(IM)POSSIBILIDADES DA PRÁTICA DE HARMONIA SOCIAL NOS CASOS DE
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Tayenne de Oliveira Parada1
RESUMO
Este artigo reúne subsídios para o debate sobre alguns dos
desafios da produção da violência baseada pela perspectiva de
gênero. O percurso adotado obedecerá às reflexões sobre as
relações de poder consolidadas, onde valores sociais são
atribuídos a homens e mulheres em nossa sociedade definindo
ações e atitudes norteadoras dos comportamentos do ser
masculino e feminino.Na primeira parte do artigo,serão
discorridos aspectos das categorias de análise utilizadas
quando se refere às distintas expressões sobre a violência.Na
sequencia, a inflexão sobre o processo de judicialização do
fenômeno da violência de gênero que adquire caráter tutelar
frente às formas punitivas e criminalizadoras do judiciário para,
em seguida,finalizar o artigo com a discussão sobre os
resultados do processo de reprivatização da violência de
gênero no campo do judiciário.
Palavras-chave: Violência
Harmonia social.
de
gênero.
Judicialização.
ABSTRACT
This item includes subsidies for the debate on some of the
challenges of violence based on the gender perspective. The
course adopted will obey to musings about power relations
consolidated, where social values are assigned to men and
women in our society by defining actions and guiding the
behaviour attitudes be male and female. In the first part of the
article, will discorridos aspects of categories of analysis most
frequently used when referring to distinct expressions about
violence. In the sequel, the inflection on the judicialization of the
phenomenon of gender violence that acquires a tutelary nature
against the punitive forms and criminalizadoras of the judiciary
to then finish the article with discussion on the results of the
process of re-privatization of gender violence in the field of the
judiciary.
Keywords: Gender violence. Judicialization. Social harmony.
1
Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Hospital Universitário
Clementino Fraga Filho (HUCFF). E-mail: [email protected]
1- INTRODUÇÃO
O artigo2 pretende analisar a judicialização da violência de gênero, apontando limites
e possibilidades no campo sócio – jurídico, e referenciando os estilos conciliatórios de
solução de conflitos. Parte-se da hipótese de que por vezes o discurso de uma suposta
harmonia da sociedade como um todo tem por consequência o desencontro com os direitos
de cidadania construídos e conquistados através de lutas e conflitos durante anos pelas
mulheres. O modelo pautado na harmonia parece tender a mais do que remediar problemas,
por possuir um objetivo intrínseco, que é o de fomentar / reforçar a ideologia harmônica.
Desta forma, pretende - se com este artigo refletir sobre as possibilidades de
reconhecimento da legitimidade do pleito de não violência contra a mulher, quando sob a
égide da harmonia social se prioriza a preservação da instituição familiar, os laços e papéis
sociais ali desempenhados.
Esse trabalho é resultado parcial de discussões, leituras bibliográficas sobre o tema,
idas ao campo de pesquisa, enquanto graduanda da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do grupo de pesquisa “Violência de
gênero em tempos de Lei Maria da Penha”, que tinha como foco o estudo da
intersetorialidade e da interjurisdicionalidade no enfrentamento à violência de gênero.
Estudos e debates sobre o referido tema e as experiências vivenciadas no campo de
pesquisa – I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher (I JVDFM) e no
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) Simone de Beauvoir,
trouxeram alguns questionamentos e inquietações sobre a judicialização da violência de
gênero e as relações de poder existentes dentro do campo sócio – jurídico.
Em um primeiro momento, serão discorridos aspectos das categorias de análise mais
utilizadas quando se refere às distintas expressões sobre a violência. Na sequencia, a
inflexão sobre o processo de judicialização do fenômeno da violência de gênero que adquire
um caráter tutelar frente às formas punitivas e criminalizadoras do judiciário para, em
seguida, finalizar o artigo com a discussão sobre os resultados do processo de
reprivatização da violência de gênero no campo do judiciário.
2- DESENVOLVIMENTO
2
Este artigo foi apresentado à Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz como trabalho final para
obtenção do título de especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos, sob orientação da
professora Vera Marques.
2.1 Relações sociais de gênero
A produção da violência baseada pela perspectiva de gênero mantém relações de
poder consolidadas, onde valores sociais são atribuídos a homens e mulheres em nossa
sociedade definindo ações e atitudes norteadoras dos comportamentos do ser masculino e
feminino.
Deve-se ressaltar que no entendimento dessas relações vêm sendo estruturadas
desigualdades, cuja dominação patriarcal está marcadamente presente em nossa sociedade
e que, ao longo da história, observam-se modelos fixos nos lugares sociais sexuados a
partir da dicotomia público x privado, produção x reprodução, resultando em desigualdades
de gênero que vão se configurando em concepções dominantes de feminilidade e
masculinidade. Estas, por sua vez, materializam-se nas diversas esferas do social, em
instituições como família, escola, religiões e meios de comunicação e ainda mesmo em
outros tipos de relações como, por exemplo, no acesso a direitos e serviços, na divisão
sexual do trabalho, no quadro político-partidário e nas distintas organizações da sociedade
civil (Almeida 2007).
Para se ter uma melhor compreensão sobre a temática em questão, serão
explanadas as categorias de análise mais utilizadas para se referir às distintas expressões
sobre a violência. Para Theophilos Rifiotis (2006), a violência de um modo geral passa a ser
discutida enquanto problema social presente no modelo de sociabilidade contemporâneo,
este acaba tornando-se um conceito “vazio” devido ao descompasso existente entre o
campo empírico e o debate teórico acerca do tema rebatendo em sua reflexão e na
proposição de novos modelos explicativos.
Visto isso, ao se pensar nas categorias inseridas no contexto da violência de gênero
– categoria esta que também se torna incompleta ao se pensar na abrangência do termo,
podendo deixar de lado as especificidades e particularidades de determinados casos que
não ficam explicitados, como exemplo as questões de raça/etnia e classe social – essas se
apresentam de modo a focalizar aspectos diferenciados contidos nesse amplo fenômeno,
mas que não atendem a amplitude e nem dão conta dessa violência em sua totalidade,
implicando, portanto em reflexões e práticas diversas.
Pensar violência de gênero é considerar a categoria gênero como detentora de
um caráter relacional e histórico, onde as relações de gênero se dinamizam nas relações
sociais de poder existentes entre os sujeitos. De acordo com Suely Souza de Almeida
(2007, p.24), a categoria gênero refere-se a “um contexto de relações produzidas
socialmente. Portanto, o seu espaço de produção é societal e o seu caráter é relacional”.
Almeida (2007) enuncia as expressões da violência que geram maior visibilidade. Na
primeira expressão violência contra a mulher, podemos perceber, ou melhor, identificar
contra quem essa violência está se destinando. Na medida em que se oculta o sujeito da
ação em detrimento da sobrevalorização da vítima, pode haver uma carga de vitimização
perante a mesma, trazendo ainda posicionamentos impostos de um determinado nível
moralizante de passividade e omissão.
Na expressão violência doméstica pode-se enfatizar, com efeito, o local cuja
violência é manifestada. Há uma vinculação à esfera privada na qual são construídos
sentimentos com base em aspectos financeiros e afetivos que acabam por guiar essa
relação conflituosa potencializando, então, uma espécie de naturalização dessa vida
cotidiana norteada pela impunidade e submissão.
Já a expressão violência intrafamiliar aponta para, mais do que uma violência no
âmbito privado, uma violência que se instaura no seio da família, que segundo Sérgio
Adorno (1995) é uma instituição primária sobre a qual indivíduos recebem formação moral
para um bom convívio em sociedade e ao mesmo tempo serve como amparo e proteção
social. Porém, faz-se necessário observar o seu lado paradoxal, pois é nesse espaço que
mulheres e crianças tornam-se subalternizadas, criando um campo fértil para que a violência
seja inserida. Em suma, o espaço familiar contém um campo estruturado simbolicamente,
de acordo com o padrão previsto das relações entre os gêneros, baseado na hierarquização
e subordinação, muitas vezes invisíveis perante os sujeitos sociais.
2.2 Respostas legislativas à violência contra a mulher
A violência de gênero, expressa nos seus diversos significados, exige uma política
interministerial envolvendo as diferentes esferas do poder público (órgãos do Executivo,
Legislativo e Judiciário). Torna-se fundamental também a elaboração, o acompanhamento e
monitoramento de políticas sociais voltadas para a eliminação desse tipo de violência, tendo
um controle social bem atuante, desvinculado assim, do modo focalizado e fragmentado que
atualmente se caracterizam as Políticas Públicas no Brasil.
O movimento feminista traz consigo uma importante bandeira de luta para sinalizar o
reconhecimento e a necessidade de políticas públicas voltadas para as mulheres em
situação de violência. Com isso, uma pressão era posta ao Estado para que o mesmo
assumisse para si essa responsabilidade, através da criação de ferramentas que
respaldassem esse segmento da população.
Em 1985, foram criadas, no âmbito da Segurança Pública, as Delegacias
Especializadas de Atendimento a Mulher (DEAM), sendo a primeira instituída no Estado de
São Paulo. Com as DEAMs, a violência contra a mulher passa a ter visibilidade perante a
sociedade e, também, a ser tratada com um ato criminal e de violação dos direitos humanos.
Respaldados no art.1° da Conferência Belém do Pará (1994) que afirma que a
violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte,
dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na
esfera privada”, a 1ª. Conferência Nacional de Política para Mulheres foi um dos marcos de
reflexão sobre a importância de uma Política Nacional para as Mulheres (PNPM). A I PNPM
teve como objetivos: a igualdade e respeito à diversidade, equidade, universalidade das
políticas, justiça social, participação e controle social, entre outros. Este plano passa a
orientar as políticas públicas desenvolvidas pelo governo federal e a nortear as ações
realizadas pelos governos estaduais e municipais.
A concretude da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
é o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2006- 2007), pois
aborda todas as diretrizes da Política, principalmente o fortalecimento dos Serviços da Rede
de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência e a implementação da Lei nº 11.340,
de 07.08.2006, Lei Maria da Penha. Outra dimensão fundamental é a intervenção nos
campos da educação e da cultura, a fim de mudar algumas atitudes da sociedade frente à
violência contra a mulher.
A importância de intervir nos distintos campos citados acima, objetiva ampla
divulgação e conscientização das políticas públicas e programas de governo no
enfrentamento e combate à violência contra a mulher. Em vista disso, analisa-se que a Lei
Maria da Penha em sua resolução cria mecanismos que darão alicerce para a formulação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, considerando assim
através do poder judiciário mais uma das vertentes a fim de combater e prevenir essa
modalidade de violência.
2.3 Judicialização e harmonização das relações sociais
Acompanhando o trajeto que a demanda pelo fim da violência de gênero percorreu
até se inserir no campo do Judiciário, pode-se observar uma “introdução do universo
impessoal do Direito no mundo pessoal e privado” (Moraes, 2006), onde esse processo de
“judicialização” acaba por legitimar através da legalidade formas de regulação, tipificando os
crimes cometidos e atuando nas mediações/resoluções de conflitos de cunho familiar e
pessoal.
Optou–se pelo termo judicialização das relações sociais por este relacionar-se à
ideia de conquista da cidadania por meio do acesso à Justiça. Nesse cenário, existe uma
proposta democrática de acesso a direitos, mas ao mesmo tempo, controvérsias nas
práticas e ações no sistema sócio – jurídico. A judicialização das relações sociais, enquanto
processo de resolução de conflitos, interfere nas relações de poder existentes entre os
atores sociais passando a influenciar e regular suas relações pessoais.
Rifiotes confirma esse posicionamento quando afirma
“O privilegiamento e, por vezes, a exclusividade da judicialização como
política de reconhecimento, implicam o privilégio da responsabilização e
punição individual, como uma solução biográfica de contradições sistêmicas,
ou mesmo na obliteração da „vítima‟ como nos litígios criminais ... a
centralidade do jurídico implica uma limitação na busca de intervenção de
„curto prazo‟, e, por vezes, no abandono das políticas de „longo prazo‟.”
(Rifiotes,2006.)
Ainda assim, no intuito de democratizar o acesso ao sistema judiciário, algumas
instituições foram criadas, entre elas, o JECRIM, instituído pela lei nº 9.099/95 da União.
Nesse espaço são direcionados os delitos de menor potencial ofensivo (quando a pena não
ultrapassa dois anos), buscando por um processo de despenalização, diminuir as
transações penais valorizando a solução dos conflitos via modelos conciliatórios. Esse
avanço se torna relativo na medida em que é levada em consideração a resolução de
conflitos relacionados aos crimes domésticos nesses espaços.
O acordo entre as partes nesse modelo conciliatório de resolução de conflitos no
sistema judiciário traz consigo um índice da rotinização ou automatização dos
procedimentos jurídicos. De acordo com Beraldo e Debert:
Opor, como propõe Nader, duas economias políticas jurídicas distintas – por
um lado a que tem como base o consenso e, por outro, a que tem como base
o conflito – é simplificar os significados políticos que os procedimentos
conciliatórios podem ganhar em diferentes contextos. (2007, p.2)
O tratamento dos processos contra a mulher e de violência doméstica no Poder
Judiciário algumas vezes não rompe com valores socialmente construídos, existindo a
reatualização das desigualdades de gênero, classe e étnico-raciais e também a
naturalização das relações sociais, principalmente nos casos em que há reincidência.
No entanto, articulado ao movimento de naturalização e cristalização das relações
sociais, existe também um movimento de reprivatização da violência de gênero, na medida
em que os agentes da Justiça e os serviços oferecidos pela rede de enfrentamento e
combate a violência contra a mulher, culpabilizam os indivíduos envolvidos nas relações de
violência transferindo a responsabilidade da resolução dos conflitos para a instituição
familiar. Segundo Marcella Beraldo e Guita Debert (2006) os profissionais do Judiciário
partilhavam dessa visão no tratamento dos processos de violência contra a mulher, no
intuito em dar celeridade nos mesmos, a fim de desafogar o sistema judiciário. Observa-se
um movimento de burocratização das ações e procedimentos referentes à formalização dos
processos que, por muitas vezes, implica na desistência da vítima em prosseguir com a
ação e assim, consequentemente, no arquivamento do feito.
A criação da lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, modificou algumas
ações e conceitos referentes à violência doméstica, tipificando a mesma como violação de
direitos humanos. Outros avanços também foram relevantes com a formulação da Lei Maria
da Penha, tais como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher3 (JVDFM), alterações no Código de Processo Penal, e a criação e articulação de
políticas públicas específicas para o enfrentamento desta violência.
3 - CONSIDERAÇÕES
A naturalização da violência doméstica para o interior da organização familiar
acarreta na desresponsabilização do Estado de intervir na ordem pública, assim reafirmando
e reforçando a desigualdade no eixo exploração / dominação entre os sujeitos sociais de
direitos, conforme corrobora a fala de Laura Nader (1994):
3
O I JVDFM do Estado do Rio de Janeiro tem algumas semelhanças no que concerne aos
mecanismos de resoluções dos conflitos executados no JECRIM como a utilização da via harmônica
para a obtenção da celeridade do judiciário.
As ideologias de soluções de disputas são mecanismos usados há
muito tempo para se realizar a transmissão de ideias hegemônicas.
Eles refletem, mais exatamente, os processos de construção cultural
que podem ser uma resposta à necessidade, de um produto dos
interesses preponderantes ou um resultado do conflito de classes.
Reprivatizar a violência implica, consequentemente, na culpabilização dos atores
sociais envolvidos nessas relações de violência, a ponto do poder público poder redefinir o
seu papel, transferindo a responsabilidade da resolução do conflito para a dimensão da
família. A bandeira que se levanta, portanto, em defesa dessa cultura harmônica, no âmbito
jurídico, interfere no atendimento já precário por parte dos agentes da justiça e pelos
serviços que a rede oferece, reforçando as relações hierárquicas presentes no contexto
doméstico. A visão restrita e conservadora sobre a violência de gênero que não observa a
mulher enquanto sujeito de direitos e sim a preservação da família e da relação conjugal,
visam impor regras ao bom convívio em prol de uma “paz social” e da intocabilidade da
família (Beraldo de Oliveira e Debert, 2007).
O modelo neoliberal que se caracteriza pela diminuição/fragmentação de direitos
políticos, civis e sociais resulta cada vez mais num processo de despolitização das políticas
sociais, fragilizando-as perante seu enfrentamento na questão social. Políticas de caráter
universalizante e seletivas são oferecidas pelo Estado, na medida em que se impulsiona um
novo relacionamento entre a sociedade civil e o Estado, principalmente pelo Poder
Executivo no que tange suas funções/ações sociais de provimento de políticas sociais.
Contudo, essa democratização do acesso ao judiciário faz refletir sobre algumas
questões: até que ponto a população que adentra nesse espaço tem seus direitos sociais
garantidos e como o Judiciário está absorvendo essa nova demanda, será que está
capacitado?
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