RESENHA: Schlegel, Jean-Louis. A lei de Deus contra a liberdade dos homens: Integrismos e fundamentalismos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2009, 140 p. A Recusa Religiosa da Liberdade Humana Evaldo Becker 1 Democracia, liberdade, autonomia, laicidade, tolerância, respeito à diversidade, e desenvolvimento livre da razão e de seu potencial crítico são temas cada vez mais atuais e necessários ao estabelecimento e consolidação dos valores básicos da modernidade. Estes são alguns dos temas apresentados em linguagem clara e direta por Jean-Louis Schlegel, em A lei de Deus contra a liberdade dos homens, livro no qual o autor examina as principais seitas integristas e fundamentalistas e sua recusa encarniçada e dogmática de tudo o que dignifica o homem e que lembre que este é ou deve ser o senhor de seu destino e o responsável pela condução dos rumos de sua sociabilidade. Partindo da distinção entre integristas e fundamentalistas, sejam eles católicos, protestantes, judeus ortodoxos ou islamitas, o autor tenta ao mesmo tempo caracterizar suas especificidades e apontar os traços que os identificam, mostrando que o cerne de suas convergências pode ser facilmente identificado como o desprezo pela tolerância e pela aceitação da diversidade de crenças e de posicionamentos acerca da condução dos valores pessoais. O autor aponta não só a recusa do diálogo com religiões distintas mas o próprio acirramento de posições que faz com que estes grupos com posturas acríticas se isolem e condenem a própria religião da qual fazem parte quando setores destas resolvem atualizar suas posturas e aceitar o diálogo em pé de igualdade com outras religiões ou com setores da sociedade civil tais como a ciência e as instituições republicanas. Mostra que estes grupos que se apegam à leituras ao pé da letra dos textos fundamentais de suas doutrinas, desconsideram toda e qualquer atualização de visões de mundo ou adequação dos textos canônicos às demandas da sociedade atual, gerando posturas intolerantes pautadas em noções estreitas de 1 Professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe. 134 Cadernos UFS Filosofia, Fasc. XIII, vol. 8, agosto a dezembro de 2010 ‘verdades’ inquestionáveis. Apresenta a intrínseca relação entre estas leituras dogmáticas e intolerantes e os principais conflitos atuais, sejam eles no âmbito do terrorismo ou das ‘guerras tradicionais’ que assolam nosso mundo contemporâneo. Longe de atacar os valores religiosos o autor concentra-se nos radicalismos e mostra que estes grupos, mesmo sendo minorias no seio das grandes religiões da humanidade, adquirem visibilidade por suas posturas refratárias às aquisições dos últimos séculos. ESTADO, RELIGIÃO E AUTONOMIA “Uma fé, uma lei, um rei”. Schlegel mostra que mais de uma vez os soberanos viram-se tentados a resolver de maneira autoritária, pela expulsão ou pela conversão forçada, os problemas resultantes da diversidade de credos. O Estado moderno nascido de uma tentativa de unificação da língua, da lei, do credo e do poder vai aos poucos evoluindo no sentido da tolerância, da aceitação da pluralidade, e dos direitos das minorias. Mas este processo louvado como o supra-sumo da razão humana foi e continua sendo desprezado por todos aqueles que se julgam os detentores de verdades únicas e exclusivas, que em posturas claramente simplistas e maniqueístas colocam o bem do seu lado e o mal como sendo toda e qualquer postura divergente da sua. Partindo-se da constatação de que a modernidade caracteriza-se pela nítida separação entre Estado e religião, e onde o âmbito da crença passa a ser pautado pela liberdade de culto e pela tolerância dos mais variados credos, o autor mostra que este processo de separação nasceu e se consolidou em meio a muita luta e violência, mas que ao fim e ao cabo, acabou por deflagrar as ideias revolucionárias de autonomia, tolerância e esclarecimento. Este processo penoso que possibilitou aos homens, ao menos teoricamente, a possibilidade de sair de seu estado de menoridade, e de fazer uso de sua própria razão sem a tutela do estado ou de qualquer seita, é visto por grupos integristas e fundamentalistas como sendo o responsável pelos males atuais e nesse sentido, como algo a ser combatido. O autor enfatiza os dois “modelos” de tratamento político do fenômeno religioso, o modelo francês de separação entre religião e política, no qual a religião passa a ser unicamente uma questão privada dos indivíduos, onde o Estado apenas assegura a liberdade de culto, mas onde a religião é esvaziada de qualquer papel ou influencia política; e o modelo visto nos Estados Unidos, onde verifica-se uma grande pluralidade religiosa, mas onde as referências a Deus são amplamente difundidas na política em praticamente todas as intervenções públicas, em frases como “Deus salve a América” ou mesmo nas notas de Dólar onde se lê a frase “Em deus nós confiamos”. A partir desta constatação destes dois parâmetros de compreensão do papel da religião no espaço público o autor questiona a ideia de que as religiões devem ser remetidas à esfera privada ou se estas podem ter uma participação mais ativa no convívio democrático, afirmando que “a visibilidade religiosa não é, em si, condenável nem anti-democrática”. Ao longo de seu livro, contudo, podemos perceber que setores fundamentalistas quando aliados aos governantes no poder Cadernos UFS Filosofia, Fasc. XIII, vol. 8, agosto a dezembro de 2010 135 tendem a fomentar “guerras santas”, “cruzadas” e posturas francamente reacionárias, e combativas contra a liberdade, seja sexual, política ou científica. Em um mundo no qual proliferam as guerras e os ataques intolerantes, em um mundo no qual amplos setores preferem trabalhar com verdades inquestionáveis e onde a técnica permite que os conflitos sejam cada vez mais nefastos, em um mundo no qual ainda se recusa a possibilidade de que os indivíduos decidam autonomamente como querem ser felizes, e onde setores reacionários dos mais variados credos lutam para entrar na política com vistas a propor proselitismos e conversões forçadas; torna-se cada vez mais premente o esclarecimento e o debate público acerca do que seja uma vida republicana e plural. Nesse sentido, fica a indicação e o desejo de que as pretensas “leis de Deus” não esmaguem e atravanquem a liberdade dos homens, e de que estes possam conviver harmonicamente em meio a uma diversidade saudável dos credos e dos posicionamentos, políticos ou sexuais.