalmente, um fichário de mais de 2.000 pessoas foi estabelecido segundo o modelo adotado para os friburguenses. Faltavam só os emigrantes do cantao de Vaud, pois os arquivos cantonais valdenses nao tinham conservado nem lista de emigrantes, nem registro de passaportes. Rápida pesquisa em algumas comunas do país completou essa peregrinaçao pelos arquivos, pesquisa essa que mostrava, às vezes, com que ferocidade «burguesa» certos conselhos municipals tinham favorecido a partida de seus compatriotas. 4. O o c e a n o impedia o jogo respostas das questóes e Mas como determinar a participado do cantäo de Vaud? Como estar certo de que 2.000 pessoas aproximadamente embarcaram? Como contar as desistencias? Surgiu a idéia de consultar listas de embarque e de chegada. Entre a pergunta e a resposta, ha via o Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 185 Gênese de N o v a Friburgo Oceano Atlàntico. Além disso, a documentaçâo reunida na Suiça salientava o papel primordial de uma personagem. Suspeitava-se que Sebastien-Nicolas Gachet tinha entrado em negociaçôes com a Corte no Rio de Janeiro. Sabia-se que ele havia assinado um tratado de colonizaçao que se podía julgar como o atestado de nascimento de Nova Friburgo. Para encontrar os dados dessas negociaçôes, a idéia de ir ao Brasil passou a ser uma tentaçâo. Como responder a esta simples pergunta: que ñzeram os suiços em Nova Friburgo? Qual era a vitalidade de sua colonia? Vale lembrar que os Arquivos Federais de Berna mencionavam inicios difíceis, trágicos mesmo. Mas se houve crise, quais foram as causas e as soluçôes? Dai em diante, a ida ao Brasil se tornou uma necessidade. A preparaçâo da viagem começou com o envió de uma carta ao Rio de Janeiro, e depois com o estudo da lingua e da paleografia portuguesas. Por firn, o vôo para o Brasil, e na bagagem, a indispensável microfilmadora. Começava, assim, uma aventura que iria durar 5 meses. 5. A c o l h e i t a do Rio de Janeiro A coleta de documentos começou nos Arquivos nacionais do Rio de Janeiro pela consulta do dossiê anunciado na Suiça, cujo código era «Caixa 991». Tratava-se de uma grande caixa metálica de cor verde. Se seu conteúdo nunca tivesse sido consultado por um pesquisador, a humidade tropical tê-lo-ia corrompido. Essa documentaçâo refletia, no entanto, a posiçao crítica da colonia suiça. Uma série de documentos evocava o marasmo económico e a difícil coexistencia entre católicos e protestantes. Maços de papéis refletiam problemas agrários e sobretudo o abandono das terras coloniais pelos ¿migrantes. Assim nova migraçao concluía a transferência desses colonos da Suiça para o Brasil. Mas se os cidadaos suiços se haviam recusado a viver em Nova Friburgo, em que zonas se tinham instalado? Em 1824, a administraçao militar estabelecera a lista de imigrados cujas idades oscilavam entre 18 e 40 anos. Ao lado do nome da pessoa estava indicada a nova residência. Estatística preciosa para a localizaçâo dos colonos disseminados pelo Estado do Rio. A «caixa 991» continha até um levantamento topográfico e nominal de uma expansâo para o Oeste que a historiografía brasileira havia completamente esquecido. Infelizmente, a »caixa« quase nada possuia sobre o primeiro ano de vida da coló- Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 186 Martin Nicoulin nia. Feliz acaso permitiu a descoberta de um manuscrito de 311 páginas com urna série de crónicas dos 18 primeiros meses de Nova Friburgo, escritas por um habitante do cantäo de Friburgo. Este material revelou-se insubstituível para a descriçao da vida inicial de Nova Friburgo. Que restava da contabilidade dos colonos? A alfândega brasileira nao tinha nenhum vestigio de sua chegada. Uma lista de distribuito de subsidios, datada de primeiro de janeiro de 1820, tornava possível um confronto com o fidiário das partidas, feito na Suiça. Essa lista era apenas nominativa e incompleta, de modo que a identificaçao dos primeiros habitantes de Nova Friburgo continuava bastante problemática. Depois das pesquisas nos Arquivos nacionais, a estada no Rio de Janeiro continuou com buscas no departamento de manuscritos da Biblioteca Nacional. Que se pode dizer destes manuscritos? Convém mencionar um volume de 910 páginas que informava sobre o começo da colònia. Essa documentaçâo inédita e oficial diegou no momento exato, possibi litando a crítica dos testemunhos pessoais do jornal de um colono. Esse códice revelava num lapso de tempo muito curto (de 27. 11. 1819 a 31. 12. 1820) a vida dos homens durante a criaçao de Nova Friburgo. Referia-se aos seus sofrimentos físicos e espirituais, ao seu preparo para a vida agrícola e desvendava sobretudo o grande ideal dos primeiros homens de Nova Friburgo: transformar as florestas de Morro Queimado em pastagens, manancial de leite; transpor para o Brasil novo modelo sòcio-econòmico; fazer de Nova Friburgo uma Gruyère brasileira. Eis o grande sonho desses pioneiros. Depois de muitas peripécias, o bibliotecàrio encontrou um manuscrito particularmente interessante, que continha o dossiê da negociaçâo do Rio de Janeiro. Podia, finalmente, ser escrita a gênese dessa emigraçâo e os projetos do diplomata Sebastien-Nicolas Gachet, que viera ao Rio, em 1817, propor ao imperador Dom Joâo VI a povoaçâo de todo o Brasil meridional, com o estabelecimento de «milhares de aldeias helvéticas». O sistema de Gachet tinha uma grande vantagem: oferecia uma soluçao a mais ao regime já ameaçado com uma mäo de obra negra e escrava. Na opiniao dos cariocas, a experiência de Nova Friburgo tinha futuro. E devia inscrever-se na perspectiva de uma emigraçâo permanente de suiços para o Brasil. Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 187 Gênese de Nova Friburgo 6. N o v a F r i b u r g o : l e i t u r a dos e d a s ρ a i s a gen s arquivos Nova Friburgo sucedeu-se ao Rio de Janeiro. A Biblioteca Municipal conservava traços precisos dos fundadores da cidade. Seus nomes figuravam num grande livro: eram 1.631 páginas e mais de 2.000 no momento da partida. Assim, urna simples operaçao aritmetica evidenciava a personagem principal da viagem dos emigrantes: a morte. Além disso, esse primeiro recenseamento de Nova Friburgo permitía verificar o fichário elaborado na Suiça. Em seguida, a consulta do registro de óbitos, de nascimentos e de casamentos nos Arquivos paroquiais determinava melhor certos dados sobre essa populaçao originària dos quatro cantos da Confederaçâo Helvética. Os primeiros habitantes de Nova Friburgo eram assim encontrados. Por firn, a estatística podia estabelecer o saldo humano da grande aventura, o balanço dessa transmigraçao. Quadro 1 B a l a n ç o da e m i g r a ç a o s u i ç a p a r a N o v a Friburgo (1 8 1 9 - 1 820) No Nome dos cantôes Friburgo Berna Valais Vaud Neudiâtel Genebra Argóvia Soloturno Lucerna Sdiwytz de emigrantes Mort alidade Natalidade Balanço 830 500 160 90 5 3 143 118 140 17 - 232 - 74 - 23 - 10 0 0 - 14 - 16 - 17 3 + + + 7 3 3 0 0 0 0 1 0 0 605 429 140 80 5 3 129 103 123 14 2.006 - 389 + 14 1.631 + Depois, os dados demográficos colhidos nos registros paroquiais entrar am num gráfico. N o papel, curvas evoluiam e ritmavam 10 anos de casamento, de nascimento e de morte. Diagnosticavam sobretudo o primeiro período de Nova Friburgo: o arranco inicial frustrado, um lento crescimento, o fracasso da experiência suiça e das suas esperanças. Unauthenticated Download Date | 1/27/16 3:17 PM 188 Martin Nicoulin Quadro 2 Demografia de N o v a F r i b u r g o ( 1 8 1 9 - 1 8 2 7) Para colocar um termo a essa busca do passado, foram empreendidas viagens no eixo N o v a Friburgo — Cantagalo — Campos, onde a toponimia ressona sílabas helvéticas. O lugarejo denominado Cardinaux e a aldeia chamada Monnerat sao apenas dois exemplos de regiôes escolhidas pelos colonos suiços depois do fracasso da experiência em Nova Friburgo. Por mais que os descendentes nos contassem as causas da instalaçao de seus antepassados nesses lugares, a leitura das paisagens explicava melhor. Estas se tornavam verdadeiros documentos históricos. Menos elevadas e mais quentes que as de N o v a Friburgo, as terras de Monnerat tinham dado aos colonos a possibilidade de cultivar o café. Em vez de vegetar numa agricultura de subsistencia, os suiços preferiram o capital e a civilizaçâo que lhes procurava o terceiro ciclo da economia brasileira. 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