CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL COMISSÃO ESPECIAL - PL nº 3.198/2000 - ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL EVENTO: Audiência pública N°: 1.175/01 DATA: 23/10/01 INÍCIO: 15h06 TÉRMINO: 17h33 DURAÇÃO: 2h27 TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h31 PÁGINAS: 54 QUARTOS: 31 REVISÃO: ANA MARIA, DANIEL, MARIA LUÍZA, YOKO SEM SUPERVISÃO CONCATENAÇÃO: MYRINHA DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO GILBERTO ROQUE NUNES LEAL - Representante do Conselho Nacional de Entidades Negras — CONEN STÂNIO DE SOUZA VIEIRA - Representante do Movimento Negro Unificado IVO FONSECA SILVA - Coordenador da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão SUMÁRIO: Discussão sobre o Projeto de Lei nº 3.198, de 2000, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. OBSERVAÇÕES Há intervenções inaudíveis. CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Alberto) - Declaro aberta a 7ª reunião da Comissão Especial destinada a apreciar e proferir parecer ao Projeto de Lei nº 3.198, de 2000, que "institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências". Encontram-se sobre a mesa as cópias da ata da 6ª reunião. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Sr. Presidente, como todos já tomaram conhecimento da ata, peço dispensa da leitura da mesma. O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Alberto) - Dispensada a leitura da ata da reunião. Em discussão. (Pausa.) Não havendo quem queira discuti-la, em votação. Aqueles que a aprovam permaneçam como se encontram. (Pausa.) Aprovada. Ordem do Dia. A reunião de hoje foi convocada para realização de audiência pública e apreciação de requerimento. Iniciamos a audiência pública convidando para fazerem parte da Mesa nossos palestrantes, os Srs. Gilberto Roque Nunes Leal, representante do Conselho Nacional de Entidades Negras — CONEN, Stânio de Souza Vieira, representante do Movimento Negro Unificado, e Ivo Fonseca Silva, Coordenador da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão e membro da Comissão Nacional dos Quilombos. 1 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Informo que até o momento o Sr. Helcias Roberto Paulino Pereira, Coordenador Nacional de Formação dos Agentes de Pastoral Negros, não chegou. Antes de passar a palavra aos nossos palestrantes, comunico que o tempo concedido a cada convidado será de vinte minutos, não podendo ser aparteado. Considerando que hoje, excepcionalmente, teremos quatro palestrantes — até o momento só três chegaram —, solicito aos senhores convidados que se atenham ao tempo regimental de vinte minutos, de modo a que possamos cumprir a pauta prevista. Dando início às exposições, passo a palavra ao Sr. Gilberto Roque Nunes Leal, representante do Conselho Nacional de Entidades Negras — CONEN. O SR. GILBERTO ROQUE NUNES LEAL - Sr. Presidente, senhoras e senhores presentes, companheiros da Mesa, boa tarde. Agradeço o convite, em nome da Coordenação Nacional de Entidades Negras, organização que congrega a maioria das entidades negras do País e que se tem pautado pela discussão desse tema que hoje praticamente pontua no universo das relações raciais no Brasil, qual seja, as questões relativas a reparações. Inicialmente, devo dizer que ao tratarmos da questão nesta Comissão, estamos tratando, pelo menos do ponto de vista dos negros e negras deste País, de um tema que avalio de extrema prioridade em âmbito nacional e — por que não dizer? —, em que pesem as estatísticas oficiais, que ainda precisamos aferir, que diz respeito à metade dessa população. Conseqüentemente, trata-se de uma questão da qual poderíamos até dizer, em momento de insatisfação, preocupante com relação à segurança nacional. 2 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Elogio o Deputado Paulo Paim pela iniciativa desse projeto de lei, porque um instrumento dessa natureza é considerado elemento propulsor de uma nova política. no País Lendo a parte inicial do Estatuto, cheguei à conclusão de que já deveria nele constar, constituindo, talvez, um de seus primeiros artigos — e aí fica a critério da Comissão —, uma redação que viesse a conduzi-lo como uma sustentação, mas que já apontasse para a necessidade da responsabilidade de o Estado brasileiro e suas unidades regionais estabelecerem uma política governamental de promoção da igualdade, de forma a possibilitar a inclusão de todos os segmentos raciais étnicos ou de cor nos benefícios sociais, considerando fatores de exeqüibilidade, tais como: recursos, responsabilidades setoriais e tempo. Faço esta observação porque, ao ler o primeiro artigo do Estatuto, verifiquei que ele começa pela instituição desse documento de importância singular, mas deve ele, em seu primeiro momento, remeter ao Estado brasileiro a responsabilidade, a necessidade, ainda que baseado num documento que futuramente poderemos aprovar como instrumento legal, sustentáculo, até, referencial para uma política, mas que não deixará de ser um elemento, assim como o que se vem debatendo muito hoje no Brasil — que é parte também desse Estatuto —: a famosa política de cotas ou cotas, como queiram chamar. Recentemente, tivemos reunião no Rio de Janeiro e discutimos esse aspecto. Entendemos que a cota é elemento extremamente importante numa política, mas não é o resumo, não é a redenção das dificuldades em que vivem os povos marginalizados por sua condição de raça, etnia ou cor neste País. 3 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Entendendo assim, acho que ela deve ser acatada como uma das respostas que precisam ser dadas por este País para essa convivência igualitária tão requerida pelos movimentos negros e demais segmentos, como o indígena e outros setores étnicos também marginalizados. Esse documento, como um documento que deve apontar para um instrumento legal amplo e democrático, tem de entender a pluralidade dos diversos setores marginalizados, mas é preciso, inevitavelmente, estar entendido por nós todos debatedores deste tema que numa população de mais de 160 milhões de brasileiros, os negros e negras deste País representam mais de 70 milhões, algo extremamente singular no mundo inteiro. A bandeira das reparações precisa estar desfraldada no Brasil não apenas por aqueles que reivindicam justiça social, mas, sim, pelo Estado brasileiro. Então, entendo que ao sermos questionados, nós, defensores da justiça social, seja pelos órgãos do Estado, seja pela imprensa brasileira, sobre a política de cotas, devemos responder que ela é necessária, mas apenas como parte da necessidade que temos e parte também do compromisso de dívida que o Estado brasileiro precisa reconhecer como Estado explorador historicamente desses segmentos étnicos que sofreram durante esse tempo. Quero pontuar algumas questões já analisadas pelo CONEN e dizer, por exemplo, dando um salto na proposta do Estatuto, que no seu art. 16, § 1º, quando falamos de remanescente de quilombo, precisamos tomar cuidado para que definição acatar. O que temos discutido hoje e o que tem sido consagrado como uma definição mais lógica para essa questão de remanescentes de quilombo é exatamente a 4 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 definição proposta pela Associação Brasileira de Antropologia — ABA, que destaca, dentre outros elementos, a importância da autodefinição. Já foi extremamente discutido e acordado com essa Associação de significativo referencial para a questão antropológica no Brasil, diferentemente de outras concepções que pairam definindo a questão do que são os remanescentes de quilombos, que se nós não atentarmos para uma definição que leve em conta isso, estaremos tentando enquadrar o que seja ou não remanescente em uma definição mais clássica, pautada em um referencial metodológico, que não se aplicaria ao caso. Não vou entrar em maiores detalhes porque não se trata da minha área de especialidade, mas recomendo que nos reportemos à definição consagrada e acordada, inclusive, com a coordenação de remanescentes de quilombos em âmbito nacional, bem como com as demais organizações que se envolveram nesse debate. Um outro ponto é com relação ao art. 20 — sei que há uma polêmica que já foi instalada na discussão do Estatuto —, sobre o percentual. Temos um referencial já vivenciado hoje no Rio de Janeiro para as universidades estaduais de 40% de cota. Se formos nos reportar à nossa presença — e aqui me desculpo com os demais segmentos étnicos, porque estou fazendo referência ao segmento em cuja luta estou inserido, ou seja, particularmente contra a discriminação da população negra —, considerando essas estatísticas ainda um pouco conservadoras de 45%, nossa relação entre negros e os demais segmentos é de 1.2 para 1. Esta é uma proporção da qual deveríamos nos aproximar. Acho que o número instalado no Rio de Janeiro para as universidades tende a se aproximar disso. A taxa de 20% é modesta porque vai para uma relação de 4 não negros para um negro. Se formos ver essa proposta de 20%, temos que reconhecer que é um percentual muito baixo 5 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 de contemplação, significando que nossa presença na sociedade brasileira é de apenas um terço. Estaríamos ainda sofrendo uma certa perversidade. Eu diria que algo que se aproxime dos 40% seria plausível, tendo em vista que aí estaríamos não apenas reivindicando isso. Aqui saio desta minha última fala um pouco corporativista na questão das relações com o negro para dizer que ao reivindicar 40%, ou próximo disso, estamos reivindicando que aí estejam contemplados os demais segmentos étnicos, particularmente o nosso irmão natural, que é o povo indígena. Entendo que esse percentual não seria exclusivamente dedicado a contemplar a comunidade negra. Aí se justifica ainda mais o acréscimo desse percentual, entendendo que vamos contemplar outros segmentos étnicos que se sintam e reivindiquem essa condição de marginalizados no processo da participação social. Não sei quanto tempo ainda tenho, mas quanto ao art. 21, eu diria que também teria contribuições a serem submetidas, evidentemente, à apreciação da Comissão. O artigo é muito próprio quando cita a necessidade de reserva e se remete à Lei nº 9.504, de 1997, sobre reserva de cota para o preenchimento de cargos nos órgãos públicos, através de concurso, nos níveis federal, estadual e municipal. Eu diria que também o número é pequeno, modesto. Acho que temos instrumentos e fundamentação legal para dizer que nessa política que aqui pontua o Estatuto, muito propriamente quando fala dos cargos públicos, o percentual aprovado tem de se estender aos órgãos e empresas da administração indireta, considerando-se, inclusive, as empresas de economia mista, e às empresas privadas com financiamento de bancos estatais. Então, se ela se beneficia, no Estado brasileiro, do financiamento de um banco estatal, apesar de ser empresa privada, podendo ditar como deve administrar e compor seu quadro de empregados, 6 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 tudo bem, mas ela é beneficiária de financiamentos em bancos estatais; bancos estes cujo acúmulo de capital é retirado de impostos da população. Os marginalizados de outras etnias são proprietários desse financiamento também. Deve-se estender também às empresas privadas beneficiárias de isenções de taxas e impostos em outros Municípios. Dou o exemplo da Ford, na Bahia, que é beneficiária de uma série de isenções. Se vamos aprovar um Estatuto, devemos atingi-las, porque, mesmo não sendo, como disse anteriormente, uma empresa pública ou de economia mista, beneficia-se, talvez, em alguns momentos, mais do que uma empresa da administração direta ou indireta. Deve-se estender também a empresas privadas com contratos públicos ou pretendentes, por meio de concorrência, a contratos de serviços públicos É essa a minha contribuição para o art. 21. Devo dizer, também, para que não venhamos a cair em engodos, em armadilhas legais, pois já tivemos uma série no passado — basta lembrar a Lei do Ventre Livre, a do Sexagenário e até a que chamamos de falsa abolição, que, infelizmente, ainda está consagrada na cabeça de alguns como a redenção do povo negro, na verdade, um dos maiores golpes que a História do Brasil e o poder deste País deu na comunidade negra —, que devemos considerar em tudo o que falei sobre o art. 21 a presença da cota nos diversos níveis de estratificação ocupacional, em todos os casos citados neste artigo. Se não, poderemos cair na seguinte armadilha: "Tudo bem, vocês querem 20%, 40%, até 50%, contrato meia dúzia de empregados no espaço que menos impacta minha empresa e os coloco num nível de importância na estratificação de empregados que bem me convier". Acho que 7 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 esse percentual deve se apresentar em todos os níveis de estratificação ocupacional nessas empresas. Era a observação genérica que tinha a fazer. Gostaria de encerrar minha contribuição falando dos conselhos e colocandome à disposição para outro debate. A política de conselhos no Brasil foi extremamente inócua, principalmente os conselhos da comunidade negra, que monitorei de perto — não ousaria falar dos demais. Todos os exemplos de conselhos, entre os que já existiram e os que ainda existem, seja na Bahia, seja em São Paulo, seja no Rio de Janeiro, não tiveram eficiência. Entendo que a proposta traz como reforço o caráter deliberativo desse conselho. Entendo também que o caráter paritário e deliberativo traz um reforço. Mas, numa política de Governo, até que se instale um conselho... Aproveitando esse caráter deliberativo e paritário, devemos apontar numa política de governo — não estou propondo que se trate da matéria aqui, a importância ou não de se inseri-la é discutível — uma estrutura que venha atender àquilo de que falei no começo: uma política de governo exeqüível com relação ao tempo, aos recursos e que tenha poderes para executá-la, porque, do contrário, cairemos no famoso projeto interministerial de resposta à comunidade negra, que, como todos sabem, não deu praticamente nada. Não me estou referindo às proposições, até porque todas, ou quase todas, foram extraídas da bandeira de reivindicações que o movimento negro discutiu no seio da sociedade. Então, não podemos negar aquilo que reivindicamos ao longo de todos esses anos. É preciso que seja instalada uma agência ou uma secretaria especial que tenha poderes de representação, inclusive ao lado do Executivo, para que se reflita em toda a estrutura governamental e se execute com responsabilidade, no prazo, 8 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 essa política de superação das desigualdades. O Estatuto deve servir como uma sustentação legal necessária à instalação dessa política de igualdade racial. Aqui ficam meus aplausos e louvores à proposta de Estatuto, em que pese ter feito algumas ressalvas e contribuições. Entendo que estamos em um processo extremamente positivo. A política de cotas seria minha última ressalva a esse assunto que paira em todas as salas de discussão sobre ações afirmativas, sobre reparações no País. Temos que tomar cuidado. Não sou o primeiro a falar nisso. A política de cotas deve ser fundamentada. As fundamentações históricas existem. Parece brincadeira, mas existiu política de cotas contra o negro e outras etnias neste País, como o índio. Todo o processo da exploração escravista, na verdade, foi de benefício de reservas de participação na produção que os explorados acumularam, elevando, inclusive, à acumulação de capital, para o País, ainda que perverso hoje, estar entre as dez maiores potências mundiais. Essa reserva de cotas não nominada, não titulada em documento — em alguns casos até titulada, se formos fazer uma análise mais acurada — existiu para esses que praticamente detiveram e detêm até hoje significativamente o poder neste País. A fundamentação para que tenhamos cotas hoje existe. Não entendo que ela possa ser estabelecida como o supra-sumo, o resultado e o carro-chefe das nossas reivindicações, resumindo-se aí todo o equacionamento. Se ela não for entendida assim — faço uma ressalva particular —, poderá até, como diz o dito popular, o tiro sair pela culatra. Se não for entendida, inclusive pela população beneficiária, poderemos estar construindo o estereótipo de uma adjetivação discriminatória, podendo ser sinonimizada como cotista, como elemento 9 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 para discriminar aquele que foi justamente beneficiado; se não beneficiado, reparado — talvez o termo mais correto — por uma política dentro de um projeto maior de cota. A fundamentação existe, mas não pode ser jogada de forma irresponsável, como foi jogada, inclusive por alguns setores do Governo, sem a fundamentação. Parece que é uma dádiva, uma esmola, uma incapacidade de disputar, quando, na verdade, é a derrubada de barreiras pelo impedimento que é posto na trajetória de ascensão do povo negro e dos demais segmentos étnicos marginalizados, aos quais são permitidas no máximo movimentações horizontais. À medida que se ousa qualquer impulso na direção da movimentação e da mobilidade social vertical para sair da sub-base de pirâmide sociológica, as barreiras são dramáticas e, às vezes, assassinas. Muito obrigado. (Palmas.) O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Alberto) - Agradeço a exposição ao Sr. Gilberto Leal e passo a palavra ao Sr. Stânio de Souza Vieira. V.Sa. dispõe de vinte minutos. O SR. STÂNIO DE SOUZA VIEIRA - Sr. Presidente, Srs. Deputados, senhores participantes, boa tarde. É de extrema importância a discussão do projeto de lei de iniciativa do Deputado Federal Paulo Paim, porque trata de uma questão que a sociedade brasileira tentou camuflar ao longo desses 500 anos. O projeto de lei trata de iniciativa que visa, de certa maneira, um olhar mais crítico, mais real, para a desigualdade sociorracial existente neste País. 10 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Segundo dados da Organização das Nações Unidas — ONU, dividindo-se o País do ponto de vista racial, o Brasil dos brancos ocupa 45ª posição, e o Brasil dos negros ocupa 114ª posição. Essa é uma divisão do ponto de vista sociorracial, se deixarmos de lado aquele olhar da divisão apenas socioeconômica. Aí dá para percebermos a desigualdade ou fosso entre negros e brancos no País. Quando discutimos as medidas que estão contempladas nesse projeto, não é no sentido de penalização. Devemos olhá-lo no sentido de observar exatamente o processo de dívida social que o Estado brasileiro tem para com a população negra. Logicamente, merece ressalvas, que têm que ser feitas. Assim como o companheiro Gilberto Leal fez algumas ressalvas pertinentes ao projeto de lei, apresentaremos também algumas ressalvas como representante do Movimento Negro Unificado. No art. 13 do Capítulo II, "Da Educação, Cultura, Esporte e Lazer", o ensino de História Geral da África e do Negro no Brasil passa a ser obrigatório no sistema educacional brasileiro. Primeiramente, é uma medida das mais salutares. Ter-se o ensino da história da África nas escolas é fundamental para o processo de conhecimento, evitando o desrespeito às diferenças. Se o Brasil se diz um país de democracia racial, temos que começar pela inserção da história da África no ensino, já que há aproximadamente 70 milhões de afro-descendentes neste País. A história do negro vem conjuntamente. Ao estudar a história da África, engloba-se toda a história do negro no Brasil. Só temos uma ressalva. Acho que esse processo deveria ocorrer no ensino fundamental a partir da 4ª série, quando o aluno começa a ter melhor compreensão do processo das relações sociais. Achamos, portanto, que o ensino de História Geral da África deve entrar no ensino fundamental, especificamente na 4ª série. Esse é um ponto importante. 11 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Além desse detalhe, seria importante que o Governo Federal também tivesse a iniciativa de elaborar cartilhas, a fim de que viessem a desenvolver o melhor processo de divulgação dessas temáticas, para que houvesse um melhor processo de dinamicidade. Com relação ao Capítulo III, "Do Direito à Indenização aos Descendentes Afro-brasileiros", no seu art. 14 consta: "O resgate da cidadania dos descendentes de africanos escravizados no Brasil...", e o inciso I diz: "A União pagará, a título de reparação, a cada um dos descendentes de africanos escravizados no Brasil o valor equivalente a R$ 102.000,00 (cento e dois mil reais)". Achamos que a reparação tem que existir. Se esse projeto está em pauta é porque realmente é preciso fazer essa reparação, essa compensação ou qualquer outro termo de política de ação afirmativa que se queira colocar. Só que nós, no Movimento Negro Unificado, achamos que, em vez da reparação individual, poderíamos fazer uma contemplação, uma perspectiva de reparação do ponto de vista coletivo, que seria uma reparação social, por meio, por exemplo, da reforma agrária, do processo da titulação de terras dos remanescentes quilombos. Essa é uma iniciativa mais válida e mais abrangente. Estaríamos, assim, contemplando um processo de reparação de fato e de direito. Da forma como está aqui, é mais uma reparação individual. Quanto ao Capítulo IV, "Da Questão da Terra", o companheiro Gilberto Leal fez uma ressalva interessante com relação a observarmos e termos o cuidado nesse processo de reparação das terras remanescentes de quilombos. Achamos que o processo de titulação dessas terras já deveria ter sido feito há muito tempo. Mas na época em que o puseram na Constituição Federal de 1988, talvez pensassem que 12 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 só existisse o Quilombo de Palmares. Quando se deram conta de que eram vários e vários quilombos, de certa maneira, fizeram um processo de retroação. O processo de titulação de terras de quilombos deve ser feito por qualquer comunidade negra rural quilombola. Ela merece sua titulação de terras. É um ponto que podemos observar com mais detalhes. Se não, podemos cair em fazer uma análise do ponto de vista arqueológico, antropológico, histórico. Aí será necessário biólogo, professor de Antropologia, de História, de Arqueologia e, quando se pensar que não, em dez anos, será feita a titulação de, no máximo, uma comunidade . O processo de titulação tem que ser feito, sim, porque entendemos que todas as comunidades negras rurais quilombolas fazem parte desse processo, independentemente se for de 1560, de 1650. Isso realmente vai requerer um trabalho muito, muito minucioso e um certo apoio material, logístico, que o Estado, de certa maneira, diz não ter condições para tal. O Capítulo VI, "Do Sistema de Cotas". Esse é, sem dúvida alguma, um dos pontos mais questionáveis em debate a respeito da questão da política de cotas. A política de cotas traz um processo de redução ao discurso da dívida sociorracial do País. O termo "reparação" amplia esse processo de discussão de cotas. Enfim, reparação, compensação, política de ação afirmativa dá um processo de dinamicidade e de compreensão maior do que é o sistema de cota. O sistema de cota torna sua discussão muito pobre, muito reduzida. O art. 23 fala de cotas para negros nas universidades públicas. Estão estipulados pelo menos 20% de vagas para os descendentes afro-brasileiros. Logicamente, qualquer pessoa que tem olhar de águia, quando entra em uma 13 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 universidade pública de qualquer parte do País, vai observar que os negros são minoria e, dependendo do curso, tornam-se mais minoria ainda. Pois bem. Sempre dizemos que a iniciativa do ingresso de negro nas universidades públicas é importante. Contudo, devemos fazer algumas ressalvas. Quais seriam elas? Que negro queremos abordar do ponto de vista de renda? Por quê? Porque o negro de classe média, embora seja pouco, ele existe e, de certa maneira, está fora do processo de política de ação afirmativa para o ingresso na universidade pública. Deveríamos, sim, olhar para o negro com renda de, no máximo, cinco salários mínimos. A família negra de classe média que ganha de quinze a vinte salários mínimos, com certeza, tem condições materiais de sustentar seu filho em uma universidade durante sua vida acadêmica. Esse é o grande problema. Então, o primeiro ponto: que o sistema se volte para negros que tenham renda financeira de, no máximo, até cinco salários mínimos. Outro ponto de questionamento: como esses negros vão permanecer durante a vida acadêmica? Acreditamos que aí o Estado teria que incentivar bolsas de estudo, através de bolsa de pesquisa e de trabalho, a fim de que ele tivesse uma renda mínima capaz de dar a ele condições necessárias para passar sua vida acadêmica sem ter alguns problemas, inclusive evasão. Se o negro ingressar na universidade, mas não tiver condições de continuar o estudo, a tendência é a evasão. Ele não vai ter dinheiro para comprar livro, para fazer fotocópia etc. E como fica? O Estado deveria ajudá-lo, por meio de bolsa de estudo ou de bolsa de pesquisa com valor médio entre trezentos e quatrocentos reais. Como acadêmico e universitário, temos todo esse processo de conhecimento. Seria necessária uma bolsa no valor de trezentos a 14 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 quatrocentos reais para que esse negro tivesse condições de fazer seu curso em, no máximo, quatro ou cinco anos. Depois de sua vida acadêmica, o Estado continua com essa política. Vamos supor que esse rapaz ou moça negros se tenham inserido num curso como Ciências Contáveis. É necessário que o Estado faça contrato com empresas, mesmo dandolhes benefícios sociais, para que imediatamente ao término do curso superior esses alunos tenham acesso à empresa. Aí, sim, estaríamos fazendo uma política de ação afirmativa, uma política de sustentação capaz de realizar um processo de mobilidade social. Um outro ponto interessante que temos que questionar está no Capítulo VII — Dos Meios de Comunicação — o art. 24 é um dos mais interessantes. Sem dúvida alguma, achamos necessário que negros e negras se vejam na televisão, nos outdoors, nos cinemas. Às vezes penso que estou na Suécia, não no Brasil. Tenho um amigo suíço que diz que vê mais negros na televisão suíça do que na brasileira. É impressionante, mas é verdade. Se sairmos daqui e formos dar uma olhada nos outdoors da W3 Sul, poderemos contar apenas com os dedos de uma das mãos o número de negros e negras neles presentes. De certa maneira, a inserção do negro nos meios de comunicação é importante, porque, além de dar visibilidade e, conseqüentemente, melhorar a autoestima dos negros, dá a eles espaço no mercado de trabalho. Quantos negros e negras são modelos e não têm acesso ao mercado de trabalho simplesmente porque são podados na hora da seleção ou por causa do currículo com fotos? Para que serve isso, senão para se fazer os cortes? Temos que ver esses aspectos. Diz o art. 24, § 2º: 15 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Art. 24. ..................................................................... § 2º Os filmes e programas veiculadas pelas emissoras de televisão deverão apresentar imagens de pessoas afro-descendentes na proporção não inferior a vinte e cinco por cento do número total de atores e figurantes. Acho que poderíamos aumentar esse índice para algo em torno de 50%. Se temos uma população negra de 70 milhões, e muitos deles capacitados para esse tipo de trabalho, por que não aumentarmos essa taxa para 50%? Só a atriz Zezé Motta, por exemplo, tem 300 atores negros e negras que não conseguem espaço, a não ser para novelas de época. Outro ponto a frisar diz respeito a como esses negros aparecerão nas propagandas, porque se for para aparecerem como pedintes não adianta; se for para aparecerem só como — com todo o respeito a essas profissões — jogador de futebol, cantor de pagode, empregada doméstica, não queremos. Queremos, sim, negros na publicidade, mas com papéis de destaque, não como aconteceu numa propaganda de guaraná recentemente veiculada com seis jovens brancos e um negro passando por trás, indo e vindo, parecendo um ioiô. Para que isso? Só para dizer que está passando um negro no fundo? Esse é um pensamento de senzala: fica lá no fundo, passa pelo fundo. É um pensamento de cozinha. Isso nós não queremos. Temos que colocar esses pontos exatamente para fazer essas ressalvas. Queremos, sim, negros na publicidade, mas em posições estratégicas que lhes promovam a auto-estima e a qualificação social. Isso é o que importa. 16 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Para finalizar, sugerimos que se inserisse um capítulo de suma importância: o dos intercâmbios internacionais com os países africanos. Esse capítulo deveria ser inserido nesse projeto porque é necessário garantirmos intercâmbios com empresários africanos. Temos grupos de empresários negros no Brasil. Por que não fomentar o intercâmbio desse grupo com empresários negros africanos? Por exemplo, podemos inserir um parte do Capítulo IX — Dos intercâmbios internacionais. Essa é uma medida muito salutar e entraria nesse processo de política de ação afirmativa. Infelizmente, o tempo já se está acabando, mas quero dizer que embora tenhamos essas ressalvas, consideramos que esse projeto de lei é de suma importância para começarmos a fazer uma análise da dívida social histórica que o Estado brasileiro tem com a população negra. Não podemos olhar para isso com olhar de pedinte. Essa não é uma ação destinada a um pedinte, é apenas o ajuste de uma dívida mais do que clara que o Estado brasileiro tem com a população negra. Isso é importante. O projeto de lei existe, estamos aqui para discuti-lo, analisá-lo e fazer dele realmente um estatuto de igualdade racial e não de desigualdade racial. Obrigado. (Palmas.) O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Alberto) - Agradeço ao Sr. Stânio de Souza Vieira sua brilhante exposição. Antes de passar a palavra ao Sr. Ivo Fonseca Silva, gostaria de registrar aqui a presença da Dra. Maria Aparecida Gugel, Subprocuradora-Geral do Trabalho; do Dr. Jorge Nascimento, do Conselho de Participação e Desenvolvimento da 17 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Comunidade Negra do Rio Grande do Sul; e do Sr. Alberto Sexta-Feira, Vice-Prefeito de Maceió, que nos abrilhanta aqui com a sua presença. Passo a palavra ao Sr. Ivo Fonseca Silva, Coordenador da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão. S.Sa. dispõe de 20 minutos. O SR. IVO FONSECA SILVA - Companheiras e companheiros, boa tarde. Inicialmente, agradeço ao Deputado Paulo Paim a iniciativa, porque vínhamos trabalhando há muitos dias, com objetividade, para chegar a um denominador comum neste País sobre a desigualdade racial. Não sou muito conhecedor da lei, sou mais um observador, mas percebemos que, neste País — como já disse o companheiro que me antecedeu —, sempre fomos proibidos de fazer tudo. As leis deste País foram sempre para nos proibir. Quando tentaram fazer uma lei para que tivéssemos acesso às políticas públicas, elas não tinham aplicabilidade. Tenho até medo — não sei o que acontecerá mais tarde — das conseqüências que teremos daqui para frente se efetivarmos esse Estatuto. A Constituição de 1824 já dispunha que todos são iguais perante a lei. Mas lembro que no ano de sua edição ainda existia escravidão no País. Vejam a contradição da lei. O movimento negro não parou. A negrada não desistiu da luta. Quando nos voltamos para a questão da terra, quando Zumbi começou a dizer que a terra era importante para as comunidades negras, eles fizeram a lei da terra no País, em 1858, para dar condições a quem tem direito à terra. Então, é preciso que vejamos se as leis antigas não estão em vigor, apesar de arquivadas. Às vezes se 18 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 muda uma vírgula na lei, mas o sentido é o mesmo. Precisamos começar a observar essas questões. Não escrevi muitas propostas, só observei algumas coisas. Haverá ainda muitas discussões sobre esse estatuto. Eu me preocupo com o que diz o art. 3º, sobre a constituição dos conselhos. O artigo não diz como o conselho será constituído e como funcionará. Não há indicação sobre a fonte de onde sairão os recursos para o funcionamento desse conselho. Costuma-se dizer que se conselho fosse bom a gente não dava, vendia. E seria caro! Conselho já se deu no mundo, acho que no Brasil todo, mas a gente vê deficiências. Como já disse um companheiro aqui, o conselho tem deficiência na sua funcionalidade. Então, se vamos constituir um conselho, se o estatuto diz que haverá um conselho para gerenciar e deliberar essas políticas — e são as políticas que estamos colocando nos últimos artigos, políticas de igualdade que estamos buscando por meio de cotas —, é evidente que precisa de subsídios para dar respaldo às políticas que estamos reivindicando. É preciso que o conselho tenha condições específicas para funcionar. O companheiro disse que não queremos moeda, e sim igualdade; lembro que essa igualdade tem de ter política, e política de igualdade requer recursos. Então, é preciso dizer como o conselho vai conseguir dinheiro, quem vai deliberar, onde vai ficar, para que possa haver funcionalidade. Acho que deve ser melhorada a redação do ponto relativo ao conselho. Não existe ainda redação específica, por isso não sei se estou correto na minha falação. Vou me ater mais à questão da terra, que é a minha área de atuação. Apesar de os companheiros dizerem que não estou mais na terra, porque já estou até de paletó, eu ainda estou lá. 19 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O companheiro que me antecedeu disse também que precisamos ter cuidado com o conceito de quilombolas. Eu até não atentei muito para o conceito, assim corretamente, mas para a expressão "antigos refúgios". É uma expressão um pouco complicada para nós, porque hoje existem comunidades das quais não se identifica o refúgio dos remanescentes de quilombo. Haverá dificuldade de encontrar esses refúgios. Então, esse conceito tem que ser melhorado. Chamo a atenção também para o estudo da Associação Brasileira de Antropologia, um estudo muito bom sobre os remanescentes de quilombos. Eu acho que este conceito deve também ser um pouco melhorado. Quanto aos arts. 2º, 3º e 4º, como eu disse anteriormente, há no País o INCRA, que ainda hoje faz a titulação efetiva das terras. Se nós não colocarmos neste Estatuto que o INCRA, junto com a Fundação Palmares, fará a devida legalização das terras, teremos problemas, porque essas áreas remanescentes de quilombos estão evidentemente nas mãos de latifundiários. Trata-se de pessoas que chegam a um Município do seu Estado, vão ao cartório e registram as terras dizendo que são suas. Assim, elas estão seguras pela lei da terra. A lei da terra dá segurança a elas, e elas têm todos os seus aparatos. Então, é preciso retificarmos esses artigos, a fim de que o INCRA, junto com a Fundação Palmares, faça a devida titulação. E é preciso também destinar recursos para essas políticas. Não é possível dizer que nós vamos titular a terra sem inserir no Orçamento da União as rubricas para essa finalidade, porque assim vai haver problema de novo. Vão dizer: "Está dizendo aqui, mas não diz de onde vem, não diz quem vai fazer; não diz de onde vem o dinheiro". Então, vamos falar dessa situação. Não sei 20 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 se essas questões também podem ser contempladas. Nós estamos trabalhando no intuito de contemplá-las. Afinal, nós temos enfrentado inúmeras dificuldades, desde que começamos a discutir o problema, em 1995, com a Fundação Palmares, com o INCRA e com os órgãos do Estado. Nós dizíamos que o art. 68 era aplicável. Todos diziam que ele era aplicável, mas os órgãos do Governo diziam que não era aplicável e não diziam quem ia titular nem de onde viria o dinheiro para indenizar. Era isso que se ouvia em quase todas as reuniões. Não se dizia quem ia titular. Só se dizia que era o Estado. E não era dito de onde viria o dinheiro nem como seria feita a titulação. Então, como eu disse anteriormente, nós não podemos de novo fazer o Estatuto sem ter esses cuidados, porque nós vamos ter problemas. Eu posso estar na terceira idade e, assim, não ter mais condição de viajar para discutir o assunto de novo, naquele mesmo ponto em que se diz que o artigo não tem aplicabilidade. É preciso arrumarmos isso. Já temos proposta escrita. Eu não a tenho aqui, mas os companheiros a têm. Acho que ela deveria ser juntada ao projeto, para que seja feita sua implementação, a fim de que possamos ter um bom resultado. Com relação à cota, o que já foi abordado pelos companheiros, quero dizer que estou fazendo um curso em São Luís e tive a maior dificuldade para explicar isso aos companheiros, porque eles achavam que nós éramos racistas, pelo fato de querermos a cota. Eles pensam que estamos dizendo que são inferiores. Tentei explicar que eles só entenderão a cota se entenderem a história do País. Se não entenderem a nossa história, não entenderão o porquê de estarmos querendo a cota. Cheguei a dizer a eles que, no Maranhão, havia uma lei, cujo número não me 21 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 lembro, que dizia que a partir das 9h nenhum negro poderia andar nas ruas. Vamos supor que nessa época a escola funcionasse das 7h às 10h. Eles não poderiam estudar à noite, porque a lei dizia que eles não poderiam andar pelas ruas. Para que a comunidade brasileira entenda a cota, terá de entender o processo histórico do País, um processo que proibiu nosso acesso a todos os setores sociais. Havia também no Maranhão a lei das colônias. Essa lei dizia que, para que eu pudesse visitar o meu irmão, teria de pedir licença ao senhor de escravos. Para matar um boi ou um porco, tinha de pedir licença, para depois dividir a carne com os meus parentes. Para receber uma visita, tinha de avisar o fato com antecedência, dizendo quem era a pessoa que iria à minha casa. Não trouxe o livro, mas tenho essa lei no Maranhão e imagino que ela também tenha existido em outro Estado, porque no Brasil sempre copiam essas coisas. Portanto, acho que a cota tem de ter fundamento, caso contrário seremos criticados. É preciso que fundamentemos esse aspecto e apresentemos à comunidade a razão de querermos a cota. Não somos racistas. Estamos querendo a igualdade neste País, pois nós o construímos. Para que haja essa igualdade, é necessário haver políticas nesse sentido e, ainda assim, seremos discriminados. Citarei um exemplo: todas as vezes que viajo de avião — às vezes eu não pago a passagem, alguém consegue para mim —, alguém me pergunta se sou cantor. As pessoas não me vêm como alguém que luta por igualdade, por direitos, por dignidade e pelo direito de ir e vir. Vêm-me como cantor. Hoje mesmo, eu estava sentado lendo uma cópia do estatuto, cochilei e deixei a cópia onde eu estava. Uma pessoa que se sentou ao meu lado me disse: "Esse trabalho de vocês é muito importante. Basta o Governo dar ordem que acaba o racismo no País". Eu disse: é 22 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 verdade. Quando nós nos despedimos, ele perguntou: "Você é cantor?" (Risos.) Eu me virei para ele, comecei a rir e disse que não. A cultura do racismo neste País é muito grande, é cruel. É preciso que todos nós, negros e brancos, passemos para nossos filhos esse sentimento de igualdade, esse direito de ir e vir, o direito de estar juntos. Dizem que a questão da pele influi, mas não temos isso como racismo. Nós queremos a igualdade. Então acredito que na questão da cota é preciso que tenhamos esse fundamento. Num projeto de lei, não vamos dar conceitos, mas é possível estabelecer uma campanha sobre o porquê da cota. As leis neste País estão enterradas. As leis são apenas melhoradas. Tenho o levantamento das leis que tentavam massacrar os negros. Quase todas têm o número oito e nenhuma delas deu resultado. Então é preciso que arrumemos o projeto e tentemos fazer essa campanha da cota. É necessário que os grandes latifundiários entendam as questões das comunidades remanescentes de quilombos, para que possamos chegar a uma igualdade neste País, para que o Brasil seja um país sem discriminação de cor ou de raça, no qual todos sejamos irmãos. Obrigado. O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Alberto) - Agradeço ao companheiro Ivo Fonseca pela sua brilhante exposição, seu registro de vida. Antes de passar a palavra aos nobres companheiros Reginaldo Germano, Paulo Paim, Fernando Gabeira e Alceu Collares, queria passar a Presidência da Mesa para nossa companheira Deputada Celcita Pinheiro. Agora vamos colocar uma mulher para dirigir os trabalhos. Aqui não há discriminação. 23 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Peço licença, pois tenho que me ausentar, e passo a palavra ao nobre Relator, Deputado Reginaldo Germano. O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Sra. Presidenta, senhores componentes da Mesa, Srs. Deputados e amigos aqui presentes, não farei um longo pronunciamento. Infelizmente, perdi a primeira palestra e não vou poder comentá-la. Quanto à segunda palestra, feita pelo companheiro Stânio Vieira, anotei alguns pontos que já são objeto da minha preocupação, como a titulação de terras dos quilombos. Sabemos que hoje há 2 mil comunidades de quilombos e apenas 50 tituladas. Essa é uma preocupação nossa, para a qual, numa outra audiência pública, quando esteve aqui o Dr. Hédio Silva, já deixamos um caminho apontado que podemos tomar em relação a isso e que fará parte do relatório desta Comissão. No tocante às cotas, sou amplamente favorável ao nosso amigo Ivo Fonseca. Não podemos tratar os desiguais igualmente; temos que tratá-los com desigualdade. Se fôssemos criar somente a cota como solução para o problema de educação, de trabalho ou de ascensão do negro na sociedade, automaticamente ela não conseguiria sobreviver. Mas como a cota é parte de um mecanismo que precisamos montar, ela vai atrair políticas públicas para a educação. Só para se ter idéia, o Ministro Raul Jungmann tomou uma atitude louvável no seu Ministério em relação às cotas: as empresas particulares que prestam serviço para o Ministério do Desenvolvimento Agrário deixarão uma cota para negros e afrodescendentes. Já começamos a notar a busca do equilíbrio na área pública e estamos começando a perceber isso também na área privada, porque o Governo por si só não é culpado pela escravidão, mas a sociedade de maneira geral, pois lucrou e enriqueceu com os anos de escravidão. Só o fato de começarmos a discutir cotas 24 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 já foi uma ação positiva. O Ministro Francisco Weffort, ouvindo-nos conversar a esse respeito, tomou atitude semelhante. Ao chegar à Bahia naquela semana, conversei com o Governador e expus a situação. S.Exa. pediu para que eu me reunisse com o Secretário de Justiça da Bahia para elaborarmos um projeto de lei determinando que as empresas privadas que prestam serviços ao Governo do Estado também sigam a mesma orientação. O sistema de cota é muito importante, embora não seja a salvação da pátria. É o primeiro passo que estamos dando, é a primeira atitude de políticas afirmativas que estamos tomando. O Governo do Estado do Rio de Janeiro sugeriu, e a Assembléia Legislativa aprovou, cota de 40% para estudantes negros nas universidades estaduais. São ações que começam a alavancar uma atitude que deveríamos ter tomado há muito tempo, exigindo que os desiguais fossem tratados como desigualdade. No momento em que pegamos separamos na universidade ou em qualquer outro setor da sociedade 30%, 40% ou 50% para determinada raça, isso é uma desigualdade. Mas como disse o Ivo Fonseca, durante 500 anos fomos tratados com desigualdade. Se agora formos agir com igualdade vamos esperar mais 500 anos para alcançar os desiguais, aqueles que hoje estão excluídos do convívio da sociedade, da educação, da qualificação da mão-de-obra, do trabalho e por aí afora. Acho que as cotas devem existir, mas acompanhadas, como estamos tentando fazer, por políticas públicas. Talvez mais tarde se aprove que 50% das vagas sejam reservadas para alunos oriundos de escolas públicas. Quem sabe possamos valorizar o ensino na escola pública. Tudo isso é resultado da discussão 25 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 sobre cotas, que proporcionou o levantamento de discussões que hoje estamos fazendo. Como os índios já estavam aqui quando tudo começou, é natural que tenham direito à terra. Mas se fizermos a proporção, veremos que eles têm muito mais terra do que os negros, que representam mais de 50% da população brasileira. Temos de fazer alguma coisa. O Estatuto do Índio está para ser aprovado, então devemos esclarecer esses assuntos no Estatuto da Igualdade Racial. Queria fazer apenas esses comentários. Vou deixar que os demais Deputados presentes participem da discussão. Agradeço a todos a presença. As idéias de V.Sas. ajudarão na elaboração do Relatório desta Comissão. Muito obrigado. A SRA. PRESIDENTA (Deputada Celcita Pinheiro) - Como há dois Parlamentares inscritos, faremos um bloco de perguntas e respostas. Concedo a palavra ao Sr. Deputado Paulo Paim. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Sra. Presidenta, inicialmente cumprimento os companheiros Ivo Fonseca da Silva, Gilberto Roque Nunes Leal e Stânio de Souza Vieira. Tenho esclarecido a todos os painelistas que aqui comparecem sobre o fato de que apresentamos esse projeto para ele ser questionado, aperfeiçoado, ampliado e até, se for o caso, derrubado, se entendermos que não havia necessidade de um projeto como esse ser apresentado. 26 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Os capítulos que causam polêmica nos debates são dois: o da indenização e o das cotas. Considero os dois mais importantes de todo o projeto e vou dizer o porquê. Quando falamos em indenização, queremos que o País reconheça que ele tem uma dívida conosco. Repito sempre essa frase e vou fazê-lo mais uma vez: se não são 120 mil reais, que sejam 122 mil dólares, porque não tem preço o que fizeram conosco. Não quero repetir esse discurso, porque todos aqui estão acostumados a me ouvir dizendo isso. Este País tem uma dívida conosco. Não é em dinheiro? Então a dívida é em quê? Para mim o projeto cumpre esta obrigação: tem que haver uma política de indenização aos quase 500 anos de massacre à comunidade negra. Permitam-me repetir uma outra frase de que gosto também: só quem é negro sabe o quanto o racismo existiu ao longo desses séculos. Claro que temos companheiros que lutam conosco, mas quem é negro sentiu na carne, o corte foi no nosso corpo e foi profundo. Em primeiro lugar, faço essa explicação quanto às reparações, que devem ser feitas. Quanto às cotas, estou satisfeito com a explicação dada por todos e com a forma como foi feita a exposição, mas as cotas são importantes. Elas não são o ponto principal, mas estabelecem um belo debate, e devemos ter a ousadia de enfrentá-lo. Parte do movimento negro assusta-se com o debate das cotas. Confesso que aprendi com o movimento negro a importância dessa causa. No momento em que me falaram sobre cotas fiquei hesitante, porque todo cidadão, quando se fala em 27 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 cotas para a comunidade negra, sente-se inferiorizado. Temos que enfrentar o debate e mostrar que neste País existe uma série de políticas de cotas. Por exemplo, um painelista da semana passada nos mostrou que no Amazonas existe cotas para índios nas universidades. Outro convidado — Hédio, se não me engano — mostrou que existem cotas para as mulheres. Por isso as mulheres são inferiores? Está provado que não. Há cotas de até 30% para as mulheres, no caso dos partidos políticos. É símbolo de inferioridade? Não. Anos atrás existia a cota para os filhos de fazendeiros, a tal Lei do Boi, como diziam. Era inferioridade? Os filhos de fazendeiros chegavam às universidades com uma cota garantida. E por que não para nós, sempre marginalizados, a quem não foi permitido acesso a praticamente nada? Até lei proibindo o negro de comprar terra existiu. Havia um decreto que dizia que o negro não podia comprar terra. Quando os imigrantes aqui chegaram e ocuparam o País, a eles foram dadas terras e ferramentas; a nós, a sarjeta. Então, tem que haver uma política de compensação. O debate sobre as cotas por si só dá um belo debate, e temos que travá-lo com a sociedade. Para minha felicidade, todos que aqui falaram no fundo defenderam as quotas. Inclusive disseram que os percentuais são poucos — vinte é pouco, tem de ser cinqüenta. Então, quero dizer que o debate é interessante e mostra que nós — não com a mesma firmeza e convicção — temos defendido uma posição clara em relação às quotas. Mas ao mesmo tempo vi aqui alguns palestrantes — não estou criticando, mas elogiando — contestarem, e aí concordo com eles, no sentido de que a quota não é o debate principal e sim um acessório importante para fomentar, como disse o 28 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Reginaldo, o debate nacional sobre tudo aquilo que precisamos fazer pelo povo negro no Brasil. Vou fazer referência a algo que não foi dito pelos senhores. Uma das coisas que colocamos nas quotas foi a participação do negro na vida política do País. Os senhores não falaram sobre isso. Percebo que o negro, em todos os partidos, é muito mais chamado para votar, para ser cabo eleitoral do que para ser candidato, principalmente aos principais postos. No Congresso Nacional, por exemplo, há muito mais mulheres ocupando o cargo de Deputadas Federais do que negros. Por que não pode haver também uma quota maior que incentive o negro a participar ativamente da vida política do País, de Vereador a Presidente da República? Falo isso porque não houve, por parte dos palestrantes, nenhum comentário a respeito do assunto — se são contra ou a favor do debate, de uma participação mais ostensiva, mais incisiva, mais contundente e mais radical do negro na vida política do País. Quanto aos meios de comunicação, gostaria de dizer apenas que para mim é fundamental a questão da visibilidade do negro na vida pública, seja na televisão, seja em filmes, seja em teatros, seja em propagandas. Gostaria que a criança negra assistisse televisão e visse um advogado, um médico, um professor, um grande político — por que não? —, um grande executivo negro fazendo o papel principal num filme, numa novela ou no teatro. Eram essas as minhas considerações. Estou feliz com as observações dos senhores. Vi que no fundo todos defenderam a idéia de que deve haver uma reparação para a comunidade negra. Entendo que esta Comissão cumpre esse papel fundamental, neste momento da história do nosso País. 29 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Era o que tinha a dizer. Parabéns aos senhores. A SRA. PRESIDENTA (Deputada Celcita Pinheiro) - Com a palavra o Deputado Fernando Gabeira. O SR. DEPUTADO FERNANDO GABEIRA - Sra. Presidenta, vou falar rapidamente, porque ouvi apenas duas intervenções: uma parte da de Stânio e a de Ivo. Mas tenho acompanhado os trabalhos da Comissão e vou apresentar algumas preocupações que tenho. Não sei se elas vão poder ajudar ou não. Entrei na Comissão para discutir a questão racial, que nasceu na esteira desse encontro que houve na África do Sul sobre o racismo, com reivindicações muito precisas surgidas lá, como a da indenização — e agora a reivindicação da quota. Percebo que quase todas as intervenções têm sido uma espécie de inventário das reivindicações do Movimento Negro, extremamente justas — a questão das quotas, da indenização, da maior participação do negro na sociedade. Mas tenho uma visão um pouco mais problemática sobre o assunto. Na minha opinião, ter quotas e entrar numa universidade é excelente, assim como ser galã de uma das novelas da Rede Globo. Na verdade, não acredito muito em raça e em cultura. Acho que se trata de invenção histórica, que apóio. Mas não sou puro, e creio que ninguém é totalmente puro. Penso que essa nossa invenção histórica é importante para obtermos certos direitos fundamentais. No entanto, indago: será que esses direitos serão apenas sindicais? Será que a nossa visão de igualdade racial vai se expressar apenas em algumas reivindicações no sentido de entrar na televisão, de ter quota na universidade? 30 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Temos de levar em consideração algumas reflexões. Uma delas é a seguinte: até que ponto a cultura negra deve influenciar e definir os caminhos da formação da cultura nacional? Quando tivermos um candidato à Presidência da República, uma definição do nosso caminho e perguntarmos o que é o Brasil, quais os valores, as qualidades que a cultura negra quer que a visão brasileira tenha? Temos de desenvolver essa perspectiva — o que é muito importante —, porque na verdade os negros, no seu movimento, criaram sua identidade. Essa identidade, que significa dar sentido ao que você faz e ter uma perspectiva, é algo fundamental. Então, vamos entrar também na TV Globo, mas ela é uma fábrica de identidades, assim como Hollywood e a indústria. É necessário que se tenha uma perspectiva identitária que não seja apenas resistente, mas que apresente um projeto para a sociedade, abordando inclusive as questões que os racistas valorizam e as que eles rejeitam. Quando começamos a analisar isso, vemos que temos e devemos desenvolver a criatividade, a espontaneidade, a sensualidade, valores que eles rejeitam. Um discurso racista sempre bate nesses pontos. Na minha opinião, a nossa reflexão deveria funcionar não como um sindicato, somente com reivindicações precisas, mas também como uma perspectiva de cultura. Penso também — é tema do meu estudo, do meu trabalho — que o Brasil não é um país puro, não é um país preto e branco. Pelo contrário, é um país de múltiplas cores, de mestiços. Eu sou um mestiço cultural, um mestiço racial. É necessário que examinemos o que está havendo no País. Quando um branco cruza com uma negra, ou vice-versa, a pessoa que nasce sempre passa a ter a cor da raça considerada inferior. Temos de entender esse mecanismo existente 31 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 nos Estados Unidos e também no Brasil. Precisamos saber como será o nosso relacionamento com essa grande quantidade de mestiços existentes no Brasil, com essas zonas indefinidas. Se examinarmos bem o Movimento Negro, veremos que ele também é produto da globalização. Ele é a volta às raízes africanas, mas ao mesmo tempo tem-se nutrido de uma série de elementos da globalização. É uma relação com o mundo dos negros para melhorar a sua correlação de forças; os índios e os brancos também têm isso. Na década de 70, por exemplo, Bob Marley e a música jamaicana foram incorporados e aceitos como elementos da cultura negra, e eles o são. Hoje estamos nos referindo à questão da tática, que é emprestada do Movimento Negro americano. Quer dizer, o Movimento Negro é transnacional. Ele tem uma perspectiva transnacional no mundo em que as culturas estão se relacionando, misturando-se ou se chocando. Então, é necessário que exista algo no projeto ou na definição, ou que discutamos isso com mais calma algum dia, para iluminar todas essas reivindicações pontuais, que eu aprovo; estou com elas e não abro. Aprovo a questão das quotas e o fato de irmos para a TV Globo. Só que não acredito muito nisso estrategicamente, porque as mulheres fizeram isso, foram à luta, têm a sua quota , o seu lugar e tal, mas o mundo se feminilizou muito pouco. Tanto que estamos em guerra, bombardeando o Afeganistão e outras coisas. Talvez valesse a pena discutir a posição do Movimento Negro e outras. Um dia faremos um debate sobre a mestiçagem cultural no Brasil e como vamos trabalhar em conjunto com o branco e o negro, mas também com uma série de nuanças que devemos integrar ao nosso projeto. Para isso é necessário que a 32 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 identidade e a cultura negras também proponham pelo menos uma visão de conjunto. Essa é a observação que faço, para examinarmos com tempo. A SRA. PRESIDENTA (Deputada Celcita Pinheiro) - Vamos passar a palavra aos expositores. Com a palavra o Sr. Stânio de Souza Vieira. O SR. STÂNIO DE SOUZA VIEIRA - Primeiramente, agradeço aos Deputados Fernando Gabeira, Paulo Paim e Reginaldo Germano, Relator desta Comissão, os questionamentos. Foram discussões profícuas e interessantes para o processo de socialização do conhecimento. Há muitas indagações importantes, mas vamos destacar algumas. Vou me referir inicialmente à pergunta formulada pelo Deputado Fernando Gabeira. Discutir a questão racial no Brasil é realmente um grande embate. Ao longo desses 500 anos, ou nos 112 anos após o período escravista, foi construído um processo de discurso de democracia racial muito forte, no sentido de que o brasileiro é um povo único, cordial, altamente festivo, enfim, que aqui não existem essas coisas, que isso só acontece lá — e o "lá", geralmente, eram os Estados Unidos. Ouvimos esse discurso sobretudo nas décadas de 30 e 40, principalmente o de Gilberto Freyre, em "Casa Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos", em que há exaltação da mestiçagem brasileira. Ele, contudo, não olhava as conseqüências do processo racial, ou seja, como foi feito o processo racial no País. Sempre dizemos que a mestiçagem no Brasil foi feita através de uma falocracia, que é nada mais nada menos do que um jogo de estupro. Isso mostra o 33 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 processo de violência com que foi construída a mestiçagem no Brasil e não aquela visão idílica de Gilberto Freyre e de muitos outros. Sempre quando se trabalha o processo de políticas de ação afirmativa para a população negra há vários argumentos. Pude perceber que um dos mais fortes diz respeito à questão de quem é negro no Brasil. Sempre aparece esse discurso. O interessante também é que a Justiça Penal sabe quem é negro; a polícia sabe quem é negro; o diretor de telenovelas sabe quem é negro; os diretores de publicidade sabem quem é negro. Quando se dá um sentido positivo à questão, sempre tentam colocar certos argumentos de empecilho à luta negra. Há esse detalhe. De certa maneira, não se trata de saber quem é negro. Logicamente, o Brasil é um país de mestiços, mas na hora do conflito todos sabem quem é negro. Aqueles que se aproximam mais dos traços negróides sabem realmente o que é isso, conforme disse o Deputado Paulo Paim. Um outro ponto diz respeito à inserção do Movimento Negro no processo de globalização. O Movimento Negro faz parte de um movimento social. Quando fazemos parte de um movimento social ou de qualquer orquestração da sociedade civil, ainda mais de uma sociedade democrática, estamos inseridos no espaço de questionamentos, de diálogos e de embates políticos. O que fomenta a luta do negro neste País é exatamente a revolta em razão do esquecimento que este Estado nos impôs. Essa é a nossa maior motivação, independentemente do processo de globalização. Se fazemos parte deste movimento social, temos de estar inseridos nesses contextos, logicamente defendendo as nossas idéias, os nossos pensamentos ideológicos. O problema da política de ação afirmativa, a questão da 34 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 quota, citada pelo Deputado Paulo Paim, sem dúvida alguma está ressuscitando questionamentos diários. Quando afirmamos que no Brasil não há racismo, levamos um susto ao discutir essa questão, ainda mais quando se trata de medidas que visem tocar nas feridas e seqüelas resultantes do racismo. Temos de lembrar que o Movimento Negro, no Brasil, está saindo da fase do discurso para o da ação. Enquanto estávamos discutindo, era tolerável. Agora estamos partindo para a ação contra o racismo. A sociedade agüentava as nossas discussões. Agora surge o conflito, pois saímos do nosso lugar. A quota não é o fator mais importante, mas está inserida nessa política de ação afirmativa, que visa retirar privilégios e proporcionar igualdade de oportunidades. Como disse o Deputado Reginaldo Germano, não podemos tratar o desigual, em uma estrutura social, de forma igual. É como se colocássemos dois corredores: um corredor para os maratonistas profissionais e outro apenas para os amadores. Quem vai ganhar? Quem tem melhores condições? Logicamente, o corredor profissional. Quando a ONU afirma que o Brasil dos brancos ocupa a quadragésima quarta colocação e o Brasil dos negros ocupa a centésima décima quarta colocação, algo está por detrás disso. É por isso que medidas como essas são importantes, e questionamentos também são interessantes para nos organizarmos melhor. O SR. DEPUTADO FERNANDO GABEIRA - Talvez eu não tenha me expressado bem. Não estou questionando o espaço que o Movimento Negro está ocupando concretamente no momento, mas o fato de não ocupar um espaço maior ainda. Quando falei de miscigenação e de mestiçagem, evidentemente tinha 35 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 consciência de como o processo histórico foi feito no Brasil, baseado na violência dos senhores de escravos contra as mulheres, as escravas e as negras. Hoje em dia o processo de miscigenação não passa mais necessariamente por esses caminhos violentos do passado. Nos Estados Unidos, o número de casamentos intra-raciais aumentou, de 70 para 91, de 310 mil para 994 mil. Para pais brancos e negros, o nascimento aumentou de 8.700 para 45 mil. Entre os adolescentes, 71% gostariam de ter uma raça diferente. Já existem jornais nos Estados Unidos chamados de "a voz inter-racial". Há pessoas que são produto dessa mistura, fruto do processo de escolha e não do processo violento que havia no passado. O processo de globalização, ao mesmo tempo em que fortalece a afirmação de identidade, como a identidade negra, está provocando e produzindo inúmeras novas mestiçagens e circunstâncias raciais que não se limitam ao preto e ao branco. Esse processo está acontecendo também no Brasil e vamos ter de tomar consciência dele. Não é igual ao anterior, dos senhores de escravos que violentavam as negras ou as mantinham nessas circunstâncias. O processo atual é bem diferente. Falei da ocupação do espaço partindo de uma visão crítica. Não acredito que o senhor ache realmente que, se o Movimento Negro for para a televisão ocupar o espaço que ela precisa dar a ele, tudo estará resolvido. Como negro, ele continuará a produzir uma série de identidades e de ilusões sobre a nossa realidade, que estão presentes. Ele vai, como negro, entrar na máquina de produção de identidades, o que acaba sendo prejudicial para nós também. Não quero dizer que o negro não deverá trabalhar na televisão, mas deve fazê-lo com uma visão crítica. Essas etapas 36 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 são uma visão crítica. O mesmo ocorre com a entrada na universidade sem uma visão do que ela seja; não só de brancos, mas burguesa. Isso me preocupa. O SR. STÂNIO DE SOUZA VIEIRA - Em relação a este assunto, concordo com a questão das estratégias de luta. Ingressamos na universidade, na mídia, e depois? Logicamente, nas relações sociais há o processo de questionamentos futuros. O que vai acontecer depois? Isso é natural. Temos de questionar a condição em que se encontra a população negra neste País. A política de ação afirmativa não visa ao processo de universalização. A partir de agora está todo mundo tranqüilo... Não é bem assim. As transformações se dão a médio e a longo prazo. É um processo de mobilidade social. No bojo de tudo isso há as conseqüências, que têm de ser apresentadas. E você ressalta a questão das estratégias de luta. Será que não vai haver de certa maneira esfriamento nas tentativas dos movimentos sociais negros de continuar lutando pelos seus direitos sociais, civis e políticos? Algo tem de ser feito para diminuir essa disparidade sociorracial. A miscigenação é universal. Não há qualquer ser puro no mundo. Nem os nórdicos são puros. As teorias do genoma explicam que pode ser encontrado em um nórdico o gene de um africano. A questão é de fenótipo. Nesses traços é que a situação pesa. Volto a dizer: o assaltante, quando o rouba na rua, teoricamente não quer saber se você é filho de um Senador ou de um sapateiro; ele quer assaltá-lo. O mesmo não ocorre em relação ao racismo. A pessoa, quando olha a sua foto no currículo, não vai querer saber se o seu pai ou a sua avó são brancos. Ele sabe apenas que você é negro e o penaliza ali mesmo. Não quer saber dos seus descendentes, mas das suas característica: o seu cabelo, a sua pele. Essa é a 37 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 grande questão da miscegenação. Ela é, em si, algo bom e necessário até para o processo de reposição humana. A SRA. PRESIDENTA (Celcita Pinheiro) - Com palavra o Sr. Gilberto Roque Nunes Leal para as suas ponderações. O SR. GILBERTO ROQUE NUNES LEAL - Inicialmente, agradeço-lhes, encerrando a minha participação. Pude ouvir e aprender — é um eterno e constante aprendizado — um pouco sobre essa luta por uma sociedade mais justa. Gostaria também de fazer alguns comentários a respeito do que disseram os Deputados Paulo Paim e Fernando Gabeira. Sei que todos nós, no fundo, estamos convencidos de que quotas são importantes e de que devemos debater a questão das desigualdades no Brasil. Entretanto, o que eu quis grifar, talvez de forma um pouco diferente, indo além da afirmativa, é que, se me perguntam se sou a favor ou contra a quota — nesse questionamento que tem sido feito particularmente a mim, pela imprensa —, eu simplesmente não respondo à pergunta da maneira simplória como ela é feita. Primeiro, digo que sou contra a forma como o Governo está estabelecendo quota. Ela é uma fuga ao debate, Deputado Paulo Paim. Parece-me que há consenso entre nós, que todos concordamos com quota e consideramos esse ponto importante. O debate está instalado entre esses atores reivindicatórios dessa sociedade, dessa justiça social. O Governo, ao se antecipar, em alguns momentos, e responder pontualmente sobre o que seja uma política de quota na universidade, na empresa, no INCRA etc., ou até mesmo no caso do Rio de Janeiro, inibe o debate e foge da discussão de um projeto plural, complexo, necessário à superação das desigualdades no País. 38 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O Deputado Reginaldo Germano diz que existem facilidades e até indicação, ao se dirigir ao Governo da Bahia, e orientação para discutir a instalação de políticas de quota. Esse mesmo interesse, certamente, não houve por parte do Governo Federal e não haverá por parte daquele Governo Estadual que não tiver uma visão do que seja a transformação desta realidade no País, e não estará disposto a discutir. Quero dar alguns exemplos, para não ficar apenas pontuando e reforçando até o exercício da musculatura retórica, o que não é o meu interesse. Na última Constituição foi colocado claramente — acho que esta Casa é quem mais sabe sobre isso — que em dez anos o analfabetismo deveria ser superado, e isso não ocorreu. Essa discussão tem de voltar à mesa. Isso não vai ocorrer com oferta de política de quota, de um lado, e aplauso ou mera crítica, de outro. Por isso fiz essa proposta — depois vou apresentá-la — no sentido de que tem de haver nesse estatuto um artigo que diga que o Estado brasileiro tem de estabelecer uma política de promoção. E aí vai, cada vez mais, o meu grifo a respeito da diferença de apoiar quota, de como fazê-lo e de como entrar no seu debate — talvez, em invés de apoiar, como entrar no debate de quota, estendendo-o a coisas mais efetivas. Se pudermos fazer uma correlação entre alguns instrumentos, que algum dos senhores devem conhecer, de análise de projeto, de análise de resultado... Uma política de superação de desigualdade tem de atender à efetividade, à eficiência e à eficácia. O que quero dizer com isso? Efetividade tem de dar produto? Sim. Se pontuarmos apenas um desses itens, não conseguiremos analisar o resultado, 39 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 porque a efetividade diz apenas que produziu algo qualitativa ou quantitativamente — isso não está em jogo . Se você tem eficiência, produziu um efeito, e ele pode até ser positivo. Agora, a eficácia, que é o mais nobre desses três elementos analíticos de resultado, tem de produzir o efeito desejado. É diferente. É nesse debate que o Governo tem de entrar, para instalação de uma política nacional. E o estatuto não tem a obrigação de responder sobre isso. Está muito claro. Acho até que há avanço na concepção de conselho, quando se diz que ele tem de ser paritário e deliberativo. E quem implementa? Quem é o responsável pela implementação? Onde é que vão estar os elementos analíticos que monitorem o resultado disso? Onde é que isso está colocado no tempo? Tivemos trezentos anos de políticas benéficas para a sociedade branca dominante neste País. Isso tem de estar no tempo, não pode estar perdido. Tudo bem, vamos instalar uma política de quotas. Para quê? Qual é a concepção sobre essa política de quotas? Ela almeja um resultado? Ela almeja um produto final? Ela tem os elementos de controle social para que a acompanhemos? Então, ela não está dentro de um projeto de superação das desigualdades. Acho que é fácil, até porque nessa história de globalização e seus elementos ideológicos apresentados no mundo inteiro... Não estou falando da globalização a que se reporta o Deputado Fernando Gabeira, porque aí entendo a internacionalização das relações interpessoais, internacionais etc., mas dessa política de globalização, que tem o neoliberalismo como o seu grande carro-chefe ideológico. É muito fácil. Se chegamos hoje na mais extrema-direita deste País, opressora, beneficiária dos produtos sociais do Brasil... Alguns sociólogos ainda 40 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 dizem que este País tem, digamos assim, ilhas de pobreza. Acho, ao contrário, que tem, na verdade, mares de miséria e ilhas de riqueza. Essa é a realidade fotográfica do Brasil. Se formos dialogar com alguns desses neoliberais, que já incorporaram o discurso mais avançado possível, porque sabem que esse é o caminho para agradar à comunidade, certamente estará lá uma política de quotas, como outras políticas, como outros benefícios sociais. Agora, instalar uma política de transformação real e profunda na sociedade ninguém quer. O Sr. Fernando Henrique Cardoso não quer. Quando estávamos em Durban, na Conferência da África do Sul, vimos nos jornais, com surpresa, a notícia de que foi criado o tal conselho contra a discriminação. Qual é o caráter desse conselho? Que verba existe para sua instalação? Quem vai implementar uma política? Qual é o poder de deliberação? Trata-se de conselho composto, paritário, mas todos têm o mesmo poder de voto e de veto? Há uma série de elementos que precisariam ser discutidos. Quero que o Governo me responda se está à disposição para enfrentar o debate da superação racial no Brasil, dentro de um projeto que envolva os outros elementos de saúde, educação, moradia, desemprego. Isso não está contido meramente como superação para a quota. Pode até dar algumas respostas imediatas. Então, o meu desafio é esse; e nego, dentro dessa preposição. Isso não quer dizer que eu rejeite o que está sendo apresentado, é claro. Se existem pessoas com fome hoje, vamos esperar que haja o que comer daqui a dois meses. Agora, isso não nos compra, não deve ganhar a nossa cabeça. E não se deve dizer: é ou não é quota? O Ministro da Educação quer ou não quer. Não é isso. Coloco os Srs. Ministros à disposição para analisar e apresentar um projeto. 41 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Participei da pré-conferência do Governo, no Estado do Rio de Janeiro. Apenas houve a abertura da conferência, para que nós mesmos continuemos discutindo o assunto entre nós. O Governo, representado por quem estava lá — o Embaixador Gilberto Sabóia e outros — não apresentou nenhuma proposta de confronto. O que havia era a nossa, que tenho aqui comigo. No encontro anterior, entre organizações do Movimento Negro, nós discutimos sobre ela e a elaboramos. O discurso do Governo brasileiro, feito pelo Ministro da Justiça, em Durban — estávamos numa relação diplomática, trocando informações —, foi perfeito. Não me nego a dialogar com nenhum Governo, a não ser que ele esteja com uma arma na mão; aí vai ficar difícil. Acho que o diálogo é diplomático. Do ponto de vista do diagnóstico, Fernando Henrique Cardoso é um primor! Ele concorda que existe racismo no Brasil. Até diz que tem um pé na cozinha. Do ponto de vista de efeito, é concordante no diagnóstico, mas, do ponto de vista da causa e de encontrar a solução para tal, quero ver ele concordar. Então, nesse mesmo documento, no discurso oficial, em Durban, fez um diagnóstico perfeito, e até andou defendendo bandeiras. Mas, quando lemos, nesse mesmo documento, nas entrelinhas, está dito que o Governo Fernando Henrique é diferente dos outros, que conseguiu superar essa questão. Mas superar como? Do ponto de vista retórico? Isso já se tornou escola no Brasil. Respeito a participação do Deputado, que foi lá. Ele cumpre relativamente bem o papel de ir até lá questionar o Governo, e encontra rapidamente essa resposta. Mas vamos discutir o Estado da Bahia, a cidade de Salvador, onde 80% dos empregados são negros. Há alguma política para essa operação? Não adianta uma quota. Então, essa é a questão que eu gostaria de pontuar. 42 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Para não tomar mais o tempo dos senhores — sei que o companheiro ainda vai fazer suas considerações finais —, dirijo-me ao Deputado Fernando Gabeira. Creio que V.Exa. está me chamando para um debate mais complexo, Deputado Fernando Gabeira, sobre essa questão de mestiçagem. Já que V.Exa. tocou nesse ponto, vou fazer uma provocação. Creio que é um desafio, em um país onde as relações têm-se aproximado de forma até mais maneira, em uma temperatura mais branda. Primeiro, esse caminho não supera o racismo no Brasil. Sei que V.Exa. não disse isso. Por isso estou dizendo que o tempo é curto para o debate. Por outro lado, a mestiçagem que também gostaríamos de ver é a de aproveitamento e de participação nos benefícios sociais; da justiça da distribuição de renda; da questão da terra; da presença nas escolas; de uma educação que realmente seja libertadora e não para produzir serviçais para a sociedade; da questão cultural, como V.Exa. disse, pois queremos que a cultura seja mista, mestiça — qualquer nome que se queira dar a ela —, mas não queremos a intolerância. Já discutimos bastante. Se considerarmos a postura democrática de não fugir do debate, devemos discutir com o Deputado Reginaldo Germano, que pertence a um segmento religioso; que, sabemos, tem problemas; que, sabemos, detém uma concessão pública. O estatuto, inclusive, estabelece muito bem — precisamos até examinar melhor, não tive oportunidade de analisar esse item —, que é necessário democratizar esse instrumento. V.Exa. cita a Globo. Precisamos democratizar. Em termos de direito de resposta, a Record vai me dar o mesmo tempo de que preciso para responder? Já até fiz esse desafio, em algum momento, para me darem direito de resposta aos ataques que são feitos, mas não aceitaram. Peguei, recentemente, 43 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 o jornal, Deputado Reginaldo Germano, até posso lhe mostrar, está em casa — sempre leio o jornal, porque tenho essa curiosidade de saber o que pensam todos, inclusive aqueles que se opõem ao que penso —, e está lá o mesmo ataque. Entendo a sua posição, talvez seja uma postura diferenciada, discordante, divergente, dentro da igreja. Mas, quanto à questão da mestiçagem — aí voltando ao Deputado Fernando Gabeira — queremos em tudo. Se estamos aproximando-nos uns dos outros nas relações interpessoais, vamos também aproximar-nos dos que se aproveitam dos benefícios e daqueles que não os têm, dos que se consideram intolerantes com relação a determinada prática religiosa e daqueles que são os não-tolerados. É esse o desafio que teremos de enfrentar, Estou sempre disposto a esse debate e a essa posição. Obrigado. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Agradeço a V.Sa. a participação. O SR. DEPUTADO FERNANDO GABEIRA - Gostaria de fazer uma pequena réplica. Concordo com toda a sua intervenção, mas, quanto à questão da televisão, eu apenas quero ressaltar que, quando se diz democratizar, é necessário que não pensemos só na entrada do negro em algum elenco. Há realmente que se questionar o conteúdo que estão produzindo, porque, senão, vai-se incluir um negro no elenco para continuar produzindo as bobagens brancas que estão saindo. O SR. GILBERTO ROQUE NUNES LEAL - O movimento negro já saiu. É propositivo. Por isso estou dizendo que o Governo brasileiro tem que enfrentar o debate. 44 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Agradeço a intervenção e, interrompendo temporariamente as considerações finais dos senhores palestrantes, passo a palavra ao Deputado Alceu Collares, que estava inscrito. O SR. DEPUTADO ALCEU COLLARES - Eu estava na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação porque estavam discutindo o voto eletrônico, que é matéria importante. Por isso, fui obrigado a me afastar desta Comissão. Quero dizer que ouvi parte de cada participação. Primeiro, agradeço aos que estão participando destas audiências públicas, porque estão trazendo a sua contribuição de anos e anos de experiência acumulada. Esta é a primeira vez que nós, Parlamentares negros, conseguimos — creio que até avançamos, porque antes não nos permitiam —, uma comissão para estudar essa matéria. Não estou dizendo que as pessoas estão aqui cheias de ideais, querendo fazer uma revolução da manhã para noite, nem os companheiros fizeram isso, porque se sabe que ou se faz a ascensão social da raça negra pacificamente ou, então, temos que pegar em armas para tentar concretizar as nossas idéias. As duas coisas são muito complicadas. Vejo o idealismo, o sonho, a utopia que plantamos na nossa alma, na nossa consciência, na nossa mente, na tentativa de, quem sabe, resolver a questão. O companheiro das artes, queria 50%. Se tivermos 25%, vamos, depois, para 30%, para 35%, para 40%. Nada vem de graça para ninguém, principalmente para o negro. O sistema capitalista é darwiniano, e como nós, desde a origem, estamos tendo sempre oportunidades negativas, temos dificuldade de chegar no processo para o grande confronto da competitividade, da concorrência, em número capaz de fazer a nossa presença. 45 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Então, quero dizer ao Deputado Paulo Paim, que está aqui nesta luta, que avançamos muito. Há poucos dias, o Moura, hoje, Presidente da Fundação Palmares, esteve aqui e disse: "Houve uma época aqui que só no PTB, quando o Collares era Líder, eu tinha um gabinete para me dar papel, que me deixava telefonar". Então, estamos tentando. Já são quase 20 anos, e hoje temos uma Comissão que vai examinar a questão pela primeira vez no Parlamento brasileiro, onde dizem que no Brasil há uma democracia racial; estamos tentando os passos possíveis. Eu até diria ao Presidente Saulo Pedrosa que deveríamos formular os convites, encaminhando a proposta do companheiro Paim, para que as pessoas viessem aqui não nos dizer como temos que legislar, porque se supõe que essas pessoas aqui tenham algum conhecimento em técnica legislativa, mas trazer os fatos que vivenciam, a experiência que acumularam: ele, na terra, nos quilombos; o amigo, no seu setor; o outro, no mundo dos artistas, esses talentos que estão submetidos ao silêncio doloroso e desastrado, aspirando, mas não tendo condições de ascensão. Faço apenas esta intervenção, no sentido de que esta Comissão deu um passo muito avançado, e ela é tão pouco que V.Sas. estão vendo a freqüência aqui. Há meia dúzia de heróis, de renitentes, de combatentes, daqueles que alimentam ainda a esperança de que um dia virá. Mas não vem de graça. Temos de conquistar. Aqui está um vendedor de laranja, companheiro. Passei dissabores dos mais violentos para chegar aonde cheguei. Esteve aqui também outro amigo, que disse: "Olhe, chegou a Governador, uma das primeiras presenças no rádio e na televisão". Eu disse: "Eu fui um negro eleito aqui". Nunca neguei. Eu podia, nesse negócio da mestiçagem, dar uma disfarçada, porque alguns brancos dizem assim: "Collares, tu 46 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 não és negro". E uns negros pretos dizem assim: "Tu não és negro também. Tu és mulato". Temos problemas nossos. Na minha eleição para Governador, um negrão disse assim: "Tu achas que vou votar em um negro desses?" Vejam que coisa! Mas são realidades nossas. Se nós chegamos aqui é porque temos uma capacidade de luta monumental. Se nós chegamos aqui, se tivemos um mínimo de ascensão social — não somos a regra — nós, exceções, somos algumas raríssimas e às vezes até dolorosas exceções. Quando chegamos, chegamos com as mãos sangrando para subir o muro da existência. Mas creio que o Deputado Paulo Paim e esta Comissão estamos desenvolvendo aquilo que nos é possível, plantando, e os senhores, tenho dito, são, daqui para frente, uma espécie de auditoria voluntária. O nosso Presidente está incumbido de, daqui por diante, fazer chegar a cada um todas as audiências públicas, todas as sugestões, para que, depois, por escrito, por e-mail ou aqui comparecendo, os senhores possam dizer que consideram que o caminho que estamos tomando não é o melhor. Não podemos desperdiçar, não nos podemos silenciar sobre a experiência que cada um tem. Temos de nos solidarizar, nos confraternizar, porque, também, entre nós, há os defeitos do branco, muito individualista, muito imediatista, muito personalista, muito "euismo". É muito bom estarmos discutindo nesta Comissão, Deputado Paulo Paim. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - O discurso patético, emocionante, do Governador Alceu Collares não aconteceu com perguntas, mas apenas com sugestões. Retorno a palavra agora ao Sr. Ivo Fonseca Silva, para suas considerações finais. 47 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Posteriormente. O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - O companheiro Gilberto se referiu a mim, para não deixar passar. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Posteriormente, nas considerações finais, V.Exa. poderá fazer suas observações. Com a palavra o Sr. Ivo Fonseca Silva. O SR. IVO FONSECA SILVA - Obrigado pela iniciativa. Estamos começando outra vez; cada dia há outras atividades. Quero dizer ao companheiro Paulo Paim que fiquei muito emocionado quando ele disse que o racismo quem sentiu e sente somos nós, negros. Isso é verdade. Sente-se isso todos os dias. Eu sempre digo isso também. Quando se fala sobre a questão das candidaturas aqui, da porcentagem, eu fui candidato duas vezes a Vereador. Na primeira vez, os colegas perguntaram se eu ia cortar o cabelo para ser candidato. Eu disse: "Não, o cabelo faz parte do meu corpo. O partido, a comunidade estão decidindo que sou candidato, por isso sou candidato. Meu cabelo não tem nada a ver com eu ser candidato ou não". Mas perguntavam: "Você não acha que o juiz vai mandar você cortar o cabelo?" Vejam só o que quero dizer com isso. O sistema brasileiro fez nós ficarmos com vergonha de nós mesmos. Quando o companheiro fala da mestiçagem, é mais fácil eu dizer que sou mestiço com mulato do que sou um negro, porque o sistema fez eu ter vergonha de mim mesmo. Quando se diz: "eu vou votar num preto desses?", isso, para nós, dá medo. Quando perguntam se vou ser candidato a 48 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Deputado Estadual, eu respondo que sim, mas, no fundo, estou com medo. Na cara da pessoa, eu digo que vou ser candidato a Deputado estadual. Mas, no fundo, estou com medo. Por quê? Porque o sistema fez isso, e faz. Diz que não somos capazes, que não temos condições de ser candidatos, de estar nos poderes mundo afora. Então, creio que esse ponto dá iniciativa para nós. Os partidos não discutem, não querem discutir essa questão racial. Não sei qual vai ser o choque que vão receber, quando for estipulado que terá de ter tantos negros candidatos. Não sei como vai ser isso. Talvez, até, na próxima eleição ainda não esteja funcionando, não sei como vai ser. Mas acho louvável. Também quero dizer que sou favorável a todas as iniciativas aqui do Estatuto. Apenas tenho medo, porque venho observando os operadores de direito, como estão chamando agora — é que uma lei derruba outra. Por causa de uma vírgula, aquela lei cai e é a outra que está em cima. Então, é esse o medo que tenho. Qual é a garantia que tenho, futuramente, de que esse Estatuto que estamos fazendo nos segura mesmo, dá respaldo para nós, nós temos mais voz ativa. Eu queria ter essa segurança. Não é pelo que está aqui. É por essa marafunda de leis. Nós fazemos uma lei aqui, mas a outra diz que não. Isso derruba, porque existe o que acusa e o que defende. Se não existisse isso, seria bom. Então, ao fazermos esse estatuto, tenho esta preocupação. Mas é louvável. Hoje eu já estou defendendo, discutindo, nos grupos, nas escolas, nas comunidades. Nós temos que ser a favor da política afirmativa das cotas, e digo o por quê. Como expliquei, nós somos a favor da cota por causa disso, disso e disso — vou dando os detalhes. Então, estou maravilhado pela iniciativa. Acho que vamos dar mais um passo. Já tivemos "n" dificuldades, mas os senhores que já estão nesta Casa há uns dias 49 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 estão deixando registros para nós. Anteriormente, não tínhamos isso, tínhamos dificuldade de encontrar documentos que nossos próprios delegados estavam escrevendo. Hoje, não temos mais toda essa dificuldade. Por exemplo, se eu chegar nesta Casa hoje em dia, vou procurar os arquivos e poder dizer: eles foram as pessoas que iniciaram. Os senhores iniciaram essa discussão, e eu vou ter subsídio daquilo que os senhores escreveram. Então, para nós, isso é louvável. Acredito que vamos ter um bom resultado e vamos ter um País diferente. Espero que o Sr. Fernando Henrique Cardoso tire o pé da cozinha e bote na sala mesmo, para que isso aconteça com a dignidade correta. Obrigado. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Muito obrigado pela participação. Para concluir essa primeira parte, passo a palavra ao Deputado Reginaldo Germano para fazer seus comentários finais. O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, nós trabalhamos com equilíbrio para construir um estatuto que, verdadeiramente, não venha a ser objeto de discórdia nem de discussão na sociedade em relação aos nossos direitos. Não queremos entrar no direito de ninguém, queremos apenas assegurar os nossos direitos. Tive a felicidade de ser convidado pelo Consulado Americano para visitar, nos Estados Unidos, principalmente as universidades em que atuam mais os negros. Fui sedento por esclarecer uma situação: por que o negro americano é estrela no cinema? Por que os filmes americanos, principalmente nos últimos tempos, traz o negro como figura principal? Saí do Brasil pensando que lá havia uma cota para 50 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 filme. Quando lá cheguei, meu queixo caiu. Não havia uma cota de 40%, 30%, 10% ou 2% de filmes americanos reservada para atores negros. Como seria feito então? Vi que Washington, Capital, e Atlanta, duas cidades por onde andei, possuem uma representatividade da raça negra como a Bahia. Como isso acontece então? Para que uma empresa cinematográfica ali se instale, ela tem que garantir uma cota, não há uma lei a ser obedecida. Caso isso não aconteça, como a representatividade da raça negra naquele Estado é muito grande, ninguém usa o produto ou assiste ao filme. Assim que é feito. A Coca-Cola, poderosa multinacional, para entrar em Atlanta, uma cidade com aproximadamente 70% de negros, teve que garantir empregos, igualdade de cargos, salário etc. Foi assim que a Coca-Cola se instalou em Atlanta, e é assim que acontece com a indústria cinematográfica. A indústria cinematográfica americana que não garantir representatividade igual para negro e branco não aparece. Hoje, as maiores estrelas de filme americano, por quem o público americano lota os cinemas para assistir, são sempre atores negros. Esses filmes, quando chegam aqui já renderam milhões e milhões de dólares de receita nos Estados Unidos. O próprio negro é levado a consumir tudo que lhe dá igualdade racial, então, essa indústria é bem utilizada. No nosso caso, na televisão brasileira — eu não peguei muito bem a palavra do Gabeira —, seria necessário fazer a mesma coisa. Se temos a TV Globo que pinta de negro um ator branco para que este faça o papel de um negro, o que deveria fazer a comunidade negra? Não assistir à novela. A comunidade negra, na verdade, deveria ser conscientizada e não assistir a essa novela. Não assistindo a essa novela, não tem anunciantes, porque eles vive do telespectador. Se a 51 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 comunidade é de 50% e não assiste à novela, a venda de produtos dentro dela vai cair 50%. E as indústrias que sustentam novelas, vão perder o poderio, então, vão ter que voltar a pensar na questão racial. É o que temos de fazer. Há, na Rede Globo, a Vera Fischer e a Zezé Mota. A Zezé Mota perde em que, artisticamente, para a Vera Fischer? Está provado que não perde nada. Agora, vamos ver o salário das duas? No entanto, se fizermos uma pesquisa, a raça negra é que assiste a novelas; é a raça negra que dá o produto para a Rede Globo pôr a novela no ar, que sustenta os atores brancos, que se diferenciam dos negros no salário. É necessário que haja uma conscientização da nossa parte. Aqueles que militam dentro dos movimentos negros têm que levar essa conscientização, assim como é feito nos Estados Unidos. Quanto ao companheiro Gilberto, que falou sobre a religião, não fujo da discussão. Sempre tenho opinião. Religião não se ensina na escola nem deve ser tema de discussão política, porque a Constituição já até garante o contrário. (Intervenção inaudível.) O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Certo. Não digo isso. Já ouvi, dentro dessas conferências, que o Estado teria que garantir dinheiro para a compra da concessão de um canal de televisão. É sobre esse ponto que falo. Quando se toca em manifestação religiosa, sou totalmente a favor. Sou totalmente contrário quando nos sentimos agredidos pela televisão. A TV Globo, a TV Manchete entravam com câmeras escondidas em nossa igreja, filmavam e montavam uma porção de coisas e colocavam no ar. O que tivemos que fazer? Tivemos que comprar concessão de um canal de televisão para fazer igual. 52 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Passamos a mostrar o trabalho que fazemos. Por exemplo, a Globo mandou um repórter a uma igreja nossa, em Minas Gerais, com dinheiro, para dar ao pastor no momento em que estava fazendo o culto. Com a câmera, junto com ele, filmamos tudo. Quando quiseram colocar no ar, pusemos na íntegra o que estava acontecendo. Se as casas de candomblé, se as casas espíritas fizerem uma campanha com seus membros, comprem a concessão de um canal televisão e anunciem também. Façam a mesma coisa. (Intervenção inaudível.) O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Não sei. Temos que fazer. É assim que fazemos. Começamos com um homem em cima de um caixote, numa praça, no Méier, e hoje chegamos onde estamos. Cheguei à Igreja Universal do Reino de Deus sem emprego, com quatro filhos para criar, completamente excluído da sociedade, recebi uma oportunidade de vida e hoje estou aqui. O SR. DEPUTADO ALCEU COLLARES - Acho que o problema dessa igreja é a intolerância com os outros ramos religiosos, principalmente com os atos que temos o direito de cultivar. O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Não somos contra essa coisa. Todos têm direito de fazer o que bem entender. Agora, o Estado não pode ser responsável por causa religiosa nenhuma, principalmente quando se fala em relação à comunicação. Se ligarmos a televisão aos domingos de manhã, há seis ou sete canais da Igreja Católica, pelo menos, que transmitem a missa. Se eu for me levar pelo fato religioso, a transmissão de missa católica agride minha fé. 53 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 Se sou tolerante com a Igreja Católica ou com a maneira de o espírita ou do "candomblecista" pregar sua fé, agride a minha fé. Se sou tolerante com eles, eles têm que ser tolerante com a minha igreja também. Se o problema é televisão, que se faça uma campanha, compre-se a concessão de um canal de televisão, ou de uma emissora de rádio. Todos têm o mesmo direito. O espaço está aberto. Sou contra entrar, quebrar. Jamais vou deixar de pregar... O SR. DEPUTADO ALCEU COLLARES - E chutar a santa, também? O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Jamais vou deixar de pregar. E a santa não foi chutada. Está aí. Foi uma armação da Rede Globo, temos essa fita na íntegra. A santa não foi chutada. É tanto que o bispo não foi condenado. São essas situações que temos de ver. O candomblé, a umbanda, o espiritismo têm direito de expressar sua fé, publicamente. Agora, façam a mesma coisa que fizemos. Adquiram uma emissora de rádio ou de televisão e preguem, mostrem, lutem por aquilo em que acreditam, porque é assim que fizemos e é assim que continuaremos a fazer. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Agradecendo a intervenção ao Deputado Reginaldo Germano, encerro a primeira parte desta audiência pública. Agradecendo aos conferencistas a contribuição valiosa que prestaram à análise e à discussão do projeto. Solicito aos Srs. Parlamentares que permaneçam no plenário, porque, havendo número legal, passaremos à votação dos requerimentos. Requerimento nº 23/01, do Sr. Ivan Paixão, que "requer, nos termos regimentais, a realização de audiência pública com os Srs. Norton Nascimento, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Tânia Alves, Zezé Mota, Chica Xavier e Rosa Maria, 54 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 para que sejam ouvidos por esta Comissão sobre suas experiências com relação ao comportamento dos meios de comunicação com os artistas da raça negra". O autor não estando presente, passa-se à discussão. Não havendo quem queira discutir, em votação. Os Srs. Deputados que o aprovam permaneçam como se encontram. Aprovado por unanimidade. Requerimento nº 24/01, do Sr. João Almeida, que "requer, nos termos do art. 255, sejam convidados o Prof. Ubiratan Dias, da Universidade Federal da Bahia, e a Profa. Fúlvia Rosemberg, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para debaterem, em audiência pública, o Estatuto da Igualdade Racial". Devo dizer que o Prof. Ubiratan foi citado praticamente em todas as audiências públicas, razão da solicitação do Deputado João Almeida. Como o autor do requerimento não se encontra presente, em discussão. Não havendo quem queira discuti-lo, em votação. Os Srs. Deputados que o aprovam permaneçam como se encontram. Aprovado por unanimidade. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Tem V.Exa. a palavra. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Sr. Presidente, no Dia da Crianças, 12 de outubro, tive a felicidade, diria, de procurar em diversas lojas de brinquedos uma boneca negra para dar à filha. Não encontrei. Depois falei com outras pessoas, que me disseram a mesma coisa: sabiam desse debate da igualdade racial e, por uma 55 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 série de motivos, queriam também comprar um boneco ou uma boneca negra. Também não encontraram. Vou encaminhar à Mesa requerimento para convocação, ou convite, por exemplo, de donos de grandes fábricas de brinquedos para que nos expliquem qual o motivo de não se produzir no Brasil principalmente bonecas e bonecos negros. O requerimento está vindo do meu gabinete e vou encaminhá-lo à Mesa. Se a Mesa entender viável requerimento nesse sentido, eu gostaria de colocar em votação. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - O requerimento extemporâneo tem que ter assinaturas de um terço da Comissão. Mas V.Exa. pode apresentá-lo agora, se for o caso, para ser votado na próxima reunião. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Como o requerimento ainda não chegou, e não existe aqui de fato um terço, apresento o requerimento hoje e o colocamos em votação na próxima reunião. E que essa proposta tenha listadas, inclusive, as fábricas de brinquedos que gostaria que fossem convocadas, para que dêem depoimento. Acho que vai ser um debate interessante. Por que no Brasil, onde 50% são negros, não existem bonecas nem bonecos negros? Como não consegui encontrar, fui perguntar a outras pessoas que me disseram que esta é uma realidade mesmo, dificilmente se encontra, e, quando se encontra, são bem mais caros. É interessante também isso. O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Gostaria de dizer a V.Exa. que encontrei, para minha netinha, bonecos negros em Johanesburgo, na África. O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Gostei da resposta, Sr. Presidente. V.Exa. foi muito feliz na resposta: em Johanesburgo, na África. Então, entrego o requerimento à Mesa. 56 CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade Racial Comissão Especial PL 3198/2000 - Estatuto da Igual Número: 001175/01 Data: 23/10/01 O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Nada mais havendo a tratar, vou encerrar os trabalhos, antes, porém, convoco reunião ordinária a se realizar no próximo dia 30, às 14h. Está encerrada a reunião. Muito obrigado. 57