UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
CURSO DE DIREITO
ALINE PIRES DE OLIVEIRA
OS LIMITES DO PODER JUDICIÁRIO NOS CASOS DE
ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS
CURITIBA
2013
ALINE PIRES DE OLIVEIRA
OS LIMITES DO PODER JUDICIÁRIO NOS CASOS DE
ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS
Monografia apresentada ao curso graduação em
Direito da Universidade Tuiuti, como requisito
parcial à obtenção do título de bacharel em Direito.
Orientadora: Prof. Helena de Souza Rocha
CURITIBA
2013
TERMO DE APROVAÇÃO
ALINE PIRES DE OLIVEIRA
OS LIMITES DO PODER JUDICIÁRIO NOS CASOS DE
ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS
Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de bacharelado em Direito da
Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, ___ de _________ de 2013
________________________________________________
Bacharelado em Direito
Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador
Professora Helena de Souza Rocha
Universidade Tuiuti do Paraná
Dedico este trabalho a todos aqueles que
contribuíram direta ou indiretamente na
elaboração, correção e apresentação do
mesmo.
.
AGRADECIMENTOS
À Deus por me conceder saúde nesta trajetória;
À minha família pela paciência e dedicação;
Aos meus colegas, companheiros e amigos da Universidade que colaboraram
de alguma forma na elaboração do presente trabalho.
À minha orientadora pelo carinho, dedicação e, principalmente, paciência no
decorrer deste ano.
De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto
ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer
a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os
poderes nas mãos dos maus, o homem
chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da
honra e a ter vergonha de ser honesto.
(Rui Barbosa)
RESUMO
A recente discussão nos tribunais acerca da possibilidade de antecipação do parto,
de fetos anencefálicos, manifesta as inter-relações do Direito, Biodireito e Bioética.
Além do que diz o direito brasileiro sobre a possibilidade jurídica da antecipação do
parto nos diagnósticos da anencefalia, é imprescindível um estudo dos princípios
constitucionais e da Bioética pertinentes para que se averigue a possibilidade de
extensão da discussão para outras doenças congêneres à anencefalia. De fato,
inúmeros casos já foram levados aos tribunais e merecem análise, especialmente
aqueles que destoam do cerne da questão, questionando a possibilidade jurídica da
autorização de antecipação do parto para doenças como síndromes de Patau,
Edwards entre outras. A posição de guardião da Constituição do Supremo Tribunal
Federal, no julgamento de casos de tamanha relevância, deve ser analisado sob a
ótica do ativismo judicial, para que sob argumento de garantir a dignidade humana
não arrasemos como os princípios de um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Anencefalia, Aborto, Bioética, Biodireito.
LISTA DE SIGLAS
CF
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
IEG
INTERRUPÇÃO EUGÊNICA DA GESTAÇÃO
ITG
INTERRUPÇÃO TERAPEUTICA DA GESTAÇÃO
ISG
INTERRUPÇÃO SELETIVA DA GESTAÇÃO
IVG
INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO
STF
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
STJ
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2 CONCEITOS SOBRE ABORTO E ANENCEFALIA ................................................ 9
2.1 BIODIREITO E ABORTO .................................................................................... 9
2.2 O ABORTO E ALGUMAS DEFINIÇÕES ............................................................. 11
2.2.1 CONCEITO ...................................................................................................... 11
2.2.2 TRATAMENTO JURÍDICO ............................................................................... 13
2.2.3. Direito e Experiências Comparadas ................................................................ 14
2.4 ANENCEFALIA .................................................................................................. 15
2.4.1. CONCEITO ..................................................................................................... 15
2.4.2 TRATAMENTO JURÍDICO ............................................................................... 17
3 DECISÃO DA ADPF 54 ........................................................................................ 18
3.1. A ADPF 54 ......................................................................................................... 18
3.2 A ADPF 54: PRINCÍPIOS E DIREITOS DISCUTIDOOS .................................... 20
3.2.1 Direitos Sexuais e Reprodutivos ...................................................................... 21
3.2.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana .................................................... 23
3.2.3 Princípio da Duração Razoável do Processo ................................................... 24
3.3 INTERRELAÇÃO COM A BIOÉTICA ................................................................. 26
3.3.1 Princípio da Autonomia ................................................................................... 26
3.2.2 Princípio da Beneficência ................................................................................. 28
3.2.3 Princípio da Justiça .......................................................................................... 28
4 OS LIMITES DO PODER JUDICIÁRIO ................................................................ 29
4.1 APLICAÇÃO EM OUTROS CASOS ................................................................... 29
4.2 MUDANÇAS LEGISLATIVAS............................................................................. 33
4.3 A DECISÃO DO STF E O ATIVISMO JUDICIAL................................................. 35
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 37
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 39
8
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos vem se discutindo muito sobre a questão da antecipação
do parto de fetos anencefálicos, e também, de portadores de outras anomalias
genéticas. Ocorre que o tema não se esgota na doutrina biomédica, eis que tem sido
discutido também sob as óticas jurídica, filosófica, religiosa, política e outras. Disso
retirou-se a motivação para a escolha do tema e desenvolvimento deste trabalho,
bem como considerando a sua importância para a humanidade.
Deste modo, o trabalho visa abordar o tema de maneira a esclarecer alguns
conceitos gerais acerca do aborto perante o atual entendimento jurídico.
O conceito e diagnóstico da anencefalia também foram abordados com o
intuito de viabilizar um paralelo entre esta doença e outras semelhantes em que o
Poder Judiciário já autorizou a antecipação terapêutica do parto. Os princípios
constitucionais e bioéticos que podem ser relacionados com os casos recentes que
autorizaram a prática de antecipação do parto de fetos portadores de anomalias que
não a anencefalia também foram alvos de análise.
Uma análise do que a Constituição da República Federativa do Brasil propõe
por meio de seus princípios explícitos também foi objeto do trabalho, afinal, sem
autorização constitucional, uma medida tão severa como a que aqui se estuda
jamais deve perpetuar em um estado democrático de Direito.
Toda esta abordagem inicial se faz necessária para que se coloque em foco
o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
número 54, a qual inovou a ordem jurídica a respeito do tema. No mesmo sentido,
pretende-se tratar das atuais propostas de modificações legislativas e aplicação em
casos semelhantes e do ativismo judicial.
Por isso, o trabalho traz também alguns casos reais na atualidade jurídica
brasileira para uma correta compreensão do tema, pois a jurisprudência pátria não
pode ser esquecida no estudo de um tema tão emblemático do ponto de vista
jurídico-social.
Por fim, os recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal merecem
destaque, pois a coragem de enfrentar um tema tão emblemático por parte do órgão
último jurisdicional do país merece aplausos e comentos. Sempre destacando outras
doenças cromossômicas para além da anencefalia.
9
2 CONCEITOS SOBRE ABORTO E ANENCEFALIA
2.1 BIODIREITO E ABORTO
A Bioética e o Biodireito estão conectados, tendo os mesmos objetivos e
protegendo os mesmos valores.
A Bioética tem em sua história forte relação com a medicina, com situações
em que se apresentava um embate ético ao defrontar inovações biomédicas que
necessitavam de avaliações éticas. Por exemplo, no ano de 1967, quando foi
realizado o primeiro procedimento de transplante de coração, sabia-se da
necessidade do coração ser retirado ainda em funcionamento, porém o doador
estava com morte encefálica diagnosticada. Daí a necesidade de discussão sobre o
momento em que se encerra vida e quem pode determiná-lo.
De acordo com Barbosa (2003) o termo “bioética” aparece para representar
esta ciência a partir da publicação do livro de oncologia Bioethics, Bridge to the
Future do americano Van R. Potter. Conforme afirma Sá (2009) com a doutrina, a
Bioética é o estudo dos aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da
biologia, onde avaliam suas implicações na sociedade e nas relações entre os
homens e entre esses e outros seres vivos.
Ao entender de outros doutrinadores,
a Bioética tem como seu maior objetivo, organizar de forma coerente o tratamento
de questões diversas sem esquecer princípios e fins comuns.
Já o Biodireito é uma nova área do Direito, que vai tentar regulamentar
algumas das situações discutidas na Bioética e aplicar seus princípios no debate de
casos específicos. Desta forma, vem adquirindo jurisprudência e posicionamentos
particulares, cuidando da conduta humana e dos problemas jurídicos gerados pelo
avanço da biotecnologia e da biomedicina, mesmo que ainda não haja muita
legislação sobre o assunto. Para alguns doutrinadores como Barbosa (2003), os
problemas causados por esse avanço, deveriam encontrar resolução na própria
Bioética e nas legislações já existentes.
Diferenciando-se da Bioética, o Biodireito não constitui princípios
específicos, apenas os princípios gerais do próprio Direito. A doutrina argumenta
que apesar dessa ausência indefinida, o princípio da dignidade da pessoa humana
responde pelos variados conflitos biojurídicos.
10
Alguns doutrinadores como Maluf (2013 p. 152) acreditam que o feto deve
ser considerado paciente nas situações que se tornarem necessárias. “Sendo alguns
problemas diagnosticados na gestação, e tendo a ciência que são irreversíveis,
acham justo que devem ser tratados com antecedência”.
Ainda nas palavras de Maluf
A bioética, para descrever o começo da vida, cita a biologia e a embriologia.
Em tese, elas acreditam que a vida se inicia na ovulação e o embrião se
desenvolve na fecundação. É aqui onde se herda as características do pai
e da mãe. (2013 p. 152)
Definindo o nascituro como o individuo que há de nascer, coloca-se em
questão se existe ou não direitos para os nascituros.
Diniz (2008 p. 04) , baseada no Código Civil, segue a teoria, que “aos que
tenham vivido por apenas um segundo, já criam personalidade jurídica”.
Como aduz AlmeidaOutras doutrinas seguem teorias diferentes, acreditando
que a partir da fecundação do óvulo com o espermatozoide, se começa a
personalidade de outro ser. Se Criando direito a vida, a saúde, integridade
física, mesmo sem se saber se o nascimento virá com vida ou não. (2000 p.
108)
Referente ao nascituro anencéfalo, cita-se o artigo 1º, inciso lll, da
Constituição Federal, onde a redação se refere a dignidade da pessoa humana. O
entendimento se dá por não fazer distinção sobre o estado do embrião. Não se
esquecendo também que o Código Civil protege o nascituro em seu artigo 2º.
Sendo o Brasil, o quarto país com maior número de diagnósticos de fetos
anencefálicos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, a questão de
direitos nesses casos deveria se tornar mais exata, mesmo se sabendo que a
expectativa de vida é curta.1
Diante da redação do artigo 2º do Código Civil, põe que a lei não possui
discriminação a qualquer feto, apenas protege o nascituro diante de todas as
circunstâncias. Resguarda direitos já na concepção e garante personalidade jurídica
após seu nascimento.
Entretanto, dois entendimentos são adotados para a proteção jurídica dos
fetos portadores de anencefalia. A primeira defende o anencéfalo, lhe dando todos
os direitos de um feto normal desde a concepção. No caso de nascimento com vida,
nem que esta seja por segundos, se conquista o restante de direitos devidos.
1
Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2012/04/11/brasil-e-oquarto-pais-com-maior-numero-de-casos-de-anencefalia.htm>. Acesso em 12 set 2013.
11
Portanto, ela vai contra o aborto para esses fetos, pois em seu conhecimento, iria
ferir a base jus-filosófica, caracterizando tal ato como crime pelo fato desses serem
titulares de direitos de humanidade.
2.2 O ABORTO E ALGUMAS DEFINIÇÕES
2.2.1 CONCEITO
É sabido que a prática do aborto é tão antiga quanto a própria existência
humana. Os primeiros casos são de um abortífero oral, descrito pelo imperador
Chinês, Shen Ning, entre os anos de 2737 a.C e 2696 a.C.
Conforme conceitua Spolidoro
O aborto é uma prática que ocorre a milhares de anos. Através da história, a
questão do aborto enfrentou diversos posicionamentos em tema de
repressão. Em certos tempos foi punido, em outros, permitido, ou ainda,
duramente castigado, com a morte inclusive. Por vezes era minimamente
apenado. (1997 p.31)
Ainda na Grécia antiga, Aristóteles e Platão eram favoráveis à prática do
aborto. Benute (2010 p.485) afirma que “os povos hebreus, celtas e alguns
românicos davam permissão à mulher para que tivessem certa disposição sobre a
fertilidade”.
A saber, a etimologia do termo aborto como afirma Ferreira, se dá nos
termos que seguem:
1.Ação ou efeito de abortar; abortamento,amblose, móvito, mau sucesso. 2.
Interrupção dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou sem ela. 3.
Indivíduo disforme, monstro. 4. Monstruosidade, anormalidade, anomalia. 5.
Insucesso, malogro. 6. Produção imperfeita, defeituosa [...]. (2010 p. 14)
Durante milhares de anos, a prática da conduta abortiva não foi considerada
criminosa. Ocorre que o feto era considerado como extensão do corpo da mãe,
sendo assim, de sua inteira liberalidade a opção em dispor daquele nascituro.
Para Casabona (1994 p. 289), “o aborto pode ser conceituado como a morte
do nascituro intra uterum, ou ainda, pela provocação de sua expulsão do corpo
materno”.
Portanto, a morte inevitavelmente deverá ser uma consequência dos
procedimentos adotados com a finalidade de praticar o aborto. Pode-se mencionar
12
ainda a imaturidade do feto para sobreviver, no caso de expulsão provocada por
procedimentos abortivos. (PRADO, 2010)
É também de extrema relevância que se estabeleça um marco diferencial
entre “aborto” e “antecipação terapêutica do parto”.
Nesse pressuposto, Hungria afirma que:
No caso de gravidez extrauterina, que representa um estado patológico, a
sua interrupção não pode constituir o crime de aborto. Não está em jogo a
vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente
vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se
resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se
caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a
gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de
modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a
vida do feto, não há falar - se em aborto, para cuja existência é necessária a
presumida possibilidade de continuação da vida do feto. (1958 p. 287)
Para o autor, a interrupção da gestação nos casos de fetos que não
possuem prognóstico de vida, estaria latente a hipótese de antecipação terapêutica
do parto, e não aborto. Em contrapartida, a interrupção da gravidez de um feto
fisiologicamente viável, estaríamos diante de uma hipótese de aborto.
No mesmo sentido, ao diferenciar as definições de aborto e antecipação
terapêutica do parto, o Concelho Regional de Medicina do Estado da Bahia afirmou
que:
O que há por trás dessa opção conceitual por qualificar a antecipação
terapêutica do parto como ‘aborto eugênico’ é, deliberadamente, confundir
duas práticas, a da autonomia reprodutiva e a da eugenia, pondo inclusive
em risco os direitos e interesses das pessoas portadoras de deficiência ao
sugerir que todos os fetos com qualquer tipo de má-formação serão
compulsoriamente abortados por essa liminar. (2004 p. 34/35)
Bitencourt, ao comentar sobre a prática de aborto eugênico, não amparado
pela atual legislação, discorre que:
Cumpre destacar que o Código Penal, lamentavelmente, não legitima a
realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a
criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Contudo,
sustentamos que a gestante que provoca o auto-aborto ou consente que
terceiro lho pratique está amparada pela excludente de culpabilidade
inexigibilidade de outra conduta, sem sombra de dúvida. (2007 p. 175)
Em que pese a problemática conceitual, devidamente explicada, neste
trabalho nos referimos indistintamente aos termos aborto e antecipação terapêutica
do parto.
13
Fica demonstrado que a doutrina já se posiciona a favor da gestante que, ao
enfrentar uma gravidez problemática, no sentido de gerar um feto anencefálico, opta
por
cometer
aborto,
ou,
como
parcela
da
doutrina
prefere,
antecipar
terapeuticamente o parto. Nestes casos sequer ocorre a prática de crime ante a
existência de causa excludente de ilicitude.
Por fim, é necessário trazer a luz os termos médicos que tratam do “aborto”.
Nos termos de Bitencourt, ao tratar do assunto, ressalta que os termos da doutrina
médica devem ser lembrados no estudo do tema pela seara do Direito. O autor
comenta que o aborto pode se dar:
I) Na modalidade de Interrupção eugênica da gestação (IEG), sendo os
casos de interrupção da gravidez por motivos de ordem racistas, sexistas e
étnicas. A exemplo de mulheres que foram obrigadas a praticar aborto em
razão de tão somente serem judias ou negras por exemplo; II) Interrupção
terapêutica da gestação (ITG), reservado para os casos de abortos
necessários em razão da saúde da gestante, eis que são cada vez mais
raros tendo em vista o avanço da medicina e das técnicas médicas
atualmente existentes; III) Interrupção seletiva da gestação (ISG), como
exemplo de aborto realizado em razão de problemáticas envolvendo o
produto da concepção. Exemplo disso são as anomalias e patologias
incompatíveis com a vida extrauterina, como a anencefalia; IV) Interrupção
voluntária da gestação (IVG), casos em que, por opção do casal, a gravidez
não deve prosperar. Os motivos que levam à esta modalidade de aborto,
para o autor, são variados, a exemplo de gravidez decorrente de estupro, ou
mera disposição de vontade do casal. (2007 p. 175)
2.2.2 Tratamento Jurídico
O direito penal brasileiro permite a prática do aborto em algumas situações
bastante específicas e peculiares.
È imprescindível colacionar o texto do atual Código Penal Brasileiro,
Decreto-Lei 2488/40 que trata do assunto:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante
legal.(BRASIL, 1940)
Como visto, as hipóteses legais são apenas duas, sendo bastante peculiares
e taxativas. A doutrina ficou incumbida de discorrer sobre o assunto e balizar as
hipóteses legais mencionadas a fim de que se possa adequar os casos práticos que
lhe sejam submetidos.
14
O aborto, em razão do que foi dito suporta diversas classificações
doutrinárias. Em razão de sua causa pode ser classificado como natural (para os
casos de problemas de saúde da gestante), acidental (a exemplo de quedas de
mesmo nível que provoquem aborto, atropelamentos e acidentes em geral) e
provocado (enquadram-se aqui os abortos de natureza criminosa).
Na visão de Mirabete
Já em razão da motivação, o aborto pode ser classificado em de natureza
econômica (condições miseráveis da mãe que impossibilitam a criação da
criança), moral (gravidez contraída fora do matrimônio ou com pessoa de
baixo grau de aprovação dentro do seio familiar) e individual (por
sentimentos particulares da gestante, tal como: medo, egoísmo, aversão à
responsabilidade etc.). (2008 p. 62)
Há ainda uma segunda classificação, bastante usual. Têm-se as
modalidades de aborto necessário ou terapêutico para a interrupção da gravidez nos
casos de risco à vida da gestante, não havendo outro meio para salvá-la. Aborto
sentimental, humanitário ou ético para os casos de gravidez resultante de estupro,
não sendo a mulher obrigada a gerar uma criança oriunda de um crime tão
hediondo. Aborto natural para as hipóteses de interrupção espontânea da gravidez.
Aborto acidental para casos de acidentes. Nestas últimas hipóteses, não ocorre a
consumação do crime de aborto tipificado no Código Penal.
Nessas palavras, Capez afirma que:
Ainda na mesma classificação, consta o aborto social ou econômico para as
hipóteses de famílias numerosas e nos casos de visível falta de recursos
para o sustento de novo integrante familiar. Quanto ao aborto eugenésico,
eugênico ou piedoso, o qual ocorre quando o feto a ser concebido possui
deformidade ou enfermidade incurável. È realizado com a exclusiva
finalidade de impedir que essa criança nasça com essas limitações. Nas
duas últimas modalidades, não há amparo legal. (2007 p. 124)
2.2.3. Direito e Experiências Comparadas
A respeito da legalização do aborto em outros países, com intenção de fazer
uma análise de direito comparado, é interessante mencionar notícia trazida pela
revista Veja em 2008, a qual traz a seguinte informação:
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte legalizou o aborto em 1973. Na
Inglaterra, ele é legal até a 24ª semana de gestação. Na França, é permitido
até as 12 semanas, por solicitação da mulher, e no segundo trimestre, por
razões médicas (risco de vida para a mulher, risco para a saúde física da
mulher e risco de malformação do feto). Na Itália, é permitido até os 90 dias
de gravidez. Já na Irlanda, é punido por lei, exceto se ficar comprovada
15
existência de um real e substancial risco de vida da mulher, incluindo o risco
2
de suicídio.
Em artigo publicado pela revista IPAS Brasil, menciona-se uma lei publicada
na Argentina que trata da gestação de fetos incompatíveis com a vida e não
somente os portadores de anencefalia. Trata-se da Lei 1044/2003. Segue o teor da
publicação:
Em 2003 foi sancionada a Lei nº 1044 de gestações de fetos
incompatíveis com a vida na cidade de Buenos Aires. A Lei busca
resguardar os direitos das mulheres grávidas de fetos portadores de
má formação irreversível e incurável, com prognóstico de morte intraútero, ou depois de poucas horas depois do nascimento.3
Por certo que o Brasil também já enfrenta o tema e as discussões são
bastante acirradas.4
2.4 ANENCEFALIA
2.4.1. Conceito
A Anencefialia é uma patologia congênita que se caracteriza pela má
formação do cérebro do feto durante a gravidez, geralmente durante os 23º e 26º
dias da gestação. Essa anomalia impede que o sistema nervoso central seja
desenvolvido corretamente, sendo o cérebro e a calota craniana grosseiramente
malformados. O cérebro e o cerebelosão reduzidos ou inexistentes e o tecido
cerebral é frequentemente exposto (não coberto por osso ou pele). A criança,
quando nasce com vida geralmente é cega, surda e inconsciente, e sua expectativa
de vida é de apenas algumas horas e às vezes poucos dias após o nascimento.
2
VEJA.COM.
Perguntas
e
respostas
sobre
aborto.
Disponível
em
<
http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/aborto/#6>. Acesso em: 25. maio.
2013.
3
IPAS Brasil. Rio de Janeiro. Anencefalia: O debate no Supremo Tribunal Federal e as suas
implicações
para
a
prática
e
assistência
em
saúde.
Disponível
em:
<www.aads.org.br/arquivos/factSheet_anencefalia.pdf.> Acesso em: 20 jun 2013.
4
No Brasil, os primeiros casos levados ao poder judiciário ocorreram já na década de 80. Ademais, a
quantidade de casos que já foi levado a discussão nos tribunais passam de 5000 até os dias atuais,
sendo que somente até o ano de 2004, foram formalizadas cerca de 3000 autorizações pelos
Tribunais de Justiça dos Estados para a realização de procedimentos de interrupção gestacional de
fetos incompatíveis com vida extrauterina. Isto deu ao Brasil o quarto lugar mundial nos casos de
fetos anencefálicos. - VEJA.COM. Perguntas e respostas sobre aborto. Disponível em
<http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/aborto/#6>. Acesso em: 25. maio.
2013.
16
A anencefalia é um tipo gravíssimo de defeito do tubo neural. O tubo neural
é um canal estreito que se dobra e fecha para formar o cérebro e a medula espinhal
do embrião. Acredita-se que esse defeito seja decorrente da interação entre fatores
genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese.
Nas palavras do professor Nunes, da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro comenta, com propriedade que:
A anencefalia é ainda, nos dias de hoje, uma doença congênita letal,
mas certamente não é a única; existem outras: acardia, agenedia
renal,
hipoplasia
pulmonar,
atrofia
muscular
espinhal,
holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do
cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas
afecções congênitas letais, listadas como afecções que exigirão de
seus pais bastante compreensão devido à inexorabilidade da morte.
Por que foi escolhida a anencefalia para provocar-se a antecipação
da morte, ainda no ventre materno, não se esperando o nascimento
natural? Em primeiro lugar, a anencefalia é um termo que induz ao
erro. Há uma grande desinformação, que faz prevalecer e difundir a
ideia de que a anencefalia significa ausência do encéfalo. Na
realidade, anencefalia corresponde à ausência de uma parte do
encéfalo. O nome mais correto para anencefalia seria
‘meroencefalia’, já que ‘mero’ significa ‘parte’. (Disponível em: <
http://www.youtube.com/playlist?list=PLippyY19Z47vGsw8_FF1gBW
qzkSv7njE2>)
Mulheres que tomam certos medicamentos para a epilepsia e as mulheres
com diabetes possuem maiores chances de ter um filho com defeito do tubo neural.
A anomalia também tem sido associada a uma elevada exposição a toxinas, tais
como cromo, chumbo, mercúrio e níquel. A incidência aproximada de anencefalia é
de 1 caso em cada mil nascidos, principalmente caucasianos do sexo feminino.
Pelo fato da anencefalia poder ser diagnosticada antes do nascimento
através de um exame de ultra-som, muitos médicos aconselham a interrupção da
gravidez, já que o feto terá uma curta vida extra-uterina, o que é uma atitude
polêmica. Em vários países, optar por interromper uma gravidez em casos de
anencefalia e de várias outras malformações congênitas é possível.
Neste aspecto, não há como furtar-se às definições e estatísticas médicas
sobre o tema. Nos dizeres de Nelson:
O neonato anencéfalo exibe uma aparência distintiva com um grande
defeito da calvária, meninges e couro cabeludo associado a um
cérebro rudimentar, que resulta de uma falha no fechamento do
neuroporo rostral. [...] A maioria dos bebês anencefálicos morre nos
primeiros dias após o nascimento. A incidência da anencefalia
aproxima-se de 1/1000 nascidos vivos e a frequência mais alta é na
17
Irlanda e País de Gales.O risco de ocorrência é de 4% e aumenta
para 10% se um casal tiver tido duas gestações anteriores afetadas.
Muitos fatores foram implicados como a causa da anencefalia (além
de um mecanismo genético), como baixo nível socioeconômico
deficiências nutricionais e de vitaminas e um grande número de
fatores ambientais e tóxicos. [...]. (2002 p. 1777)
A definição acima é muito importante, sobretudo se analisada de acordo com
a realidade brasileira. Consta que uma das causas da anencefalia é a baixa
condição econômica e má nutrição. Ora, no Brasil, um país de dimensões
continentais e com a atual realidade político-social, não há outro lugar mais favorável
para a disseminação de casos de anencefalia.
2.4.2 Tratamento Jurídico
A anencefalia é uma doença e vem sendo estudada pela medicina a vários
anos e vem causando muita repercussão no meio jurídico. Não por outro motivo que
se deu o julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal.
O Conselho Federal de medicina acabou por editar a resolução 1989/2012
que define uma série de direitos da paciente gestante, bem como alguns
balizamentos para o diagnóstico da doença de anencefalia. Tudo em consideração à
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 ter sido julgada procedente.
A referida resolução em seu artigo 2º determina qual a modalidade de exame
para a aferição da existência ou não da anencefalia.
Art. 2º O diagnóstico de anencefalia é feito por exame
ultrassonográfico realizado a partir da 12ª (décima segunda) semana
de gestação e deve conter:
I – duas fotografias, identificadas e datadas: uma com a face do feto
em posição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no
corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de
parênquima cerebral identificável;
II – laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal
diagnóstico.
Como visto, o diagnóstico da anencefalia, para fins de interrupção da gravidez
é feito após a 12ª semana de gestação e deve obedecer a uma série de requisitos
procedimentais.
18
3 DECISÃO DA ADPF 54
3.1. A ADPF 54
O Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental – ADPF número 54 no ano de 2012.
Nos dizeres do Ministro Ayres Britto, o julgamento da ADPF 54 revelou-se
um dos “mais importantes julgamentos que o Supremo Tribunal Federal já realizou,
em toda a sua história republicana”. (BRASIL, 2012)
Trata-se de ação que busca a conformidade da interpretação dos artigos
124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal.
O artigo 128, incisos I e II, prevê duas causas de excludente especial da
ilicitude, quais sejam o aborto necessário e o denominado aborto humanitário.
A
confederação
entende
que
a
interpretação
dada
pelos
órgãos
jurisdicionais, atualmente, aos referidos dispositivos legais, ofendem os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, a legalidade, a autonomia da
vontade, a liberdade e o direito à saúde.
A
Procuradoria
Geral
da
República
suscitou,
preliminarmente,
a
inadequação da via eleita, em razão da impossibilidade de atribuir nova
interpretação aos dispositivos legais invocados, eis que as hipóteses arroladas no
artigo 128 do Código Penal são numerus clausus de exclusão de ilicitude.
Em princípio, a liminar da ADPF/54 foi deferida pelo ministro Marco Aurélio
de Mello em favor da CNTS, tento em vista tratar-se da admissibilidade da argüição,
para reconhecer “o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação
terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir do laudo médico atestando a
deformidade e a anomalia que atingiu o feto” e para determinar “o sobrestamento
dos processos e decisões não transitadas em julgado” nos casos em que a gestante
estivesse respondendo processo penal pela prática de aborto, tipificada pelo artigo
124 do Código Penal Brasileiro.
A medida liminar causou grande polêmica e vigorou por pouco tempo, sendo
revogada, em parte, em outubro de 2004, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal,
mantendo-se apenas a decisão atinente ao sobrestamento das ações judiciais,
suspendendo-se o direito à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.
19
Entendeu-se que não havia justificativa para a manutenção da liminar, em
razão da discussão pendente acerca da admissibilidade da referida ação.
Alguns meses depois, em 27.04.2005, foi aprovada a admissibilidade da
ADPF/54, por sete votos a quatro, retornando os autos ao Ministro relator para a
instrução do processo.
Em seguida, algumas entidades requereram o ingresso como amici curiae
na referida ação, dentre elas, destacam-se a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), Católicas pelo Direito de Decidir, Associação de Desenvolvimento da
Família (ADEF), Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos.
Considerando-se a relevância da matéria, bem como a necessidade de
conferir à sociedade ampla participação na análise da questão, o Ministro Marco
Aurélio determinou a oitiva das entidades mencionadas, bem como da Federação
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, da Sociedade Brasileira de Genética Clínica,
da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, do Conselho Federal de Medicina, da
Rede Nacional Feminista da Saúde, da Igreja Universal, do Instituto de Biotécnica,
entre outras entidades.
No ano de 2012, finalmente o Supremo Tribunal Federal se encorajou a
enfrentar o tema e julgou o mérito da ação no sentido de dar aos artigos 124, 126,
caput e 128, I e II, do Código Penal, interpretação conforme à Constituição5.
Segue o teor da ementa da referida ação, imprescindível para os
comentários que seguem:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo
absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO
ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER –
LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE –
AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME –
INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção
da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e
128,
incisos
I
e
II,
do
Código
Penal.
(Disponível
em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docI=3707334)
É importante ressaltar, ainda, outra polêmica suscitada em torno da
ADPF/54, que se refere ao desrespeito à tripartição dos poderes, uma vez que o
Supremo Tribunal Federal não poderia agir como legislador, eis que invadiria a
competência própria do Poder Legislativo.
5
SUPREMO
TRIBUNAL
FEDERAL.
Informativo
661.
Disponível
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm>. Acesso em: 22 ago 2013.
em:
20
Votaram de modo favorável os Ministros: Joaquim Barbosa, Luiz Fux,
Cármen Lúcia e Rosa Weber, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello. A
dissidência (voto contrário) foi aberta pelo voto do Ministro Ricardo Lewandowski,
acompanhada, pelo Presidente, Ministro Cezar Peluso
É imperioso comentar trecho da decisão do ilustre Ministro Ricardo
Lewandowski, o qual comenta que:
deferir a interrupção da gestação de fetos anencéfalos abriria as portas para
que o mesmo ocorresse com outras inúmeras doenças de efeitos
congêneres. Doenças estas de ordem genética, ou ainda, adquiridas, que
de alguma forma encurte a probabilidade de vida daquele embrião.
(BRASIL, 2012)
Ademais, como muito bem lembrado pelo Ilustre Ministro, não podemos nos
esquivar do que a medicina atual preceitua. Ora, a Organização Mundial da saúde,
por classificação do CID-106, elenca dezenas de doenças que acometem os
embriões de maneira tal que inviabilizam a vida extrauterina, em especial as
anomalias cromossômicas que revelam o baixo grau de probabilidade de vida dos
embriões.7 Este foi um dos argumentos que levaram o Ministro a fundamentar seu
voto no sentido de considerar improcedente a ADPF 54.
Outro tema que bastante se discutiu em sede de julgamento foi a laicidade
do Estado brasileiro em face da autorização da antecipação do parto de fetos
anencefálicos. Nas palavras de Gomes entende-se que:
Ocorre que, muitas ações submetidas ao poder judiciário pleiteando o
aborto foram negadas, sob fundamentações filosóficas e religiosas.
Entretanto, não se pode admitir que, havendo certeza científica da
ocorrência de anomalias, as crenças religiosas não constituem razões
suficientes para se negar a possibilidade desse aborto incomum.(2009 p.7)
3.2 A ADPF 54: PRINCÍPIOS E DIREITOS DISCUTIDOOS
A decisão afasta, mais uma vez, o dogma do legislador negativo, segundo o
qual o Judiciário tem legitimidade apenas para excluir do sistema jurídico normas
incompatíveis com o texto da Constituição.
6
7
A Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida
como Classificação Internacional de Doenças – CID 10) é publicada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) e visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde.
A CID 10 fornece códigos r2009elativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de
sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para
ferimentos ou doenças. A cada estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual
corresponde um código CID 10. – FONTE: Medicinanet
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. International Classification of Functioning, Disability and
Health (ICF). Disponível em: <http://www.who.int/classifications/icf/en/>. Acesso em: 25 ago 2013.
21
Na ADPF 54, a decisão demonstra que o STF atuou como legislador
positivo. Isto porque o Código Penal apenas prevê duas hipóteses de aborto sem a
criminalização, nos termos do seu artigo 128 onde está contido que: “Não se pune o
aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II
- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
3.2.1 Direitos Sexuais e Reprodutivos
Uma nova concepção de direitos da pessoa, sob a ótica sexual e
reprodutiva, vem sendo tratada pelo poder público.
É certo que a Constituição Federal em seu artigo 226, § 7º, garante à família
o livre planejamento sem ingerências abusivas por parte do poder público ou outros.
O referido dispositivo legal menciona que:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988)
Do texto, extrai-se que o planejamento familiar esta diretamente relacionado
com a questão dos direitos sexuais e reprodutivos. Não poderia ser diferente. É
dever do estado garantir à entidade familiar a livre condução do planejamento do lar,
bem como do caminho a ser trilhado pela família, sob aspecto reprodutivo
principalmente. Isto é o que se interpreta do artigo 2º da lei criada para regulamentar
o dispositivo constitucional acima:
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais
de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou
pelo casal. (BRASIL, 1988)
O plano de ação realizado pela Conferência Internacional sobre população e
desenvolvimento, de 1994, e o que foi deliberado pela IV conferência Mundial da
Mulher, de 1995, introduziram a atual concepção de Direitos Reprodutivos. Pode-se
afirmar que os documentos garantem o direito de decidir, de maneira responsável
sobre o número, espaçamento e vontade de ter filhos. Além disso, acesso a meios
22
que possibilitem decidir e gozar de um alto padrão de saúde sexual e reprodutiva,
sem discriminações, coerções e violência.8
Assim, é dever do estado proporcionar ao povo os meios informativos,
tecnológicos e científicos necessários para um saudável planejamento familiar.
Sob a ótica da dignidade sexual da mulher atrelada aos direitos humanos,
consta o item 47 da assembleia geral das Nações Unidas sobre Direitos Humanos,
que menciona o martírio sofrido por mulheres que possuem uma gravidez frustrada
em razão de anomalia fetal. O paralelo feito é em ralação a uma nova concepção do
termo tortura atualmente adotado. É fato que a tortura não se revela tão somente em
castigos físicos imprimidos por forças policiais ao modo do que nos é forçado a
deduzir pela mídia e seus interesses.
Sob a ótica da gravidez e dos direitos reprodutivos da mulher, atrelados a
uma nova concepção de tortura, a carta traz que:
47. En el asunto R. R. v. Poland, por ejemplo, el Tribunal Europeo de
Derechos Humanos determinó que se había conculcado el artículo 3 en el
caso de una mujer a quien se había denegado el acceso a las pruebas
genéticas prenatales cuando una ecografía reveló una posible anomalía
fetal. El Tribunal reconoció que "la demandante se encontraba en uma
situación de gran vulnerabilidad"38 y que la dilación deliberada, la confusión
y la falta de um asesoramiento adecuado, así como la información
proporcionada a la demandante,
"entorpecieron el acceso de R. R. a las pruebas genéticas"39. El acceso a la
información sobre la salud reproductiva es imprescindible para que una
mujer pueda ejercer su autonomía reproductiva, y sus derechos a la salud y
9
a la integridad física.
Ficou demonstrado que os direitos reprodutivos e sexuais da mulher, sob a
ótica da atual concepção de Direitos Humanos não permite de modo algum o
constrangimento da gestante em prosseguir com uma gravidez que somente lhe
trará transtornos, e, mais que isso, verdadeira tortura. Nota-se que o comentário da
carta internacional não se limita à anencefalia, pois trata de anomalia fetal. Ademais,
acrescenta o direito de acesso a informação sobre saúde reprodutiva. Trata-se aqui
de um aspecto fundamental no trabalho, o qual visa estender a reflexão da
antecipação do parto para outras doenças cromossômicas, sem a intenção de medir
8
Disponível em: < http://www.unfpa.org.br/Arquivos/direitos_reprodutivos3.pdf>. Acesso em: 12 jul
2013.
9
Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/AHRC-22-53_sp.pdf>. Acesso em 04 set 2013
23
o “grau” da tortura sofrida pela gestante em se tratando de anencefalia ou outra
doença semelhante, e sim sua efetiva existência.
Ademais, a nomenclatura "direitos reprodutivos" consagrada na Conferência
Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), em seu parágrafo 7.3 do
Programa de Ação do Cairo:
Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já
reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre
direitos humanos, em outros documentos consensuais. Esses
direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo
casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o
número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a
informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais
elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu
direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação,
coerção ou violência.10
No que se refere ao trecho da carta em que garante à mulher o direito sobre
suas decisões em termos de reprodução, não há como não restringir o mencionado
tão somente aos casos de anencefalia. Por certo que outras anomalias fetais podem
e devem ser objeto da decisão do casal em questionar a viabilidade da gestação.
3.2.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio em questão é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e
se perfaz com a consagração da dignidade humana. Moraes, com propriedade,
preceitua que:
O importante é realçar que os direitos humanos fundamentais relacionam-se
diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera
individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal
reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível
constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário
ou mesmo por tratados e convenções internacionais. (2007 p.95)
Em recente artigo publicado, o autor ressalta a violação da dignidade das
gestantes nos seguintes termos:
A questão, efetivamente, não é nada simples, pois de um lado há a
inviolabilidade da vida do feto e do outro a liberdade da mulher (de
dispor sobre seu próprio corpo), Há que se considerar, ainda, os
riscos gerados por esse tipo de gestação, o tormento psicológico
vivido pela mãe desde a descoberta do problema. (2007 p. 95)
10
Disponível em: < http://www.spm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatorio-cairo.pdf>.
Acesso em 25 jul 2013.
24
Ficou bem demonstrado que existe uma acirrada discussão acerca do
princípio da dignidade da pessoa humana no tema tratado neste trabalho. De um
lado a dignidade da gestante, que ao saber estar grávida de uma criança portadora
de síndromes semelhantes à anencefalia (no sentido de macular sua chance de
vida) é constrangida a suportar a gravidez até o fim.
Por outro lado existem os direitos daquele nascituro que devem ser
resguardados a qualquer custo, considerando-o como sujeito de direitos desde a sua
concepção, conforme já citado anteriormente.
Diante desse pressuposto Diniz aduz que
Amarguradas as mulheres enquanto aguardam os tribunais, a lutarem
contra a natureza, na torcida para que seus fetos não alcancem a 500
gramas ou a 20 semanas de gestação. Assim ocorrendo, ou seja,
alcançando esse grau de desenvolvimento, o feto será submetido a
sepultamento
e
devido
emissão
de
atestado
de
óbito.
<www.anis.org.br/serie/artigos/sa57_diniz_apresentacao_adpf54.pdf>.
De fato, coagir uma mulher a suportar em seu ventre uma gravidez
sabidamente frustrada, atenta diretamente contra a sua dignidade como pessoa
humana e revela-se em uma espécie de tortura latente. É certo que e a sociedade,
dentro dos parâmetros constitucionais jamais poderá aceitar essas situações.
Por certo que o julgamento da ADPF 54 colocou fim a discussão, em termos,
no sentido de que somente nos casos de anencefalia devidamente diagnosticada a
prática da antecipação terapêutica do parto foi autorizada.
3.2.3 Princípio da Duração Razoável do Processo
O princípio da duração razoável do processo, seja no âmbito administrativo
ou judicial, foi incluído na atual Constituição Federal pela Emenda Constitucional
número 45. A referida emenda trouxe ao texto constitucional, mais especificamente
ao inciso LXXVIII do artigo 5º do documento o seguinte texto: “a todos, no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. (BRASIL, 1988)
Levando em conta o contexto do tema escolhido para o desenvolvimento do
presente trabalho, é imprescindível mencionar o papel do Poder Judiciário e de que
forma trata as questões que lhe são submetidas.
25
Nas demandas propostas ao Poder Judiciário visando autorização para o
aborto de fetos anencefálicos, ou portadores de outras patologias graves, viu-se que
muitas vezes, não houve tempo hábil para a análise do mérito da questão.
Desastroso concluir que o judiciário, em razão disso, não teve, em diversas
oportunidades, a responsabilidade devida com o tema.
Antes do julgamento da ADPF 54, viu-se inúmeras demandas caírem por
terra em razão da “perda de objeto”, por falecimento do nascituro, e a consequente
impossibilidade de julgamento da causa. Tudo por conta da morosidade processual
e falta de responsabilidade com o assunto.
Abaixo segue ementa de decisão que, lamentavelmente, comprova o
manifesto desrespeito ao direito fundamental de razoável duração do processo em
face da morosidade processual:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE
RECURSO ORDINÁRIO. INDEFERIMENTO DE LIMINAR NO WRIT
ORIGINÁRIO. MANIFESTA ILEGALIDADE. CABIMENTO DE HABEAS
CORPUS PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ.
PATOLOGIA CONSIDERADA
INCOMPATÍVEL COM A VIDA EXTRA-UTERINA. ATIPICIDADE DA
CONDUTA. GESTAÇÃO NO TERMO FINAL PARA A REALIZAÇÃO DO
PARTO. ORDEM PREJUDICADA.
[...]
4. Havendo diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidadede vida
após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não
tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto éinevitável, em
decorrência da própria patologia.
5. Contudo, considerando que a gestação da paciente se encontra em
estágio avançado, tendo atingido o termo final para a realização do
parto, deve ser reconhecida a perda de objeto da presente impetração.
[grifo nosso]
6. Ordem prejudicada.(BRASIL, 2006)
É bastante evidente que a demora do processo da demanda ajuizada tornou
impossível que o titular o direito, neste caso, tivesse prestada a devida tutela
jurisdicional.
Por certo que, ao menos nos casos de anencefalia, as mudanças trazidas
pelo julgamento da ADPF 54, por via obliqua, resolve este entrave jurídico, pois a
gestante não mais precisará recorrer à justiça para ter seu direito reconhecido por
sentença. Entretanto, em ocorrendo outras doenças que também comprometam o
desenvolvimento feto, que não a anencefalia, os casos ainda se arrastarão pelo
judiciário.
26
3.3 INTERRELAÇÃO COM A BIOÉTICA
3.3.1 Princípio da Autonomia
Um dos princípios mais ligados ao tema deste trabalho é o princípio da
autonomia, sob a ótica da bioética. Adquiriu esta denominação no Relatório de
Belmont, como uma espécie de princípio de respeito às pessoas. Que aos indivíduos
é dado direito de escolha pessoal. Como afirma Robert (2007 p. 64) “as pessoas
devem ser respeitadas pelas decisões que tomarem em relação ao seu corpo e sua
vida”. Em razão disso, qualquer procedimento médico deve ser devidamente
autorizado por aquele que se submeterá ao ato.
Não há o que se discutir que a autonomia da vontade da pessoa humana,
seja sob a ótica do direito ou biodireito, é o que deve balizar a apreciação do poder
judiciário quando este deparar-se com pedidos de autorização de antecipação de
parto nos casos de anencefalia e principalmente outras doenças congêneres.
Pela autonomia da vontade, esbarramos no direito que a pessoa tem em se
autodeterminar de acordo com sua vontade.
O tema escolhido para este trabalho vai muito além das dimensões jurídicas
e deve ser enfrentado sob aspectos filosóficos e outros. Propõe-se com isso mais
uma reflexão sobre o valor da liberdade do que a conceituação do termo
propriamente dito. Nesse sentido, Handlyn ensina que:
Eles (os filósofos que definiram a liberdade como ausência de
coerção) distinguiam a faculdade do indivíduo, que seria a condição
necessária para fazê-lo capaz de agir, e sua liberdade que seria a
condição suficiente. O prisioneiro teria a faculdade de passear, mas
as grades o privam de fazê-lo. De tais homens, dizia Hobbes:
‘enquanto estiverem em prisão, ou detidos entre paredes ou em
cadeias’, isso significa propriamente que ‘não estão em liberdade’.
De outro lado, um homem privado das pernas teria a liberdade de
mover-se, mas lhe faltaria a faculdade. ‘quando o impedimento da
ação está na natureza da própria coisa’ continuava Hobbes, poderse-ia dizer com precisão que ela não necessitava da liberdade, mas
antes da ‘faculdade de mover-se, como, por exemplo, um enfermo
que está preso ao leito’. (1964 p.25)
Dentro do que reza tudo que foi escrito sobre o princípio da autonomia da
vontade, desagua-se nos conceitos trazidos pelo princípio da intervenção mínima.
27
No entendimento de Luisi (1991 p. 25) “por certo que o estado, jamais
poderá criar penas que atentem contra os princípios constitucionais penais, ou
ainda, figurar como forma de arbítrio por parte do legislador”.
Nesse sentido Gomes relata que:
Sob qual fundamento torna-se possível concluir se o risco é ou não proibido
(ou seja, juridicamente desaprovado)? A base dessa valoração decorre da
ponderação (em cada caso concreto) entre o interesse de proteção de um
bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante) e
o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de
liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal). No aborto
anencefálico parece não haver dúvida que o risco criado (contra o bem
jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. Todas as normas e
princípios constitucionais invocados na ação de descumprimento de preceito
fundamental (artigos 1°, IV - dignidade da pessoa humana; 52, II - princípio
da legalidade, liberdade e autonomia da vontade; 6° caput, e 196 - direito à
saúde, todos da CF), conduzem à conclusão de que não se trata de uma
morte (ou antecipação dela) desarrazoada. (2005 p. 41)
O que foi acima mencionado não pode deixar de ser observado pelos
aplicadores do Direito. Ficou muito bem demonstrado que o princípio da autonomia
da vontade, em consonância com os demais inscritos na Constituição Federal, como
os relativos à família, deve ser observado. Assim, há não como sujeitar uma mãe a
suportar uma gravidez sabendo que o produto de sua concepção não terá
compatibilidade alguma com o mundo extrauterino. Assim, diante da moderna teoria
da imputação objetiva trazida pelo autor, a prática de aborto nesses casos não se
mostra desarrazoada.
Como afirma Nucci
Certa intervenção do estado na esfera do particular é sim necessária e útil
dentro do que propõe o próprio conceito de estado e de liberdade individual.
Ocorre que esta intervenção deve sempre respeitar os direitos da pessoa e
sua dignidade aos moldes do que prega um Estado Democrático de Direito.
(2012 p. 191)
Mais especificamente sob o foco do Biodireito, leciona o autor Sérgio Romeo
(2006 p. 113) que: “Em fecto, la existência de un bien constitucionalmente relevante
puede justificar La existência de una sancíon penal, pero ésta sólo deberá
impónerse cuando sea absolutamente necesaria”.
Assim, não há oportunidade melhor que a nova redação do Código Penal
para que o legislador demonstre respeito seu papel constitucional, e o aos princípios
que foram tratados. Principalmente ao tipificar as hipóteses de aborto, as causas
excludentes de sua ilicitude, como no caso de fetos anencefálicos e também outras
doenças que acabam tendo o mesmo efeito, como síndrome de Patau e outras.
28
Assim, esta questão fica definitivamente resolvida de modo que não ocorram
decisões conflitantes proferidas pelo Poder Judiciário, ora autorizando a antecipação
do parto, ora vedando a prática.
3.2.2 Princípio da Beneficência
Outro princípio que também resguarda a dignidade da mulher, enquanto
paciente, é o da beneficência. Também sob o manto da bioética, nos dizeres de
Diniz:
o princípio da beneficência requer o atendimento por parte do médico ou do
geneticista aos mais importantes interesses das pessoas envolvidas nas
práticas biomédicas ou médicas, para atingir seu bem-estar, evitando, na
medida do possível, quaisquer danos. (2001 p. 15)
Fica claro que o bem estar da gestante é o principal foco ante qualquer
intervenção médica. Por isso, o médico deve sempre priorizar o bem estar da mãe
evitando qualquer dissabor ou eventualidade que lhe cause danos. De acordo com o
tema escolhido, não há argumento mais forte do que este para fundamentar a
autorização da antecipação de parto, pelo Poder Judiciário, também no caso de
outras doenças que não a anencefalia.
3.2.3 Princípio da Justiça
Pelo que ensina a bioética, pelo princípio da justiça, podemos fazer um
paralelo com o princípio da igualdade. Ocorre que toda a evolução médico científica
da humanidade não pode eleger critérios elitistas, díspares ou desproporcionais,
para beneficiar uns em relação aos outros.
Como afirma Robert (2007 p. 67) “todas as pessoas, sujeitos de direitos,
devem ser alcançadas pelos avanços médicos e biomédicos de maneira que a
desigualdade não prospere também nesta seara”.
Portanto, os recentes avanços no campo médico que possibilitam, sem gerar
maiores riscos, a interrupção da gravidez nos casos de fetos portadores de
anencefalia e outras patologias, devem ser considerados pelo poder judiciário. Não
podendo mais se esquivar dessas questões, sob argumento de que a ciência não
tem a capacidade de intervir nesses casos
29
4 OS LIMITES DO PODER JUDICIÁRIO
4.1 APLICAÇÃO EM OUTROS CASOS
Diante de tantos casos de anencefalia, a autorização para o aborto de fetos
com essa anomalia foi concedida pelo Poder Judiciário. Entretanto, tal decisão, a
priori, não se estende às demais doenças que também tornam impossíveis a vida
extrauterina. Falha esta que, lamentavelmente, poderia ter sido observada tanto no
ajuizamento da ADPF, bem como em seu julgamento.11
Isto porque, além da anencefalia, existem anomalias que são detectadas no
começo da gestação que são responsáveis pela falta de desenvolvimento do feto e
riscos de vida a mãe.
O que se pretende com este tópico é trazer em pauta decisões, em que pese
anteriores ao julgamento da ADPF 54, que tratam de outras doenças letais que uma
gestante pode suportar além da anencefalia. Com isso, propõe-se uma visão do
assunto para além dos horizontes da anencefalia.
Em Porto Alegre, o Desembargador Manuel José Martinez deferiu o pedido
de Rosana Rodrigues, autorizando a mesma a interromper a gravidez. Rosana, com
38 anos, casada, mãe de uma menina de sete anos e de um garoto de 18 anos que
sofre de malformação no cérebro.
Em 2003, no quarto mês de sua terceira gravidez, identificou por exame uma
anomalia grave em seu feto. Tratava-se da síndrome de Patau. De início não havia
indícios de riscos à vida da gestante, porém comprometeria o desenvolvimento do
feto. 12
Com a descoberta, Rosana entrou com uma demanda judicial para
interromper sua gravidez, sendo analisado e negado em primeiro grau. Após,
Rosana e seu marido, em grau de recurso, conseguiram a autorização para o
aborto, porém já havia se passado o tempo para tal procedimento.
O acórdão do caso acima se dá nos seguintes termos:
11
Disponível
em:
<http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/cotas-aborto-de-anencefaloscasamento-gay-marcha-da-maconha-coligacoes-uso-do-twitter-tribunais-superiores-estao-solapando
prerrogativas-do-congresso-isso-nao-e-bom-ja-ha-uma-primeira-reacao/>. Acesso em: 14 jul 2013
12
Disponível
em:
http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2012/04/o-aborto-alem-daanencefalia.html. Acesso em: 20 jun 2013.
30
PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA
GRAVIDEZ. FETO QUE APRESENTA SÍNDROME DE PATAU.
DOCUMENTOS MÉDICOS COMPROBATÓRIOS.
DIFÍCIL
POSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA.
NESSE CASO,
OLIGOFRENIA ACENTUADA E FREQÜENTES CONVULSÕES.
EXCLUSÃO DA ILICITUDE. APLICAÇÃO DO ART. 128, I, DO CP,
POR ANALOGIA IN BONAM PARTEM.
Considerando-se que, por ocasião da promulgação do vigente
Código Penal, em 1940, não existiam os recursos técnicos que hoje
permitem a detecção de malformações e outra anomalias fetais,
inclusive com a certeza de morte ou de deficiência física ou mental
do nascituro, e que, portanto, a lei não poderia incluir o aborto
eugênico entre as causas de exclusão da ilicitude do aborto, impõese uma atualização do pensamento em torno da matéria, uma vez
que o Direito não se esgota na lei, nem está estagnado no tempo,
indiferente aos avanços tecnológicos e à evolução social. Ademais, a
jurisprudência atual tem feito uma interpretação extensiva do art.
128, I, daquele diploma, admitindo a exclusão da ilicitude do aborto,
não só quando é feito para salvar a vida da gestante, mas quando é
necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. Diante da
moléstia apontada no feto, que provavelmente lhe causará a morte e,
em caso de sobrevivência, provocará oligofrenia acentuada e
freqüentes convulsões, e da circunstância de que o casal de
requerentes já possui um filho com retardo mental e dificuldade
motora, pode-se vislumbrar na continuação da gestação sério risco
para a saúde mental da primeira apelante, o que inclui a situação na
hipótese de aborto terapêutico previsto naquele dispositivo. Apelo
provido, por maioria.
Casos como de Beatriz da Mota Simões e Fabio da Silva Rodrigues tiveram
que deixar de lado as crenças religiosas do Desembargador Marco Antonio Marques
da Silva, no ano de 2009, em São Paulo. O casal está junto há aproximadamente 20
anos, e tem uma filha de 4 anos de idade. Beatriz estava grávida de gêmeos
xifópagos, conhecidos como siameses.
Em alguns casos de gestação de gêmeos xifópagos existe vida após o
nascimento, se tratando do caso de Beatriz, não. Os gêmeos estavam ligados pelo
abdômen, compartilhando o mesmo coração e fígado, com um único cordão
umbilical. Não havia, portanto, possibilidade de correção cirúrgica, ou seja, se
chegassem ao nascimento não resistiriam.
O casal entrou com liminar, sendo a mesma indeferida, após, recorreram,
sendo julgado por Marco Antonio Marques da Silva. No acórdão, o desembargador
fala sobre a importância do aborto, como questões políticas, religiosas e pela
repercussão na sociedade, mas deixa claro que o Direito tem o dever de dar
equilíbrio aos acontecimentos na vida do homem. O aborto de Beatriz foi autorizado,
mas já estava tarde, a mãe já estava no sétimo mês da gestação e um dos gêmeos
31
já havia falecido ainda em seu útero. Tudo conforme a decisão em mandado de
segurança impetrado pelo casal.13
Em 2010, uma decisão que ganhou bastante atenção no Tribunal de Justiça
de São Paulo, foi a hipótese de interrupção da gestação de Gislaine Almeida de
Faria, ela e seu marido, Heber Antunes de Faria, solicitaram autorização para tal
hipótese, a qual foi indeferida pelo Juízo de Direito da 1ª Vara do Tribunal do Júri da
Comarca de São Paulo. Constatado em um dos exames de rotina, a médica que
acompanhava Gislaine em sua gestação, deu o diagnóstico que o feto era portador
da Síndrome de Edwards14, uma anomalia que exclui as chances de sobrevivência
após o nascimento. O casal recorreu, e conseguiram que o aborto ou a interrupção
da gestação fosse autorizado, apesar disso, resolveram ir até o fim e tiveram o
neném. Gislaine e Heber sofreram muito com os acontecimentos, mas deixam claro
que sofrer não é o problema e sim os pais não terem liberdade de escolha. Segundo
o relato das partes:
Segue a ementa da referida decisão:
HABEAS CORPUS - Pedido de gestante para interrupção de gravidez por
ser o feto portador da Síndrome de Edwards – Liminar concedida Inviabilidade de sobrevida ao feto - Riscos de saúde e possível dano
psicológico à gestante - Abortamento terapêutico - Manutenção da
concessão em definitivo – Necessidade Impossibilidade ao Poder Judiciário
de fazer juízo moral, devendo se ater à legalidade ou não da conduta 15
Ordem concedida em definitivo.
As situações relatadas são mais antigas, mostrando claramente que para
alguns o Aborto era considerado algo absurdo, com a possibilidade da ADPF 54 ser
aprovada, nossa Justiça deveria ser mais sensata e evitando o desgaste para mães
e pais, mas as decisões mais recentes mostram o oposto. Em dois acórdãos de
2013 em São Paulo, o de Aline Amelia de Souza e Bruna Sousa de Mendonça, as
gestante tiveram a autorização para fazer o aborto mas tiveram que recorrer em 2ª
Instância.
13
Disponível em: < http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=3937382>. Acesso em 12
ago 2013.
14
Trissomia 18 ou síndrome de Edwards: A trissomia do cromossomo 18 é a segunda trissomia
autossômica mais frequente nos seres humanos. O primeiro caso foi relatado em 1960 por Edwards
ET AL., na Inglaterra. Tratava-se de uma menina de nove semanas de vida que apresentava atraso
de desenvolvimento e crescimento, occipício proeminente, orelhas displásticas e de baixa
implantação, micrognatia, pescoço alado, esterno curto, cardiopatia gongênita, mãos fletidas com
sobreposição de dedos, calcâneo proeminente e háluces dorsifletidos.
15
<http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=4549865>. Acesso em 19 ago 2013.
32
Aline Amelia de Souza Lopes, de Guarulhos/SP, com 18 semanas teve o
diagnóstico de que seu feto estava comprometido por ter malformações múltiplas, e
sofrer da Síndrome da trissomia18, dois professores da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo se referem ao laudo como não existindo vida
extrauterina após o nascimento.16
Em circunstâncias parecidas, Bruna Sousa de Mendonça, com 19 semanas
de gestação, em sede de Mandado de Segurança, obteve um parecer médico
bastante particular, atestado por dois médicos da faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo – USP, a saber: Dr. Victor Bundik – CRM 69.918 e Dr.
Mário Henrique Burlacchini de Carvalho- CRM 80.872. Os médico relataram a
ocorrência de encefalocele o com o seguinte diagnóstico, conforme descrito no
inteiro teor do documento supracitado:
[...] quadro de malformações múltiplas: presença de encefalocele
frontal com exteriorização de grande quantidade de massa
encefálica, fenda lábio-palatina unilateral, pé torto à esquerda, e
mãos em garra bilateral. As anomalias mencionadas são
seguramente incompatíveis com a vida extrauterina. Caso a
gestação venha a se prosseguir, todos os dados da literatura médica
apontam para morte do recém-nascido após o parto....Caso a
gestação se prolongue perde-se a oportunidade de realização de um
parto vaginal com menor risco materno. [...]17
Nada mais deveria ser comentado após a leitura de tal laudo, o que deixa
claro a inexistência de vida e apenas a ilusão de Bruna, na possibilidade de
continuar essa gestação. Eis que a doença sofrida pelo feto, encefalocele,
assemelha-se à anencefalia quanto aos seus efeitos.
Em ambos os processos, a Defensoria Pública agiu de forma sucinta,
destacando tópicos de mera importância, onde se refere a continuidade dessas
gestações se fazem afetar de forma angustiante a saúde física e psicológica de
Bruna e Aline, sendo anomalias irreversíveis.
Não se deve pesar qual gestação é melhor ou pior, ou mesmo, qual seria de
grande encargo para os pais, uma gestação normal ou de um feto com anomalia.
Mas sim pensar pelo lado da mãe, que ao carregar um feto em seu ventre pelo
16
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-mai-31/tj-sp-autoriza-duas-maes-interromperemgravidez-fetos-malformados>. Acesso em: 21 jul 2013.
17
Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=6855117>. Acesso em: 15 jul
2013.
33
período de nove meses e aguarda ansiosamente seu filho para vê-lo partir. É algo
de caráter desumano. Porém, não se pode prever se o feto será saudável ou
portador de anomalias antes de ser concebido. Se tratando dessa falta de
possibilidade e conhecimento, nada seria mais deslumbrante, que apenas a opção
de escolha para gestações com essa “deficiência” fosse apenas aos pais.
Dessa polêmica, a ADPF 54, protege a antecipação do parto para casos de
anencefalia, deixando-o de ser inconstitucional.
Na mesma esteira, ressaltamos o já citado comentário do Doutor Rodolfo
Acatassú Nunes, professor adjunto do departamento de cirurgia geral da Faculdade
de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, feita em uma Audiência
Pública referente ao assunto.
O Doutor e Professor se expressa diante a anencefalia, lembrando que a
mesma não seria a única doença congênita letal. Como exemplo cita: acardia,
agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia,
ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do
cromossomo 18. Sendo algumas delas citadas em casos já mencionados neste
trabalho.
Rodolfo se questiona em seus comentários de porque apenas a anencefalia
merece todo apoio para aborto ou antecipações de parto, sabendo que existem
doenças com a mesma falta de desenvolvimento e de impossível vida para o feto.
Considerando, que na própria decisão da ADPF se comenta em
possibilidades da mesma autorizar outras anomalias, devendo se estender de forma
legislativa e deixando de ser apenas hipótese em uma Decisão.
4.2 MUDANÇAS LEGISLATIVAS
Diante de novas decisões, o Código Penal Brasileiro se torna contraditório ou
até mesmo confuso comparado com o teor das mesmas.
Há tramitação de um novo projeto de Lei proposto que se baseia na reforma
do Código Penal Brasileiro, trazendo mudanças benéficas em situações que se
destacam por serem de caráter emergenciais e polêmicos.
34
A reforma traz mudanças que refletem positivamente quando o assunto for o
aborto, descriminalizando essas condutas em circunstâncias já muito rebatidas,
deixando de esgotar os que necessitam da agilidade e autorização da Justiça.18
Os artigos previstos no atual diploma penal referentes ao assunto, como o
artigo 128, pedem mudanças nas hipóteses de aborto, pois diante a ADPF 54,
ambos não estariam em acordo.
A nova redação do artigo 128 exclui o aborto como crime nas hipóteses de
feto com anencefalia e com anomalias incompatíveis com a vida, respeitando os
direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal da gestante. Segue a
proposta do referido artigo:
Art. 128: I – quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”;
II – se “a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego
não consentido de técnica de reprodução assistida”;
III – “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e
incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os
casos atestado por dois médicos”;
IV- “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o
médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de
arcar com a maternidade”.
A aceitação de tal procedimento na legislação brasileira mostra o grande
avanço da sociedade, negando o incentivo do aborto, mas dando escolha a gestante
em casos tão delicados de continuar ou interromper a gestação.
Entretanto, o novo conteúdo de tal artigo não agrada por completo o senador
Pedro Taques (PDT), relator do Novo Código Penal Brasileiro. O Senador critica
com desprezo o inciso IV, excluindo-o do texto e claramente citando a Constituição
por defender o direito a vida:
Entendo que a Constituição defenda o direito à vida. Hoje o nosso Código
Penal já prevê a possibilidade de abortamento quando há gravidez fruto de
violação da dignidade sexual. Isso será mantido, mas não vamos flexibilizar
mais. Vamos manter a legislação atual. (TAQUES, 2013)
Respeitando os artigos da Constituição Federal, que protege a dignidade da
pessoa humana (artigo1º, III, CF), à saúde (artigos 6º e 196 a 200, CF), à
privacidade (artigo 5º, X, CF), à integridade física e moral (artigo 5º, X, CF), à
igualdade (artigo 5º, I, CF), observa que a reforma não causa descompasso ferindo
os direitos fundamentais.
18
CORREIO. Aborto no início da gravidez é descartado da reforma do Código Penal. Disponível em<
http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/aborto-no-inicio-da-gravideze-descartado-da-reforma-do-codigo-penal/>. Acesso em: 20 ago 2013
35
Pela simples análise da proposta do novo artigo de lei, conclui-se que o
avanço proposto é tremendo. Se aprovada, a nova redação irá definitivamente
regulamentar os casos de antecipação de parto de fetos anencefálicos e também
para outros casos semelhantes. Por certo que as discussões e críticas irão surgir.
Em paralelo a isso, no ano de 2013, surge a possibilidade de ser sancionado
o Estatuto do Nascituro. (BRASIL 2013)
Deixando de ser um Projeto e sendo aprovado pela Comissão de Finanças e
Tributação em 2013, o Estatuto do Nascituro condena o aborto como crime em
qualquer circunstância. Sendo o nascituro o ser humano concebido, mas ainda não
nascido, receberá direitos e será protegido pela lei. Trazendo efeitos assustadores
para as mulheres, sendo o mesmo protetor apenas do feto e não argumentando os
princípios e direitos da mãe, como citado na Constituição Federal.19
De forma que deixa o Código Penal a ser reformado, colocando em questão
tudo que o diploma protege e condena em hipóteses de aborto, ferindo os Princípios
que defende e a dignidade e bem estar materno. Como no art. 10 do estatuto, que
protege o nascituro deficiente, auxiliando o mesmo com o que lhe for preciso.
4.3 A DECISÃO DO STF E O ATIVISMO JUDICIAL
A respeito do que decidiu o STF na ADPF 54, é bastante pertinente fazer
alguns comentários sobre os reflexos que se deram no panorama jurídico.
Submeteu-se ao Poder Judiciário uma questão de interpretação de
dispositivos do Código Penal, que deveria ser objeto de modificação legislativa.
Entramos na nebulosa seara do ativismo judicial.
[...] o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo
específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu
sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de
retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a
classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas
sociais sejam atendidas de maneira efetiva. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/12350666701742
18181901.pdf.>
19
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/444095ESTATUTO-DO-NASCITURO-E-APROVADO-PELA-COMISSAO-DE-FINANCAS-ETRIBUTACAO.html>. Acesso em 01 ago 2013.
36
O Ministro Lewandowski, ao fundamentar sua decisão na ADPF comenta
oportunamente que o que se pretendeu com a arguição foi estender uma
interpretação a um dispositivo que já se encontra balizado, ou seja, pretendeu-se
fazer do Supremo Tribunal Federal um legislador positivo, substituindo o papel do
Legislativo na questão. O Ministro comenta que:
não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender
interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador
positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em
outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem
da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no
ordenamento normativo como se parlamentares elitos fossem. (BRASIL,
2012)
Ocorre que existem posicionamentos no sentido de que o Judiciário deve
sim intervir nos casos de inércia do Poder Legislativo, especialmente se tratando de
direitos fundamentais da pessoa humana. Como salienta (Silva, 2013) “por certo que
a intervenção do poder judiciário, para outras doenças além da anencefalia, deverá
ocorrer se o Legislativo manter-se inerte à questão”.
Disso extraímos a importância de que a inovação legislativa não pode furtarse às questões tão polêmicas, como o aborto de fetos portadores de anomalias. É
bem certo que a harmonia entre os poderes da República deve prevalecer,
entretanto, não se pode admitir que a inércia em sua competência privativa seja
suprida por outros poderes.
A partir desse raciocínio como afirma Martins,(2013) “surge a proposta de
Emenda à Constituição de número 33”. A mesma visa limitar os poderes do
Supremo Tribunal Federal submetendo algumas decisões ao Congresso Nacional.
Pela proposta, o quórum de votação em ações diretas de inconstitucionalidade
aumenta. As sumular vinculantes também sofrerão alterações quanto às votações.
37
CONCLUSÃO
De início, a escolha do tema para o desenvolvimento deste trabalho se
mostrou pertinente. Ocorre que com o decorrer das pesquisas e aprofundamento
sobre a matéria, tão apaixonante, viu-se a responsabilidade que seria abordar uma
questão tão emblemática e envolvente. Foram essas circunstâncias que motivaram
as exaustivas pesquisas e a tentativa de explanar o assunto sob uma ótica didática e
reflexiva do ponto de vista jurídico, bioético e biomédico.
Pode-se demonstrar que a doença, denominada anencefalia, com seus
reflexos, repercute em diversas searas do Direito. Foi impressionante abordar um
tema que para alguns causa estranheza, a outros indignação, e ainda, exista quem o
enfrente sob os olhos do avanço da humanidade. Disso percebeu-se a
responsabilidade em tratar desta seara.
Primeiramente, notou-se que o enfrentamento do tema aborto pela
legislação penal brasileira definitivamente não acompanhou os avanços médicos e
sociais. De fato, o Código Penal, editado na década de 40, não sofreu qualquer
modificação textual sobre o assunto. Isto foi o que motivou a proposição da ADPF
54, a qual buscou conformar o texto da legislação com os atuais conceitos de
dignidade da pessoa humana, de autonomia da vontade e outros princípios de
direito e bioética envolvidos.
O julgamento da ADPF 54 foi um grande avanço para a jurisprudência pátria
que não se furtou em discutir o tema. Como qualquer discussão posta em plenário,
surgem argumentações de todos os sentidos.
Viu-se que, nos últimos anos, os casos de anencefalia não foram os únicos a
serem submetidos ao Poder Judiciário com a finalidade de solicitar antecipação
terapêutica do parto. Diversas doenças cromossômicas que causam anomalia fetal
também sofreram a mesma análise.
Esse foi o cerne da questão deste trabalho, que não se contentou em
apenas conceituar e definir a atual concepção de aborto, suas modalidades, e
anencefalia. Foi-se além, buscando-se relacionar e questionar o tema a luz de
outras patologias fetais que acomodam anseios, se não iguais, piores do que a
anencefalia. Foram demonstrados ainda alguns princípios e temas da bioética e
biodireito que tratam do nascituro, ora como sujeito de direitos, ora como produto de
uma gravidez de feto incompatível com a vida.
38
Insistindo no esclarecimento da questão, buscou-se demonstrar também o
abismo existente entre as terminologias aborto e antecipação terapêutica de parto, e
quais seus balizamentos doutrinários.
Vive-se uma realidade em que a leitura fria do texto de lei não pode mais
prosperar. Temas como este aqui tratado merece mais que apenas interpretações
técnicas a respeito das leis que o regulam. Uma verdadeira empatia com os
martírios suportados por aqueles que foram, e irão ao judiciário pleitear seus direitos
de antecipar o parto, deve ocorrer por parte dos aplicadores do direito, para que o
tema seja tradado de maneira mais humana. Por isso buscou-se, além da citação de
jurisprudências, de relatos pessoais daqueles que demandaram a justiça neste
sentido.
Por fim, além do cumprimento das obrigações acadêmicas, buscou-se com a
devida humildade, contribuir para a compreensão da antecipação do parto no caso
de fetos anencéfalos e insculpir a seguinte reflexão: se os mesmos entendimentos
deveriam ser adotados para outras doenças sob, a ótica dos diversos princípios e
conceitos abordados. Se esta questão for ao menos cogitada por aqueles a que o
trabalho se direciona, com o mesmo respeito e atenção que se teve na sua
elaboração, temos nossa tarefa por cumprida.
39
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