CADERNOS UFS FILOSOFIA – Ano 7, Fasc. XIII, Vol. 9, Jan-Julho/ 2011 – ISSN Impresso: 1807-3972/ ISSN on-line: 2176-5987
Leibniz e a metafísica da nova geometria: espaço como relação
William de Siqueira Piauí1
Resumo: Pretendemos tratar de parte da influência do que, em uma série de textos escritos em
torno de 1679, Leibniz chamou de Analysis Situs sobre sua metafísica posterior e problematizar
algumas das variadas associações que podemos estabelecer entre o que pensavam
principalmente Leibniz, Newton, Poincaré e Einstein sobre o tema geral da gênese da noção de
espaço.
Palavras-chave: Leibniz, Newton, Poincaré, Einstein, metafísica, geometria, espaço.
1. Considerações Iniciais
Em torno de 1679 Leibniz elaborou uma série de textos associados ao que ele chamou
de Analysis Situs e de Characteristica Geometrica; do nosso ponto de vista, as
considerações feitas nesses textos determinaram para sempre seu modo de solucionar os
labirínticos problemas associados tanto ao contínuo quanto ao infinito, mas, além disso,
determinaram aquilo que Leibniz denominou “espaço relacional”, isso é, uma maneira
completamente nova de pensar a noção de “determinação local” que revolucionaria sua
metafísica e daria força ao seu conceito de Deus como intelligentia supramundana.
Pretendemos indicar o lugar exato onde deve ter ocorrido parte da influência da
Analysis Situs e da Characteristica Geometrica (partes importante de sua Ciência do
Infinito e de sua noção de determinação local) sobre a metafísica leibniziana posterior;
dito de outro modo, no que chamamos de Elogio de Einstein a Leibniz e Elogio de
Poincaré a Leibniz; pretendemos ensaiar algumas considerações gerais quanto a
algumas das variadas associações que podemos estabelecer entre o que pensavam esses
autores sobre o tema geral da gênese da noção de espaço. Do nosso ponto de vista, essa
é uma boa maneira de problematizar questões que faziam o pano de fundo da metafísica
leibniziana do espaço e como elas ressurgem na matemática e na física contemporânea.
Doutor pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, FFLCH – USP, e
professor adjunto da Universidade Federal de Alagoas, UFAL – Campus de Arapiraca. E-mail:
[email protected].
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2. Elogio de Einstein a Leibniz
Quando em março de 1995 o cientista Edward Witten (1951-) propôs, em uma
conferência realizada na Universidade do Sudoeste da Califórnia, a hipótese que o
espaço físico deveria ter cerca de onze dimensões para que micro e macro físicas
pudessem ser tratadas por uma única teoria, isso é, para que tivéssemos apenas uma
“teoria quântica da gravidade”, uma “teoria física de tudo”; parte da extensa e grave
polêmica que houve em torno de qual deveria ser a “forma” do espaço físico e a questão
referente a até que ponto a Geometria e a Física podem andar juntas ressurgiram
acompanhadas de toda uma nova gama de problemas. O ponto mais alto dessa polêmica
já havia sido evidenciado quando Isaac Newton (1642-1727) e Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716) decidiram defender posições opostas quanto ao que pensavam ser
o espaço físico. A resposta elaborada por Albert Einstein (1879-1955), que retoma os
termos mais importantes daquela polêmica e que mantém a posição que Edward Witten
não poderá ver corroborada sua hipótese, tinha sido a seguinte:
“Hoje alguém poderia dizer –sobre essa memorável discussão– que a decisão de
Newton foi, naquele momento da ciência, a única possível e particularmente a
única proveitosa. Mas o desenvolvimento subseqüente dos problemas,
processando-se de maneira indireta a qual ninguém possivelmente poderia, pois,
prever, tem mostrado que a resistência de Leibniz e Huygens, intuitivamente bem
fundada, mas assentada em argumentos inadequados, foi atualmente justificada2.
(...) A vitória sobre o conceito de espaço absoluto ou sobre aquele do sistema
inercial se tornou possível somente porque o conceito de objeto material, entendido
como conceito fundamental da Física, foi gradualmente substituído pelo conceito
de campo. (...) Se as leis desse campo [cujos componentes são dependentes em
quatro parâmetros espaço-tempo] são em geral covariantes, isso é, não dependentes
de uma escolha particular de um sistema de coordenadas, então, a introdução de
um espaço independente (absoluto) não é muito necessária. Aquilo que constitui o
caráter espacial da realidade é simplesmente, portanto, a tetra-dimensionalidade do
2
Einstein havia caracterizado a maneira leibniziana e newtoniana de conceituar o espaço do
seguinte modo: “Estes dois conceitos de espaço [derivados do conteúdo psicológico associado
aos conceitos de lugar e de objeto material] podem ser contrastados com o seguinte: (a
[leibniziano]) espaço como qualidade de posição (positional quality) do mundo dos objetos
materiais; (b [newtoniano]) espaço como recipiente (container) de todos os objetos materiais.
No caso (a), o espaço [físico] sem qualquer objeto material é inconcebível. No caso (b), um
objeto material só é concebível como existindo no espaço, então o espaço aparece como uma
realidade que em certo sentido é superior ao mundo material. (...) Estas considerações
esquemáticas (schematic considerations) dizem respeito à natureza do espaço da geometria e ao
ponto de vista da cinemática, respectivamente. Elas (uma e outra) estão em algum sentido
reconciliadas a partir do sistema de coordenadas de Descartes, embora isso já pressuponha
logicamente o conceito mais ousado (b) de espaço”. (Apud JAMMER, 2001, pp. xvi-ii, grifo
nosso).
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campo. Não existe então espaço “vazio”, ou seja, não existe um espaço sem
campo” (Apud JAMMER, 2001, pp. xvi-ii, grifo nosso).
Isso quer dizer que a forma do espaço-tempo, agora indissociáveis, não poderia
ultrapassar a tetra dimensionalidade (três dimensões do espaço mais uma dimensão do
tempo); quer dizer também que o espaço deve ser pensado a partir da noção de campo,
isto é, o espaço físico deve ser pensado a partir da interação entre a matéria e o campo
que ela faz existir, que passam agora a ser indissociáveis e que ditam também a forma
do espaço físico: esférico (ou curvo –não-euclidiano). Ora, isso quer dizer que apesar da
experiência do balde (ou dos globos) duramente criticada por Ernst Mach (1838-1916),
experiência que havia sido formulada por Newton no primeiro escólio dos Principia
como garantia da existência do “espaço absoluto, verdadeiro e matemático” e da defesa
que Leonhard Euler (1707-1783) e muitos outros sempre fizeram do modo newtoniano
de pensar o espaço físico, de fato era Leibniz quem estava certo quanto à não substância
ou existência do espaço entendido como absoluto. Para Leibniz: “o [espaço] não é mais
uma substância do que o tempo, e se tem partes [contra Samuel Clarke (1675-1729) e
Newton] não pode ser Deus. É uma relação, uma ordem não só entre os seres existentes,
mas também entre os [seres] possíveis como se existissem” (LEIBNIZ, 1984 [Novos
ensaios, l. II, c. XIII, § 17], p. 100, grifo nosso).
Portanto, depois da formulação da Teoria da Relatividade Geral – que até certo ponto
está em concordância com a filosofia leibniziana do espaço –, não podemos mais aceitar
a existência do espaço físico pensado newtonianamente, espaço que deveria ter sido
considerado como sem substância no sentido que ele não pode ser independente dos
corpos ou matéria que o preenchem ou da forma que o espaço-tempo deve assumir.
Uma das recusas mais explícitas que Einstein fez da filosofia newtoniana do espaço e
sua ligação com o princípio da relatividade está formulada do seguinte modo:
“A teoria da relatividade é a teoria física que se baseia numa interpretação física
coerente desses três conceitos [tempo, espaço e movimento]. O nome “teoria da
relatividade” está ligado ao fato de que o movimento, do ponto de vista da
experiência possível, aparece sempre como o movimento relativo de um objeto em
relação a outro (por exemplo, de um automóvel com referência ao solo ou da Terra
em relação ao Sol e às estrelas fixas). O movimento jamais é observável como
“movimento em relação ao espaço”, ou, como já se expressou, como “movimento
absoluto”. “O princípio da relatividade”, em seu sentido mais amplo, está contido
na afirmação: a totalidade dos fenômenos físicos é de caráter tal que não fornece
base para a introdução do conceito de “movimento absoluto”; ou, de forma mais
breve mas menos precisa: não há movimento absoluto” (EINSTEIN, 1994, p. 43,
grifo nosso).
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Assim, a corroboração da Teoria da Relatividade atesta a verdade de ao menos parte do
que significava o “espaço relacional” leibniziano e de parte das consequências de sua
adoção; ou seja, sabe-se hoje que existe de fato uma interdependência entre os corpos
(ou a matéria) e a forma do espaço físico e, por isso mesmo, todo movimento só pode
ser compreendido de forma relativa e não mais de forma absoluta; em termos
leibnizianos o espaço físico depende da “ordem dos coexistentes”; diríamos também
que a indissociabilidade do espaço-tempo poderia ser formulada em termos leibnizianos
da seguinte maneira: a atual “ordem de sucessão (tempo)” é indissociável das sucessivas
“ordens de coexistências” que compõem esse universo, sua unidade numérica. Seja
como for, devia ser em parte a isso que Einstein se referia mais acima quando lembrava
que estava intuitivamente bem fundada a opinião de Leibniz e Christian Huygens (16291695)3.
Contudo, o princípio da relatividade aqui enunciando mais parte do que foi afirmado
mais acima também fazem lembrar a polêmica que se deu em torno da existência ou não
do vazio e dos átomos, da defesa do princípio de inércia (ou 1ª lei de Newton4) como
uma lei a que estaria submetida a natureza – daí de determinada noção de movimento e
força – bem como da defesa da ação a distância; quanto ao que também discordavam
Leibniz e Newton5. Ao recusar a existência dos átomos, do vazio e do espaço absoluto,
Einstein resumia da seguinte maneira o modo newtoniano de considerar o espaço absoluto: “O
conceito de espaço foi enriquecido e complicado por Galileu [1564-1642] e Newton, para quem
o espaço deve ser introduzido como causa independente do comportamento inercial de corpos,
se alguém quiser oferecer o clássico princípio de inércia (já com a clássica lei de movimento)
em seu exato sentido. Ter realizado isso plena e claramente foi, em minha opinião, uma das
grandes conquistas de Newton. Em contraste com Leibniz e Huygens, Newton tinha clareza
quanto ao fato que o conceito (a) de espaço não era suficiente para servir de base para o
princípio de inércia e a lei de movimento. Ele tomou essa decisão embora ele ativamente tenha
dividido o mal-estar que foi a causa da oposição aos outros dois: o espaço é introduzido não
somente como uma coisa independente dos objetos materiais, mas também assume um papel
absoluto em toda a estrutura causal da teoria. Este papel é absoluto no sentido que o espaço
(como um sistema inercial) age sobre todo objeto material enquanto estes não exercem qualquer
reação sobre o espaço.” (Apud JAMMER, 2001, pp. xv-vi).
4
Newton a enunciava do seguinte modo: “Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou
de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar de seu estado por
forças impressas nele”. (NEWTON, 1983, p.14).
5
Alguns cartesianos, Leibniz e Newton também travaram um duro embate sobre qual de fato
seria a fórmula da força; os primeiros acreditavam que a fórmula adequada devia ser a que hoje
chamamos de quantidade do movimento, ou seja, F=m.v , o segundo o que hoje consideramos
ser a fórmula da energia cinética, ou seja, F=(1/2)m.v² (referente ao que Leibniz chamava de vis
viva), e o terceiro a que consideramos atualmente como a da força, ou seja, F=m.a (referente à
3
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Leibniz não poderia: primeiro, aceitar que o principio de inércia formulado por Newton
no início dos Principia se referisse a algo que, de fato, pudesse acontecer na natureza,
daí que para ele a noção de movimento, consequência da adoção daquele princípio,
tivesse de ser recusada; e segundo, não havia porque manter a noção de ação a distância
pensada em termos newtonianos. A recusa leibniziana de tudo isso pode ser apresentada
do seguinte modo:
“Os corpos simples e até os perfeitamente semelhantes são uma conseqüência da
falsa posição do vácuo e dos átomos, ou, de resto, da filosofia preguiçosa, que não
leva suficientemente longe a análise das coisas, e imagina poder chegar aos
primeiros elementos corporais da natureza, porque isso contentaria a nossa
imaginação” (LEIBNIZ, 1983 [Quinta carta a Clarke, §§ 22-3], p. 197).
“[Para mim] o universo é uma peça inteiriça, como um oceano; o menor
movimento expande seu efeito por qualquer que seja a distância, ainda que esse
efeito se torne menos sensível à medida que aumenta a distancia” (LEIBNIZ, 1969
[Teodiceia, primeira parte, § 9], p. 108).
Ou seja, para Leibniz o mundo físico não deveria ser pensado a partir da existência dos
átomos e do vazio, no sentido de últimos e idênticos elementos materiais e espaço
indiferenciado; portanto, não há vazio que torne necessário a noção newtoniana de ação
a distância e nem pode haver movimento regido pelo princípio de inércia (por conta da
inexistência de qualquer parte vazia do espaço). Para além do fato que hoje o que
compreendemos ser o átomo tem bem pouco a ver com o que pensava Newton, a teoria
do campo de Einstein decide também a favor de Leibniz e do francês René Descartes
(1650-1596)6 quanto à inexistência do vazio absoluto; ou seja, a partir dela, não
podemos aceitar a ação a distância e o princípio de inércia newtonianamente pensados;
toda ação e movimento se dá no campo. Repetindo a fala de Einstein: “Não existe então
espaço „vazio‟, ou seja, não existe um espaço sem campo”.
Na verdade Newton e Leibniz disputavam em torno de maneiras totalmente
diferentes de pensar os conceitos de espaço, tempo, matéria, movimento e força; e
temos de afirmar que Leibniz certamente não estaria de acordo com as noções de campo
e átomo formuladas por Einstein, pois, para o criador da Monadologia, o espaço físico
deveria ser considerado como um pleno material; isso é, para ele não há vazio, mas sim
um pleno de matéria divisível ao infinito e totalmente discernível. De acordo com as
2ª lei de Newton); é claro que a fórmula E=m.c², que costumamos atribuir a Einstein, é a síntese
delas e representa toda uma nova maneira de pensar os conceitos que aquelas envolviam.
6
Cf. os Princípios da Filosofia, parte II, artigos 16 a 20 de Descartes.
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palavras de Leibniz: “Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim
cheio de plantas ou como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada
membro de animal, cada gota de seus humores é ainda um jardim ou um lago”
(LEIBNIZ, 1983 [Monadologia, § 67], p. 112). Segundo sua opinião, isso é o que
sempre encontraríamos se levássemos a análise da divisão da matéria para mais longe 7.
Também é por isso que para Leibniz o erro geral que teria cometido Newton, e mesmo
muitos dos físicos atuais, se relaciona com a seguinte advertência:
“São imaginações dos filósofos de noções incompletas, que fazem do espaço uma
realidade absoluta. Os simples matemáticos, que só se ocupam com coisas
imaginárias, são capazes de forjar tais noções, destruídas, entretanto, pelas razões
superiores. (...) É preciso que aquilo que é móvel possa mudar de situação em
relação a alguma outra coisa e chegar a um estado novo discernível do primeiro,
caso contrário o movimento é uma ficção” (LEIBNIZ, 1983 [Quinta carta a
Clarke, §§ 29-30], p. 198, grifo nosso).
A partir de outros fundamentos, essa afirmação pode ser considerada uma antecipação
daquela de Einstein: “O movimento jamais é observável como „movimento em relação
ao espaço [absoluto]‟”. Para não falarmos dos motivos estéticos, teológico e morais,
muitos físicos teriam confundido, e certamente ainda o fazem, o que a abstração
matemática permite com o que de fato acontece no plano físico; o que, para Leibniz,
também deveria ser dito daqueles que faziam do tempo uma realidade absoluta e da
matéria uma realidade contínua (res extensa) ou pontual (átomos e vazio).
Assim, para Leibniz o problema fundamental passava a ser o seguinte: “Como
compreender e explicitar quais seriam aquelas razões superiores que „necessariamente‟
determinam o plano físico?” Sua solução partia do seguinte: o que determina o plano
físico são as regras abstratas da razão, associadas à Lógica, Aritmética e Geometria, mas
também as razões de escolha de um universo inteiro e totalmente determinado, isso é,
também a atenção ao “princípio de identidade dos indiscerníveis”, ao “princípio de
razão suficiente” e ao de “escolha do melhor”. Ou seja, também o que poderíamos
7
Sua recusa da filosofia newtoniana dos átomos e do vazio se baseava também na sua doutrina
das unidades, átomo formal ou mônadas; dentre outras, ele afirmava: “Segundo minhas
demonstrações [que partem do princípio de razão suficiente, princípio de identidade dos
indiscerníveis e do conceito de átomo formal], cada porção de matéria é atualmente subdividida
em partes movidas de modo diferente, e nenhuma parece inteiramente com a outra. (...) Para
mim, nada existe de simples senão as verdadeiras mônadas, que não têm partes nem extensão”
(LEIBNIZ, 1983, p. 197, grifo nosso).
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chamar de razões estéticas, teológicas e morais. Foi também por conta do todo dessa
“filosofia” que Einstein não concordou com a conceituação leibniziana do espaço físico.
De fato, praticamente toda a argumentação de Leibniz contra Newton, na
correspondência trocada com Clarke, estava assentada nos princípios de “escolha do
melhor plano possível”, de “razão suficiente” e de “identidade dos indiscerníveis”;
princípios associados à sua reforma da metafísica. Certamente, é em parte a isso que
Einstein se refere quando menciona o fato que, apesar de intuitivamente bem fundada, a
opinião de Leibniz estaria assentada em argumentos inadequados; para Einstein a
polêmica deveria ter sido resolvida em termos da experiência possível e a partir do
conceito de campo. Por fim, Einstein recusava as conceituações newtoniana e
leibniziana do espaço dizendo: “Ambos os conceitos de espaço são criações livres da
imaginação humana, quer dizer, elaborados para simplificar a compreensão de seu senso
de experiência” (Apud JAMMER, 2001, p. xv)8.
Desse modo, a recusa einsteiniana da existência do vazio não chega a ser a afirmação
da existência do pleno de matéria, bem como nem de longe significa um racionalismo
integral de cunho metafísico e físico do tipo leibniziano. Contudo, parte importante do
que também fundamentava a recusa leibniziana das noções newtonianas de espaço e
tempo absolutos, matéria, movimento e força, e que se associava muito apropriadamente
ao modo como os geômetras deveriam pensar o espaço, não parece ter sido considerado
8
A solução de Einstein para o problema da forma do espaço a partir do que já havia alcançado
com a relatividade especial era: “Se introduzirmos nesse espaço [ou seja, em (1)
ds0²=dx02+dy02+ dz02 – c2dt0 ] as novas coordenadas x1, x2, x3, x4, através de uma transformação
geral de coordenadas, a quantidade ds2 para o mesmo par de pontos terá uma expressão da
forma: ds2
gikdxidxk (somado para i e k de l a 4), onde gik = gki. Os gik, que formam um
„tensor simétrico‟ e são funções contínuas de x1, ... x4 descrevem, então, de acordo com o
“princípio da equivalência”, um campo gravitacional de tipo especial (a saber, um campo
que pode ser retransformado na forma (1). Com base nas investigações de Riemann sobre os
espaços métricos, as propriedades matemáticas desse campo gik, podem ser expressas com
exatidão (...). Essas equações fornecem as equações newtonianas da mecânica gravitacional
como uma lei aproximada e fornecem, além disso, alguns pequenos efeitos que foram
confirmados pela observação (deflexão da luz pelo campo gravitacional de uma estrela,
influência do potencial gravitacional sobre a freqüência da luz emitida, rotação lenta das
trajetórias elípticas de planetas movimento do periélio do planeta Mercúrio). Elas fornecem
ainda uma explicação para o movimento de expansão dos sistemas galácticos, que se
manifesta pelo desvio para o vermelho da luz emitida por esses sistemas”. (EINSTEIN, 1994
[Escritos de maturidade], p. 49-50).
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devidamente por Einstein, ao menos não naquele texto; e é disso que trataremos a
seguir 9.
3. Elogio de Poincaré a Leibniz
Mais acima lembramos a resposta leibniziana quanto à impossibilidade de existência do
espaço absoluto: para Leibniz, o espaço não podia ter substância, pois é “uma relação,
uma ordem não só entre os seres existentes, mas também entre os possíveis como se
existissem”. Além das dificuldades envolvidas em compreender sua noção de espaço
como relação, ordem ou situação (em franca oposição ao modo newtoniano de pensar o
espaço), há a de encontrar a resposta para a seguinte pergunta: Como e por que pensar
as relações, ordens ou situações do seres do espaço físico para além dos seres
existentes? Parece-nos que Einstein não considerou adequadamente essa parte da
resposta de Leibniz a Newton, uma vez que ela envolve o que está além da experiência
possível. Assim, para responder aquela questão, teremos de compreender um pouco
mais a metafísica leibniziana e sua ligação com uma maneira completamente nova de
pensar a ligação que deve existir entre as matemáticas, especialmente a geometria e a
física.
Desde que os Elementos de Euclides inauguraram o que chamamos de Geometria, as
fronteiras entre esse ramo da matemática e a física se confundiram, ou seja, desde lá as
questões sobre o espaço físico pareciam ter de ser respondidas a partir da Geometria.
Karl R. Popper (1902-1994) fez lembrar muito apropriadamente a fala do criador do
Sumário Eudemiano, isso é, segundo Proclos (410-485) os Elementos tinham como
temática o Cosmos; na verdade, eles representavam “uma tentativa de resolver
sistematicamente os problemas principais da cosmologia de Platão”, eles seriam uma
espécie de “organon de uma teoria do mundo” (POPPER, 2003, p. 126). Ora, a filosofia
newtoniana do espaço absoluto ainda estava assentada sobre a falta de fronteira entre a
9
Deixaremos para um outro momento a discussão do embate Leibniz-Newton em torno da
significação das expressões individuam denominationem, affectiones locorum e affection
individuelle.
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Geometria e a Física, o que atingia inclusive sua maneira de tratar da origem do
universo10; e a confusão parece estar na própria origem da Geometria.
A conflituosa ligação entre Geometria e Física também invadiu aquilo que
poderíamos chamar de Psicologia; do nosso ponto de vista, é isso que constitui o
fundamento do seguinte problema formulado pelo moderno Immanuel Kant (17241804): “Que o espaço completo (que já não é em si mesmo nenhum limite de um outro
espaço) tenha três dimensões e que o espaço em geral não possa ter mais funda-se na
proposição de que, num ponto, não pode haver mais de três linhas que se cortam
retangularmente” (KANT, 1988 [Prolegômenos], p. 53). A resposta de Kant se associa a
todo um redimensionamento dos fundamentos da matemática (e, por isso mesmo, da
geometria e da física); para ele, tal proposição apoditicamente certa funda-se em uma
intuição pura a priori, o que traz a seguinte conclusão: “Por conseguinte, na base da
matemática estão realmente puras intuições a priori que tornam possíveis as suas
proposições de valor sintético e apodítico” (Idem). Ou seja, parte das verdades da
matemática e parte da garantia de que ela pode sim criar novos conhecimentos estão
baseadas nas intuições puras a priori do espaço. Parece-nos, portanto, que Kant teria
internalizado a confusão 11.
Assim, depois de Kant, não basta apenas recusar a noção euclidiana de forma do
espaço (baseada principalmente em seu conceito de ponto), mas também é preciso
problematizar o ponto de vista kantiano da impossibilidade de termos a intuição
(baseada em suas noções de forma da sensibilidade e intuição pura do espaço) de outras
formas de espaço que não a euclidiana; consideramos que são justamente esses os
desafios que o francês Henri Poincaré (1834-1912) decide enfrentar em sua obra O
valor da ciência, a qual resgata parte importante da filosofia leibniziana do espaço.
No capítulo IV dessa obra, Poincaré busca discutir o tema “o espaço e suas três
dimensões”, deixando patente o absurdo de adotarmos a visão newtoniana de espaço
absoluto ao afirmar que: “o espaço absoluto é um absurdo, e devemos começar por
relacioná-los [os diversos elementos do espaço, os quais chamamos de pontos] a um
10
Em oposição ao que Leibniz chamou de a origem radical de todas as coisas, e que atualmente
nós podemos associar à hipótese do Big Bang, o Escólio Geral dos Principia estabelecia que o
tempo e o espaço sempre existiram. Cf. nosso artigo: Santo Agostinho e Isaac Newton: tempo,
espaço e criação (in: Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia, 2011, pp. 26-47).
11
Cremos que foi justamente por essa confusão que Kant também internalizou a solução do
problema da continuidade associada à causalidade.
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sistema de eixos invariavelmente ligados ao nosso corpo” (POINCARÉ, 1995, p. 64) 12.
Essa afirmação e introdução de uma nova maneira de considerar o problema retomam o
que havia sido estabelecido no capítulo III, § 2, da mesma obra, onde a resposta a parte
do problema kantiano era: “O espaço euclidiano [de três dimensões] não é uma forma
imposta a nossa sensibilidade, uma vez que podemos imaginar o espaço não euclidiano”
(Idem, p. 44).
Na conclusão do capítulo III, ou seja, no § 6 – capítulo que tinha como tema “a
noção de espaço” –, Poincaré já havia dito que estava realizando uma investigação
semelhante à que propuseram Einstein, Newton e Leibniz 13 nos textos que citamos mais
acima; no fim das contas, no geral, seu texto também trata da “gênese da noção de
espaço” e chegava à conclusão oposta à de Einstein para a seguinte pergunta: “é a
experiência que nos informa que o espaço tem três dimensões, já que é partindo de uma
lei experimental que chegamos a lhe atribuir três? (...) É evidente que não: tudo o que
podemos dizer é que a experiência nos informou que é cômodo atribuir ao espaço três
dimensões” (Idem, p. 61). Essa é parte fundamental do convencionalismo de Poincaré
diametralmente oposto ao realismo de Einstein. Trata-se de conclusão extraída da
investigação da gênese da nossa noção de espaço visual, que precede a investigação da
gênese da noção de espaço motor quando, então, o todo da questão fica resolvido da
seguinte maneira:
“Esse papel [da experiência] teria sido inútil se existisse uma forma a priori que se
impusesse a nossa sensibilidade, e que seria o espaço de três dimensões. Essa
forma existe? Dito de outro modo, podemos representar14 o espaço de mais de três
dimensões? E antes de mais nada o que significa essa questão? No verdadeiro
sentido da palavra, é claro que não podemos representar o espaço de quatro
dimensões, nem o de três; antes de tudo, não podemos representá-los vazios, e
também não podemos representar um objeto nem no espaço de quatro dimensões,
nem no de três: primeiro, porque esses espaços são ambos infinitos, e não
Quanto ao conceito de tempo, Poincaré afirmava: “Não temos a intuição direta da igualdade
de dois intervalos de tempo. As pessoas que crêem possuir essa intuição são vítimas de uma
ilusão” (POINCARÉ, 1995, p. 28).
13
Referimos-nos ao prefácio que Einstein escreve ao livro de Jammer, ao primeiro escólio dos
Principia e à quinta carta de Leibniz a Clarke.
14
Essa reconsideração da noção de “representação” (représenter) esclarece bastante o que
devemos pensar quanto às afirmações feitas por Poincaré na introdução de seu artigo Analysis
Situs, publicado no Journal de L’École Polytéchnique, em 1985; ela mostra que significa pouco
o fato de não podermos representar parte dos seres do hiperespaço, mas muito o fato de
podermos “conceber” e “estudar” tais seres; é aí que tem origem todo o sentido da Topologia,
da Hipergeometria e da nova Analysis Situs.
12
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poderíamos representar uma figura no espaço, isso é, a parte no todo, sem
representar o todo, e isso é impossível, já que esse todo é infinito; segundo, porque
esses espaços são ambos contínuos matemáticos, e só podemos representar o
contínuo físico; terceiro, porque esses espaços são ambos homogêneos, e porque os
quadros onde encerramos nossas sensações, por serem limitados, não podem ser
homogéneos” (Idem, pp. 80-1, grifo nosso).
Assim, para Poincaré, o problema kantiano estava mal formulado e, por isso, tinha
chegado a conclusões equivocadas, em geral associadas a um modo inadequado de
considerar a noção de “representação” do espaço físico e matemático; para responder à
questão adequadamente formulada, além de separar com mais clareza o que é
matemático do que é físico, era preciso instaurar certo “relativismo das associações de
idéias”, ou como ele mesmo afirmava:
“é possível imaginar que (...) tenhamos sido levados a atribuir ao espaço mais de
três dimensões. (...) Isso é possível, mas é difícil, porque temos que vencer uma
quantidade de associações de idéias, que são fruto de uma longa experiência
pessoal, e da experiência ainda mais longa da espécie. Serão essas associações (ou
ao menos, dentre elas, as que herdamos de nossos ancestrais) que constituem essa
forma a priori da qual nos dizem que temos a intuição pura? (...) É justamente
porque essa associação [de ideias] é útil à defesa do organismo, ela é tão antiga na
história da espécie e nos parece indestrutível. Entretanto, é apenas uma associação,
e podemos aceitar que ela seja rompida (...)” (Idem, p. 80-1, grifo nosso).
Nesse sentido, podemos dizer que o tema central dessa parte da obra de Poincaré (como
ele sugere no mesmo parágrafo) é justamente a análise da origem de nossa noção de
espaço, no sentido de análise das possíveis associações de idéias que constituem nossa
noção de espaço; tema bastante condizente com o título geral dessa parte do livro: “As
ciências matemáticas”. Ou seja, sem a análise dessas associações de ideias, a maior
parte do que estava sendo realizado no âmbito das matemáticas, e mesmo no da física,
não passava de imaginação sem fundamento; é essa análise que confere sentido a
atitudes como a do físico Henrich Hertz (1857-1894), lembrada por Poincaré do
seguinte modo: “as três dimensões do espaço de modo algum se impõem ao especialista
em mecânica com uma força invencível” (Idem, p. 80). Nesse sentido, discussões como
a de Edward Witten, que não teriam sentido a partir do ponto de vista kantiano, passam
a estar justificadas exigindo apenas uma nova associação de idéias quanto a nossa noção
de espaço físico. O que isso tudo tem a ver com Leibniz?
Os vários questionamentos de Poincaré em O valor da ciência começam lembrando
uma “disciplina” recriada por Leibniz e que foi motivo de longos estudos elaborados
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especialmente em torno de 1679, ou seja, têm início com a menção à Analysis situs, a
saber:
“Esse contínuo [amorfo – de onde podemos tirar o espaço de Euclides e o de
Lobatchevsky –] possui um certo número de qualidades, isentas de qualquer idéia
de medida. O estudo dessas propriedades é o objeto de uma ciência que foi
cultivada por muitos grandes geômetras, e em particular por Riemann e Betti15, e
recebeu o nome de analysis situs. Nessa ciência faz-se abstração de toda idéia
quantitativa (...). A verdadeira geometria qualitativa é, portanto, a analysis situs. As
mesmas questões que surgiam a propósito das verdades da geometria euclidiana
surgem de novo a propósito dos teoremas da analysis situs. Podem eles ser obtidos
através de um raciocínio dedutivo? Serão convenções disfarçadas? Serão verdades
experimentais? Serão eles caracteres de uma forma imposta quer a sensibilidade,
quer ao nosso entendimento?” (Idem, p. 45).
Poincaré retoma grande parte dos termos utilizados por Leibniz para definir esse tipo de
análise, lembrando inclusive parte da história de suas descobertas quando, no mesmo
parágrafo, faz menção ao fato que a geometria projetiva não é a verdadeira analysis
situs; certamente uma referência ao fato de Leibniz já ter estudado detidamente as obras
de Gerard Desargues (1591-1661) e de Blaise Pascal (1623-1662), as quais tratavam de
geometria projetiva, e ter se encantado com elas. Assim, é a partir da lembrança da
Analysis Situs que Poincaré faz as perguntas que devem ser respondidas após o advento
da filosofia kantiana; dito de outro modo, suas investigações sobre a gênese da nossa
noção de espaço começam a partir de um corte inaugurado por Leibniz, uma vez que
elas retomam aquela disciplina repetindo o fundamento da seguinte afirmação:
“A análise matemática (Analysis Mathematica) comumente praticada é a da
grandeza (magnetudinis) e não a da situação (situs); e mais, pertence direta e
imediatamente à aritmética, aplica-se à geometria, porém com certo desvio. (...) A
figura em geral contém, além da quantidade, qualidade ou forma16; do mesmo
15
Na introdução do seu artigo de 1895, Poincaré mencionará o fato que os matemáticos Georg
Friedrich Bernhrt Riemann (1826-1866) e Enrico Betti (1823-1892) já tinham mostrado que
existia uma Analysis Situs com mais de três dimensões; e em seu texto Os fundamentos da
geometria ele mencionará o fato que o matemático Nikolai Ivanovich Lobatchevsky (17931856) junto com Johann Bolyai (1802-1860) e Riemann teriam revolucionado as discussões
sobre os princípios fundamentais da geometria, sobre sua origem, natureza e alcance.
16
Em seu artigo de 1895, Poincaré comentava: “A Geometria de n dimensões tem um objeto
real; hoje ninguém tem dúvida disso. Os entes do hiperespaço são suscetíveis de definições
precisas como aqueles do espaço ordinário, e se nós não os podemos representar (représenter),
nós podemos concebê-los e estudá-los. Se, portanto, a Mecânica a mais de três dimensões, por
exemplo, deve ser condenada como desprovida de todo objeto, não vale o mesmo para a
Hipergeometria. (...) A geometria, com efeito, não tem como única razão de ser a descrição
imediata dos corpos que caem sob os nossos sentidos: ela é, antes de tudo, o estudo analítico de
um grupo; nada a impede, por conseqüência, de tratar de outros grupos análogos e mais gerais.
(...) O emprego das figuras tem antes de tudo por objetivo nos fazer conhecer certas relações
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modo, são iguais as coisas cuja forma é a mesma, assim como semelhantes aquelas
cuja forma é a mesma. E a consideração das semelhanças (similitudinum) ou das
formas (formarum) é de longe mais patente que aquela [consideração] matemática,
e é tomada à metafísica, mas por outro lado, tem múltiplo uso também na
matemática e é útil no próprio cálculo algébrico; mas a semelhança de tudo é
observada ao máximo nas situações ou figuras geométricas. Assim, a análise
verdadeiramente geométrica não apenas observa igualdades e proporcionalidades
[quantitativamente falando], que deveras se reduzem a igualdades, mas também
semelhanças (...)”17.
Ou seja, Leibniz faz lembrar o fato que a Analysis Situs, ou parte do que hoje chamamos
de Topologia, deveria tratar dos aspectos qualitativos relacionados aos entes
matemáticos; trata-se de investigação que é anterior ao estudo das grandezas em termos
quantitativos e foi justamente aí que, segundo Leibniz, erraram Euclides e Descartes.
Do ponto de vista leibniziano, as definições de espaço, extenso, extensão e contínuo, de
ponto, reta, superfície e sólido, de coincidência, congruência, igualdade e similitude ou
semelhança e as inferências que são suas conseqüências, quando elaboradas a partir de
caracteres pensados de forma adequada e a partir da análise de situação, ordem e
relação, é que nos permitiriam demonstrar adequadamente ou recusar os axiomas de
Euclides18 e ir mais longe do que foi a Geometria de Descartes em sua algebrização das
verdades e seres geométricos. Trata-se de considerações básicas e primeiras, isso é, de
investigação que diz respeito aos primeiros princípios e elementos da situação19.
entre os objetos de nossos estudos, e essas relações são aquelas de que se ocupa um ramo da
Geometria que é chamado de Analysis Situs, e que descreve a situação relativa dos pontos, das
linhas e das superfícies, sem qualquer consideração de sua grandeza. (...) Existem relações de
mesma natureza entre os seres do hiperespaço; existe, então, uma Analysis Situs com mais de
três dimensões, como o mostraram Riemann e Betti. (...) Essa ciência nos fará conhecer esse
gênero de relações, mesmo que este conhecimento não possa ser [considerado] intuitivo”.
17
Utilizamos aqui a tradução de Homero Santiago (pp. 67-6) do texto De analysi situs publicada
nos Cadernos de filosofia alemã, n. 5, 1999, pp. 64-75.
18
Os textos de Leibniz presentes na coletânea organizada por Marc Parmentier, de título La
caractéristique geómétrique, demonstram abundantemente o que estamos afirmando aqui.
19
Leibniz afirmava em seu De analysi situs: “Os antigos tinham um outro tipo de análise,
diferente da álgebra, que mais se aproximava da consideração da situação, tratando do que se
questiona sobre os dados e as sedes ou lugares. E para isso tende o pequeno livro de Euclides
sobre os dados, em que se baseia o comentário de Marino [de Neapolis (c. 450-500 d.C.)]. Na
verdade, os lugares, os planos, os sólidos, os lineares, foram tratados por outros e também por
Apolônio [de Perga (c. 262-c. 190 a.C.)], cujas proposições Pappus [de Alexandria (c. 290- c.
350 d.C.)] conservou; daí os mais recentes restituírem os lugares planos e sólidos, mas de tal
forma que parecem ter mostrado mais a verdade que a fonte da doutrina dos antigos. Esse tipo
de análise, todavia, nem se refere ao cálculo, nem sequer é levado até os primeiros princípios e
elementos da situação, o que é necessário à análise perfeita”. Daí o sentido da crítica de Leibniz
que era feita nos seguintes termos: “Logo, a verdadeira Análise da Situação (Situs Analysis)
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A conseqüência dessa nova maneira de pensar a Geometria é que seus conceitos e
objetos devem passar por uma nova e profunda problematização; uma das mudanças
mais interessantes por que passam as investigações leibnizianas associadas a sua
analysis situs ou characteristica geometrica é a de que tanto o V postulado de Euclides
passa a não ser evidente quanto o número máximo de dimensões do espaço também
não, ou seja, o número máximo de dimensões do espaço – que para Leibniz deve partir
da noção de sólido geométrico – espera também por demonstração rigorosa, ou como
ele mesmo afirmava:
“Enfim, um mesmo corpo não pode conter muitos pontos que estejam em uma
mesma relação de quatro pontos que constituem um sólido. Esta é a razão graças a
qual não existe dimensão além do sólido, mas tudo isso necessitaria de uma
demonstração rigorosa” (LEIBNIZ, 1995, p. 135).
É possível perceber, assim, que o problema do número último de dimensões dos entes
geométricos deveria ser pensado a partir da investigação geométrica, pois, deste modo,
seria passível de demonstração rigorosa; nada a ver, portanto, com uma forma imposta
quer à sensibilidade, quer ao nosso entendimento. Seja como for, trata-se de afirmações
feitas em textos escritos por volta de 1679 e é certo que, depois dessa época, Leibniz
mergulhou ainda mais em problemas de ordem metafísica associados a uma nova
maneira de compreender os conceitos de espaço, relação, ordem e situação. No nosso
entender, ocorreu uma crescente desconfiança com relação ao modo euclidiano de
pensar a geometria e uma crítica crescente ao modo como os modernos pensavam a
individualidade dos corpos, daí que sejam bem mais profundos os motivos que levaram
Leibniz a recusar o modo cartesiano e newtoniano de pensar o espaço, a extensão e o
contínuo; da mesma maneira, ele certamente não aceitaria o modo kantiano de pensálos.
precisa ser completada (...). Na verdade, a razão por que os geômetras [leia-se, dentre outros,
Euclides e Descartes] não se serviram o bastante da consideração da semelhança, julgo ser esta:
dela não tinham nenhuma noção geral satisfatoriamente distinta ou acomodada às investigações
matemáticas, pelo vício dos filósofos, que especialmente na filosofia primeira costumam
contentar-se com definições vagas e idênticas ao definido em obscuridade (...)” (Op. cit., p. 67).
É fácil notar que também se trata de crítica ao método cartesiano.
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4. Conclusão
Essas considerações revelam um sentido novo para a seguinte afirmação feita por
Leibniz, muito tempo depois, na Teodiceia:
“Deus é a razão primeira das coisas: pois aquelas que são limitadas, como tudo
aquilo que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm nada nelas que
torna a sua existência necessária, sendo manifesto que o tempo, o espaço e a
matéria, unidos e uniformes neles mesmos e indiferentes a tudo, podiam receber
totalmente outros movimentos e figuras, e em uma outra ordem” (LEIBNIZ, 1969
[primeira parte, § 7], p. 107, grifo nosso).
O Deus leibniziano deve ser considerado a origem radical de todas as coisas e, por isso,
contra o de Newton e Clarke, também deve sê-lo de determinados espaço, tempo e
matéria, daí que Ele poderia ter criado um espaço físico com outra forma 20; isso por
conta do próprio conteúdo de seu intelecto, ou daquilo que afirmava Leibniz do seguinte
modo:
“A infinidade dos possíveis, independente de quão grande ela seja, não é mais do
que a da sabedoria de Deus, que conhece todos os possíveis. (...) A sabedoria de
Deus, não contente de abarcar todos os possíveis, penetra-os, compara-os, pesa uns
em relação aos outros, para estimar os graus de perfeição ou de imperfeição deles
(...); ela ultrapassa as combinações finitas, ela faz uma infinidade de infinitos, isso
é, uma infinidade de seqüências possíveis do universo (...); e por este meio a
sabedoria divina distribui todos os possíveis que ela já tinha considerado à parte
no mesmo tanto de sistemas universais, que ela compara também entre ele (...). E
todas estas operações do entendimento divino, embora tenham entre elas uma
ordem e uma prioridade de natureza, se fazem sempre de uma só vez, sem que haja
entre elas qualquer prioridade de tempo” (Idem, p. 253 [Teodiceia, segunda parte,
§225], grifo nosso).
Isso quer dizer que Leibniz precisava de noções completamente novas de “relação”,
“ordem” e “situação”: primeiro porque elas não poderiam estar na dependência da
noção física de distância, pois o deus leibniziano é intelligentia extra ou supra
mundana21, ou, dito de outro modo, as operações do entendimento divino se fazem
sempre de uma só vez sem que haja entre elas qualquer prioridade de tempo; segundo
porque elas tinham que refletir a infinidade infinita de combinações possíveis
relacionadas à capacidade daquela intelligentia. Não se tratava, portanto, de verdades ou
Cf. os nossos artigos “Santo Agostinho e Isaac Newton: tempo, espaço e criação” (Op. cit.) e
“Noção completa de uma substância individual e infinito em Leibniz” (in: Cadernos de história
e filosofia da ciência – CLE, no prelo).
21
Cf. Novos ensaios, livro III, cap. X, § 14; Segunda carta a Clarke, § 10, e Teodicéia, segunda
parte, § 217.
20
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leis experimentais. Era justamente o que Leibniz tinha alcançado com seus textos sobre
analysis situs; ou seja, já em torno de 1679 ele tinha começado a criar uma “ciência” do
possível que ultrapassava as limitações do plano físico, uma ciência que nos permitiria
compreender de forma a priori, a partir das qualidades e não das quantidades dos entes
geométricos, as possíveis “relações”, “ordens” ou “situações” que os “corpos possíveis”
poderiam ter em determinado tipo de espaço. Com efeito, contra o “único” possível
espaço e tempo absolutos newtoniano, tratava-se de todo um novo fundamento para sua
Dinâmica. Se, como acreditamos, Einstein estava lendo a quinta carta de Leibniz a
Clarke quando escreveu o prefácio do livro de Max Jammer sobre o espaço (apesar de
ele estar se referindo apropriadamente aos “princípios de razão suficiente” e de
“identidade dos indiscerníveis”), ao criticar Leibniz, dizendo que sua opinião estava
intuitivamente bem fundada, mas assentada em argumentos inadequados, ele deixava o
que havia de mais importante na argumentação contra Clarke-Newton; ou seja, Einstein
não problematizou suficientemente os fundamentos da seguinte afirmação de Leibniz 22:
“Eis como os homens chegam à noção do espaço. Consideram que muitas coisas
existem simultaneamente, e acham nelas certa ordem de coexistência, segundo a
qual a relação entre umas e outras é mais ou menos simples: é sua situação ou
distância. Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relação com
uma multidão de outros, sem que esses mudem entre si, e que um recém vindo
adquire a relação que o primeiro tivera com os outros, diz-se que veio ocupar seu
lugar, e chama-se essa transformação um movimento que se acha naquele em que
está a causa imediata da transformação. E quando muitos, ou mesmo todos,
mudassem conforme certas regras conhecidas de direção e velocidade, poder-se ia
sempre determinar a relação de situação que cada um adquiria para com o outro, e
mesmo a relação que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer
(...). Isso demonstra que para ter a ideia de lugar, e por consequência do espaço,
basta considerar essas relações e as regras de suas transformações, sem a
necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja
situação se considera” (LEIBNIZ, 1983 [Quinta carta a Clarke, § 47], p. 201,
grifo nosso).
O presente texto retomava parte dos resultados que Leibniz havia alcançado em suas
investigações em torno da Analysis Situs e da Characteristica Geometrica e que passam
a fundamentar sua recusa da noção newtoniana de espaço absoluto: eles apontavam para
uma nova geometria que fundamentaria uma nova física, o que Leibniz esteve bem
22
Ironicamente, se esse texto está de fato baseado naquilo que Leibniz chamou de Analysis
Situs, Einstein teria deixado de considerar justamente aquilo que foi a motivação de Riemann ao
criar a nova geometria que iria se tornar imprescindível para a formulação da Relatividade
Geral.
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perto de alcançar e que em grande medida se relacionava com sua noção metafísica de
Deus como inteligência supramundana, isso é, um ente que “necessariamente” tinha
que ter as ideias correspondentes ao espaço como relação ou aos espaços possíveis que
poderiam dar origem a espaços físicos; daí a contingência do espaço físico atual. Era
justamente o que permitiam as noções de “relação”, “ordem” e “situação” consideradas
do ponto de vista da Analysis Situs. Se o Deus leibniziano pode ser considerado
arquiteto e geômetra, é a partir dessa nova maneira de considerar o espaço.
Seja como for, boa parte do que Leibniz chamou de metafísica, na definição que deu
da analysis situs, e de infinito, quando tentava fazer compreender o quão era infinito o
intelecto divino, está incorporado no conceito de “hiperespaço” e “Hipergeometria” de
Poincaré. Do nosso ponto de vista, Leibniz teria chamado os entes desse ambiente de
“ideais reais” e, por isso, mesmo as relações entre eles podiam ser consideradas
verdadeiras; daí ele afirmar que a “verdade e realidade” das relações de espaço entre os
seres possíveis “estão fundadas em Deus, como todas as verdades eternas”. Para
Poincaré, a “realidade” dos objetos desse hiperespaço e as “verdades” de suas relações
já não mais precisam extrair sua força do fato de constituírem o próprio conteúdo do
entendimento divino.
Por fim, Poincaré, melhor que Einstein, parece ter compreendido bastante
adequadamente qual era o centro da argumentação de Leibniz contra Newton no que
dizia respeito aos aspectos mais fundamentais da polêmica espaço relacional versus
espaço absoluto; o francês teria compreendido que ela se baseava em toda uma nova
maneira de pensar os fundamentos da geometria, se baseava em novos princípios
matemáticos da filosofia natural.
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PIAUÍ, William de Siqueira. Realidade do ideal e substancialidade do mundo: sobrevoando e
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POINCARÉ, Henri. Analysis Situs. In: Journal de L’École Polytéchnique, 2° s., 1985, pp. 1-122.
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POPPER, Karl. R. Conjecturas e refutações. Trad. Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina,
2003.
Abstract: We intend to discuss part of the influence of what Leibniz called Analysis Situs (in a series of
texts written around 1679) on his posterior methaphysic and to put in question some of the varied
associations we can set up among Leibniz, Newton, Poincaré and Einstein‟s points of view about the
general subject regarding the genesis of space‟s notion.
Key-words: Leibniz, Newton, Poincaré, Einstein, Metaphysics, Geometry, Space.
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relaciones entre inferencia abductiva y razonamiento basado en