Bachelard e o rádio: o direito de sonhar1
Doris Fagundes Haussen2
Resumo
O texto analisa o artigo de Gaston Bachelard, Devaneio e Rádio, a partir dos conceitos de
arquétipo, mito e mídia radiofônica, com base em outros autores que também se dedicaram
a refletir sobre a obra deste autor.
Palavras-chave: rádio; arquétipo; sonho.
"O rádio é um problema inteiramente cósmico: todo o planeta está ocupado em
falar". Já no início de seu artigo Devaneio e rádio,3 Gaston Bachelard (1985:177)4 dá o tom
de sua idéia sobre o veículo. Para ele, "o rádio é função de originalidade. Não pode se
repetir. Deve criar a cada dia. Não é simplesmente uma função que transmite verdades,
informações. Deve ter vida autônoma nessa logosfera, nesse universo da palavra, nessa
palavra cósmica que é uma nova realidade do homem".
Segundo Zaremba (1999:22), "Bachelard ouviu este rádio cósmico sintonizado nos
fundamentos que sustentam a proposta de um novo racionalismo, renovando a história das
descobertas científicas. Nesse caminho, ergueu os conceitos de homem diurno, que toma a
polêmica e a dúvida como métodos de trabalho, e homem noturno, reinventor das fontes de
1
Trabalho enviado para o NP 06 - Rádio e Mídia Sonora, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
Jornalista, Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Mestre e Doutora em Ciências da
Comunicação pela USP, Pós-Doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona. Autora de Rádio e Política. Tempos de
Vargas e Perón (2001, 2ªed.) e organizadora de Sistemas de Comunicação e Identidades na América Latina (1993);
Mídia, Imagem e Cultura (2001) e Rádio brasileiro. Episódios e Personagens (2003), este com Mágda Cunha.
3
O artigo foi publicado no Brasil no livro do autor O direito de sonhar, publicado pela Difel, São Paulo, 1985, pp:176182, traduzida por José Américo Motta Pessanha, Jacqueline Raas, Maria Lúcia de Carvalho Monteiro e Maria Isabel
Raposo. A obra original Le droit de rêver foi editada em Paris pela Presses Universitaires de France, em 1970.
4
Gaston Bachelard (1884-1962) é considerado um filósofo da ciência e da poesia. Sua obra abrange teoria da ciência,
epistemologia, filosofia da educação, estudo da linguagem e psicanálise, entre outras áreas. A partir das revoluções
ocorridas nas ciências exatas no começo do século passado, entre elas a Teoria da Relatividade, Bachelard procurava uma
reformulação das relações entre razão e experiência. Para ele, as relações vigentes na época eram baseadas nas teorias
científicas clássicas, que não eram mais válidas. Bachelard também propôs o que ele chamava de uma Psicanálise do
conhecimento objetivo, que busca uma análise da oposição entre objetividade e subjetividade, além de um estudo dos
símbolos. Gaston Bachelard nasceu em Bar-sur-Aube, na França, e começou sua vida trabalhando nos correios. Graduouse em Matemática em 1912 e tornou-se professor de Física. A Teoria da Relatividade, de Einstein, abalou as suas idéias
sobre a Física e a frustração o levou a uma outra graduação, desta vez em Filosofia. Começou a lecionar na Université de
Bourgogne, Dijon, em 1930, e em 1940 foi para a Sorbonne. Suas principais obras são: O novo espírito científico (1934),
A formação do espírito científico (1938), Psicanlálise do fogo (1938), A água e os sonhos (1942), O ar e os sonhos
(1943), A terra e os devaneios da vontade (1948), O materialismo racional (1953), A poética do espaço (1957) e A
poética dos devaneios (1960). (Informações retiradas do site www2.uerj.br/~emquest/emquestao82/bachelard.htm ).
2
imaginação criadora".
Para a autora, na ruptura entre pensamento comum e pensamento
científico elaborada por Bachelard, "a radiofonia emerge do território cósmico, residência
das radiogalaxias, alvo dos gigantescos radiotelescópios encastelados em estações
experimentais, aguardando captar as falas do Universo". Segundo Zaremba, "esta disciplina
da radioastronomia convive com as regiões insondáveis do invisível, função ancestral e
imaginária através da qual se admite que o rádio existiu muito antes de ser inventado".
Para Bachelard, o rádio é, verdadeiramente, "a realização integral, a realização
cotidiana da psique humana". Neste sentido, "é necessário ir à base, é preciso ir em direção
aos princípios do inconsciente. É necessário descobrir no inconsciente as bases da
originalidade humana". No entanto, o autor faz uma ressalva: se o rádio deve encontrar
temas de originalidade, não deve ser fantasista. Mas, onde o homem encontrará esse poder
de fantástico? Ele o encontrará no fundo de seu inconsciente. "É necessário, portanto, que
o rádio ache o meio de fazer com que os inconscientes se comuniquem. Por meio deles é
que irá encontrar uma certa universalidade".
E, neste momento, conforme Bachelard, chega-se à questão central: "é possível
que horas de rádio sejam instauradas e temas de rádio que toquem o inconsciente sejam
desenvolvidos, inconsciente que vai encontrar em cada onda o princípio de devaneio?" Para
o autor, seria necessário que houvesse, ao lado do engenheiro de antena o engenheiro
psíquico que suavizasse as transmissões sonoras. Isto porque, "é pelo inconsciente que se
pode realizar essa solidariedade dos cidadãos da logosfera que possuem os mesmos valores,
a mesma vontade de doçura, a mesma vontade de sonho".
O arquétipo
Fernando Peixoto (1980:5) referindo-se a sua infância, quando ainda não havia
televisão lembra:
O rádio era um instrumento mágico que nos transportava para um
universo de fuga e fantasia. Diante do rádio, uma vez pensei que ia
morrer: pela primeira vez senti a perna `adormecer´; imaginei que a
sensação iria tomar conta de todo o corpo. Olhei a família reunida
junto ao aparelho, preferi ficar calado e concentrado, na medida do
possível, nas palavras que o rádio transmitia.
Neste sentido, Bachelard vai chamar a atenção para a questão do arquétipo como
um tema verdadeiramente enraizado no psiquismo de cada indivíduo. Assim, para atrair o
ouvinte "pode-se convidá-lo a sonhar com um domicílio, com o interior de uma casa. Mas
não se trata de uma regressão, de retornar a felicidades esquecidas e sepultadas. Trata-se de
mostrar, pouco a pouco, ao ouvinte, a essência do devaneio interior".
Ao abordar o arquétipo da casa, o autor lembra que o rádio, ao se referir sobre o
mesmo, vai fazer um convite ao devaneio. E lembra que a falta da imagem deste veículo de
comunicação não se configura como uma desvantagem porque "a ausência de um rosto que
fala não é uma inferioridade: é uma superioridade; é precisamente o eixo da intimidade que
vai se abrir". Isto porque, cada ouvinte possui o seu arquétipo de casa natal, e alguma coisa
é mais profunda que este arquétipo: "aquilo que é chamado de a casa onírica, a casa de
nossos sonhos".
Se o rádio consegue atingir esta profundidade de relacionamento com o ouvinte,
"ele dá uma impressão de um repouso absoluto, de um repouso enraizado". Para o autor,
neste nível, o ouvinte cria uma raiz na imagem apresentada pelo locutor e saberá que possui
um inconsciente pois acabaram de traduzir para ele "coisas claras sob forma obscura. É
necessário procurar um pouco o obscuro". Ao decifrá-lo está-se frente ao arquétipo.
Bachelard vai lançar a interrogação: o rádio está em condições de transmitir
arquétipos? E responde afirmativamente: "o rádio possui tudo o que é preciso para falar na
solidão. Não necessita de rosto". Para ele, o ouvinte encontra-se diante de um aparelho,
numa solidão que não foi ainda constituída. "O rádio vem constituí-la, ao redor de uma
imagem que não é apenas para ele, que é para todos, imagem que é humana, que está em
todos os psiquismos humanos. Nada de pitoresco, nenhum passatempo. Ela chega por trás
dos sons, sons bem feitos".
Neste ponto, o autor vê a possibilidade mais profunda: "Volte a você mesmo,
alimente a poesia de seus arquétipos, venha para suas raízes... O rádio está verdadeiramente
de posse de extraordinários sonhos acordados ... E se os engenheiros psíquicos do rádio
forem poetas que desejam o bem do homem, a doçura de coração, a alegria de amar, a
fidelidade sensual do amor, prepararão boas noites para os ouvintes".
A mídia
Na mídia, portanto, o arquétipo envolve as grandes experiências humanas
universais. Conforme Babin (1993:98), são estas experiências que se encontram nas
inúmeras dramatizações, radionovelas e telenovelas: a bela e o monstro, as rivalidades, o
medo de envelhecer, a partida dos filhos. "O arquétipo é o universal tipificado numa estrela
de cinema e numa situação", diz o autor. Para Babin, a teoria de C.G. Jung sobre os
arquétipos dá conta de duas realidades fundamentais da mídia:
1- a modulação eletrônica, pelos seus efeitos psíquico-sensoriais,
excita esse grande reservatório de pulsões e de imagens a que
nós chamamos imaginário e a que Jung chamará o inconsciente
coletivo;
2- os grandes acontecimentos audiovisuais são todos arquétipos:
vêem-se aparecer na consciência da população os grandes
arquétipos, incluindo os rejeitados ou marginalizados pela
ciência tais como os arquétipos religiosos.
Neste sentido, ao serem ativadas no vasto repertório do imaginário, "as velhas
recordações adormecidas despertam e, de algum modo, batem à porta da consciência (...) e
estas imagens exprimem a nossa humanidade de sempre" (idem:100).
Para que o ouvinte de rádio consiga realizar esta "comunhão" com o arquétipo há
certas condições, segundo Bachelard (1985:180):
Não se trata de escutar este tipo de transmissão numa sala de baile,
num salão. É preciso escutá-la, não digamos numa cabana, isso seria
belo demais, mas num quarto, sozinho, à noite, quando se tem o direito
e o dever de colocar em si mesmo a calma, o repouso. O rádio possui
tudo o que é preciso para falar na solidão. Não necessita de rosto.
Em seu aspecto material, conforme Nunes (1993:41), o rádio suspende a imagem.
"Seu corpo é voz, considerado como carga sonora, e palavra falada. Palavras e vozes
noturnas convidam o ouvinte, no silêncio de si mesmo, à escuta". E, para Bachelard, ao
entrarmos na noite "começamos precisamente o caminho dos sonhos". Neste sentido,
Babin (1993:160) lembra
que os laços de analogia e a correspondência simbólica se
conjugam também preferencialmente à noite do que de dia; mais num momento de intensa
emoção do que no decorrer das ocupações diárias. Para o autor, "é então que emergem os
arquétipos, as pulsões, as lembranças pessoais, misturando-se ao humor do momento..."
Sobre a mesma questão, Torres (1999:169) vai dizer que:
No escuro, todos os sentimentos se manifestam, pois se
perguntam, se comunicam mais, pois interagem à flor da pele
com olhos fechados ou arregalados, totalmente absortos e
dominados por infra-sons. Escutar é, no mínimo, como se se
estivesse no escuro. E, no escuro, escutar é uma sensação
sagrada, uma permanente ampliação do conhecimento e pura
experiência imaginativa e sensitiva (prazer, medo...). Feche os
olhos! Abra os seus ouvidos o mais livremente que for capaz. E
procure, além de ouvir, escutar o entorno com a merecida
atenção...
Retomando-se a proposta de Bachelard, pode-se inferir, assim, da importância "de
uma redescoberta, de um resgate do mundo do ouvir, da necessidade de uma nova cultura
de ouvir", segundo Baitello Jr. (1999:65). E, para este autor,
O ouvir nos permite gerar imagens, nossas próprias imagens, e essas
imagens são geradas por nexos, sentidos e não são imagens oferecidas
prontas de maneira a cercear a capacidade imaginativa. Imaginação
vem de imagem. Mas é a geração de imagens. E esta geração de
imagens é provavelmente mais fértil no tempo do ouvir do que no
tempo de ver.
No rádio, a "provocação" a esta formação de imagens, ao devaneio, enfim, apóiase, fortemente, no discurso, além da música e dos efeitos sonoros. Sobre a força do discurso
radiofônico Rodrigues (1996:53) vai dizer:
Se tivesse que definir, de maneira sucinta, a natureza específica do
discurso radiofônico, diria que a sua característica fundamental é a de
ser um discurso dramatúrgico em que a máscara das personagens é a
máscara das vozes. O grande segredo da sua implantação e da sua
evolução social e histórica, aquilo que fez com que da telefonia sem
fios se chegasse ao dispositivo radiofônico que hoje conhecemos, foi
esta capacidade de exploração da natureza encantatória e, de certo
modo, fascinante da voz. A plasticidade dos sons da linguagem dá a
ver, neste caso, a totalidade da realidade. O mecanismo utilizado para
atingir este efeito é por isso a sinestesia entre o ouvido e o conjunto
dos sentidos pelos quais apreendemos a realidade.
.
O mito e o direito de sonhar
A proposta de Bachelard remete, assim, diretamente à questão da necessidade do
sonho, do devaneio. Por que esta preocupação? Durand (2004:17) pondera que nas
sociedades modernas há uma grande falta, "uma enorme e anárquica falta de ar sobre todos
os maravilhosos, todos os sonhos, todas as utopias possíveis". Para ele, o Ocidente, ao se
sacrificar "às mitologias desmitologizantes dos positivismos perdeu então, de uma só vez,
magistério religioso e magistério político". Segundo o autor (idem:18),
Quando tentamos reduzir a educação do homem a um adestramento
tecnocrático, funcional, pragmático, burocrático... se faz
automaticamente uma `transferência´, diria um psicanalista, deste
poder `vital´em direção aos horizontes selvagens dos devaneios em
liberdade... É bem isto que se passa hoje em dia sob os nossos olhos,
pois não há mais magistérios para reconhecer e enquadrar a
incoercível força de sonhar...
Para Durand, na atualidade está ocorrendo um "reencontro" com os mitos, pois não
se trata de algo novo e seria uma ilusão superficial acreditar
que existam mitos novos.
Segundo ele, "o potencial genético do homem, no plano anatomo-fisiológico, assim como
no plano psíquico, é constante desde que existem homens `que pensam´ , quer dizer, desde
os quinze a vinte mil anos de existência do homo sapiens". Neste sentido, a civilização
ocidental tem sido, nos últimos séculos, desmitificante e iconoclasta, relegando e tolerando
o mito a "um por cento do pensamento pragmático" (idem:20). Mas, segundo Durand,
... em uma aceleração constante, esta visão do mundo, esta concepção
do ser, do real, está desaparecendo. Não somente os mitos eclipsados
recobrem os mitos de ontem e fundam o epistema de hoje, mas ainda
os sábios na ponta dos saberes da natureza ou do homem tomam
consciência da relatividade constitutiva das verdades científicas, e da
realidade perene do mito. O mito não é mais um fantasma gratuito que
subordinamos ao perceptivo e ao racional. É uma res real, que
podemos manipular para o melhor e para o pior.
Ao constatar esta necessidade de sonhar, de retornar aos mitos, e percebendo no
rádio um poderoso aliado, pode-se dizer que Bachelard se insere nesta categoria dos "sábios
na ponta dos saberes" a que se refere Durand. Para este, "como escrevia ultimamente
Bachelard, há um direito de sonhar fundamental, constitutivo da vitalidade normal do
sapiens sapiens" (p.18).
Na verdade, ao filosofar sobre o rádio, Bachelard vai às últimas instâncias das
possibilidades abertas pelo veículo: a sua capacidade de chegar ao mais íntimo da
sensibilidade humana através do som e da audição. O que não quer dizer, naturalmente, que
os responsáveis por este meio de comunicação tenham feito, ao longo da história, o melhor
uso possível desta característica. Mas que ela existe, existe. Bachelard que o diga.
Bibliografia
Livros
BABIN, P. (1993). Linguagem e cultura dos media. Lisboa, Bertrand Editora.
BACHELARD, G. (1985). O direito de sonhar. São Paulo, Difel.
NUNES, M.R.F. (1993). O mito no rádio. A voz e os signos de renovação periódica. São Paulo,
Annablume.
SPERBER, G.B.(org.,1980). A peça radiofônica. São Paulo. E.P.U.
ZAREMBA, L. e BENTES, I.(orgs.,1999). Rádio Nova, constelações da radiofonia contemporânea
3. Rio de Janeiro, UFRJ/ECO, Publique.
Artigos
BAITELLO Jr., N. A cultura do ouvir in ZAREMBA, L. e BENTES, I. (1999). Rádio Nova.
Constelações da Radiofonia Contemporânea 3. Rio de Janeiro, UFRJJ/ECO, Publique, pp:53-69.
DURAND, G. (2004). O retorno do mito: introdução à mitologia. Mitos e sociedades. In Revista
Famecos. Mídia, cultura e tecnologia nº 23. Porto Alegre, Edipucrs, pp: 7-22.
PEIXOTO, F. Descobrindo o que já estava descoberto in SPERBER, G.B. (org.,1980). A peça
radiofônica. São Paulo, E.P.U., pp:5-10.
TORRES, J.B. RÁ(U)DIO NO ESCURO in ZAREMBA, L. e BENTES, I. Rádio Nova.
Constelações da radiofonia contemporânea 3. Rio de Janeiro, UFRJ/ECO, Publique pp:157-171.
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