A ÊNFASE NA LINGUAGEM FORMAL EM TEMPOS DO MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA APARECIDA RODRIGUES SILVA DUARTE, VALTAÍS APARECIDA LOPES SARTIRO Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Universidade Bandeirante de São Paulo Av. Braz Leme, 3029 – 02022-011 – São Paulo – SP – Brasil Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli Universidade do Vale do Sapucaí Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre – MG – Brasil [email protected],[email protected] Resumo. O artigo analisa as marcas e implicações da Teoria dos Conjuntos na obra “Matemática para o curso fundamental”, utilizado durante o Movimento da Matemática Moderna (MMM). Procurou-se entender como se processaram os esforços para a valorização da linguagem no ensino de Matemática, fundamentando-se em Choppin (2000) e Valente (2003). Em toda a obra, enfatizou-se os símbolos matemáticos, mostrando a importância creditada à escrita formal e ao rigor matemático. Palavras-Chave. Movimento da Matemática Moderna. Teoria dos Conjuntos. Livro Didático. Abstract. The article analyzes the/marks and implications of the Set Theory in the work “Matemática para o curso fundamental”, used during the Mathematics Modern Movement (MMM). The intention was to understand how the efforts for the appreciation of the language in teaching mathematics was processed, based on Choppin (2000) and Valente (2003). Throughout the work, the focus was on mathematical symbols, showing the importance of the formal writing and mathematical rigor. Keywords. Mathematics Modern Movement. Set Theory. Textbook. 1. Mudanças no currículo de matemática: a inserção da Teoria dos Conjuntos nos manuais escolares “Movimento da Matemática Moderna” (MMM) é o nome dado a um movimento internacional ocorrido entre as décadas de 1950 a 1970, que almejava alterar a Matemática escolar daquela época, visando inserir na Matemática escolar conteúdos da Matemática adotados no Ensino Superior. Essa idéia adveio da necessidade de adaptar o ensino escolar às novas exigências colocadas pelo desenvolvimento científicotecnológico que se processava naquele período. Assim, nos currículos escolares passaram a integrar novos conteúdos matemáticos como a Teoria dos Conjuntos e a Álgebra Moderna, os quais demandaram da classe professoral uma remodelação de suas 1 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin práticas, causando forte impacto no cenário educativo nacional (DUARTE; SILVA, 2006). Para tanto, os currículos de Matemática foram reformulados, com ênfase na Teoria dos Conjuntos, que até então não figurava entre as matérias lecionadas no ensino secundário, enfatizando a substituição da linguagem corrente para a simbólica e axiomática (BRITO, 2005). Essas inovações curriculares desencadearam certo estranhamento entre os professores, pois a maioria deles desconhecia a Teoria dos Conjuntos e tiveram os primeiros contatos com esse conteúdo a partir dos novos livros didáticos oferecidos nas escolas, os quais apresentavam novas metodologias e introduziam conteúdos inéditos para serem trabalhados na escola secundária. (PINTO, 2006). A inserção da Teoria dos Conjuntos nos livros didáticos durante o MMM foi marcante, de tal modo que, hoje em dia, a linguagem da Teoria dos Conjuntos é usual nos livros didáticos de Matemática, nas práticas dos professores de Matemática e nas diversas publicações da área. Para investigar as marcas e implicações da Teoria dos Conjuntos deixadas nas práticas escolares mineiras nos anos 1960 a 1970, fez-se uso da obra “Matemática para o curso fundamental” de autoria de Reginaldo Naves de Souza Lima e Maria do Carmo Vila, destinado à 5ª série do Ensino Fundamental e publicado em 1972. 1 Escolheu-se esse manual por tratar-se de obra que exemplifica o uso da linguagem da Teoria dos Conjuntos em manuais escolares durante o MMM daquela época. A dependência de um curso de Matemática aos livros didáticos, é anterior ao MMM. A ligação direta entre compêndios didáticos e o desenvolvimento de seu ensino no Brasil é característica fundamental da Matemática escolar. Para Valente (2003), “talvez seja possível dizer que a Matemática constitui-se na disciplina que mais tenha a sua trajetória histórica atrelada aos livros didáticos” (p.220). Segundo Choppin (2000), o livro didático é uma importante fonte de pesquisa nas investigações históricas que estudam as práticas e os métodos escolares. São objetos complexos, cujos traços resultam de um grande número de parâmetros e que implicam interlocutores diversos. Desse modo, o manual escolar constitui-se em importante objeto de análise para os cientistas (CHOPPIN, 2000 p.110-111). Assim sendo, um estudo histórico voltado para a análise de livros didáticos durante o MMM, permite verificar o trajeto da disciplina escolar Matemática em suas novas matizes, quando se procurava ensinar conteúdos científicos para os adolescentes de um modo atualizado e acordados com o desenvolvimento tecnológico daquela época. 2. O livro didático “Matemática para o curso fundamental” Os professores de Matemática Maria do Carmo Vila e Reginaldo Naves de Souza Lima participaram ativamente do MMM, promovendo cursos e palestras em vários estados brasileiros. A proposta de renovação curricular efetuada por esses dois 1 Este trabalho de Iniciação científica contou com apoio da FAPEMIG (Bolsa PROBIC). professores culminou com a elaboração de uma coleção de livros didáticos intitulada “Matemática para o curso fundamental”. O objetivo dessa coleção foi tornar a Matemática da época mais acessível ao nível de compreensão do aluno, procurando despertar-lhe o gosto pela Matemática, desenvolver o raciocínio e o senso crítico, levando-o à criatividade. Para este estudo, apresentamos o exemplar dessa coleção destinado à 5ª série do Ensino Fundamental, publicado em 1972, uma vez que a Teoria dos Conjuntos foi amplamente utilizada em todas as lições da referida obra. A capa do manual denuncia, de antemão, tratar-se de um livro de Matemática diferenciado em diversos aspectos. De cor vermelha, é ilustrada com histórias em quadrinhos, cujas frases dizem respeito a conjuntos numéricos, conjugando imagens, palavras e símbolos. O livro didático foi fartamente ilustrado, sendo que as atividades, apresentadas procuravam evidenciar situações do cotidiano do aluno, por meio de uma linguagem simples, porém inserindo uma nova linguagem, qual seja, a da Teoria dos Conjuntos. 3. A inserção da Teoria dos Conjuntos no manual didático Com a intenção de verificar como Lima e Vila fazem a inserção da Teoria dos Conjuntos no livro didático “Matemática para o curso fundamental”, para a 5ª série, apresentamos algumas lições contidas no livro, como forma de exemplificar o tratamento dado pelos autores a esse ramo da Matemática. Primeiramente, através de uma história em quadrinhos, o leitor acompanha o diálogo entre um professor e seus alunos. O mestre desafia os alunos a citarem sinônimos para a palavra “porção”. Durante esse diálogo, ele escolhe um sinônimo para aqueles citados pelos alunos, apresentando o termo “conjunto”. Ainda, solicita que os alunos imaginem diversos tipos de conjuntos e citem exemplos. Esse tratamento, totalmente ilustrado, com conversas e trocas de informação num cenário de sala de aula, é recorrente em diversas partes do livro. Mesmo antes de ser apresentada a primeira lição, nota-se que os autores se preocuparam em dar a noção de conjunto, sugerindo que essa noção é primordial para o entendimento dos conteúdos propostos no livro didático. Em seguida, os autores citam outros exemplos de conjuntos e explicam que: “é conveniente usar letras maiúsculas para nomear um conjunto e letras minúsculas para nomear elementos” (LIMA; VILA, 1972, p.12). Essa parte, dedicada à leitura e simbologia da Teoria dos Números, é ilustrada com a figura de um aluno risonho e de óculos que, empunhando uma vareta, indica o símbolo matemático “Є”, que significa “pertence”, e instiga o leitor a memorizar essa notação: “Eu o desafio a não esquecer este símbolo”. Na Lição 6, os autores apresentam o conjunto referencial. Para tanto, usam como exemplo, um menino indo ao mercado fazer compras para a mãe e tomam como referencial o conjunto de mercadorias M ={arroz, feijão, cenoura, laranja, tomate}. Em seguida, formam um conjunto de legumes de M, representado por L ={cenoura, tomate}. Por meio de quadrinhos, as personagens chegam à conclusão que M é o conjunto referencial, no qual a partir dele se formou outro conjunto, o conjunto L. (LIMA; VILA, 1972). Na décima sexta lição apresenta-se a relação entre conjuntos. São usados dois conjuntos, um formado pelas iniciais dos nomes de cinco alunos A={C, K, P, Z, S} e outro pelas iniciais dos nomes de esportes que cada um deles pratica E={v, f, n, b, t}. Esses conjuntos são mostrados através de diagramas, ligando o nome de cada aluno ao esporte que pratica por meio de flechas. Os autores explicam que esses conjuntos representam o Domínio e o Contradomínio da relação, conceitos matemáticos integrantes do conceito de relação entre conjuntos. Na lição 37, apresenta-se a aplicação de um conjunto em outro conjunto, por meio de uma historieta ilustrada sobre uma pescaria, na qual dois garotos pescam o mesmo peixe. Na seqüência, em diagramas, mostram os conjuntos P de peixes e G de garotos. Toda a explicação efetuada, até chegar na definição do que vem a ser uma função, é realizada por meio de ilustrações, num diálogo constante com o leitor. A lição 43 trata das Operações entre Conjuntos. Para tanto, utilizam-se de desenhos, intitulados “figuras falantes”, de modo que, para se obter uma figura do tamanho igual ao do desenho de um prisma listrado, é preciso juntar duas outras figuras. Fig. 1 – Operações entre conjuntos Para esse tópico, os autores fazem uso de uma narração com personagens e acontecimentos do mundo imaginário, num episódio em que uma criança mostra ao leitor um filme, cujos “atores” são prismas. Assim, os autores fornecem imagens que representam objetos de forma concreta, de modo a promover o aprendizado. Discorrese, então, sobre a união e intersecção de dois conjuntos, explicando como se faz a leitura da união e interseção entre conjuntos e, em seguida, apresentam a definição formal desses conceitos. Na lição 51 os autores apresentam os Conjuntos Finitos e Conjuntos Infinitos. Por meio de quadrinhos, os autores apresentam exemplos relacionados a tais conjuntos. Questionam seus leitores se os exemplos apresentados são Finitos ou Infinitos e, logo após, explicam o motivo pelo qual cada um dos conjuntos é finito ou infinito. Fig. 2 – Conjuntos finitos e infinitos Na seqüência, Lima e Vila afirmam que “chama-se Conjunto Finito todo conjunto que pode ser ordenado de modo que todas as suas partes tenham Primeiro e Último elemento”. E ainda, “Chama-se Conjunto Infinito todo conjunto que pode ser ordenado de modo que pelo menos uma de suas partes não tem Primeiro ou Último elemento” (LIMA; VILA, 1972, p.174 ). Da lição 52 em diante, os autores dedicam-se a apresentar o Conjunto dos Números Naturais, suas operações e propriedades e, em seguida, o Conjunto dos Números Inteiros. Comentam que os conjuntos dos números naturais não são suficientes para resolver vários tipos de problemas. Finalizam mostrando que o Conjunto dos Números Inteiros é formado pelos Números Naturais e pelos Números Negativos, representando-o simbolicamente: “Z = {..., -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3,...}” (LIMA; VILA, 1972, p.249 ). Procuramos mostrar, apresentando algumas lições do livro de Lima e Vila, que as histórias em quadrinhos foram amplamente utilizadas para a compreensão de conceitos matemáticos apresentados na linguagem da Teoria dos Conjuntos. Ao considerar as histórias em quadrinhos como veículo de comunicação poderoso possivelmente os autores vislumbraram um modo de inserir uma linguagem técnica, rigorosa, de uma forma envolvente, por meio de personagens que promovem a identificação do leitor-personagem, uma vez que as personagens são alunos adolescentes e os cenários são lugares conhecidos, como a escola, a praia, etc. Considerações finais A Teoria dos Conjuntos, que antes do MMM vinha sendo ministrado apenas no Ensino Superior, passou, a partir do Movimento, a integrar o currículo do ensino secundário e se mantém nos currículos atuais, embora atualmente seja apresentada de uma forma menos simbólica e rigorosa do que o modo como foi explanada no livro didático que exemplificou este estudo. Observou-se que o referido livro didático foi elaborado tendo como base o diálogo entre os autores e seus leitores, no caso, alunos na faixa etária compreendida entre dez anos e onze anos. As histórias em quadrinhos foram largamente utilizadas, indicando que os autores tiveram a pretensão de motivar os leitores a compreender os conteúdos matemáticos de uma forma lúdica, facilitando a memorização, desenvolvendo ligações entre o visual e o verbal, favorecendo, assim, a compreensão da linguagem da Teoria dos Conjuntos. Os autores explicam as principais definições, formas de tratamento e simbologia empregada na Teoria dos Conjuntos e vai travando um diálogo com o leitor, sempre acrescentando novas noções até culminar com a apresentação do conjunto dos números inteiros. Observou-se ainda, a preocupação com o desenvolvimento dos conteúdos apresentados, de modo que as atividades prescritas foram pouco a pouco se tornando mais elaboradas, em que a simbologia foi se fazendo cada vez mais presente, até atingir certo grau de abstração. Assim, foi possível verificar que os autores enfatizaram nas lições apresentadas, os símbolos matemáticos, mostrando a importância creditada à escrita formal e ao rigor matemático. A Teoria dos Conjuntos foi amplamente utilizada e, apesar das histórias contadas como forma de motivar a criança à leitura, ocorre concomitantemente a inclusão de símbolos e da linguagem formal, representada pela linguagem da Teoria dos Conjuntos, denotando que essa linguagem foi marca significativa no MMM Referências BRITO, A. J. O movimento da matemática moderna no Instituto de Matemática da UFRN. Anais do V CIBEM. Porto/Pt, 2005. Disponível em: <http:// www.mytwt.net/cibem5/> Acesso em: 10 set. 2008. CHOPPIN, A. Pasado y presente de los manuales escolares. Traduzido por Mirian Soto Lucas. In: La Cultura escolar de Europa: tendências históricas emergentes. Editorial Biblioteca Nueva, S.L., Madrid, 2000. DUARTE, A. R. S., SILVA, M. C. L. Abaixo Euclides e acima quem? Uma análise do ensino de geometria nas teses e dissertações sobre o movimento da matemática moderna no Brasil. Revista Práxis Educativa. 2006, p.87-93. PINTO, N. B. Práticas escolares do movimento da matemática moderna. Anais do IV COLUBHE. Uberlândia. 2006. Disponível em <http://www.faced.ufu.br/ colubhe06/anais>. Acesso em: 10 set. 2008. VALENTE, W. R. (coord.) A matemática moderna nas escolas do Brasil e de Portugal: estudos históricos comparativos (CAPES/ PUC-SP). 2005.