UMA REFLEXÃO ACERCA DA FORMAÇÃO PEDAGÓGICA DE PROFESSORES COM
FORMAÇÃO MATEMÁTICA
Maria Cecilia Bueno Fischer
UNISINOS, São Leopoldo, RS
Resumo
O trabalho aborda resultado de pesquisa realizada com professores de um Curso de Licenciatura em Matemática,
que se centrou na relação entre o campo científico da matemática e as práticas de avaliação da aprendizagem
realizadas por tais professores. A pesquisa apontou algumas características constituintes do habitus do professor da
área, tais como: a busca pela objetividade, a concepção positivista de rigor no trato da ciência matemática, a adoção
de posturas pouco flexíveis, especialmente na avaliação, e um descrédito pelo fazer pedagógico. A partir de tais
resultados, o trabalho discute a formação pedagógica do professor da Licenciatura em Matemática, apontando a
necessidade de uma reflexão acerca de tal formação, que não desconsidere a contribuição do habitus dos
professores da área na formação de suas práticas pedagógicas.
Palavras-chave: Licenciatura em Matemática. Habitus. Formação Pedagógica.
Uma introdução
Em pesquisa realizada com professores de um curso de Licenciatura em Matemática, entre 2002 e 2003, a
questão em foco foi a relação entre o campo científico da Matemática e as práticas avaliativas de tais professores,
nesse curso.
O estudo realizado mostrou que os professores ainda refletem, em suas práticas de avaliação, muitas das
concepções acerca do conhecimento matemático construídas com base no discurso da modernidade. As
características apontadas, a partir da pesquisa, como constituintes do habitus (no sentido tomado por Bourdieu)
desse professor, como a busca pela objetividade, a concepção positivista de rigor no trato dessa ciência, um certo
descrédito pelo fazer pedagógico e a adoção de uma postura pouco flexível, têm fortes marcas desse paradigma de
ciência (FISCHER, 2004). Embora as bases epistemológicas desse modelo tenham entrado em discussão a partir do
século XVIII, o modelo matematizante é “extraordinário e não podemos nem devemos abrir mão dele. É uma das
maiores e mais plenas criações do gênio humano”, como destaca Pessanha (1997, p. 20), observando, por exemplo,
que “um teorema grego tem a grandeza e a luminosidade de uma peça musical de Mozart”, por dar um gozo estético
e intelectual.
A Matemática ocupou um lugar central na ciência moderna, onde seu discurso é considerado o científico, o
legítimo, o verdadeiro. Nesse contexto, conforme observa Pessanha (1997, p. 17), quando me afasto da verdade
matemática sobre as coisas e “deixo que a minha imaginação, minha vontade e meu gosto interfiram, caio outra vez
no dissenso, no litígio e na desarmonia”, acrescentando, ainda:
se quero ordem, unidade, clareza, armistício, paz, por que não fazer da Matemática a linguagem mestra e
disciplinadora de todas as línguas? Se eu conseguir matematizar todos os campos do conhecimento,
introduzindo aquela harmonia interna que a matemática manifesta, quem sabe não consigo o consenso, a
identidade de opinião, o desaparecimento da dúvida e do ceticismo? (PESSANHA, 1997, p. 17).
Trazendo essas questões para os dias de hoje, podemos perguntar: será que almejamos o desaparecimento
da dúvida com o ensino da Matemática? E quando avaliamos nosso aluno, ao corrigirmos suas produções ou mesmo
quando atendemos a uma pergunta sua, estamos admitindo a dúvida – a dele e a nossa? Mesmo que o ensino da
Matemática possa ter-se edificado nessas bases, de verdades absolutas e inquestionáveis, a relação entre professor e
aluno, nos processos de ensino e de aprendizagem e, particularmente, no que diz respeito à avaliação, não é
matematizável!
Como ainda aponta Pessanha, “a razão ocidental se empobreceu a partir da modernidade, quando fez a
opção exclusiva pelo modelo matemático. O valor desse modelo é incalculável, mas não pode ser utilizado
efetivamente no campo do contingente, do concreto, do histórico e do humano” (1997, p. 27). O autor propõe,
como alternativa à racionalidade técnica do modelo matemático, a utilização de uma racionalidade vinculada à
linguagem natural, em que o modelo é necessariamente dialógico. Como diz, “enquanto a verdade absoluta,
a-histórica e atemporal pretende organizar-se de forma unívoca, de uma vez por todas e para sempre, a razão do
tipo dialógico, inerente ao discurso natural, se constrói e se reconstrói numa permanente abertura” (op. cit., p. 28).
Pessanha (1997), neste seu belo texto sobre racionalidade, imaginação e ética, descreve uma professora
que o marcou fortemente. Professora de Matemática, era uma excelente expositora, segundo sua descrição. Com
ela, “a matemática era tudo aquilo que tinha de ser: claridade pura”, quando ficava “no quadro-negro demonstrando
aqueles teoremas complicadíssimos”. Ao chegar à conclusão, “virava para a classe e estava esplêndida, ruborizada,
feliz, de uma felicidade imensa”. Também os professores que entrevistei, sujeitos da pesquisa que realizei para o
doutorado, mostraram um pouco desse deslumbramento com a Matemática. Assim expressaram-se eles: “uma
maravilhosa construção do espírito humano”; uma “ciência rica e altamente desafiadora”, com “potencialidade de
construir objetos com total abstração”; “uma experiência fascinante”, com destaque às suas aplicações, “nem sempre
imediatas”, à sua “linguagem universal” que “unifica tudo” e à “beleza do raciocínio e das criações” nessa ciência.
Esses depoimentos podem ser sintetizados na expressão de um dos professores entrevistados: “nada é mais belo,
atraente e poderoso do que a Matemática”.
É por essa força, esse charme e fascínio que a Matemática é uma das maiores seduções que o homem
constituiu. Cabe discutir, portanto, como é que tais atributos têm se refletido nas práticas de ensino e, especialmente,
de avaliação dos professores. Mais propriamente, como é que as concepções dos professores acerca dessa ciência,
manifestadas por expressões como essas, relacionam-se com seus procedimentos de ensinar e de avaliar. Desta
forma, então, cabe também discutir como é que concebem a aprendizagem e a avaliação.
Formação pedagógica dos professores de Matemática: onde ela acontece?
Entre os professores que entrevistei na pesquisa, foi predominante a concepção de que o domínio do
conteúdo supera a necessidade de outros saberes, relacionados à prática docente. Os professores manifestaram que
privilegiam os saberes acadêmicos na formação dos alunos da Licenciatura e consideram que tais saberes são
suficientes para a formação pretendida. Os professores, ao assumirem tal postura, o estão fazendo por acreditarem
que é assim que deva ser, provavelmente por não considerarem outra alternativa. Esta disposição, entre outros
elementos, está presente na constituição do habitus do professor de Matemática.
Não podemos esquecer que os professores, cuja formação os capacita em termos de conhecimento mais
aprofundado nesse campo, são oriundos de cursos de Bacharelado e, em seqüência, de cursos de Mestrado e
Doutorado em Matemática Pura ou Aplicada. Em tais cursos, como é sabido, não há disciplinas ou qualquer outra
atividade que os prepare para a docência. Esses professores chegam à Universidade, onde vão lecionar num curso
de formação de professores e, a menos de alguma iniciativa institucional nesse sentido, terão que “aprender” a
docência na prática. Embora considere a importância dos saberes da experiência para o exercício da docência, o que
a pesquisa também mostrou, eles são insuficientes para darem conta das inúmeras situações que o professor terá que
enfrentar no seu trabalho cotidiano.
Não quero afirmar, com isso, que os professores não sejam capazes de lidar com as diversas situações,
próprias da prática docente. A questão que se apresenta é quanto às suas concepções do que seja o processo de
ensinar e de “fazer (e deixar) aprender”, utilizando uma expressão de Anastasiou (2002, p. 175). Conforme esta
autora, além de outros autores que fundamentaram minha pesquisa (Fiorentini (1998), Tardif (2002), Kuenzer
(2002)), assim como é preciso “a apropriação dos saberes científicos para o crescente domínio quanto em cada
área, é necessário a apropriação dos saberes pedagógicos para o exercício competente da docência”
(ANASTASIOU, op. cit., p. 185), salientando que competência é tomada no sentido de um conjunto de
capacidades que se apóiam em conhecimentos não estáticos, que precisam ser construídos em processo. Acredito
que essa construção, conforme coloca Anastasiou (op. cit.), passa pela pesquisa das questões e desafios da própria
realidade, processo que deve ser realizado no exercício da docência, quotidianamente.
Para Rios (2002, p. 168), não se pode qualificar como competente “o professor que apenas conhece bem
o que precisa ensinar ou que domina bem alguns recursos técnicos ou que usa sua sensibilidade para trabalhar as
relações pessoais, ou que tem um engajamento político”. O sentido dado por Rios (op. cit.) ao termo competência,
também usado por Anastasiou (2002), refere-se ao conjunto dessas propriedades, envolvendo o caráter técnico,
estético, ético e o político. Sua definição de competência refere-se sempre “a um fazer que requer um conjunto de
saberes e implica um posicionamento diante daquilo que se apresenta como desejável e necessário”, onde o saber, o
fazer e o dever são historicamente situados, “construídos pelos sujeitos em sua práxis” (RIOS, 2002, p. 167).
Muitos dos professores, com quem dialoguei na pesquisa, não tiveram a formação para o domínio dos
saberes para ensinar. Assim, essa competência precisa ser construída, o que deverá acontecer, então, na própria
prática de tais docentes, mas não somente nela. A prática docente os vai alimentando de experiências. Mas, sem uma
reflexão mais detida, mais aprofundada, nos significados dessas experiências, não acredito que estarão constituindo,
propriamente, os saberes para ensinar, tal como refere Rios (2001).
Reafirmo a importância dos saberes específicos da área de Matemática na formação do aluno, futuro
professor da Escola Básica. Ressalto, no entanto, que os professores, ao se preocuparem apenas com o conteúdo
que estão ensinando, manifestam suas concepções acerca do que seja o processo de formação do professor de
Matemática.
A contribuição do habitus
Ao salientar a contribuição do habitus para a constituição das práticas docentes, penso que muitas delas
são reforçadas por, justamente, estarem associadas a um grupo, no caso, dos professores de Matemática. Produz-se
assim, conforme assinala Martins (2002, p. 174), “uma espécie de solidariedade entre os indivíduos dotados de um
habitus de grupo”, por compartilharem “um conjunto de condições objetivas semelhantes”, que acabam por
apresentar certa regularidade às suas práticas. É oportuno destacar, no entanto, tal como Bourdieu (1983) refere,
que o habitus não é o produto da obediência a regras nem da ação organizada de um regente e além disso, a meu
ver, há parte da história de cada indivíduo também presente na constituição desse habitus. Ainda segundo Martins
(op. cit., p. 173), o habitus, como produto da história, assegura “em cada indivíduo a presença ativa de experiências
passadas sob a forma de esquemas de pensamento, percepção e ação”, contribuindo para “garantir a conformidade
das práticas e sua constância ao longo do tempo”.
Martins (2002, p. 174) destaca, também, que o habitus possui uma dimensão inconsciente para o ator,
“uma vez que este não detém a significação da pluralidade de seus comportamentos nem dos princípios que estão na
gênese da produção de seus esquemas de pensamentos, percepções e ações”. Destaca, ao mesmo tempo, que o
habitus possibilita “a criação de novas modalidades de conduta dos atores sociais, propiciando-lhes, de certa forma,
produzir determinadas ‘improvisações regradas’” (MARTINS, 2002, loc. cit.) [grifo do autor].
Nesse sentido, penso que as relações estabelecidas entre as concepções dos professores e suas práticas
docentes podem ser analisadas à luz das dimensões do habitus, aqui apontadas. Ao mesmo tempo em que age, de
certa forma, inconscientemente, o professor pode ajustar suas práticas às contingências do momento ou das
circunstâncias, propiciadas por essa matriz de percepção, apreciação e ação, que é o habitus.
Já perguntava, entre as questões que coloquei inicialmente para a pesquisa, em que medida o professor teria
consciência de que suas concepções influenciam suas práticas docentes, especialmente as relativas à avaliação. Na
maioria das falas, os professores justificaram suas escolhas e seus procedimentos avaliativos sem manifestarem,
propriamente, ser esse um processo consciente, na relação com a forma como concebem a Matemática. Há, no
entanto, algumas indicações de que possam ter ciência de que essas coisas estejam relacionadas. É o caso, por
exemplo, quando dizem que “na nossa área não tem meio termo” ou “a gente é assim: dois mais dois é quatro e não
tem muita opção!” Na minha compreensão, é possível que aqui se situe a dimensão inconsciente, para o professor,
do seu habitus, conforme já salientado, embora a pesquisa realizada não tenha focado, propriamente, a questão.
Como conclusão: a necessidade de uma reflexão, a partir dos elementos constitutivos do habitus do
professor de Matemática
Como ficou evidenciado na investigação realizada, as concepções dos professores de Matemática, tanto
sobre esse campo de saber científico como sobre os processos de ensinar e aprender, e suas práticas de avaliação
estão fortemente relacionadas. Nesse sentido, querer que tais práticas se modifiquem significa oportunizar condições
para que suas concepções possam também ser modificadas.
Esta não é uma questão simples, a meu ver, pois diz respeito às condições viabilizadoras de uma mudança.
Refiro-me não só às condições internas, próprias de cada professor, de conscientização e disposição para uma
modificação em suas concepções e em sua prática, mas também às externas, que se relacionam ao ambiente, ao
contexto, ao grupo em que os professores estão inseridos e aos agentes provocadores e condutores de uma reflexão
acerca do assunto. Quero dizer, com isto, que uma mudança não ocorre pura e simplesmente pela intenção de que
ela ocorra. A reflexão, necessária a uma mudança, terá que ser realizada a partir das concepções, ou dos elementos
constitutivos do habitus do professor de Matemática, conforme já salientado. Na minha compreensão, qualquer
discussão será infrutífera se não envolver esses elementos ou disposições, tão próprias do professor de Matemática,
que estão vinculadas a esse campo de saber científico. De nada vai adiantar provocar uma discussão acerca de
questões educacionais de uma forma genérica, pois um discurso desse tipo pouco ou nada provoca nos professores
dessa área, como já se verificou em inúmeras oportunidades, em reuniões realizadas com os professores do Curso
em questão.
Quando falo em reflexão, penso numa análise crítica do trabalho que realizamos e, nesse sentido, como
aponta Rios (2001, p. 46), “estamos questionando sua validade, o significado que ele tem para nós e para os sujeitos
com que trabalhamos, e para a comunidade da qual fazemos parte e que estamos construindo”.
Considero relevante, portanto, que pessoas com formação matemática tenham a oportunidade de
aprofundar os estudos nas questões educacionais e que assim, melhor fundamentadas, possam colaborar numa
reflexão com seus pares. Insisto que, a meu ver, é preciso um trabalho árduo de reflexão, que deve ser realizado de
forma a fazer sentido a esses professores e que possa ter, efetivamente, implicações em suas práticas docentes.
Esta consideração que faço está relacionada ao que já apontei como um dos elementos constitutivos do
habitus do professor de Matemática, que é o pouco crédito dado ao fazer pedagógico. Lembrando, ainda, o
conceito de campo científico, de Bourdieu (1983), de um espaço concorrencial onde se dá a luta pela autoridade
científica, é preciso considerar que os professores desse campo de saber acabam por reproduzir “nas decisões de
seu fazer docente também os mecanismos de controle do conhecimento próprio do seu capital cultural e da sua
competência científica” (CUNHA, 1996, p. 82).
Assim, é preciso considerar que, em seu fazer docente, os professores de Matemática trazem consigo as
concepções adquiridas em seus cursos de formação, identificadas com esse campo de saber científico. Ao passarem
a se envolver nos processos de ensinar e aprender, “novas” concepções deverão ser construídas, o que não se dá
espontaneamente.
Nesse sentido, em que pesem as pesquisas na área da Educação acerca desta questão, quero reforçar a
necessidade de que haja estudos voltados mais especificamente aos professores das “ciências duras”, como são
chamadas, “com um pouco mais de modéstia”, as ciências exatas, conforme refere Pessanha (1997, p. 20),
especialmente os que têm atuado na universidade. O professor, no ato de ensinar, operacionaliza “determinada visão
do que seja a docência: a partir de uma disciplina, tomar um conteúdo, apresentá-lo a um grupo de alunos,
controlando a classe durante o processo e verificando os resultados (produtos) obtidos no final de cada tópico”
(ANASTASIOU, 2002, p. 184). A autora está se referindo a um modelo que a maioria dos docentes universitários
tem internalizado. Conforme Anastasiou (2002), para a superação deste tipo de fazer docente, faz-se necessária a
construção dos saberes pedagógicos, contextualizando o objeto em questão, ou seja, do ensinar e do aprender na
universidade. Também apontam nessa direção autores como Tardif (2002), Cunha (1996, 1998), Fiorentini (1998),
entre outros, que fundamentaram minhas análises.
Volto a insistir, à guisa de conclusão, de que é preciso levar em consideração, na reflexão necessária à
superação desse modelo de fazer docente, a especificidade do campo de saber científico da Matemática, onde há
códigos e habitus próprios. A apropriação dos saberes pedagógicos só se dará na relação direta do significado que
eles terão a esse grupo de professores e, por isso, a reflexão crítica não poderá ser feita de fora, oportunizada
somente por especialistas da área da Educação, com um discurso muitas vezes incompreensível e, até,
desacreditado, pelos matemáticos! Uma possibilidade, que proponho, é a de que docentes com formação em
Matemática busquem uma capacitação na área da Educação, para além do que lhes é oportunizado em seus cursos
de Graduação, se é que tal oportunidade ocorreu! Pode-se utilizar, aqui, conceitos próprios da Matemática, dizendo
que esses conjuntos não são disjuntos, situando-se nessa intersecção professores com formação inicial em
Matemática e que buscam cursos de especialização ou de Pós-Graduação em Educação ou Educação Matemática,
onde coabitam concepções próprias de ambas as áreas.
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