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A prisão preventiva:
uma leitura conjuntural
Conceição Gomes
A
justiça portuguesa tem sido, nos últimos meses,
objecto dos mais diversos debates. A informação
da existência de indícios da prática do crime de
pedofilia, por pessoas social e politicamente poderosas, e
a sua prisão preventiva levaram à realização de reality
shows, debates e artigos de opinião sobre o direito e a justiça, o desempenho dos tribunais e dos agentes judiciais,
sem precedentes na história da comunicação social portuguesa. A questão do segredo de justiça, a relação entre os
tribunais e a comunicação social e a questão da prisão
preventiva são três das questões centrais do debate. Centro-me neste artigo nesta última questão.
Aquelas três questões, apesar de distintas, estão relacionadas. São, por vezes, outras perspectivas sobre os mesmos fenómenos. Por exemplo, a questão do segredo de
justiça surge, frequentemente, associada à necessidade de
efectivação do direito de defesa de um cidadão sujeito à
aplicação da medida de prisão preventiva. Mas o segredo
de justiça e a prisão preventiva podem, também, ser fundamentais para garantir o êxito da investigação no âmbito da chamada criminalidade complexa, cometida por
pessoas política e economicamente poderosas e com recurso a sofisticados meios.
Não é tarefa fácil encontrar os critérios que permitam
conciliar os diferentes direitos e interesses em conflito
que, obviamente, não podem ter o mesmo alcance e a
mesma intensidade de protecção em todos os tipos de
crime e em todos os processos. Mas é, sem dúvida, necessário encontrá-los. Para tal, é fundamental um amplo debate social fora de pressões de ordem conjuntural que tendem a exacerbar argumentos e posições, bem como é,
ainda, necessário que as soluções encontradas o sejam no
quadro de uma visão sistémica do judicial.
Por outro lado, a questão da prisão preventiva e, sobretudo, a realidade socialmente construída sobre ela não
pode perder de vista os problemas subjacentes ao crescente interesse dos meios de comunicação social no direito e
nas suas instituições, em especial nos tribunais, como, por
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exemplo, a prevalência social do discurso mediático sobre
o discurso judiciário, para os quais é necessário encontrar
solução. A não serem sanados, aqueles problemas desqualificam a justiça contribuindo fortemente para a sua deslegitimação social e política. Considerando que estamos
perante campos em que se cruzam diferentes interesses e
lógicas informacionais e comunicacionais, é fundamental
que se construa uma outra relação entre justiça e comunicação social que permita um maior equilíbrio entre o
direito de informar e ser informado com rigor, o respeito
pelos direitos individuais e de cidadania e, sempre que se
justifique, pelo espaço e tempo da justiça.
Um dos vectores do debate social sobre a questão da
prisão preventiva está relacionado com o próprio conhecimento da sua expressão estatística. Não raro encontramos relações de grandeza muito diferenciadas sempre que
se debate esta questão. Na verdade, um dos problemas
que, de imediato, se levanta quando queremos analisar a
aplicação daquela medida de coacção resulta da dificuldade de conhecermos, com rigor, o número de arguidos presos preventivamente nas diferentes fases processuais: inquérito, instrução, julgamento e fase de recurso. As estatísticas oficiais da justiça permitem-nos conhecer o número de presos preventivos nos estabelecimentos prisionais
portugueses (em Janeiro de 2003 eram cerca de 4.000),
mas uma análise mais detalhada só é possível relativamente aos arguidos em situação de prisão preventiva à data de
julgamento. São alguns desses indicadores que se apresentam nesse artigo na expectativa de que eles possam ajudar
na contextualização da aplicação desta medida.
O Quadro que a seguir se apresenta mostra, para a última década, a relação entre o número de arguidos e a sua
situação processual à data de julgamento.
A primeira verificação é que, de entre as medidas de
coacção aplicadas, há uma clara prevalência do Termo de
Identidade e Residência (TIR), com um peso relativo, em
2001, de 80%1. Naturalmente que o volume de aplicação
desta medida está em consonância com o padrão da cri-
O TIR só é estatisticamente considerado quando é a única medida de coacção aplicada.
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Situação processual dos arguidos à data do julgamento
Processos findos
(1990 – 2001)
Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça.
minalidade prevalecente em julgamento. Em 2001, cerca
de 58% da criminalidade julgada correspondia apenas aos
seguintes cinco tipos de crime: condução de veículo em
estado de embriaguez (20,3%), condução sem habilitação
legal (18,4%), ofensa à integridade simples e privilegiada
(9,1%), emissão de cheque sem provisão (6,4%) e desobediência (3,9%).
A segunda verificação é que, ao longo da década, registou-se um aumento significativo dos arguidos que à
data de julgamento se encontravam encarcerados, quer
em prisão preventiva, quer em cumprimento de pena. De
acordo com as estatísticas da justiça, em 1990 o número
de arguidos naquela situação era de 1.612; enquanto que
em 2001 passou para 5.769.
A terceira e última verificação é que a actividade judicial
é bastante selectiva na aplicação das medidas de coacção, fazendo uma baixa utilização de outro tipo de medidas, como
a prestação de caução e a obrigação de permanência na habitação, medidas com pouca expressão estatística.
Naturalmente que a aplicação da medida de prisão
preventiva é condicionada pela verificação dos seus pressupostos, entre eles, a moldura penal e o tipo de crime.
No período 1990-2001, aquela medida foi, sobretudo,
aplicada a arguidos, suspeitos do cometimento de cinco
tipos de crime: tráfico e outras actividades ilícitas (simples
ou agravado); tráfico de quantidades diminutas; furto
qualificado, roubo e homicídio, que, no seu conjunto, representam, em média, 84% dos arguidos a quem foi aplicada a medida.
Considerando, ainda, a natureza da criminalidade objecto de aplicação daquela medida, merece especial referência o crescimento exponencial dos crimes de tráfico.
Em 1990, a prisão preventiva foi aplicada a 160 arguidos
suspeitos pelo cometimento de crimes de tráfico; em
2001 este número tinha subido para 1.119, representando cerca de 45% do total dos arguidos a quem foi aplicada aquela medida de coacção. Naturalmente que o regime
jurídico previsto na chamada Lei da Droga, publicada em
1993, e as sucessivas alterações de 1996 e 2000, é poten-
ciador da verificação daquelas taxas, o que leva a que,
também por essa razão, deva ser ponderada a sua revisão.
Ainda no domínio da análise estatística desta questão,
merece destaque duas notas finais. A primeira diz respeito
à extinção do procedimento criminal para os arguidos presos preventivamente. Ao longo da década, a grande maioria dos arguidos presos preventivamente à data do julgamento foram condenados – em média cerca de 91,7%.
Contudo, desde o início da década, o peso relativo das absolvições tem registado uma tendência de crescimento. Em
1990, dos arguidos presos preventivamente à data de julgamento, 32 (3,2%) foram absolvidos; enquanto que, em
2001, esse número aumentou para 140 (5,6%). Todavia, se
considerarmos o tipo de pena aplicada aos arguidos sujeitos à medida de coacção prisão preventiva, verificamos que
a um número significativo não é aplicada qualquer pena
que leve ao seu encarceramento. Considerando o ano de
2001, cerca de 5,6% dos arguidos presos preventivamente
à data de julgamento foram absolvidos e dos que foram
condenados, 25% não foram condenados ao cumprimento de pena de prisão efectiva.
A segunda nota diz respeito à duração da medida. Decorre da análise estatística que, ao longo da década de 90, se regista um aumento significativo da duração efectiva da medida de prisão preventiva. Em 1992,
54,2% (1509) dos arguidos sujeitos a prisão preventiva
permaneceram nessa situação por um período inferior a 6
meses, 35, 5% (990) entre 6 e 1 ano; e 10,3% (286) das
prisões preventivas tiveram uma duração superior a 1 ano.
Em 2001, apenas 31,4% (777) dos arguidos em prisão
preventiva estiveram nessa situação menos de 6 meses;
47,7% (1 181) entre 6 meses e 1 ano; e cerca de 21%
(516) mais de 1 ano.
A duração da medida de prisão preventiva considerando, quer o quadro normativo em vigor, quer a sua
aplicação, é um dos vectores desta questão para o qual é
necessário encontrar respostas, não só de carácter legal,
mas também que promovam a celeridade e a eficácia do
sistema judicial globalmente considerado.
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