FAFICH/UFMG- BIBLIOTECA
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Coleção
ESTÉTICAS
direção: Roberto Machado
Nietzsche e a polêmica sobre
O
nascimento da tragédia
Kallias ou Sobre a Beleza
Friedrich Schiller
Ensaio sobre o Trágico
Textos de Rohde, Wagner e
Wilamowitz-Mollendorff
Peter Szondi
Nietzsche e a Polêmica sobre
"O Nascimento da Tragédià'
Roberto Machado (org.)
Organização e introdução:
ROBERTO MACHADO
Tradução do alemão e notas:
PEDRO SüSSEKIND
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U.F.M.G. . BIBLIOTECA UNJVERSITÁRIA
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NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
Jorge ZAHAR Editor
Rio de Janeiro
Introdução
Arte, ciência, filosofia
ROBERTO MACHADO
O nascimento da tragédia apresenta três idéias principais, às quais
todas as outras estão subordinadas.
A primeira é uma explicação da origem, composição e finalidade da arte trágica grega. A base dessa teoria da tragédia são os
conceitos de apoHneo e dionisíaco, elaborados a partir das categorias metafisicas de essência e aparência ou, mais precisamente,
da dualidade schopenhaueriana vontade e representação.
O apolineo é para Nietzsche o princípio de individuação, um
processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma experiência da medida e da consciência de si. E se Nietzsche dá a esse
processo o nome de apolineo é porque, para ele, Apolo, deus da
beleza, cujos lemas são "Conhece-te a ti mesmo" c "Nada em demasia': é a expressão, a representação, a imagem divina do principio de individuação. O que se pode compreender pelas duas propriedades que ele encontra em Apolo: o brilho e a aparência. Por
um lado, Apolo é o brilhante, o resplandecente, o solar. Propriedade que pertence não só a Apolo, mas aos deuses olimpicos em
geral e até mesmo aos homens, quando se tornam gloriosos por
seus feitos heróicos. Por outro lado, intrinsecamente ligada à idéia
de brilho está a de aparência. Pois conceber o mundo apolineo como brilhante significa não só criar uma proteção contra o sombrio, o tenebroso da vida, mas principalmente criar um tipo especifico de proteção: a proteção pela aparência. Os deuses e heróis
apollneos são aparências artlsticas que tornam a vida desejável,
encobrindo o sofrimento pela criação de uma ilusão. Essa ilusão
é o principio de individuação.
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Já o dionisíaco é pensado por Nietzsche a partir do culto das
bacantes: cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, à noite, nas montanhas, invadiram a Grécia vindos da Asia.
Em vez de um processo de individuação, trata-se de uma experiência de reconciliação das pessoas com as pessoas e com a natureza, uma harmonia universal, um sentimento mistico de
unidade. A experiência dionisiaca é a possibilidade de escapar da
divisão, da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade. Ao mesmo tempo,
o dionisíaco significa o abandono dos preceitos apolineos da medida e da consciência de si. Em vez de medida, delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolineas, o que se manifesta na
experiência dionisíaca é a hybris, a desmesura, a desmedida. Do
mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o dionisíaco
produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade; produ z o entusiasmo, o enfeitiçamento, o abandono ao êxtase divino, à loucura mistica do deus da possessão.
Mas u (aitima pulavru de Nietzsche a respeito do n ascim en to da tragédia não é o antagonismo entre o apollnco e o dionisiaco: é a aliança, a reconciliação entre os dois princípios. Neste
sentido, um dos pontos mais importan tes da interpretação é a
ligação que ele estabelece entre o culto dionisiaco e a arte trágica, defendendo a hipótese de que a tragédia se origina dessa
multidão encantada que se sente transformada em sátiros c silenos, como se vê no culto das bacantes; ou, mais precisamente, de
que, no momento em que é apenas coro, a tragédia imita, simboliza o fenômeno da embriaguez dionisíaca responsável pelo
desaparecimento dos princípios apolíneos criadores da individuação: a medida e a consciência de si.
Para que essa hipótese se revele em toda sua força e originaLidade, é preciso salientar os dois principais componentes dessa
teoria da tragédia. Primeiro, o que torna a arte trágica possível é
a música. A tragédia nasce do espírito da música; a origem da tragédia é a possessão causada pela música. Inspirado em Schopenhauer e em Wagner, que interpretaram a música como expressão
imediata e universal da vontade entendida não como vontade individual, mas como essência do mundo, Nictzsche pensará a mú-
sica como uma arte essencialmente dionisíaca e, portanto, o
meio mais importante de se desfazer da individualidade. Mas, se
a música é o principal elemento que permite explicar o nascimento da tragédia, para dar conta totalmente desse fenômeno
artístico Nietzsche acrescenta à música, seu componente dionisíaco, os componentes apolíneos: a palavra e a cena. O que o faz
definir a tragédia como um coro dionisíaco que se descarrega em
um mundo apolineo de imagens. Esse mundo de imagens criado
pelo coro é o mito trágico, que apresenta a sabedoria dionisíaca
através do aniquilamento do individuo heróico e de sua união
com o ser primordial, o uno originário, que é, em última análise,
o que Schopenhauer chamou de vontade. Com que finalidade?
Para fazer o espectador aceitar o sofrimento com alegria, como
parte integrante da vida, porque seu próprio aniquilamento como indivíduo em nada afeta a essência da vida, o mais íntimo do
mundo. Assim, fundada na música, a tragédia, expressão das pulsões artísticas apolinea e dionisíaca, união da aparência e da essência, da representação e da vontade, da ilusão e da verdade, é a
atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência.
A segunda idéia importante de O nascimento da tragédia é a
denúncia da morte da arte trágica perpetrada por Eurípides.
Pois, diferentemente de todas as outras artes, que têm uma morte natural, a tragédia grega teria sucumbido por suicídio. Suicídio que, segundo Nietzsche, tem duas causas. A primeira é a prevalência, em Eurípides, do homem teórico, do pensador racional,
sobre o artista, o poeta. Esse Eurípides teórico é o crítico de &quilo, aquele que viu nas tragédias de seu antecessor uma precisão enganadora, uma profundidade enigmática, além de achar
contestável sua solução dos problemas éticos, duvidosa sua utilização dos mitos, desigual a repartição da felicidade e da infelicidade. Mas esse Eurípides teórico é também aquele que, como juiz
de sua própria arte, faz de sua poesia o eco de seu pensamento
consciente, reavaliando todos os elementos da tragédia: a linguagem, os caracteres, a construção dramática, o coro. Postura critica que o leva a excluir, com a música, o componente dionisíaco
da tragédia. O que Nietzsche chama "tendência de Eurípides" é a
reconstrução da tragédia com uma arte, uma ética e uma visão
do mundo não-trágicas. Um misto de "frios pensamentos para-
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doxais e afetos ardentes" que sacrificam tanto o apoüneo quanto
o dionisíaco.
A segunda causa, ou melhor ainda, a razão principal, do
chamado suicídio da tragédia é o socratismo de Eurípides. Pois,
para Niet7..sche, Eurípides foi apenas uma máscara, no sentido de
que quem falava por ele não era Apolo nem Dioniso, era Sócrates, o protótipo do homem teórico, aquele que só encontra satisfação em arrancar o véu da aparência, aquele que acredita ser
possível penetrar no fundo das coisas, separando o conhecimento verdadeiro da aparência. Se Nietzsche critica a "estética racionalista" socrática ou o "socratismo estético" como o princípio
mortal que destruiu a tragédia, é por ter introduzido na arte a lógica, a teoria, o conceito, subordinando o poeta ao teórico, a beleza à razão.
A essência do socratismo estético pode ser resumida numa
fórmula: "Tudo deve ser inteligível para ser belo" ou "Tudo deve ser consciente para ser belo': princípio estético paralelo ao
princípio ético socrático: "Só aquele que sabe é virtuoso" ou
"Tudo deve ser consciente para se r bom': Concepção que teria
levado a se considerar a tragédia irracional, isto é, um compromisso de causas sem efeito e de efeitos sem causa, e a desvalorizar o poeta trágico por não ter consciencia do que faz c não
apresentar claramente o seu saber. O que desvaloriza totalmente uma sabedoria instintiva ou inconsciente, levando a pensar
que, por não ter consciência do que fazia, Ésquilo não criava
nada de justo, nada de correto. Pois, se o critério se torna o grau
de clareza do saber ou a consciência teórica do artista, a arte
trágica, que expressa um saber inconsciente, estará conseqüentemente desclassificada.
Assim, o "socratismo estético': ou a "tendência socrática':
foi, para Nietzsche, o principal responsável pela morte da tragédia ou pelo desaparecimento de seu saber trágico. Pois enquanto
a metaftsica do artista trágico, em que a experiência da verdade
dionisíaca se faz indissoluvelmente ligada à bela aparência apolinea, é capaz, com sua música e seu mito, de justificar a existência
do "pior dos mundos': transfigurando-o, a metaftsica racional
socrática, criadora do espírito científico, é incapaz de expressar o
mundo em sua tragicidade, pela prevalência que dá à verdade em
detrimento da ilusão e pela crença de que é capaz de curar a ferida da existência.
A terceira idéia importante do livro é a tentativa de encontrar o renascimento da tragédia, ou da concepção trágica do
mundo, em algumas manifestações culturais da moderrudade.
Por um lado, a música de Wagner, grande motivador e inspirador de suas análises, a quem o livro é dedicado, e em que Nietzsche vê a volta da arte da Antigüidade, ou, mais precisamente, o
retorno do sentimento trágico do mundo; por outro lado, a filosofia de Schopenhauer, que teria brotado da mesma fonte dionisíaca que a música e aruquilado o otimismo socrático.
O nascimento da tragédia, que se refere aos gregos como
"nossos luminosos guias", dá continuidade ao projeto de Winckelmann, Goethe e Schiller de pensar o que deve ser a obra de
arte moderna a partir de uma reflexão sobre a arte grega. Como
eles, o jovem Nietzsche também se sente um pensador que pode entender melhor sua época a partir do mundo grego. Mas há
uma grande diferença entre ele e os pensadores que iniciaram a
política cultural alemã de valorização da arte grega como modelo do que deve ser a arte moderna. É que, negando que os gregos tenham sido exclusivamente ou essencialmente apolineoscomo pensava Winckelmann com sua célebre "nobre simplicidade e calma grandeza" - Nietzsche relacionará a serenidade
apolínea com um aspecto mais profundo da Grécia, o dionisíaco, que não tinha sido pensado por eles. Se Winckelmann, Goethe e Schiller fiZeram o espírito alemão entrar na escola dos gregos, Nietzsche pensa que eles "não conseguiram abrir a porta
mágica que dá acesso à montanha encantada do helenismo"
porque não usaram a boa chave para isso: a música, ou melhor
ainda, a tragédia musical.
A originalidade de Nietzsche não é propriamente sua concepção da música, bastante seme.lhante, na época, à de Schopenhauer. Sua originalidade foi, inspirado na concepção schopenhaueriana das artes, valorizar a m(•sica para pensar a tragédia
grega como uma arte fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito da música, articulando Schopenhauer com
o movimento de utilização da Grécia como modelo para pensar
a cultura alemã, através de um renascimento do espírito trágico.
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E o elo que possibilitou isso foi certamente a idéia wagneriana de
drama musical.
Isso significará para Nietzsche que a obra de arte moderna
só pode ser o renascimento da arte apolíneo-dionisíaca da tragédia. Mas sigrúfica rá também - e a esse respeito a in t1 uência das
óperas de Wagner é fundamental-o renascimento de mitos germânicos, que, segundo O r1ascimento da tragédia, conservam "o
espírito alemão intato em sua esplêndida saúde, profundidade e
força dionisíaca'~ Assim, o renascimento do espírito trágico grego vincula-se, em Nietzsche, ao renascimen to do gênio alemão
que, mesmo que tenha vivido "a serviço de pérfidos anões': no
mais profundo de si mesmo se conserva intato, com toda a sua
força dionisíaca. Como se o espírito trágico existente na Grécia
pré-socrática, em vez de ter sido totalmente aniquilado pelo espírito socrático, embora reprimido, se tivesse mantido vivo na
profundeza adormecida do espírito alemão. Continuidade entre
o mito trágico grego e o mito alemão que faz do nascimento de
uma era trágica do espírito alemão "apenas um retorno a ele
mesmo, um bem-aventurado reencontrar-se a si próprio, depois
que, por longo tempo, enormes poderes conquistadores, vindos
de fora'; o haviam reduzido à escravidão.
Se O nascimento da tragédia é um livro profundan1ente alemão, sendo levado a falar de "problema alemão': "esperanças alemães'; "gênio alemão'; "espírito alemão'; "ser alemão'; é pela importância que dá à música ou pela idéia de que a música é a força
a partir da qual Nietzsche faz sua crítica à cultura alemã. Pois não
é ele quem diz que na Antigüidade helênica "reside a esperança de
uma renovação e de uma purificação do espírito alemão pelo jogo
mágico da música"? Esse vínculo entre o renascimento alemão da
Antigüidade grega e a música alemã, considerada como a condição
essencial do despertar do espíri to dionisíaco, é tão importante no
Nascimento da tragédia que ele aparece não só na interpretação de
Bach, Beethoven e Wagner como etapas desse despertar do fundo
do espírito alemão, mas até mesmo no curioso elogio ao "coral de
Lutero, como primeiro chamariz dionisíaco'~
Assim, O nascimento da tragédia estabelece a origem musical da tragédia grega, c sua importância como uma mctaffsica de
artista, sobretudo para legitimar a arte wagneriana, sugerindo
que o renascimento do esplrito dionisíaco tem como sua expressão mais forte o drama musical wagneriano. Idéia que já motiva
Nietzsche a escrever com toda ênfase no fragmento 9[34]. de
1870: "Reconheço na vida grega a única forma de vida; e considero Wagner a tentativa mais sublime do ser alemão na direção
de seu renascimento."
• • •
Essas idéias, elaboradas sobretudo em 1870 e 1871 por um jovem
filólogo, professor da Universidade da Basiléia, mesmo não sendo inteiramente originais, jamais haviam sido enunciadas desta
maneira. E surpreenderam os filólogos da época.
Um dos motivos é o estilo em que são expostas. É que, pelo
menos desde 1867, ainda estudante de filologia em Leipzig, constatando que escreve sem estilo, Nietzsche busca uma maneira de
redigir seus textos que seja diferente dos escritos filológicos, inclusive de seus trabalhos anteriores, sobre Teógnis e Diógenes Laércio.
Essa recusa do estilo filológico significa duas coisas: primeiro, em vez de escrever de maneira seca e morta, subjugada pela lógica, fazer uma exposição rigorosa das provas de forma agradável
e elegante, evitando a gravidade, o pedantismo, a tradição ostentatória, cheia de citações, que caracteriza a filologia. Escrever como se estivesse improvisando ao piano, já diz o jovem estudante
de filologia. Segundo, significa criar wn estilo que, sem se limitar
ao exame de fragmentos isolados, seja capaz de situar os fatos em
um horizonte mais amplo, mais abrangente. Assim, opondo-se à
estreiteza científica da filologia- uma atividade cega, de toupeira,
como diz -, Nietzsche confessa que, enquanto a maior parte dos
filólogos é incapaz de ter uma visão de conjunto da Antigüidade,
por se manter muito perto do quadro, seu maior prazer é "descobrir um ponto de vista novo sobre wna questão, multiplicar os
pontos de vista e juntar o material com essa intenção': A filologia
deve abarcar um conjunto mais vasto ou produzir pontos de vista mais elevados do que geralmente tem feito.1
Ora, Nietzsche pensa que aquilo que lhe possibilita essa crítica da filologia é a filosofia; pensa que, para que a realidade individual dê lugar à unidade do todo, a atividade filológica deve
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estar inserida em uma visão filosófica do mundo, Assim, se ele
gosta mais de seu trabalho filológico sobre Demócrito do que
dos dois primeiros sobre Teógnis e sobre Diógenes Laércio, é pela base filosófica que ele contém,
Essa idéia, que desponta quando é estudante em Leipzig, de
uma subordinação da filologia à filosofia, pela visão global que esta possibilita, ganha ainda mais força no momento em que ele se
torna professor dessa disciplina na Universidade da Basiléia. Isso
pode ser notado em sua aula inaugural, de 1869, "Homero e a filologia clássica'~ Essa conferência parte da falta de unidade conceitua! e da multiplicidade de atividades científicas da filologia para
defender que, se ela é uma disciplina estética - além de histórica
e científica - é por ver na Antigüidade clássica um mundo ideal,
um modelo eterno onde o presente deve se espelhar. Posição que
o faz observar, ainda bastante influenciado por Winckelmann,
que, se os filólogos devem contar com o apoio dos artistas, é porque apenas eles "podem compreender o quanto a espada da barbárie ameaça todos aqueles que perdem de vista a inefável simplicidade, a dignidade e a nobreza dos gregos':2 Mas também o leva,
depois de haver citado a frase de Schiller segundo a qual os filólogos destroçaram a coroa de Homero, a esclarecer aos "artistas
amigos da Antigüidade, adoradores das belezas helênicas e de sua
nobre simplicidade': que toda atividade filológica- indispensável
para fazer ressurgir o mundo das obras primas imortais do espírito grego que estava oculto sob uma montanha de preconceitos
- deve ser in1pregnada de uma concepção filosófica que dê conta
de uma unidade global. 3
Essas mesmas posições podem ser notadas no curso de 1871
intitulado Introdução aos estudos de filologia clássica, em que
Nietzsche chega a estabelecer que só quem é filósofo e artista está predestinado a ser filólogo. t que, segundo ele, a compreensão
histórica dada pela filologia consiste em interpretar os fatos a
partir do classicismo da Antigüidade, com suas leis eternamente
vá.lidas e sua superioridade em relação ao mundo moderno. Ora,
o dassicismo da Antigüidade é, para ele, uma pressuposição filosófica, e implica que, guiado pela filosofia, o filólogo se liberte
dos detalhes, considerando as coisas com amplitude, como um
todo.• O que só se realizará se o filólogo assinúlar o ensinamen-
to dos grandes modernos, como Winckelmann, Lessing, Goethe,
Schiller, sobre o que é a Antigüidade.
Assim, o principio que possibilita a critica nietzschiana da
filologia é que esta não é uma ciência autônoma, devendo estar
em constante interação com a arte e a filosofia. Uma filologia puramente científica nos faz perder o "verdadeiro perfume" da
Antigüidade. Ao julgar que a filologia tem sido indiferente aos
verdadeiros e mais urgentes problemas da vida, e utilizar-se da
ciência da Antigüidade para pensar filosoficamente, Niet7.sche, já
nesse primeiro momento de sua reflexão, é muito mais que um
filólogo.
Essa presença da filosofia é tão grande na época em que escreve O nascimento da tragédia que, em janeiro de 1871, Nietzsche propõe sua candidatura a uma das duas cátedras de filosofia da Universidade, que tinha ficado vaga. A proposta é feita por
carta a seu protetor, o conselheiro Vischer-Bilfinger, filólogo,
professor e presidente do Conselho da Universidade da Basiléia,
que havia sido o principal responsável por sua nomeação como
professor, depois da consulta a seis renomados acadêmicos alemães, entre os quais Ritschl, professor de Nietzsche em Bonn e
Leipzig. Ora, nessa carta, Nietzsche confidencia a Vischer que os
estudos de filologia o interessavam principalmente pelo que tinham de significativo para a história da filosofia, informandolhe não só que durante seus estudos acadêmicos esteve em permanente contato com a filosofia, organizando seus interesses
principais em torno dela, como também que, ao se tornar professor, chegou até mesmo a dar cursos sobre temas filosóficos. E
não deixa de ser curioso o argumento que utiliza para convencêlo da importância de sua transferência da cátedra de filologia para a de filosofia: a causa da estafa que o afeta regularmente no
meio de cada semestre é o conflito pessoal entre sua inclinação à
meditação filosófica e suas múltiplas atividades cotidianas de
professor de filologia. Nietzsche não ganhará o cargo, provavelmente devido à oposição que seu nome suscitaria no outro professor de filosofia da Universidade, que havia reagido negativamente a suas conferências sobre "O drama musical grego" e
sobretudo "Sócrates e a tragédia'~ que faz a crítica da racionalidade socrática e de seus "efeitos antiartisticos" sobre a tragédia.
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Mas, antes de saber que sua solicitação nem foi levada em consideração, escreve a Rohde, em 29 de março de 1871, dizendo que
está terminando um pequeno trabalho intitulado "Origem e objetivo da tragédia" que lhe pode dar legitimidade como fllósofo.5
Esse interesse pela filosofia, que vem do tempo de estudante, acompanhando seus estudos e escritos filológicos, consistiu
em algumas leituras de filósofos e historiadores da filosofia.
Schopenhauer, que lera com entusiasmo em outubro de 1865,
quando estudava filologia em Leipzig, e foi sua primeira descoberta da dimensão trágica da existência. A Critica da fawldade de
julgar, de Kant. Diógenes Laércio, Lange e Kuno Fischer, que lhe
deram o conhecimento da história da filosofia. Platão e os filósofos "pré-platônicos'; sobre quem deu alguns cursos. Essas leituras
significaram sem dúvida pouco para que lhe fosse confiada uma
cátedra de filosofia. Elas traem, no entanto, um interesse tão
grande pelas questões filosóficas que, no momento em que decide fazer carreira como professor de filologia, esta já significa para ele mais um trabalho do que propriamente uma vocação. E se
esse interesse. como se sabe, só faz crescer. é ele que leva Nietz-
sche, logo depois de escrever O nascimento da tragédia, e ainda
como professor de filologia, a começar a abandonar a temática e
os métodos da filologia, buscando um compromisso entre sua
paixão pela filosofia e suas obrigações profissionais, como se nota pelos cursos que deu em 1873 sobre os filósofos pré-platônicos, sobre Platão e sobre a Retórica de Aristóteles. 6
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O nascimento da tragédia - embora ainda seja pouco para as exigências posteriores de seu autor, que na autocrítica de 1886 o considera um Uvro "estranho'; "dii!cil'; "problemático" e até mesmo
"impossível"- é a grande reali1.ação desse projeto, acalentado há
alguns anos, de utilização da filologia para uma reflexão filosófica.
Dai por que, temendo pela recepção do livro, antes mesmo
que este seja publicado, Nietzsche escreve a Rohde - seu grande
amigo desde 1866, quando ainda estudavam em Ldpzig, e que na
época em que elabora O nascimento da tragédia ele considera, de
todos os jovens filólogos que encontrou, de longe o mais capaz7
-sugerindo que dê sua opinião sobre o livro, pois, diz ele, "temo
que os ftlólogos, por causa da música, os músicos, por causa da
filologia, e os filósofos, por causa da música e da filologia, se recusem a ler o livro..::s Temor que é uma decorrência do que ele
pensava de seu livro enquanto o escrevia, como se pode ver pela
carta endereçada ao mesmo Rohde, no final de janeiro de 1870,
que contém a bela e, à primeira vista, intrigante afirmação:
"Atualmente ciência, arte e filosofia se unem em mim tão fortemente que um dia conceberei centauros."
Daí também por que, quando o livro é publicado, Nietzsche
se preocupa com o silêncio de seus pares, sobretudo o de Ritschl,
escrevendo-lhe que estranha não ter recebido nenhuma palavra
a seu respeito, e que esse silêncio o inquieta. Aproveita, então, para dizer que O nascimento da tragédia é um manifesto, cheio de
esperanças para a ciência da Antigüidade e para a germanidade,
e que pretende com ele agir sobre a jovem geração de filólogos. 9
Ritschl foi o professor que teve mais influência sobre Nietzsche em Leipzig, apesar de sua hostilidade à contaminação da filologia pela filosofia, pois, seguidor de Wolf, para quem a filologia
deve dar uma explicação gramatical exata, sem nada de estética ou
de poética, reduz a ciência da Antigüidade à crítica do texto. 10 Essa influência é confessada por Nietzsche em carta ao amigo Paul
Deussen, de 4 de abril de 1867, nesses termos: "Você não imagina
a que ponto estou pessoalmente ligado a Ritschl, não posso nem
quero me desligar dele ... o menor de seus julgamentos reflete tal
bom senso, tal vigor, tal respeito pela verdade que ele se tornou para mim uma espécie de consciência científica?' Ritschl foi o responsável por sua passagem da teologia para a filologia, depois de
seu primeiro semestre em Bonn; foi quem publicou em sua revista seus primeiros trabalhos filológicos: sobre Teógnis, em 1866, e
sobre Diógenes Laércio, em 1867. Além disso, foi Ritschl quem
conseguiu seu doutorado honoris causa e o indicou para a cátedra
de filologia da Universidade da Basiléia, declarando entusiasmado
que, entre os jovens talentos que viu se desenvolver, jamais conheceu alguém tão precoce e tão completo quanto Niet7,.sche, predizendo inclusive- como se sabe equivocadamente- que ele figuraria um dia no primeiro time da filologia alemã. 11
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Ritschl responde a Nietzsche em 14 de fevereiro de 1872,
deixando claro que seu ex-aluno jamais teria nele um aliado para sua interpretação da Grécia c sua defesa da importância da
Grécia para a Alemanha. Dizendo-se velho demais, aos sessenta
c cinco anos, para seguir caminhos tão novos quanto os indicados por Nietzschc e distanciando-se da rclayão estabelecida por
ele entre filologia, arte c filosofia, Ritschl defende na carta, como
sempre fizera, a interpretação histórica como o âmago da filologia. Postura metodológica que o leva a várias criticas de fundo a
O nascimento da tragédia. Primeiro, a lembrar que um cientista,
como ele, não pode condenar o conhecimento e ver na arte a
única força libertadora. Segundo, a salientar que a salvação do
mundo não vem de um sistema filosófico, no que reconhece a filosofia de Schopcnhaucr como a base para a compreensão do
Nascimento da tragédia, mas confessa não ser capaz de compreendê-la. Terceiro, a discordar do privilégio que Nietzsche dá à
tragédia grega c da importância que ela teria para a humanidade, pois, embora o helenismo seja a eterna fonte da cul tura universal, as formas c as forças espirituais de um povo. como o gre-
go, não podem servir de modelo ou de regra para outros povos
ou outros períodos. FinaJmente, Ritschl é levado a se questionar
se as reflexões de Nietzsche poderão realmente servir como fundamento para a educação da juventude ou servirão apenas para
criar um desprezo pela ciência, sem levar a uma compreensão
mais profunda da arte.
A carta é firme na exposição das discordâncias, mas é contida e cordial. A posição de Ritschl, no entanto, é muito mais rígida,
como se sabe pe.la carta a Vischer escrita um ano depois, em 2 de
fevereiro de 1873, que evidencia de forma ainda mais contunden te o quanto sua divergência em relação ao ex-aluno diz respeito à contaminação da ftlologia pela arte e pela filosofia: "Mas
nosso Nietzsche é realmen te um caso aflitivo ... t curioso constatar como nele duas almas coabitam. Por um lado, o método
mais rigoroso na pesquisa científica ... Por outro lado, o entusiasmo religioso por Schopenhauer e pela arte wagneriana, em uma
exa.ltação delirante, nos excessos de um gênio que vai até o incompreensível! Pois quase não é exagero dizer que tanto ele
quan to seus adeptos Rohde e Romundt- sob o domínio de uma
influência mágica- aspiram a nada menos do que fundar un1a
nova religião. Deus nos proteja! ... O que mais me contraria é sua
impiedade em relação a sua própria mãe, no seio da qual ele foi
criado: a filologia." 12
Mas o distanciamento reservado da carta de Ritschl a
Nietzsche é só o início das reações negativas ao livro. Pois a resenha de Rohde, que havia sido enviada à Lirterarische Zentralblart,
revista especializada em filologia, é recusada, levando Nietzsche
a escrever a seu amigo Gersdorff que aquela era a última possibilidade para que uma voz séria intercedesse a favor de seu livro em
uma publicação científica, c que agora não esperava mais nada, a
não ser maldades e idiotices. Essa decepção com seus contemporâneos parece, no entanto, apenas o outro lado da impressionante confiança no que escreveu. Confiança que se manifesta, por
exemplo, quando declara ao mesmo Gersdorff que conta com
um lento e si.lencioso avanço do livro através dos séculos, pois é
imposs[vel que as verdades eternas que se expressam nele pela
primeira vez não tenham eco;11 ou quando escreve a Ritschl para agradecer sua "bela carta detalhada" c se diz convencido de
que serão necessárias várias décadas aos fi lólogos antes de poderem entender um livro tão esotérico e cicntlfico. 14
A primeira resenha, não publicada, de Rohdc, que NictLSchc
considerou uma obra-prima por dar conta fielmente do original,
é muito elucidativa das posições wagncrianas c schopenhauerianas do livro. Isso se evidencia quando defende, em forma de curta introdução metodológica, que o livro é um novo caminl10 de
compreensão do segredo estético profundo da tragédia grega, até
então não desvendado, explicitando que se trata de um tipo superior de enfoque histórico, ou da vinculação de considerações
estéticas e históricas. capaz de dar conhecimento da essência
eterna da vontade c das faculdades do homem. Mas os fundamentos wagnerianos e schopenhauerianos tornam-se ainda mais
patentes quando a resenha sintetiza o conteúdo do Hvro a parür
de seus temas principais: o nascimento, a morte e o renascimento da tragédia.
A paráfrase que Rohde faz de O nascimento da tragédia é,
em resumo, a seguinte. Vivendo em um mundo de tormentos, em
eterno sofrimento, o homem tem como força salvadora as ima-
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gens reconfortantes da epopéia por sua capacidade de libertar da
violência da vontade que move todas as coisas. Mas a ilusão da
individuação o abandona, e ele é tomado de terror, ao se sentir
engolido pelas trevas das profunde-as, onde a vida flui no movimento da unidade eterna. É quando se revela a mais elevada força salvadora da arte, e a música, arte que expressa a essência do
mundo, faz nascer o mito trágico na tragédia, a partir de elementos líricos e épicos.
Depois de curta floração, no entanto, a tragédia é morta pelo conhecimento científico, pelo otimismo teórico, manifestado
pela força demoníaca do instinto em Sócrates. A morte da tragédia ocorreu porque sua força artística, capaz de expressar os mais
profundos segredos da ordem cósmica em imagens míticas,
desagregou-se diante de um conhecimento científico que pretendeu dar conta dessa ordem cósmica em toda a sua profundidade
e amplitude.
O livro, finalmente, é animado pela esperança consoladora
de que se aprenda com os gregos não a fundamentação socrática
do mundo, como em geral tem sido feito, mas o rcnascin1ento da
arte apolíneo-dionisiaca da tragédia, inaugurando uma civilização nova, cheia de promessas. Projeto grandioso que se deve ao
povo alemão que, através de Kant, acaba de despertar de um longo sono e que traz a possibilidade de uma nova civilização artística que poderia fazer renascer a tragédia nascida da música. Pois
Nietzsche compartilha a visão wagneriana -baseada na concepção de Schopenhauer- da música como idéia do mundo. E Rohde conclui seu elogio defendendo que o livro pode dar ao leitor
algo da consolação metafisica pela qual a tragédia liberta, ao fazer o espectador entrever que, mesmo lírnitado por uma pobre
individuação, é preenchido pela onipotência da vida, pois é parte do uno eterno.
O que os filólogos pensariam do Nascimento da tragédia ao
lerem uma resenha como essa? Nietzsche, que deve ter notado
que os especialistas não gostaram do que escreveu,15 se preocupa com isso, chegando mesmo a confidenciar a Rohde que há
desacordo entre os dois sobre a tática a adotar para dar conta do
livro, pois considera mais eficaz deixar fora da discussão o seu
aspecto metafísico. E dá, a esse respeito, o exemplo de Jacob Bur-
ckhardt, que, mesmo não se interessando por filosofia, gosta do
que o livro esclarece quanto ao conhecimento da Grécia. 16 Posição com a qual Rohde não concorda, por acreditar que, em vez
de valorizar particularmente o aspecto filológico-histórico, como havia sugerido Nietzsche, é mais indicado, na resenha, que o
livro expressa que o desejo de urna reconciliação entre nossa civilização secularizada e a mais profunda mística, a unificação do
eu e do todo no mito. 17
E é isso, na verdade, o que ele faz, ao pretender dizer aos fi lólogos que só com os gregos eles poderão encontrar o modelo
pelo qual se guiar e que devem aprender com O nascimento da
tragédia a se tornar os guardiães de uma educação mais nobre. 18
Pois a nova resenha escrita por Rohde também a pedido de
Nietzsche, embora mais longa, é muito parecida com a anterior.
Explicita, em primeiro lugar, como introdução, a relação entre filologia e filosofia presente no livro, caracterizando-o como um
estudo da Antigüidade helênica associado a um estudo filosófico
da arte, de tal modo que os resultados da pesquisa histórica servem
para a formulação de leis artísticas eternas e universais. O que faz
do livro, metodologicamente, uma estética filosófica que, com o
olhar dirigido para a arte grega, lembra à filologia que a eterna arte helênica é o mais precioso dos bens doados à humanidade e
que ela nos foi dada para exortar os bárbaros da posteridade a
reconhecerem nela o ponto mais alto de sua própria destinação.
Em seguida, a resenha salienta, mais uma vez, a estrutura de O
nascimento da tragédia, apresentando, com objetividade e concisão, suas teses referentes ao nascimento, à morte c ao renascimento da tragédia.
A esse respeito, a resenha de Rohdc apresenta, primeiro, a
dupla raiz da arte: o apoHnco c o dionisíaco. Mostra como paixões profundas de entusiasmo panteísta se espalharam pela Grécia vindas do Oriente, mas que os gregos conseguiram, graças à
arte, captar, dar forma e transfigurar o rurbilhão que ameaçava
atirá-los nas profunde1.as, tornando objetiva, na música, a dcHcia
aterradora do êxtase místico que liga o homem ao uno da vontade do mundo. Além disso, mostra, a esse respeito, que os gregos
fizeram surgir da música a imagem analógica do mito trágico, fazendo com que Dioniso estendesse a mão a Apolo. Esclarece, em
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segundo lugar, que a sabedoria dionisíaca da tragédia se expressa numa linguagem superior à da razão, mas que, com Sócrates,
a compreensão mítica do mundo desaparece, quando a lógica o otimismo lógico, a compreensão abstrata- torna-se a deusa suprema da ciência. Finalmente., a resenha salienta que o livro convida a ter novamente esperança, pois na nobreza da arte, ou mais
precisamente, na música alemã vive ainda hoje a capacidade de
olhar o reflexo mítico dos traços secretos do mundo em sua
totalidade.
Deste modo, tanto em sua introdução metodológica quanto
na exposição do conteúdo do livro, a segunda resenha de Rohde,
repetindo o esquema da primeira, não só reafirma a influência de
Schopenhauer na concepção nietzschiana da música e do uno
originário, como alude à importância de Wagner para o renascimento do trágico ao assinalar a esperança trazida pela música
alemã da época. Aliás a importância do movimento wagneriano
para Nietzsche e Rohde transparece claramente quando, em carta a Nietzsche de 26 de maio de 72 - no mesmo dia em que seu
texto é publicado no jornal político Norddetttsche Allgemeine Zeiltmg - , referindo-se a Bayreuth como "nossa pátria" e mencionando a "luta pelo bem supremo'; Rohde confessa que o objetivo da resenha era ser um sinal de amizade para com o festival de
Bayreuth.
I
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Em 30 de maio de 1872, quatro dias depois da publicação do artigo de Rohde, aparece o prin1eiro opúsculo de Ulrich von Wilamowitz-Mõllendorff, filólogo que havia sido colega de Nietzsche em Bonn e um dia será autor de obras importantes, como
In trodução à tragédia ática, de 1889, e alcançará grande prestígio,
mas na época é um jovem recém-doutor de vinte e quatro anos
publicando seu primeiro escrito. 19 O título, "Filologia do futuro,
réplica a O nascimento da tragédia de Fr. Nietzsche'; é un1a paródia de "música do futuro", que por sua vez já era un1a paródia do
livro de Wagner, de 1850, A obra de arte do futuro. Esse texto, que
pela data em que foi publicado não podia ser un1a resposta a
Rohde, é o que dá início à polêmica.
A estratégia de Wilamowitz fica bem evidente na citação, como epígrafe, do trecho entusiasmado do final do §20 de O nascimento da tragédia, onde, estabelecendo que o tempo do homem
socrático passou, Niet7-Sche convida o leitor a se coroar de hera,
tomar o tirso na mão c, ousando ser um homem trágico, acompanhar o cortejo de Dioniso. Com que objetivo Wilamowitz cita
essa passagem? Para acusar o tom e a orientação do livro c mostrar que, em vez de um filólogo, um pesquisador, Nietzsche é na
verdade um pregador que anuncia os milagres, passados e futuros, de seu deus. O que o faz denunciar o pressuposto que está na
base do elogio da tragédia: a posição excepcional da música em
relação às outras artes, "dogma metafísico" proveniente de Wagner e Schopenhauer que leva Nictzschc a denegrir o método
histórico-crítico da ciência da Antigüidade. Dizendo-se não se
sentir um místico, ou um trágico, reivindicando mesmo a condição de homem socrático, cujo objetivo é encontrar um fundamento histórico e filológico, compreendendo cada fenômeno somente a partir das condições da época em que se desenvolveram,
Wilamowitz esclarece que entra em campanha contra Nietzsche
porque, além de metafísico schopenhaueriano e apóstolo wagneriano, ele também é professor de filologia clássica e. por isso, é
preciso mostrar que, nele, "a genialidade quimérica e a insolência das afirmações são exatamente proporcionais à ignorância e
à falta de amor à verdade':
Essa diferença que estabelece entre eles faz Wilamowitz criticar a subordinação da filologia à filosofia e à música. Em relação à filosofia são visadas sobretudo as interpretações, dadas a
partir de Schopenhauer, de Apolo, o brilhante, como deus da
aparência, e a existência de um pessimismo dos gregos. Em relação à música, os alvos principais são a influência de Wagner na
interpretação nietzschiana de Dioniso, concebido como "gênio
da música do futuro" e sua posição de "nobre precursor" que fez
renascer o mito trágico e a tragédia.
Além disso, para demonstrar como os pressupostos schopenhauerianos e wagnerianos atrapalharam as análises filológicas
de Nietzsche, Wilamowitz vai apontar os erros que teriam sido
por ele cometidos. Não analisarei essas objeções às teses propriamente filológicas de O nascimento da tragédia, pois isso
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obrigaria a fazer o mesmo em relação aos textos, pró e contra
Nietzsche, que se seguirão, desviando-me do mais importante: a
discussão sobre o que deve ser a ftlologia. Vale a pena, no entanto, enumerar as principais questões filológicas que foram objeto
de polêmica.
Grande parte delas diz respeito à música: se o canto popular
foi introduzido na literatura por Arquíloco; se o ditirambo se
opõe às outras formas de canto coral; se Platão defende a superioridade da música em relação à palavra; se a elegia é um gênero lirico que nasce da música; se o ditirambo era cantado por um
coro de sátiros. Outras referem-se à origem da tragédia a partir
da música: a existência de um tipo de ditirambo de luto de onde
provém a tragédia; o desenvolvimento progressivo da tragédia a
partir do canto coral ditirâmbico; a idéia de que a tragédia levou
o desenvolvimento da arte musical à perfeição. Outras também
concernem ao estudo da tragédia em geral: a comparação entre a
forma do teatro grego e um vale isolado de montanha; a associação de Apolo c Dioniso na tragédia; a posição de Nietzsche em
relação a Aristóteles; se O llllscim ellfO da rrngédia equipara o trá-
gico ao budista. Outras ainda se circunscrevem à interpretação
de cada um dos principais poetas trágicos: se a mo ira seria o centro da visão de mundo de &quilo; se o Prometeu de &quilo é
um homem ou um deus; se Sófocles teria dado o primeiro passo
para a destruição do coro; se o ~dipo de Sófodes perece por um
excesso de sabedoria dionisíaca; se Eurípides teria sido uma máscara de Sócrates, teria destruído os mitos, teria reali.zado em suas
peças a justiça poética.
Finalmente, depois de tomar posição contra Nietzsche arespeito de todos esses temas e ponderar que ele demonstrou ignorância e falta de amor à verdade, Wilamowitz ironiza dizendo
que teme ter sido injusto e que retiraria o que disse se Nietzsche
confirmasse que seu verdadeiro objetivo não era realizar uma
ciência histórica e crítica, mas criar urna obra de arte apolineodionisíaca capaz de proporcionar uma consolação metafísica. E,
neste caso, só lhe pede que desça de sua cátedra, da qual deve dar
um ensino científico, e junte tigres e panteras e não jovens filólogos, que, na ascese de um trabalho de renúncia de si mesmos, devem aprender a procurar em toda a parte apenas a verdade. O
que evidencia, mais uma vez, que o leitmotiv da "Filologia do futuro" é mostrar que Nietzsche não é um cientista, isto é, um verdadeiro filólogo, pois enquanto a filologia é uma ciência histórica e critica, o autor de O nascimento da tragédia é um místico, o
pregador de uma religião dionisíaca, e, portanto, não deveria estar na universidade.
Rohde fica indignado com "a perfidia do panfleto" de Wilamowitz. Vendo nele a manifestação do ciúme pelo fato de
Nictzsche ter uma cátedra, aconselha ao amigo que não se rebaixe respondendo, pois ele próprio liquidará o indivíduo com dureza, frieza e desprezo numa carta a Wagner que dará uma justificação histórico-filológica das idéias contidas em O nascimento
da tragédia.l<l Nietzsche, para quem Wilamuwitz nãu o compreendeu nem no todo nem nas partes, concorda que é preciso
abatê-lo, que é indispensável que ele seja castigado publicamente, e alegra-se com a idéia de Rohde escrever uma carta aberta a
Wagner.21
Era preciso, portanto, responder a Wilamowitz. Mas responder filologicamente, pois é aí que reside a dificuldade de
aceitação do livro. Nietzsche vê isso claramente. O ideal seria
que um filólogo de renome se colocasse a seu lado. Mas, desde que Ritschl, seu antigo protetor, preferiu calar-se, ele perdeu a esperança de que isso acontecesse. dai por que procura,
mais uma vez, convencer Rohde a se manter no âmbito da filologia, mostrando para os filólogos o quanto é rigorosa a visão
que os dois têm da Antigüidade. E é interessante notar que esse
desejo de que a resposta tenha um endereço certo o leva até
mesmo a dizer o que poderia ser o texto de Rohde: "No inicio
você poderia dizer que se dirige a Wagner, e não aos filólogos,
porque falta um fórum supremo ao qual expor o resultado de
nossos estudos sobre a Antigüidade. Em seguida você poderia
evocar nossas experiências e esperanças bayreuthianas, justificando por que as ligamos à Antigüidade. Depois, chegando a
meu livro..."22 Sentindo o quanto é ridículo dizer a Rohde o que
este deve escrever, Nietzsche pára.
Como Rohde demora cerca de três meses para escrever o seu
artigo, o passo seguinte- ou talvez fosse melhor dizer o golpe seguinte- é dado por Wagner, cuja carta aberta a Nietzsche, de 14
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de junho de 1872, vai em direção diametralmente oposta à que
este desejava imprimir à polêmica, embora seja profundamente
reveladora do projeto político-cultural de O nascimento da tragédia. Por quê? Porque, para defender Nietzsche como um filólogo
com o nobre destino de restaurar a cultura e o espírito alemão,
Wagner escolheu justamente o caminho da crítica à filologia.
Partindo de sua experiência pessoal, o "venerado mestre" de
Nietzsche e Rohde salienta que tirou da Antigüidade um ideal
para sua concepção da música sem nenhuma influência do que
havia aprendido na escola, pois o espírito da Antigüidade estava
longe de seus professores de grego. Generaliza, em seguida, essa
experiência ao afirmar que os artistas não têm a mlnima necessidade da filologia, que está a serviço não das musas artísticas,
mas da ciência, e que, se é verdade que a filologia deve contribuir
para a criação de uma cultura superior, a filologia atual, com sua
pobreza afljtiva, não exerce nenhuma influência sobre a cultura
alemã: só serve para produzir filólogos pura e simplesmente úteis
a si próprios. A partir dessa constatação, faz então o elogio de
Nietzsche, um filólogo "que se dirige a nós e não a filólogos c, por
isso, faz nosso coração vibrar': um filólogo que tem as maiores
preocupações com a cultura alemã e de quem se esperam esclarecimentos e indicações sobre o que deve ser a cultura alemã para poder ajudar a nação regenerada, ressuscitada, a atingir seus
objetivos mais nobres.
A carta de Wagner em solidariedade a Nietzsche não surpreende, quando se pensa na relação profunda que unia, na época, os dois homens. Nietzsche o conhece pessoalmente em 1868
e logo se entusiasma com seu projeto de renovação político-cultural da Alemanha. Quando vai ensinar na Basiléia, em 1869, logo o procura em Tribschen, fazendo 23 visitas a sua casa, a "ilha
dos bem-aventurados': durante os três anos em que Wagner ai
viveu. Para se ter urna idéia do que ele significava para Nietzsche,
basta pensar no que este lhe escreve, por ocasião de dois dos aniversários do "mestre'~ Em 22 de maio de 1869, quando diz que ao
nome de Wagner se ligam os melhores e mais sublimes instantes
de sua vida e que apenas por um outro homem, Schopenhauer,
seu irmão espiritual, ele tem semelhante veneração. Mas também
em 20 de maio de 1873, por ocasião do sexagésimo aniversário
de Wagner, quando Lhe confessa que estremece à idéia de ter podido ficar longe dele, pois então não teria valido a pena viver.
Wagner é, para Nietzsche, "o maior homem, o maior gênio da
época, absolutamente incomensurável", como declara a Paul
Deussen, aquele em presença de quem, como confidencia a Gersdorff, "me sinto como em presença da divindade': 23
Ora, se a carta de Wagner é llln primor na exposição do
ideá rio não só de O nascimento da tragédia, mas também do próprio movimento wagneriano ao qual Nietzsche, Rohde e alguns
de seus amigos participavam, ela serviu para indispor ainda mais
Nietzsche com os filólogos. Como, por exemplo, Ritschl, que embora mantivesse relações com Wagner - foi sua esposa quem
apresentou Nietzsche a Wagner- ponderou que, como ele não sabia nada de filologia, deveria ter ficado calado a esse respeito, chegando mesmo a dizer, em carta a Nietzsche, que tem pena dele ao
ver que não encontra melhores armas contra o detestável panfleto de Wilamowitz. Desde o início a posição de Ritschl é clara: não
concordando que a arte e a filosofia sejam os únicos educadores
do gênero humano - pois a história também o é, particularmente seu ramo filológico-, está convencido de que uma correção estritamente científica do panfleto de Wilamowitz., sem hostilidade
contra a filologia, seria a única coisa digna de ser feita. 24
Rohde, no entanto, não concorda com Ritschl, como se percebesse dois aspectos no debate: por um lado, o aspecto estritamente filológico, da interpretação correta dos documentos gregos, e neste sentido a refutação de Wilamowitz não implica, para
ele, um anátema contra a filologia; por outro lado, um aspecto
muito mais importante do que uma interpretação correta da
Grécia: a relação entre ciência, arte c filosofia. Daí por que, enquanto Wtlamowitz defende a pureza radical do estudo histórico-filológico da Grécia, sem contanlinação da atualidade filosófica e artística - leia-se Schopenhauer e Wagner -, o que Rohde
considera uma visão limitada da disciplina, seu principal objetivo é mostrar que as críticas puramente filológicas não se justificam, a fim de conservar o liame entre considerações históricas e
filosóficas como próprio da filologia e tirar dos filólogos o pretexto de que O nascimento da tragédia não seja filológico. Mesmo
compreendendo que pleitear que se veja a Antigüidade com um
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olhar de filósofo- sch openhaueriano- excitará a cólera dos filólogos, Rohde pretende defender que a filosofia é necessária para
que se tenha uma visão completa e efetiva da Grécia antiga, inclusive salientando que a teoria da música de Schopenhauer é
particularmente útil para a interpretação da tragédia. 25
Faz parte da estratégia dos dois amigos para atingir os filólogos publicar o texto de Rohde na editora de Teubner, o prin cipal editor de ftlologia. Nictzsche chega mesmo a pedir a intercessão de Ritschl, mas, por não querer alimentar uma polêmica
contra a filologia, como lhe responde Ritschl, Teubner não está
disposto a publicar a carta de Rohde. 26 O que significará para
Nietzsche que a corporação filológica decretou sua condenação
à morte, como diz em carta a Rohde de 7 de julho de 1872. E fará com que o texto seja finalmente publicado por Fritsch, o editor de Wagner, reforçando ainda mais urna aliança entre filologia e música, vista em geral pelos filólogos como espúria.
O tom do artigo de Rohde, como já se nota pelo titulo "Filologia retrógrada': é bem diferente do de suas primeiras resenhas. Naquele momento, ele apresentava serenamente as teses
centrais de O nascimento da tragédia; agora, o desejo é claramente aniquilar Wilarnowitz. Anoto algumas expressões desse
estilo polêmico: "ignorância presunçosa do doutor em filologia': "ignorância irrefletida'', "ignorância de má-fé': "paródia de
uma verdadeira ftlologia", "agressão totalmente frívola do dou tor em filologia': "bufonarias e trivialidades simplórias': "afirmação incrivelmente estúpida e falsa do doutor em filologia",
"secundarista mal preparado': "presunçosa pretensão': "ausência de reflexão, ignorância e má-fé': "caricatura do método critico': "ftlólogo retrógrado':
Com essa linguagem polêmica agressiva, Rohdc pretende
demonstrar que, além de expor as teses de Nietzsche de modo
inexato, c apesar da abundância de citações, o artigo de Wilamowitz é insuficientemente documentado, negligenciando tanto
fontes importantes quanto pesquisas recentes de importantes
filólogos. Mas pretende sobretudo defender o tipo de ftlologia
praticado por Nietzsche. Como? Mostrando que, apesar de sua
relação com o movimento wagncriano e sua inspiração na filosofia de Schopenhauer, isto é, apesar de pensar q ue os documen-
tos da Antigüidade só podem ser compreendidos de modo global a partir das revelações dos grandes ftlósofos e artistas sobre a
essência eterna da arte, Nietzsche é um ftlólogo que não negligencia o fundamento histórico de suas pesquisas. Um exemplo
disso é a relação entre música e drama, quando, partindo dos
pensamentos de Schopenhauer e Wagner sobre a essênàa da
música, Nietzsche mostra que o drama nasceu da música, esclarecendo o importante e difícil problema filológico da gênese da
tragédia grega.
Depois dessa introdução e de fazer a defesa de Nietzsche,
examinando detalhadamente as críticas de Wilamowitz em relação às questões filológicas que destaquei anteriormente, Rohde
termina seu texto referindo-se à nobre tarefa da filologia- conservar para uma humanidade que envelhece a memória do tempo mais rico de sua alegre juventude -, mas se perguntando se
ela tem realizado sua mais alta destinação. Sua resposta é não; a
filologia podia chamar-se "clássica" quando reconhecia na Grécia algo de propriamente humano e alimentava a corajosa crença de que era possível retirar dela o que era necessário para atingir uma humanidade mais livre e mais nobre. O que o leva a
saudar Schiller por este pensar que o estudo da humanidade
grega deve encorajar tal esforço cultural, mas sobretudo, como
era de se esperar, a enaltecer Wagner, explicando que, se Nietzsche se associou aos esforços alemães realizados por Wagner, ele
não só não abandonou sua ciência histórica da Antigüidade grega, como integrou a esses esforços o que havia nela de mais profundamente vivo.
Nietzsche fica encantado com o opúsculo de Rohde. Sobretudo por acreditar que o texto pode representar uma mudança dos meios científicos alemães em relação a Wagner, como diz em carta a Rohdc de 25 de outubro de 1872, cana que
termina confidenciando que por um único leitor como Wagner
ele abandona todos os louros que seus contemporâneos poderiam lhe conceder, e que satisfazer o mestre é, para ele, o melhor estimulante.
Rohde, no entanto, não se sente bem com seu rispido ataque
-como se observa pela carta que escreve a Nietzsche em t• de
novembro de 1872, que deixa entrever que está sendo criticado.
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Confessa, então, que tem uma natureza pacífica, e que só polemizou porque estimou absolutamente necessário, pois era importante alardear aos colegas que Nietzsche tem ao menos um companheiro que não aceitará passivamente todas as maldades que
estão sendo feitas com ele. Confessa também a resolução que tomou de nunca mais se deixar desviar de sua própria via por polêmicas, pois a negação não leva a nada. E, embora notando que
seu ataque atrapalhou sua carreira de filólogo que ainda precisa
de uma posição, diz sentir-se contente porque algumas manifestações de solidariedade parecem mostrar que o objetivo de reabilitar a honra científica de Nietzsche teria sido atingido. 27
Mas Wilamowitz não deixa por menos, publicando em fevereiro de 1873 "Filologia do futuro (segunda parte). Réplica
às tentativas de salvação de O nascimento da tragédia de Fr.
Nietzsche". Seu ataque também é bastante virulento. Só que o
alvo agora não é mais diretamente Nietzsche, e sim seu defen sor; não mais o "apelo encantador do pássaro dionisíaco"; e
sim a erudição filológica, o "filólogo ainda sem renome científi co que tomou a li berdade de mostrar ao mundo que os fundamentos do livro são tão pouco sólidos que qualquer doutor
em filologia pode derrubá-los'~
Wilamowitz atira, na verdade, nesse texto, em várias direções. Seja insinuando que o conselho que havia dado a Nietzsche de abandonar a universidade também se encontra na carta
de Wagner, que pergunta: "Ao que pode servir ainda trabalhar
no campo da filologia?". Seja mostrando que, por mais que
Rohde queira defender Nictzsche, não pode concordar com o
que ele disse sobre vários pontos filológicos importantes. Seja
cedendo em críticas secundárias, para afirmar sua posição, cientificamente correta, sobre o que considera fundamental. Seja
criticando a estratégia de Rohde contra ele como sendo contraditória: "Se defendo um ponto de vista comumente aceito contra as 'maravilhosas experiências', repito os manuais; se tenho a
audácia de propor uma opinião própria, ... ele me opõe os
manuais." O objetivo central da resenha, no entanto, é desqualificar a defesa feita por Rohde em relação às questões filológicas principais da polêmica, a que já me referi.
Em suma, para Wilamowitz, o que Nietzsche e Rohde defendem são tolices de cérebros degenerados, e se os combateu foi
porque, havendo um abismo intransponível entre eles, sua orientação, sua concepção da arte, ~eu método cientifico o obrigaram
a rejeitar tais empreitadas. Pois, enquanto para ele o mundo se
desenvolve segundo leis racionais, os dois amigos negan1 o progresso que se realiza há milênios. Foi, então, porque revelações da
filosofia e da religião se viram sufocadas em nome do pessimismo e a imagem dos deuses destruída para dar lugar a uma oração ao ídolo Richard Wagner que às vezes ultrapassou em seus
textos os lin1ites do aceitável. Foi o dever de defender a bandeira
pela qual ele se bate que o fez ter começado e continuado um debate que não poderia Lhe trazer glória, vantagem ou prazer.
E assim termina a polêmica. Pois, considerando que se trata
apenas de sofismas e invectivas que não os podem tocar, Rohde
não tem a intenção de responder a Wilamowitz, e Nietzsche, vendo na crítica apenas injúrias e sutilezas de linguagem que acabam
em generalidades, também pensa que ela não merece resposta. 28
• • •
Como se pode ver, o centro do debate suscitado pelo Nascimell to da tragédia é a relação entre ciência, arte e filosofia ou, mais
precisamente, entre filologia, música e filosofia. Efetivamente, a
grande dificuldade dos filólogos em aceitar o livro de Nietzsche
- expUcita nos casos de Ritschl c Wilamowitz - foi sua crítica da
ciência, em geral, e mais especificamente, da filologia, ciência
da Antigüidade, que, na própria maneira como o livro foi concebido, aparecia subordinada à filosofia de Schopcnhaucr c à
música de Wagner. Não que os filólogos não tenham compreendido O 1WScime11to da tragédia, ou não tenham sido capazes de
perceber a novidade metodológica do livro, c por isso protestaram. O que, a meu ver, aconteceu foi que os filólogos não puderam suportar que sua ciência fosse submetida a objetivos filosóficos, reduzida a um instrumento para a exposição de um
pensamento filosófico sobre a vida.
~ possível que a polêmica tenha sido desencadeada porque
Wilamowitz, discípulo de Otto Jahn, visse Nietzsche como discí-
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pulo de Ritschl, que Lhe conseguiu o doutorado honoris causa e o
fez ser nomeado professor na Universidade da Basiléia. E efetivamente, ao relembrar, em suas memórias, a polêmica a que deu
início, Wilamowitz diz que Nietzsche já o havia deixado com raiva por sua afronta a Otto jahn, ao seguir Ritschl de Bonn a Leipzig, pois ninguém da escola de Pforta, como Niet1.schc, que aí tinha estudado, tinha o direito de insultá-lo desta maneira. 29 E
continua lembrando que, ao ler O nascime11to da tragédia, ficou
tão revoltado com a violação da realidade histórica c do método
filológico que isso o levou a defender sua ciência ameaçada.
Mas, conclui ele, "no fundo cu era um ingênuo, pois Nietzsche
não tinha nenhum objetivo científico, e o que ele escrevera não
tratava nem mesmo da tragédia ática, mas do drama musical
wagneriano'~30 Neste sentido, a polêmica sobre O nascimento da
tragédia seria em parte conseqüência da disputa filológica ocorrida entre Ritschl e )ahn, em Bonn, no ano de 1864, conhecida
como Philologenkrieg, guerra dos filólogos.
Mas o que atestam os documentos é que, mais do que um
debate interno no campo da filologia. ou mesmo o afrontamento de duas escolas rivais institucional e teoricamente, a polêmica
diz respeito essencialmente a um tipo de relação com a Grécia
em que o determinante é a ciência filológica ou a estética. É que,
seguindo uma tradição que remonta a Winckelmann, Nietzsche
vê a Grécia como o modelo, a ser imitado, da verdadeira humanidade, enquanto Wilamowitz é o representante de uma ciência
da Antigüidade, criada por Wolf, no final do século XVIII, que
funda cientí.fica e sistematicamente os estudos clássicos em uma
explicação gramatical exata dos textos, deixando totalmente fora
de consideração a estética ou a poética.
É verdade que, em Leipzig - marcado por Ritschl, que depreciava tudo o que não fosse absoluta redução ao texto, crítica
textual, controle rigoroso das hipóteses -. Nietzsche escreve sob
sua influência seus trabalhos filológicos. Mas já vimos o estranhamento que, desde então, a filologia começa a lhe causar. E
que o levará a subordinar a filologia, concebida como o estudo
científico sistemático e crítico dos textos clássicos, a uma estética
que vê no conhecimento da Antigüidade o estabelecimento do
modelo de existência humana perfeita. O que explica por que, na
Introdução aos estudos de filologia clássica, Nietzsche diz que um
dos meios mais importantes de fomentar o conhecimento filológico é ser um homem moderno que esteja em re.lação com os
grandes modernos, como Winckelmann, Lessing, Goethe, Schiller, "de modo a sentir com eles e a partir deles o que é a Antigüidade para o homem moderno'~ 3 '
A reflexão sobre o valor da Grécia para a Alemanha, que
motiva O nascimento da tragédia, insere o primeiro livro de
Nietzsche no projeto de poUtica cultural iniciado por Winckelmann, pensador que teve um papel fundamental na maneira de
pensar os gregos e a importância que teriam para a constituição
da Alemanha, ao defender, nas Reflexões sobre a imitação das
obras gregas na pintura e na escultura, não só que o caráter geral
das obras-primas gregas é "uma nobre simplicidade e uma serena grandeza':n mas também que o caminho para os alemães
tornarem-se inimitáveis seria a imitação dos gregos. E, na verdade, O nascimento da tragédia, além de reconhecer que foi com
Winckelmann, Goethe e Schiller que o espirito alemão entrou na
escola dos gregos, chega a lamentar o enfraquecimento desse
projeto de imitação da cultura grega para a constituição da cultura alemã.
Mas Nietzsche vai além desse movimento estético, ao formular em seu primeiro livro uma concepção ontológica da arte,
ou mais especificamente uma metaflsica da tragédia, que recebe
principalmente de Schopenhauer e que está em continuidade
com as interpretações de ScheUing, Hegel e Hõlderlin do fenômeno trágico. Ora, uma das particularidades dessa concepção
metaflsica do jovem Nietzsche é, em vez de caracterizar a Grécia
pela serenidade, relacionar a serenidade com um aspecto mais
profundo: o dionislaco. O que o fará inclusive criticar Winckelmann e Goethe pela maneira como pensaram os gregos. Neste
sentido, se a descoberta - ou a invenção - do trágico metafTsico
não vem de Nietzsche, mas de Schelling, Hegel e Hõlderlin, coube a Nietzsche, apropriando-se de estudos filológicos para pensar filosoficamente, ligar o dionislaco ao trágico, explicando o
nascimento do trágico a partir do dionisíaco. Posição que o leva
a estabelecer que a imitação dos gregos significa fundamental-
o
·~
~c
-
33
34
mente o renascimento da arte apolíneo-dionisíaca da tragédia,
que teria sido invalidada pelo racionalismo socrático.
Ora, essa introdução do dionisíaco na interpretação metafísica da tragédia só acontece porque Nietzsche incorpora dois saberes extra-filológicos em sua interpretação da Grécia: a música
de Wagner e a ftlosofia de Schopenhauer. A originalidade de
Nietzsche em O nascimento da tragédia foi, inspirado na idéia
wagneriana de drama musical, valorizar a música para pensar a
tragédia grega como sendo uma arte fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito da música, concebida como única força capaz de expressar o dionisíaco. Mas também articular a filosofia de Schopenhauer com o movin1ento cultural de
utilização da Grécia como modelo para pensar a cultura alemã,
através de um renascimento do espírito trágico, idéia que não
existe em Schopenhauer. E o elo que possibilitou isso foi certamente Wagner.
Assim, dois fatores explicam, em última análise, a polêmica
que a leitura de O nascimento da tragédia suscitou nos colegas de
especialidade de Niet7..sche: primeiro, a crítica da ciência em nome da arte; segundo, a subordinação da filologia à filosofia. O
que me leva a pensar que a melhor forma de ler esses documentos é levar em conta que, ao unir a filologia à música e à filosofia
c assim conceber o seu centauro/' Nictzsche não quer mais se limitar a ser um especialista. Pois se, para além do ataque de Wilamowitz e da defesa de Rohde, O nascimento da tragédia é um livro desconcertante para a filologia, é principalmente porque seu
autor é, nesse momento, um filólogo que ousa pensar filosoficamente, como um modo de dar vida a sua especialidade ou de
torná-la um instrumento a serviço da vida. Um filólogo que, como enunciará o final do prefácio de seu escrito "Da utilidade c
desvantagem da história para a vida': atua em seu tempo de uma
maneira intempestiva, isto é, contra o tempo, em favor de um
tempo por vir.
Erwin Rohde
RESENHA (RECUSADA) PARA A
LiTERARISCHE lENTRALBLAIT
•
Friedrich Nietzsche (professor regular de filologia
clássica na Universidade da Basiléia). O nascimento
da tragédia no espírito da música. leipzig, 1872.
O objetivo do livro em questão corresponde com clareza e
precisão ao seu título. Ele pretende abrir um novo caminho
para a compreensão do mais profundo segredo estético: o
das criações prodigiosas da arte trágica, até agora rigida­
mente impenetráveis para inúmeras tentativas de interpre­
tação, sejam elas triviais ou profundas, que as consideravam
a partir de um ponto de vista exterior, como realizações já
prontas. Aqui, elas serão elucidadas como que do interior,
para que se obtenha uma compreensão mais penetrante;
devemos tomar conhecimento do que elas são em sua ver­
dadeira essência, ao considerar a maneira como se tornaram
o que são. Portanto, o caminho da investigação é histórico,
mas é o de uma autêntica história da arte, que sabe levar em
questão as próprias obras de arte com profundidade em
busca da solução definitiva de seu enigma, em vez de jogar
infantilmente com as parcas indicações das crônicas e da
poética, como fazem as crianças com nozes ocas. Apenas
esse modo superior de consideração histórica garante sua
afinidade com a arte, uma vez que as descobertas assim
alcançadas oferecem ensinamentos de validade geral acerca
35
�
da essência eterna da vontade e das faculdades humanas. Com
isso, poderemos ter esperança de apontar o sentido do que diz o
de
autor se, com? pretendemos fazer a seguir, caracterizarmos
1
ana ��ue ele
o.éti
forma geral ����ci�- d<tJª<:':I:!<:iél�-t!_p�
identificou e apresentou no desenvolvimento histórico do gênio
artístico grego.
O homem, posto em um mundo de tormentos e movido
pelo fluxo de uma ânsia infinita, está desamparadamente aban­
donado ao sofrimento eterno. Quanto mais profundos forem o
sofrimento e a compaixão experimentados por sua frágil alma
humaií quanto mais resoluto seu desprezo pela situação instá­
vel desse mundo, mais desamparado ele se encontrará. o
entanto, existe uma força salvadora que se encontra em seu pró­
prio íntimo, aquela força prodigiosa que o impele a criar, como
por magia, a partir do material confuso das sensações, uma série ,
fora dele, no
de imagens que se desenvolvem continuamente
�
contemplaNa
.
causalidade
espaço e no tempo, segundo a lei da
ção dessas imagens, ele se sente imediatamente feliz, ou melhor,
totalmente arrebatado pelo domínio em que a felicidade e a
�!.
{N
,,
infelicidade são as estrelas-guias. Essas imagens consoladoras o
acompanham por toda parte, ele as repete em sonho e, com­
pletamente tomado por seu esplendor, sente-se capaz de captar,
na clareza poética da epopéia, �sse mundo maravilh9so da apa:
rência, a fim de obter com ele um prazer duradouro. A obra de
�pica exerce, no grau mais elevado, o poder dé libertar da
violência daquela vontade que move todas as coisas: vemos des­
filar à nossa frente, em longas séries de imagens, tudo o que há
para amar e temer neste mundo, mas com isso não sentimos
nem alegria nem terror, nem desejo nem medo; vemos com
olhos bem atentos_as formas que se movem esplendidamente e
nada mais cobiçamos.
Mas, quando o homem está inteiramente perdido nessa
contemplação profunda das ricas imagens da vida individual,
apodera-se dele repentinamente, em meio à contemplação
mais absorta, uma iluminação fulgurante de um tipo totalmen­
te diferente. Se, até então, sentia-se protegido, na posse do que
-�· ·
�e�tudo
há de mais real, isto é, desse mundo seguro daif.:_
se desfaz como um véu de névoa, a ilusão da individuação o
�
abandona, o homem é engolido pelas trevas púrpuras das pro­
fundezas, onde o Uno abarca a correnteza da vida eternamente
movimentada. A superfície cintilante de tal movimento, com
suas ondas que crescem e decrescem rapidamente, tinha sido
tomada pelo homem como o que existia de real. Agora ele se dá
conta, horrorizado, de que esses milhões de ondas não são
nada, o não-ser eterno, e um pavor terrível se apodera dele
quando faz essa descoberta sobre-humana. No entanto, ele é
tocado de 4iversas maneiras por um ardente encantamento:
pois, como Prometeu libertado de suas correntes, tem a sensa­
ção de estar livre de todas as amarras que confinam sua estreita
individualidade, de ser movido por uma poderosa e ilimitada
liberdade, de ser carregado pela agitação tempestuosa de uma
alegria e de uma dor nunca antes experimentadas. Então, essa
excitação ab�urdamente intensificada abre_ caminh�ara o
exterior, todo júbilo e todo tormento do universo ganham voz
em seu íntimo e se propagam em melodias terrivelmente subli­
mes. Agora, a música se agita como uma força elementar desen­
freada, um mar de fogo nos envolve, e que fogo! "Será amor?
Será ódio? que nos envolvem com ardor, alternando dores e ale­
grias prodigiosas?"
Tal desmesura de chamas ameaça destruir o indivíduo,
como faria um mundo incandescente; no entanto, revela-se ao
mesmo tempo a mais elevada força salvadora de criação da
arte. Assim como a música dos artistas ex:pressa analogicamen­
te a essência mais profunda do mundo,_ e_m prod_ig!Qs� _gel).era­
lidade, irradia-se a partir do mar revolto da arte musical uma
segunda analogia[que repete em um processo da vida indivi­
dual do homem a grandeza avassaladora da música, como que
rejuvenescida milhões de vezes, tornando-a suportável para a
co preensão humana. Em uma luta aterradora, a música dá à
�
luz� mito, uma imagem analógica das forças universais onipo­
tentes O conhecimento conceitual jamais possibilitará que se
acompanhe a ação das forças por meio das quais a potência
universal, que se encontra fora do tempo e do espaço, vem a se
manifestar na obra do artista, tornando-se reconhecível pri­
meiro na forma do tempo, e depois erigindo a partir da músi­
ca a imagem analógica que se move simultaneamente no tempo
_
J
ClJ
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..r::.
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37
---'
i
�
e no espaço. Quem fosse capaz de entender esse processo teria
resolvido o enigma do mundo. Mas a obra de arte superior, tal
como se apresenta a nós na tragédia mitica nascida da música,
nos dá a certeza incandescente da existência dessas capacidades
demoníacas.
Em suma, o processo artístico esclarecido no livro não foi
apresentado pelo autor como uma experiência imediata; foi con­
quistado historicamente a partir do desenvolvimento da capaci­
dade artística helênica. Os próprios gregos tinham distinguido
muito bem os dois impulsos artísticos, inteiramente diversos, da
contemplação épica e da interioridade dramática, sentindo-se
entusiasmados com a primeira por intermédio de Febo Apolo, o
amigo da beleza, e com a segunda por intermédio do deus das
mais violentas forças naturais, Dioniso. Se o impulso apolíneo se
manifestou do modo mais esplêndido na epopéia de Homero,
em seguida um entusiasmo dionisíaco irrompeu poderosamente
e agitou toda a Hélade. Na música dionisíaca, esse entusiasmo
expressava artisticamente sua vida ardente; na poesia lírica, ele
refletia a essência da música, que era elevada muito acima de
toda paixão individual, como que em imagens particulares da
situação; finalmente, na tragédia, era capaz de expor vivamente
para a compreensão intuitiva, em imagens analógicas, o signifi­
cado mais profundo da música e da vida por meio do mito, nas,
cido por sua vez da música.
Esta resenha tem a intenção de convidar o leitor a deixar que
o autor explique como tudo isso se dá, em sua exposição que se
mostra imediatamente convincente, graças à profundidade e cla­
reza. Deve interessar tanto aos filólogos quanto aos estetas ver
resolvidos aqui, em virtude de uma feliz associação das conside­
rações estéticas e históricas, problemas tão surpreendentes
desenvolv mento da tragédia a partir do canto de dança
com
do coro dionisíac<j; a ligação, muitas vezes assinalada, entre os
elementos épicos e líricos na tragédia; a capacidade que todo lei­
tor tem de perceber a profundidade insondável de significação
da tragédia, mesmo que ela seja a representação de uma ação
muito clara. Se, em regra geral, até agora se rebaixou a tragédia
ao nível de uma colossal fábula de Esopo, procurando as pistas
de um assim chamado "pensamento fundamental': aqui se jus-
<{?
tifica o que tinha dado a tais tentativas ao menos o impulso cor­
reto, mas com uma profundidade e uma força de compreensão
totalmente diferentes.
TQdavia, o autor avança da consideração histórica da Anti­
güidade distante, através da vastidão dos tempos, até o nosso
momento presente. Ele descreve a mor da tragédia grega, ocor­
rida depois de seu breve florescimento{_§ ua força artística, capaz
de expressar os derradeiros segredos do ordenamento cósmico
em imagens míticas, desagregou-se diante do esforço de um
conhecimento científico desse ordenamento cósmico em toda a
sua profundidade e amplitude, um conhecimento que fosse ime­
diatamente compreensível. Trata-se de algo que se impôs pela
primeira vez, com a violência demoníaca do instinto, a Sócrates,
e a parti� de então manteve em atividade todas as forças do longo
outono e do longo inverno da cultura helênica. Quando, na
época do renascimento de uma formação cultural mais livre, a
Europa se voltou para os únicos mestres dignos, os gregos, ela se
baseou imediatamente nesse impulso socrático-alexandrino de
fundamentação do mundo, e desde então os nossos melhores
esforços se enraízam em um alexandrinismo intensamente acen­
tuado. Mas o autor demonstra como essa direção dominante e
exclusiva, embora nobre se considerada em si mesma, sufocou
inteiramente as mais profundas capacidades da criatividade h'l;l­
mana; demonstra também como o caminho tomado nos conduz
sempre em círculos, a partir da noção profunda e delirante de
que todos os abismos poderiam ser medidos com o metro da
lógica; demonstra, finalmente, como o otimismo teórico herda­
do de Sócrates se transforma, dominando toda a nossa cultura,
em um eudemonismo prático, que por sua vez tornou-se uma
exigência exaltada e ameaça desencadear gradativamente sobre
essa cultura deteriorada um inferno de poderes destrutivos.
Nesse ponto, contudo, o autor é animado por uma esperan­
ça consoladora: a de que, superando o alexandrinismo, possamos
enfim aprender com os gregos o que há de mais elevado e despertemos novamente a arte apolíneo-dionisíaca da tragédia, a
fim de inaugurar urna cultura nova e promissora. Mas é ao nosso
povo alemão, recentemente despertado de um longo sono, que
parece reservado esse desenvolvimento esplêndido em direção a
�
�
?
39
uma formação cultural que corresponda dignamente a suas pos­
sibilidades mais próprias. Pois, em nosso povo, aquela onipotên­
cia arrogante do conhecimento lógico teve sua esfera de poder
vitoriosamente limitada ao fenômeno, pelo criticismo kantiano, e
um arroubo
afortunado, isso nos faz entrever como nós, que estamos preaoa
a esta pobre individuação, ao mesmo tempo somos cumulados
pela onipotência da vida; como nós somos o uno eterno, levado a
a partir desse grande feito do auto-conhecimento científico des­
se manifestar no jogo infinito das ondas do mundo; e como toda
esforços para se alcançar uma verdadeira cultura artística.
jogo, cujo prazer doloroso a arte trágica, sua imagem transfigurada,
pontou o florescimento dolorosamente breve dos mais nobres
Ainda mais promissor é o fato, impossível de esclarecer a
partir de nossa formação atual, de os sons poderosos da música
·
síaca concedia aos seus prlmeiros espectadores. Em
dor desse delírio universal é compensada pela enorme delícia do
pretende fazer o espectador estético sentir.
Gostaríamos de convocar todas as pessoas realmente sérias
àesse livro sério. Para a classe
alemã ressoarem como a revelação de um outro mundo, _@
para
nossa única arte autêntica não deveria possuir a capacidade d-e
tumados a tratar com lamentável gravidade o que é irisignifican­
volvimento da arte propiciou aos romanos uma cultura adequa­
ramente nobre e profundo, podemos esperar que o livro seja ape­
ponderia, então, como o mais esplêndido dos florescimentos, a
relação a tudo o que o nosso autor ouviu e viu, não "sentiram
meio a toda a balbúrdia de nossa época selvage� e agitada. ? '
nos proporcionar uma formação autêntica, assim como o desen­
da ao seu povo?
A essa formação cultural aprofundada corres­
Sf to�narem leitores
estéticos
(irifel�mente numerosa) dps homens inteligentes que estão acos­
te e efêmero, não tendo nenhuma devoção para o que é verdadei­
nas repulsivo. Sem dúvida, eles terão o direito de afirmar que, em
mais sublime das obras de arte: a tragédia nascida da música
nada junto com ele"; então só nos resta pedir para acreditarem
mais nobre das artes quem foi capaz de acolher, com a mesma
que eles não são capazes de compreender e tocar. 1
alemã. Sim, já pode sentir os mais elevados encantamentos da
devoção do autor, as criações artísticas do grande mestre a quem
esse escrito é dedicado: Richard Wagner. O autor não só compar­
tilha todas as convicções mais puras e íntimas desse seu amigo,
·
que existe algo de esplêndido, algo que não deixa de existir só por­
p.
como também sua visão fundamental da música como idéia
(platônica) do mundo, conforme defende Richard Wagner em
seu escrito de homenagem a Beethoven- obra que nem de longe
encontrou o acolhimento merecido por uma manifestação da
mais misteriosa das artes revelada por um artista genial. E, assim,
o autor está ligado à única interpretação satisfatória da música,
aquela que Arthur Schopenhauer elaborou a partir das profun­
dezas de seu conhecimento do mundo.
A esses dois mestres, Wagner e Schopenhauer, o autor reco­
nhece estar ligado com uma fidelidade amistosa. Eis por que se
espera o efeito mais puro deste livro entre os leitores que, abala­
dos pela veracidade áspera de Schopenhauer, não conseguem
encontrar um instante de consolo e satisfação em qualquer teo­
ria superficial do prazer. Para eles, verdadeiros nostálgicos, esse
livro se mostrará como uma mensagem cheia de alegria, que lhes
poderá trazer algo da consolação metafísica que a tragédia dioni-
41
'
Erwin Rohde
RESENHA PUBLICADA NO NORDDEUTSCHE
ALLGEMEINE lEITUNG DE 26 DE MAIO DE
•
1872
O nascimento da tragédia no espírito da música,
de Friedrich Nietzsche. Leipzig, 1872.
Quem não for suficientemente bem informado a respeito
do destino peculiar reservado aos livros poderá ficar bastan­
te surpreso ao ver que esse livro tão notável foi, durante
vários meses, totalmente ignorado pela crítica literária com­
petente, que costuma ser bem informada e ativa. Em todo
caso, eximindo-se de investigar mais a fundo os motivos
desse silêncio surpreendente, que têm boa probabilidade de
ser instrutivos em alguns aspectos, o autor da presente rese­
nha acredita ter de admitir, em favor dos senhores que ocu­
pam cátedras de grande prestígio, que não foi a presunção
de um ponto de vista superior o que os impediu de rebaixar
seu olhar ao objeto aqui considerado. Pelo menos aquele
que possui, em lugar de um nome de peso, o peso de uma
convicção íntima sente, justamente por isso, obrigação mo­
ral de dirigir a atenção pública para esse livro, tanto quanto
possível, porque é muito raro encontrar, em toda a vasta
literatura, algo semelhante em termos de profundidade e
capacidade de penetração no campo da consideração filosó­
fica da arte; e, quanto à produção literária mais recente, não
se encontra nela nada comparável. Mesmo que apenas a
seríssima ciência da estética fosse enriquecida por essa obra,
43
como uma projeção luminosa enganadora. O que antes parecia
tão esplêndido, a plenitude das figuras que se inseriam no fluxo
eterno, mostra-se então como a total nulidade de um perpétuo ir
e vir das ondas. Com grande horror, o homem tem a impressão
de estar mergulhando no nada, em um abismo sem fundo; no
entanto, é animado pela elevada sensação de um deleite inteira­
mente novo, mágico e poderoso. O sol se põe, mas agora se mos­
tra no alto o extenso exército das estrelas. Assim, a plenitude da
vida diurna se dissipa como fumaça diante dos olhos do homem,
mas ele sente arder dentro de si o fogo mais fértil, sente-se como
se fosse ele mesmo o uno, o eterno, que a cada dia constrói novos
reinos de beleza em toda a vida da Terra e nas distâncias solares
do infinito.
Caso a vida o desperte então desse estado de completa sub­
mersão, ele retoma das profundezas como faziam os iniciados ao
saírem da gruta de Trofônio. Deixou para trás seu riso alegre, e o
mundo miserável dos fenômenos mutáveis parece mirá-lo com
uma expressão pálida e fantasmagórica. Apavorado e perturba­
do, ele deseja intensamente escapar do reino do conflito e da
inquietação transitória, para se encaminhar de volta ao encanta­
mento que o tinha acolhido no seio do velho pai das coisas, o caos
primordial, que lhe parece estar se consumindo em convulsões
doentias, na perpétua autodestruição da multiplicidade. Tornando- ,
se uma nostalgia ardente, esse ímpeto pode dominar toda a sua
vida e tomar a forma de uma mística religiosa. Quem ousaria
recriminar a profunda gravidade dos ascetas orientais e ociden­
tais que, a partir desse fervor de superação do mundo, aprende­
ram a dominar a difícil arte de morrer? Mas é certo que o entu­
siasmo éllllargo de tais místicos, ao irromper em toda a sua
potência demoníaca, destrói o mundo e a vida, a arte e a histó­
ria. Se esse entusiasmo atrai para seu círculo a massa, constituí­
da pelos que dependem da terra provedora de alimerto e pelos
que são incapazes da gravidade que supera toda preocupação
particular, faz deles todos fariseus estúpidos, ou uma turba faná­
tica que acaba sendo impelida para um abismo de horror.
Para os gregos, as fortes agitações de um entusiasmo pan­
teísta não eram de modo algum inabituais. Após a época de
Homero, esse tipo de entusiasmo, vindo do Oriente, espalhou-se
em ondas poderosas por toda a terra helênica, sob os gritol de
júbilo dos seguidores de Dioniso. No entanto, os gregos foram
preservados dos excessos da negação absoluta por aquela mesma
natureza divina, inerente a eles, que também os protegia do peri­
go igualmente grande de verem a sua acuidade na compreensão
de coisas exteriores reduzida a um mero mecanismo, a serviço de
uma vitalidade e uma avidez demoníacas. Eles conseguiram, por
meio da palavra mágica da arte, dominar o tur8ilhão efervescen­
te que ameaçava arrastá-los para as profundezas. O misterioso
encanto das artes plásticas e da arte épica se baseia no fato de
que, acalmando as forças cobiçosas da vontade na quietude so­
nhadora do mar, elas incitam as capacidades intuitivas de nossa
natureza a absorver o mais elevado esplendor do fenômeno.
Assim também, a capacidade artística humana �iza o prodígio
de, a partir do deleite espantoso do êxtase místico,� mposto pela
mais profunda agitação de todas as potências da vontade que nos
ligam ao uno da vontade universal, alcançar uma elevação salva­
dora e entusiasmada, dando forma à imagem desse fogo univer­
sal, dominador e violento que se torna objetivo na música. A
poderosa vontade universal, a vontade que formou os mundos
da vida orgânica e inorgânica, abre caminho na música, a partir
do coração do homem, como que irrompendo em labaredas
insistentes; ela encontra nos sons ritmados da mais misteriosa
das artes sua transfiguração mais elevada, que a reproduz artisti­
camente. Nesse conhecimento, que de fato indica um caminho
inteiramente novo para a estética, nosso autor se liga ao grande
pensador, cujas concepções em geral compartilha: Arthur Scho­
penhauer. Decerto alguns pensadores gregos não estavam longe
dessa mesma compreensão, como se percebe a partir de determi­
nadas passagens de Aristóteles no livro oitavo da Política, e espe­
cialmente a partir da opinião profundamente enraizada em
alguns pitagóricos, para quem a alma humana nada mais era que
uma harmonia musical (o que tornaria possível, por exemplo,
curar doenças com ajuda de uma música harmoniosa).
Mas será que o coração do ouvinte, quanto mais impetuo­
samente se espalha essa torrente universal da música, não é inci­
tado de modo mais intenso a se deixar levar, no êxtase do auto­
esquecimento, para as profundezas da noite ancestral em que
47
desemboca a torrente em turbilhão? Pelo menos era essa a sensa­
ficou
resumo, foi mostrado
seguiu iluminá-los, e fez isso pela primeira vez. O que
ção dos gregos em relação às delirantes músicas de flauta dos
indicado aqui obscuramente, apenas em
um arrebatamento sobre-humano, que obriga o Fausto de Goe­
mento claro da arte grega (oculto para os que têm uma vista
universal para o "reflexo colorido" da cachoeira que cintila aos
dade artística humana.
partir desse arrebatamento profundo propiciado pela música,
conceitos, e totalmente impossível sondar por completo a sabe­
opressões e assim alcançar a luz salvadora da aparência. Se, para
de por cada ouvinte estético, o motivo está justamente no fato de
assombrosa universalidade, então a vontade universal os atraves­
linguagem muito superior a toda razão e à sua expressão n lin­
asiáticos. É a mesma sensação de horror, diante da desmesura de
the (no prólogo da segunda parte) a se desviar do majestoso sol
raios solares.1 Não é o caso dos gregos: para eles, justamente a
desenvolvia-se a força para superar o conflito de monstruosas
eles, ressoava na música a essência mais íntima do mundo em
sava com sua força criadora. A partir da música, eles trouxeram
pelo autor de modo enérgico e evidente, seguindo o desenvolvi­
curta) como a lei fundamental do desenvolvimento da capaci­
Porém, se é tão difícil indicar com palavras, ou seja, com
doria dionisíaca da tragédia mítica, experimentadf cqm plenitu­
que se trata aqui dos mais profundos segredos, expressos em. uma
�
guagem das palavras. Enquanto a razão se esforça para abarcar
mito trágico. Sen­
todo o mundo das coisas em conceitos abstratos, o mito se baseia
com uma potência que em certo sentido pode ser chamada de
forças que constituem o mundo, pois é capaz de captar, em suas
à tona a analogia da imagem rejuvenescida do
do assim, à medida que a força dionisíaca da música gera o mito,
cosmogônica, ela acaba retornando à luz amistosa do mundo
humano após violentos embates. Nesse ponto, Dioniso estende a
mão ao seu irmão divino, Apolo, o deus olímpico do fenômeno;
os horrores do abismo são banidos, embora não ressoe mais, no
canto em conjunto de Dioniso e Apolo, a brilhante canção festi­
va da beleza do fenômeno. Aquele canto fala de forças universais
mais profundas, que dão ao reino dos fenômenos mutáveis a
forma não da animada jovialidade, mas de uma gravidade sole­
ne, e assim, na alternância fugaz de sofrimento e prazer, na pró­
em uma compreensão mais rica, mais plena de conteúdo, das
formas poéticas, a onipresença da natureza. Essa compreensão
que se enraíza na pré-história dos povos, abençoada pelos deu­
ses, foi substituída pela concepção abstrata das coisas.
precede
O mito
a abstração; no rico desdobramento que se apresenta a
nós entre os gregos antigos, ele abarcava toda a vastidão do mun­
do;
ao lado do mito não há lugar para o invólucro impessoal das
coisas constituído pelos conceitos abstratos. Nós, que viemos
depois, temos necessidade de um sério esforço de reflexão para
entender, ainda que só historicamente, como um tal mundo dos
pria morte e no declínio do que há de mais nobre e mais subli­
mitos, cujo esplendor percebemos de longe, podia iluminar toda
essência, da qual a analcfgia enigmática da tragédia mítica pre­
samentos eruditos. Assim, podemos perceber à distância como a
me, conquista-se uma satisfação dolorosa, misteriosa em sua
tende dar uma noção significativa. Nunca mais os conceitos e as
a vida com muito mais clareza do que a sabedoria de nossos pen­
manifestação superior dos mitos mais profundos na tragédia
palavras bastaram para demonstrar completamente ao enten­
mítica constituía, para os antigos, uma revelação irradiante acer­
ta na dor e no declínio quando se contemplam as irp.agens trá­
mesmo para os gregos, chegou o dia em que a compreensão míti­
dimento o prazer, realmente sobre-humano, que se experimen­
ca das coisas mais graves e extremas da existência. Entretanto,
gicas; no entanto esse prazer é experimentado diante de toda tra­
ca do mundo foi perdida, em que eles, no ocaso de sua vida adul­
nhos morais - que de fato foram trilhados . até mesmo por
Sabemos como, a partir das tentativas da filosofia jônica,
gédia autêntica, por qualquer entendimento humano. Por cami­
ta, certamente não entendiam mais sua própria juventude.
Schopenhauer - nunca nos aproximaremos da meta dessa con­
ainda ligadas a uma interpretação mítica, o pensamento
pela tocha da compreensão estética, nosso autor certamente con-
alcançar a clareza triunfante que se evidencia com todos os seus
cepção dificílima. Até onde esses abismos podem ser iluminados
abstrato
dos gregos se desenvolveu gradualmente, em fases diversas, até
49
objetivos em Sócrates. E sabemos que esse pensamento dominou
toda a vida grega com um entusiasmo quase arrogante. Mas
nunca, antes de nosso autor, apresentou-se com tanta segurança
e clareza de compreensão o modo como a tendência ao conheci­
mento abstrato, que ele chama com razão de socrática, destruiu
a antiga compreensão mítica do mundo, e com ela a arte, a vida
e os hábitos dos gregos, elementos que tinham crescido em solo
dígio o fato de que, na consciência desse êxito conquistado com
grande energia, a divindade superior de toda ciência, a
lógica,
gradativamente qualificou tudo o que há sobre a Terra e na cabe­
ça do homem como sendo sua propriedade? Ela não só impera
na ciência soberana máxima, mas também prescreve as leis mais
importantes para a vida e para a ética. Ela não pode renunciar à
ambição de querer satisfazer, por seus meios, a necessidade pro­
comum. Não se deve reclamar quando a história dá vazão à sua
funda e imperiosa que o homem tem de um conhecimento me­
mundo, uma conseqüência dessa lógica é que a arte perde o viço
o objetivo mais elevado a ser atingido ao custo dos maiores esfor­
lógica atroz; mas certamente, diante da compreensão abstrata do
à medida que se passa a considerar como sua tarefa mais elevada
oferecer uma imagem esclarecedora desse mundo enigmático. Se
essa lógica soberana, em sua franca autoconfiança, considera
tafísico. Aliás, justamente esse esclarecimento do mundo deve ser
ços humanos. Como a visão artística não pode ajudá-la nisso, a
atividade da arte se limita a um gracejo prazeroso, a um racio­
�
so jogo de sombras. No entanto, o fio da sonda é curto, no caso
possível alcançar seu objetivo mais elevado de esclarecer e reve­
da lógica: será que ela vai negar as profundezas insondáveis
deria reservar um lugar para a arte? Que lugar seria esse senão o
leis da causalidade, instrumentos da lógica? De fato, já vemos
lar conceitualmente todos os enigmas do mundo, como ela po­
de um bufão gracioso para divertir as horas de cansaço do traba­
lho do pensamento abstrato? O que pode ser obtido pela analo­
gia mais profunda quando a luz brilhante da razão faz aparecer,
em sua forma verdadeira, tudo o que há de obscuro? Para os gre­
gos, o vivo impulso para abarcar o mundo em um conhecimen­
to se prolongou por longos séculos em sua vida, que desvanecia
aos poucos; como Plutarco foi capaz de formular em belas pala7
vras, eles sentiam que a vida só é suportável em função do conhe­
cimento, e que a morte é tão terrível justamente porque traz
incerteza, esquecimento e trevas. Vieram as trevas,.e finalmente
chegou um novo dia em que os gregos recomeçaram, como já
haviam feito antes, a ensinar os bárbaros estrangeiros, indicando
a direção da luz da humanidade. Tínhamos muito o que apren­
der, e foi com entusiasmo que nos entregamos aos ensinamentos
luminosos dos mestres gregos.
Apenas desde então a ciência desenvolveu, co.mo um gigan­
te despertado do sono, seus membros poderosos; e quem foi ca­
paz de tomar pé, mesmo que só em uma pequena parte de sua
gigantesca construção, como um de seus partidários, só pode
daquele mundo das coisas mais reais, para o qual não valem as
amadurecer os frutos de uma ética puramente lógica, que acar­
retam o vandalismo de bárbaros socialistas; vemos como o oti'!
mismo confiante que se encontra na essência da lógica absoluta
incitou o mundo à caça fervorosa da "felicidade", um esforço
que consome a maior parte das grandes energias dos tempos
atuais em função de seus objetivos demoníacos. E como pode
acreditar na verdade da promessa de solucionar todos os enig­
mas do mundo, feita com tanta confiança, quem aprendeu do
mais honesto de todos os pesquisadores, Kant, que justamente a
densa teia das relações causais no fenômeno dissimula para sem­
pre a verdadeira essência das coisas, quando elas são objetos de
uma investigação científica ligada a séries de conclusões lógicas?
É
assim que deve crescer, na areia do deserto, a árvore do
conhecimento, que nos fornece sombra e frescor no calor do dia
de nossas vidas! Entretanto, que indivíduo seria tão temerário a
ponto de reverter o giro da roda possante desse movimento irre­
sistível? Quem seria tolo a ponto de querer curar a doença desta
época com os meios paliativos de crenças formuladas em séculos
passados? Na verdade, o número cada vez mais reduzido daque­
refletir admirado sobre a soma da força moral e espiritual com
les que vêem com preocupação essa atividade e seu brilho enga­
si para construir, demolir e reconstruir tal edifício. Será um pro-
do distante Helesponto, sobre os quais o retórico Dio Chrisos-
que muitas gerações de homens, há séculos, deram o melhor de
nador pode diminuir ainda mais. Eles são como aqueles gregos
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tomus nos conta que, morando isolados entre tribos hostis de
da imagem dos fenômenos, mas a arte poderosa da música alem4,
citas e sendo já meio bárbaros quanto ao modo de se vestir e aos
que se opõe à nossa estética atual com gravidade tão incompreen­
costumes, confortavam-se com as antigas imagens dos versos
sível. Em seu "curso solar soberano de Bach a Beethoven, e de
eternos de Homero, um esplendor poético há muito desapareci­
Beethoven a Wagner" (§ 19), o autor segue os passos dessa arte
do, e além disso carregavam com uma resignação dolorosa a culpa
por seu nascimento tardio.
alemã com um olhar jubiloso. Nas obras de arte dramáticas de
Richard Wagner, identifica a potência maravilhosa do canto har­
Mas aqui o autor exorta todos os que vivem assim na diás­
monioso que resulta da mais elevada arte apolíneo-dionisíaca.
pora, movidos pela lembrança enlutada dos tempos antigos, a
Nesse compositor, ele vê a aurora de uma nova cultura alemã, que
renovar a esperança. De fato, o antigo mundo dos mitos está
morto, mas vive até hoje na nobreza da arte a capacidade de
apresentar diante de olhos encantados, nos reflexos míticos, os
traços secretos da grande deusa cósmica. De fato, alguns (como
por exemplo Friedrich Schlegel em seu tempo) se desencaminha­
ram, pois, presos a uma falsa interpretação dos mitos, considera­
vam possível reviver por galvanização a crença morta através de
profundas lendas alegóricas, nas quais acreditaríamos tanto
quanto nos acontecimentos históricos.
No entanto, os próprios gregos nunca acreditaram em seus
mitos neste sentido. Situados em um ponto muito mais elevado
e mais próximos da plenitude da verdade do que os sonhos fan­
tásticos dos poetas, os gregos exigiam um tipo de crença total­
mente diferente da exigida pelas tradições históricas. Caso con­
trário, como seria possível terem consciência, justamente em
relação àqueles mitos que constituíam o melhor tesouro da cren­
ça grega, de que Homero e Hesíodo os tinham construído e in­
surge da mais profunda compreensão artística do mundo. Daí o
autor convocar todos os que sejam capazes de entender os maio­
res esforços culturais da época a apoiar Wagner e sua obra. Só
podemos lhe desejar calorosa e cordialmente que tenha êxito.
Nota-se que, a princípio, esse livro proeminente será mais
acessível àqueles que passaram pelo pensamento prodigiosa­
mente harmonioso de Schopenhauer e Wagner. Caso uma filo­
sofia possa ser posta à prova, não só quanto à profundidade e
clareza de seu conhecimento do mundo, mas também quanto à
possibilidade que ela oferece para a fundamentação verdadeira­
mente estética dos problemas mais profundos da arte- que têm
afinidade bem muito maior com os derradeiros enigmas do
mundo do que se crê normalmente-, então a filosofia schopen­
haueriana se confirmou de maneira brilhante no livro em
questão. Se estudarem com seriedade o livro, os discípulos do
grande pensador entenderão facilmente em que sentido atri­
ventado? Como sua crença não seria perturbada quando eles
buo a essa obra, quanto ao esclarecimento e à justificação do
viam os mesmos mitos configurados de modos tão diversos por
fenômeno,
um significado análogo ao que a própria obra­
poetas de dons divinos, segundo as suas intenções, e até por um
prima de Schopenhauer tem para a fundamentação da essên­
mesmo poeta em épocas diferentes? Seria preciso que, na cons­
cia das coisas que se faz sentir por trás de todos os fenômenos.
ciência dos gregos mais nobres, a lembrança da natureza analó­
Em todo caso, gostaria de exortar todos aqueles que têm inten­
gica dos mitos (longe de ter uma solução no conhecimento con­
ções séria a estudar com dedicação esse livro, preparando-se
ceitual por meio de uma interpretação alegórica) fosse unida à
para sentir o prazer profundo de uma concentração completa
convicção venturosa da capacidade que as naturezas geniais têm
de seus pensamentos, tão facilmente dispersos e espalhados
de compreender a essência oculta do mundo, em tais revelações
pelos ventos do curso incessante da vida de hoje. Talvez isso os
por imagens, e de explicá-la aos ouvintes de um modo mais pro­
deixe livres, como pode fazê-lo por exemplo uma galeria com
fundo e completo que o de toda reflexão conceitual.
as obras mais sublimes da escultura antiga, para refletir sobre
A arte também nos fala através dessas revelações, certamente
não aquela arte brincalhona que se satisfaz em dar uma imagem
o verdadeiro significado de uma vida entregue aos mil demô­
nios da sorte e do humor.
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Desse modo, podemos esperar que a obra tenha repercussão
junto ao povo alemão, e que sua repercussão cresça junto com a
grande influência do mais nobre entusiasmo artístico que, justa­
mente nestes dias, estabelece em Bayreuth o fundamento seguro
para um templo em honra da nação alemã.2
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Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia