MEU CORPO. MINHA PELE. Camila Koslowsky Marder Martha Wankler Hoppe Resumo: Já há alguns anos os veículos de informação têm aberto espaço para falar sobre um fenômeno cultural crescente entre pessoas do mundo inteiro: os adeptos da body modification, ou modificação corporal. São pessoas com tatuagens, piercings, implantes, cicatrizes e queimaduras espalhadas pelo corpo, e que passaram cada vez mais a serem vistos exibindo seu corpo com orgulho entre os transeuntes “normais”. Apesar dos olhares e comentários de estranheza, muitos adotam a body art como um estilo de vida do qual se orgulham e no qual buscam cada vez mais a superação dos limites do corpo. Este estudo tem como objetivo a análise desta forma de expressão através da teoria psicanalítica. Palavras-chave: modificação corporal; masoquismo; sublimação INTRODUÇÃO A body art não é um fenômeno atual por mais estranha que soe aos olhos da grande maioria das pessoas, é sim a modernização de técnicas milenarmente utilizadas por diversas culturas, como a chinesa e a das tribos maoris por exemplo, e que pela modernização dos procedimentos médicos e biotécnicos asseguram e possibilitam ampliar a prática de técnicas de intervenção corporal (PIRES, 2005). BODY MODIFICATION – MODIFICAÇÃO CORPORAL A concepção de body modification é um derivado atual das práticas de body play, originadas e difundidas nos anos setenta por um grupo seleto de artistas que intitulavamse modern primitives, e que através da manipulação de órgãos de seu corpo e utilizando-se de fluídos corporais, exibiam-se como projetos ou instrumentos de jogos corporais onde o corpo era o suporte da arte (PIRES, 2005). Para situarmos o crescimento, em nossa sociedade, das técnicas e dos adeptos das modificações corporais, devemos pontuar o início dos anos 70, período em que essas técnicas começaram a ser divulgadas, assimiladas e praticadas por um maior número de pessoas. É a partir dali que se intensificam e se aceleram as relações e as interferências que o corpo vem experimentando no âmbito da estética, do sexo, das crenças, da ciência e da violência. Essas áreas da vida humana estão intimamente ligadas às manipulações corporais: as três primeiras englobam os motivos que levam o indivíduo a modificar seu corpo; a quarta permite o surgimento e o aprimoramento de técnicas, instrumentos e materiais; e a última banaliza o corpo, a dor e a morte. (PIRES, 2005, p. 71) O termo body modification refere-se a uma longa lista de práticas realizadas de forma consciente e voluntária que alteram a forma, fisionomia e/ou funcionamento do corpo, sendo que possuem objetivos precisos e riscos específicos de conhecimento do praticante. Os adeptos da body modification questionam os limites corporais quando “imprimem, perfuram e implantam elementos externos e inanimados em partes de seus corpos, adquirindo marcas físicas e criando silhuetas que não se assemelham com as naturais” (PIRES, 2005, p. 90). Neto (2005), aponta para a distinção destas práticas diferenciando-as em dois grupos. O primeiro diz respeito às modificações que dependem de um esforço individual e geralmente são reversíveis, de modo que nesta categoria encontram-se os fenômenos ligados à imagem do corpo por meio de regimes alimentares, exercícios físicos, fisiculturismo e o uso de substâncias ilícitas para otimizar estes processos No segundo grupo enquadram-se as modificações que dependem da intervenção de um outro indivíduo e que em geral são irreversíveis; nesta classificação são citados os fenômenos ligados à decoração do corpo (tatuagens, piercings, implantes subcutâneos de silicone sólido ou metal em forma de desenhos e queimaduras à ferro denominadas branding), à modificação da forma e/ou função (toxina botulímica, cirurgia estética, amputações de partes do corpo não desejadas e splitting ou confecção de fenda na ponta da língua) ou à exploração das faculdades sensoriais ou elásticas do organismo (como as escarificações provocadas pela cicatrização de feridas provocadas por objetos cortantes, o alargamento de orifícios como o lóbulo da orelha e a suspensão, prática que consiste em permanecer suspenso por ganchos de metal fincados no tecido cutâneo). No momento em que as descobertas científicas ou tecnológicas no seio de uma cultura somática permitem aos homens se presentearem com novos corpos e adquirirem novos modos de subjetivação e socialização, surgem fantasmas, quimeras e utopias, se renovam esperanças, mas também se abrem portas para novas angústias. O rompimento dos antigos tabus em nome da ousadia de questionar a natureza humana faz surgir um conjunto de problemas que podem ser resumidos no questionamento da normalidade e da saúde presente nas modificações corporais. Pergunta-se se as modificações corporais são mutilações transgressivas de mentes perturbadas ou mutações criativas de pessoas visionárias. (NETO, 2005) O EU-PELE De acordo com Anzieu (1989), toda atividade psíquica se estabelece sobre uma função corporal que se transpõe, através de rupturas, para o plano mental. Seguindo esta linha de pensamento, o autor descreve a constituição psíquica de um Eu-pele baseado no entendimento de que a pele, substrato físico, é mais do que um órgão, é um conjunto de órgãos diferentes; sua complexidade anatômica, fisiológica e cultural antecipa no plano do organismo a complexidade do Eu no plano psíquico. A pele, como organismo, apresenta três funções essenciais, sendo que estas funções encontram-se estritamente relacionadas com o desenvolvimento do Eu-pele. A primeira função da pele é a de apresentar-se como uma bolsa que contém e retém em seu interior o bom e o pleno, armazenados com o aleitamento, os cuidados e o banho de palavras. A segunda função da pele caracteriza-se pela interface que marca os limites entre o interior e o exterior, barreira que protege da penetração pela cobiça e pelas agressões vindas dos outros, seres ou objetos. E ainda, a pele apresenta como sua terceira função, a capacidade de ser um meio primário de comunicação, de estabelecimento de relações significantes com os outros, sendo uma superfície de inscrição de traços deixados por tais relações, de modo que esta função equipara-se àquela exercida pela boca em sua relação com o objeto cuidador. Desta origem epidérmica e proprioceptiva, o Eu herda a dupla possibilidade de estabelecer barreiras (que se tornam mecanismos de defesa psíquicos) e de filtrar as trocas (com o Id, o Superego e o mundo exterior). (ANZIEU, 1989, p. 62) O autor entende que, será a partir de uma Pulsão de Apego que, se esta for precoce e suficientemente satisfeita, o bebê irá adquirir a base sobre a qual seu Eu poderá integrar-se, e deste modo, viabilizar a possibilidade de pensamento. Anzieu leva-nos a entender a pulsão de apego, ou pulsão de agarramento, a partir da explicação de que os filhotes de mamíferos agarram-se aos pêlos da mãe para encontrar segurança física e psíquica, sendo que, durante o processo evolutivo a capa de pêlo dos seres humanos tornou-se escassa, e se por um lado isto facilita as trocas táteis primárias significativas entre a mãe e o bebê preparando-o para a aquisição da linguagem e de outros códigos semióticos, por outro lado, torna mais aleatória a satisfação da pulsão de agarramento entre os bebês humanos. É se agarrando ao seio, às mãos, ao corpo inteiro e às roupas da mãe que ele desencadearia, como resposta, condutas até então atribuídas a um utópico instinto maternal. A catástrofe que persegue o psiquismo nascente do bebê humano seria a de separar-se: e depois – assinala mais tarde Bion de quem retomo a expressão – isso o mergulha em um “terror sem nome”. (ANZIEU, 1989, p. 42) A criança busca na mãe o reconforto trazido pelo contato com a maciez de sua pele, de modo que sua finalidade é manter a mãe a uma distância que a deixe acessível para que possa protegê-la; em vista disto, utilizará processos para conservar ou aumentar a proximidade (deslocar-se, chorar, abraçar) ou irá encorajar a mãe a fazê-lo (sorrir e outras amabilidades). À medida que a criança cresce, o apego da mãe pelo filho se modificará, mas a reação de incerteza quando ele tem a sensação de que a perdeu permanece a mesma. O ato de amamentar, e também os atos que envolvem os cuidados do bebê, englobam experiências táteis geralmente acompanhadas por um banho de palavras e de cantarolar. Deste modo, progressivamente a criança diferencia uma superfície que comporte uma face interna e uma face externa, ou seja, “uma interface que permite a distinção do de fora e do dentro, e um volume ambiente no qual se sente mergulhada, superfície e volume que lhe trazem a experiência de um continente” (ANZIEU, 1989, p.58). As experiências de contato de seu corpo com o corpo da mãe, bem como uma relação de apego tranqüilizadora, dará ao bebê a percepção de sua pele como uma superfície. Isto não lhe oportunizará apenas a noção do limite entre o interior e o exterior, mas também à confiança necessária para o controle progressivo dos orifícios. É a partir da relação com a mãe, através da comunicação originária pele a pele, que o bebê adquire um sentimento de base que lhe garante a integridade de seu envelope corporal. A instauração do Eu-pele responde à necessidade de um envelope narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar de base. Correlativamente, o aparelho psíquico pode se exercitar nos investimentos sádicos e libidinais dos objetos; o Eu psíquico se fortifica com as identificações com tais objetos e o Eu corporal pode gozar os prazeres pré-genitais, e mais tarde, genitais. (ANZIEU, 1989, p. 61) Entende-se então, por Eu-pele, a representação que a criança faz, em estágios precoces do desenvolvimento, para representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da superfície do corpo. Segundo o autor, esta representação “corresponde ao momento em que o Eu psíquico se diferencia do Eu corporal no plano operativo e permanece confundido com ele no plano figurativo” (p. 61). No desenrolar deste quadro, existe a distinção destes dois Eu, de tal modo que o Eu psíquico continua a ser reconhecido como seu pelo sujeito (também esse Eu aciona mecanismos de defesa contra as pulsões sexuais perigosas e interpreta logicamente os dados perceptíveis que lhe chegam), enquanto o Eu corporal não mais é reconhecido pelo sujeito como pertencente a ele e as sensações cutâneas e sexuais que dele emanam são atribuídas à engrenagem de um aparelho influenciador, comandado pelas maquinações de um sedutor-perseguidor. (ANZIEU, 1989, p.62) O Eu-pele, então, será aquele que terá a função de envelope continente e unificador do Self; também será uma barreira protetora do psiquismo e tornará possível a representação, pois funcionará ainda como filtro das trocas e de inscrição dos primeiros traços, e também irá constituir-se de modo a ser um espelho da realidade. MASOQUISMO OU SUBLIMAÇÃO A primeira opção quando confrontados com sujeitos praticantes da body modification é entender suas escolhas colocando-as no âmbito das desordens psíquicas, como expressão de uma patologia masoquista, que os leva a buscar o gozo através do sangue e da dor. Encontramos como definição de masoquismo a “perversão sexual em que a satisfação está ligada à humilhação a que o sujeito se submete” (LAPLANCHE, 2000, p. 274). No texto O Problema Econômico do Masoquismo (1924), Freud explica o masoquismo a partir de uma distinção acerca da existência de três formas de masoquismo: o erógeno, o feminino e o moral, sendo que o primeiro, está subjacente às outras duas formas, e caracteriza-se pelo prazer com o sofrimento. Segundo a descrição proposta por Freud, no desenvolvimento do aparelho psíquico, a libido depara-se com o instinto destruidor - pulsão de morte – que procura reduzir a tensão e conduzir o organismo para um estado de estabilidade inorgânica. A libido tem a missão de tornar inócuo esse instinto destruidor, e assim o faz desviando parte deste instinto para os objetos do mundo externo e outra parte é colocada a serviço da função sexual, que caracterizaria, então, o sadismo propriamente dito. Esta outra parte, que não é transposta para o mundo externo e permanece dentro do organismo, fica libidinalmente presa com o auxílio da excitação sexual, e nela identificamos o masoquismo erógeno. Pode-se dizer que o instinto de morte operante no organismo – sadismo primário – é idêntico ao masoquismo. Após sua parte principal ter sido transposta para fora, para os objetos, dentro resta como um resíduo seu o masoquismo erógeno propriamente dito que, por um lado, se tornou componente da libido e, por outro, ainda tem o eu (self) como seu objeto. Esse masoquismo seria assim prova remanescente da fase de desenvolvimento em que a coelescência (tão importante para a vida) entre instinto de morte e Eros se efetuou. (FREUD, 1924, p. 205) Por outro lado, não podemos generalizar os praticantes da body modification como pessoas desajustadas e desequilibradas, que buscam a dor acima de tudo, e onde não teríamos como descartar o espectro saudável de suas práticas. Estariam estes sujeitos sublimando desejos e impulsos através de suas intervenções corporais de modo a mantê-los psiquicamente saudáveis e socialmente ajustados? As atividades sublimatórias estariam principalmente ligadas à atividade artística e a investigação intelectual, e caracterizam-se pelo desvio da pulsão para um novo objetivo, não sexual, onde visa objetos socialmente aceitos e valorizados (LAPLANCHE, 2000). Desta maneira, o que antes seria digno de repulsa torna-se motivo de adoração e respeito. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud descreve a sublimação como uma técnica para afastar o sofrimento. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo. Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. (FREUD, 1930, p. 87) METODOLOGIA A pesquisa a ser desenvolvida é de caráter qualitativo exploratório, e tem como objetivo primordial desenvolver e esclarecer quais as representações subjetivas acerca do corpo das pessoas que realizam práticas de modificação corporal. A ocorrência desta pesquisa será viável através da realização de entrevista aberta com os sujeitos com as características delineadas para a obtenção de material significativo para a avaliação de resultados. Através das entrevistas realizadas com os sujeitos da pesquisa, será obtido o material a ser estudado através da análise da enunciação do discurso dos entrevistados. As análises serão comparadas e discutidas, buscando alcançar os objetivos deste estudo. A análise de enunciação considera que na produção da palavra é feito um trabalho e operado um processo, ou seja, é elaborado um sentido e são operadas transformações (BARDIN, 2000). CONCLUSÕES Ao buscar entender as implicações pessoais que levam um indivíduo a praticar a modificação corporal em seus mais variados métodos, estamos dando-lhes o benefício da dúvida. Sendo estas práticas socialmente vistas como estranhas à normalidade esperada e indo contra a cultura de massificação da identidade difundida no século XXI e adotada como modo de vida pelas pessoas em geral, é normal que nos cause estranheza, mas não devemos generalizar construindo pré-conceitos e apenas igualar o diferente ao doente. Deste modo, entendemos que é importante que o olhar científico sobre a body modification aborde tanto as questões de sofrimento e gozo quanto de subjetividade e expressão simbólica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANZIEU, Didier. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989 BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. FREUD, Sigmund. O Problema Econômico do Masoquismo (1924). In Obras Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. ________________ O Mal-Estar na Civilização (1930). In Obras Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2000. NETO, José Fernando Soares. A Saúde Modificada: criatividade, espontaneidade e satisfação na experiência corporal contemporânea. Rio de Janeiro: UERJ, 2005. Tese de Doutorado (Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva), Área de Concentração Ciências Humanas e Saúde do Instituto de medicina Social, Universidade estadual do rio de Janeiro. Disponível em: http://pepas.org.teses/saude_modificada/pdf Acesso em: 15 nov. 2005. PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como Suporte da Arte. São Paulo: SENAC, 2005.