CESBLU – Centro de Educação Superior de
Blumenau
ALUBRAT – Associação Luso-Brasileira de
Transpessoal
Regina de Campos Balieiro Devescovi
Meu Corpo Meu Oráculo
Campinas, SP
2009
CESBLU – Centro de Educação Superior de Blumenau
ALUBRAT – Associação Luso-Brasileira de Transpessoal
Regina de Campos Balieiro Devescovi
Meu Corpo Meu Oráculo
Monografia apresentada no Curso de Pós-Graduação em
Psicologia Transpessoal Lato Sensu do CESBLU – Centro
Educacional de Blumenau & ALUBRAT – Associação LusoBrasileira de Transpessoal como requisito para obtenção
do título de Especialista em Psicologia Transpessoal.
Orientadora: Profa. Arlete da Silva
Campinas, SP
2009
Meu Corpo Meu Oráculo
Regina de Campos Balieiro Devescovi
BANCA EXAMINADORA
....................................................................
Profa. Arlete da Silva
Orientadora
...................................................................
Prof(a).
...................................................................
Prof(a).
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à vida, à minha mãe que partiu desta para outra vida há
menos de um ano, a meu pai que se foi há alguns anos e a todas as pessoas que
me amam e com as quais venho aprendendo a amar.
Dedico-o também à Godelieve Denys-Struyf que, com sua simplicidade,
refinamento e criatividade, transformou o gesto estruturante e funcional em pura
poesia. À Mme. Godelieve, que se foi enquanto eu ainda escrevia este texto e que
irá tocá-lo e saudá-lo em outras esferas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às funcionárias da ALUBRAT – inicialmente Ariana e, após, à
Flaviane e à Sueli – pela paciência constante em lidar com os assuntos burocráticos.
Agradeço, calorosamente, aos colegas e monitoras do Curso de PósGraduação
da
CESBLU/ALUBRAT.
Levarei
comigo
recordações
bastante
prazerosas dos momentos em que compartilhamos nossas estórias e experiências.
Agradeço à Profa. Arlete da Silva pela franca disponibilidade em me orientar
na elaboração desta monografia; pela leveza de suas argumentações; e pela
pertinência de suas observações.
Agradeço à Profa. Dra. Vera Saldanha, por ter me aceitado neste curso; por
acreditar em meu potencial; e por confiar em minha dedicação à causa transpessoal.
Agradeço, também, a Profa. Régine Hubeaut, exemplar divulgadora dos
aspectos psicocomportamentais do Método GDS, pelo interesse manifestado por
este trabalho e pelos momentos inspirados e inspiradores proporcionados em curso
por ela dirigido em São Paulo, em julho de 2009.
Agradeço sinceramente a todos vocês pela oportunidade oferecida de
amadurecimento profissional e de elevação espiritual.
Resumo
O presente trabalho busca organizar algumas idéias a respeito do corpo tal
como poderia estar sendo entendido e vivenciado no âmbito da Psicologia
Transpessoal. A questão norteadora da reflexão aqui apresentada é a de que nosso
corpo é nosso próprio oráculo. Para tanto, é preciso decifrá-lo; é preciso escutá-lo e
entender a sua linguagem. O objetivo principal é o de articular o Método GDS das
Cadeias Musculares e Articulares – em seu enfoque de leitura, análise e abordagem
corporal – à Abordagem Integrativa Transpessoal. Os objetivos específicos são: a)
inaugurar uma reflexão e debate sobre a aliança entre esses dois métodos; e b)
suscitar indagações que deverão ser trabalhadas tanto em futuras investigações
quanto em propostas de procedimentos educacionais e terapêuticos. A tentativa de
selar essa aliança é realizada aqui, por meio da coleta e organização de uma
literatura capaz de fundamentar a noção de “corpo transpessoal”, bem como os
pontos de contato entre o Método GDS e a Abordagem Integrativa.
Palavras chave: Corpo, Imagem Corporal, Linguagem Corporal, Consciência
Corporal, Educação do Movimento, Terapia Psicocorporal, Método Cadeísta GDS,
Abordagem Integrativa Transpessoal, Psicologia Transpessoal.
“Existe apenas um templo no mundo: o corpo humano.
Nada é mais sagrado do que esta forma sublime.
Inclinar-se diante de um homem é reverenciar esta Revelação da Carne.
Toca-se o céu quando se toca o corpo humano. “
Novalis
Sumário
1. Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------9
2. Corpo e Imagem Corporal -------------------------------------------------------------------13
2.1. O que é o Corpo Humano -----------------------------------------------------------------13
2.2. Corpo e Imagem Corporal -----------------------------------------------------------------14
2.2.1. O ponto de vista de Nasio ---------------------------------------------------------14
2.2.2. O ponto de vista de Jung ----------------------------------------------------------20
2.2.3. A orientação transpessoal de Jean-Yves Leloup ----------------------------25
2.2.4. Nasio, Jung, Leloup: três autores, três abordagens que se tocam----32
3. A Psicologia Transpessoal ------------------------------------------------------------------34
4. A Abordagem GDS das Cadeias Musculares e Articulares – Seus Aspectos
Psicocomportamentais -----------------------------------------------------------------------38
4.1. Sobre a autora e sobre os principais conceitos do Método GDS --------------38
4.2. Sobre a Tipologia GDS e suas estruturas psicocorporais ------------------------43
4.3. Sobre as fontes de inspiração da autora–algumas breves considerações---50
5. A Abordagem Integrativa Transpessoal ------------------------------------------------53
5.1. Sobre a autora -------------------------------------------------------------------------------53
5.2. O Corpo Teórico ----------------------------------------------------------------------------54
5.3. Os Recursos ---------------------------------------------------------------------------------58
5.4. A Pulsão da Transcendência ------------------------------------------------------------63
6. O Corpo Transpessoal-------------------------------------------------------------------------66
6.1. Introdução--------------------------------------------------------------------------------------66
6.2. Uma Definição--------------------------------------------------------------------------------66
6.3. Um diálogo entre GDS e AIT-------------------------------------------------------------73
6.4. Uma aliança entre GDS e AIT------------------------------------------------------------78
7. Conclusão: Meu Corpo Meu Oráculo-----------------------------------------------------85
8. Bibliografia-----------------------------------------------------------------------------------------90
1. Introdução
“Qualquer coisa experimentada fora do corpo não é experimentada, a menos que a
‘incorporemos’, porque o corpo significa do aqui e agora” (Jung, apud Farah, 1995, pg.23)
Desde a metade dos anos 90, quando me iniciei no universo das terapias
psicocorporais, venho atuando como terapeuta e educadora do movimento,
buscando enfatizar os processos de consciência corporal e gestual. Como
socióloga e ex-professora universitária, tenho uma experiência expressiva em
pesquisa e elaboração de textos analíticos. Até agora, contudo, não havia ainda
me debruçado sobre a instigante temática do corpo em suas implicações
teóricas e analíticas. Em minha atuação, pratico e vivencio intensamente o corpo
em mim, em meus clientes e alunos.
Chegou o momento de reflexão e
organização dos processos vividos. Espero que este texto seja apenas o início
de uma dinâmica de produção e investigação no âmbito da Psicologia e do
Corpo Transpessoais.
A pressuposição básica destas reflexões é a de que a transformação pelo
corpo é um fato. Tenho a nítida convicção de que o ponto de partida para a
criação de um ser humano integrado é seu corpo físico.
Não é uma afirmação óbvia a de que um indivíduo pode projetar apenas
aquilo que está dentro dele? E o que está dentro dele é não apenas sua psique,
mas também seu corpo físico. Não é uma afirmação óbvia a de que nosso
gestual vem sempre carregado de psiquismo? De algum modo, tudo indica que o
corpo físico é mais do que a expressão da personalidade, mas é de fato a
própria personalidade.
Para Reich, o corpo é o próprio inconsciente; é parte essencial da
existência humana, não como máquina, mas como algo energeticamente
pulsante, algo vivo. Para Alexander Lowen, psicoterapeuta de formação
reichiana, a noção de identidade de uma pessoa provém, sobretudo da
sensação de contato que ela é capaz de estabelecer com seu próprio corpo.
Para saber quem ele é, o indivíduo precisa ter consciência daquilo que
sente. Deve conhecer a expressão de seu rosto, a sua postura e a forma de
se movimentar. Sem esta consciência de sensação e atitudes corporais a
pessoa torna-se dividida: um espírito desencarnado e um corpo sem alma
(Reich, apud Farah, 1995, pg. 90).
Para Jung, o surgimento do ego dá-se, inicialmente, a partir de “uma
percepção geral de nosso corpo e existência, e a seguir, pelos registros de
nossa memória” (Jung, 2003, pg. 7). Concebendo o ego como “o cerne
indispensável
da
consciência”,
Jung
enfatiza
que
a
consciência
é,
primordialmente, resultado da “percepção e orientação no mundo externo” e que
“no tempo de nossos ancestrais essa mesma consciência derivaria de um
relacionamento sensorial da pele com o mundo exterior” (Jung, 2003, pg. 5).
Assim,
...uma abordagem muito mais satisfatória seria considerar o homem como
um todo, em vez de considerar suas várias partes. O que é preciso é por
termo à dissociação fatal que existe entre o ser superior e inferior do
homem; devemos pelo contrário unir o homem consciente com o homem
primitivo (Jung, apud Farah, 1995, pg. 30).
O objetivo principal deste estudo é o de propor uma forma de
aprofundamento da relação entre corpo e psique por meio da tentativa de
conciliação de um método bastante sofisticado de leitura, análise, conhecimento
e organização corporal (o Método GDS das Cadeias Musculares e Articulares)
com a Psicologia Transpessoal em sua Abordagem Integrativa.
Trata-se de pesquisar e organizar uma bibliografia que possibilite articular
dois enfoques passíveis de serem utilizados tanto na educação quanto na
saúde: o psicocorporal e o transpessoal.
Para tanto, cabe convocar alguns
autores que considero basilares no ato de pensar e viver o corpo de uma forma
global. Serão apresentados, neste espaço, os estudos de psicólogos e de uma
fisioterapeuta/terapeuta psicocorporal, com a intenção de compor uma trama
que: 1) ordene o diálogo proposto entre duas abordagens; 2) propicie a
construção de uma noção de “corpo transpessoal”; e 3) fundamente, para a
próxima etapa do trabalho, a elaboração de vivências corporais coerentes com
os postulados da Abordagem Integrativa Transpessoal.
Procura-se, portanto, desenvolver algumas reflexões que possibilitem a
montagem de um arcabouço teórico e procedimental sobre o corpo transpessoal.
Por ser um tema bastante extenso, não se cogita esgotá-lo neste trabalho. A
intenção, aqui, é a de inaugurar uma reflexão e debate sobre a questão proposta
– a aliança entre duas abordagens – e suscitar algumas indagações que
deverão ser trabalhadas em investigações futuras.
A questão norteadora deste estudo é a de que nosso corpo é o nosso
próprio oráculo; basta saber decifrá-lo.
Para responder a esse enigma, com coerência, evoquei alguns autores
buscando organizar as suas proposições.
No próximo capítulo serão trazidos três estudiosos e pensadores com
atuação no campo da psicoterapia: o psicanalista J-D. Nasio; Carl Gustav Jung;
e Jean-Yves Leloup. Trata-se de recolher de suas proposições o que parecem
ser os pontos chave para o entendimento e experienciação da globalidade do
corpo.
No terceiro capítulo serão apresentadas algumas considerações sobre a
Psicologia Transpessoal, visto que esta é a orientação básica, ponto de partida e
de chegada deste trabalho.
No quarto capítulo será introduzido o Método GDS das Cadeias
Musculares e Articulares, alinhavando o que parecem ser seus tópicos
principais. No quinto capítulo será feita uma incursão pela Abordagem
Integrativa Transpessoal, para a seguir, no sexto capítulo, penetrarmos no
âmago da questão.
Na Conclusão, será apresentada uma síntese do trajeto aqui percorrido
com ênfase na dimensão oracular de nossos corpos.
2. Corpo e Imagem Corporal
“O homem modela o mundo à imagem global de seu corpo visível.
Tudo é construído pelo corpo e a partir do equilíbrio do corpo!
Nada destronou e talvez nunca venha a destronar a forma primitiva, graciosa e soberana do corpo
humano: o perfil de uma cabeça coroando a massa de um busto prolongado por quatro membros.
Eis o arquétipo mais eterno, mas também o mais perfeito de todas as maravilhas que criamos e
diante das quais nos prostramos”
(J. - D. Nasio, 2009, pg.83)
2.1 O que é o Corpo Humano?
Organismo vivo, reprodutor e perecível? Estrutura que dá sustentação
aos nossos atos, gestos e movimentos?
Nossa memória mais arcaica, segundo Jean-Yves Leloup logo no início
de seu seminário sobre o corpo e seus símbolos1? Depositário dos conteúdos
inconscientes quando estes se tornam definidos, conforme sugere Jung em seus
comentários durante os “Seminários sobre Assim falou Zaratrustra” (Jung, apud
Farah, 1995, pg. 434)? Corpo sentido, corpo imaginário e corpo significante tal
como postula J. - D. Nasio em suas interpretações de Dolto e Lacan sobre as
imagens que temos de nossos corpos (Nasio, 2009)?
São esses os autores e essas as questões que orientam o capítulo que se
inicia. O percurso pelo vasto território da temática corporal será aqui inaugurado
com o conceito de imagem corporal de Nasio. Em seguida, será abordado o
corpo a partir da ótica de Jung. E, por último, serão revisitados os escritos de
Jean Yves Leloup, buscando esboçar uma primeira aproximação ao tema que
aqui interessa: o corpo transpessoal.
2.2 Corpo e Imagem Corporal
2.2.1 O ponto de vista de Nasio
Buscando a apropriação do corpo que, de fato, interessa ao terapeuta de
orientação transpessoal, escolheu-se expor um ponto de vista que parece
1
Seminário realizado na UNIPAZ, Brasília em 1996. Esse evento transformou-se em livro em 1998,
sob o título: O Corpo e seus Símbolos: uma antropologia essencial.
iluminar o trabalho de quem se propõe a desvendar (decifrar) o ser humano a
partir de sua relação com o seu agir corporal. Essa abordagem encontra-se no
trabalho de Nasio que será apresentada a seguir.
Juan David Nasio, psiquiatra argentino nascido em 1942 e radicado na
França desde 1969, atua como psicanalista, educador e escritor desde o início
dos anos 70. Preside os Seminários Psicanalíticos de Paris; instituição por ele
fundada em 1986.
Sua última obra, publicada em 2008 na França, elabora o conceito de
imagem corporal a partir de duas eminentes personalidades da psicanálise
contemporânea: Françoise Dolto e Jacques Lacan, “dois apaixonados pelo
enigma do corpo e suas imagens” (Nasio, 2009, pg.11).
Esta seção será iniciada com a definição de corpo, tal como exposta no
livro em revista.
O que é um corpo?
• O corpo é um organismo vivo, reprodutor e perecível. É o corpo biológico.
• O corpo é uma força que se dirige para os seres e as coisas que
proporcionam seu desenvolvimento, mas também uma força opondo-se aos
seres e às coisas que entravam seu desenvolvimento. O corpo são as
pulsões de vida que nos ligam ao mundo, bem como as pulsões de morte
que nos separam de tudo que ameaça nossa integridade; os dois grupos de
pulsões, de vida e de morte, trabalham a serviço da vida. É o corpo pulsional
que denominamos corpo real ou corpo sentido.
• O corpo é uma forma, uma silhueta, o protótipo universal de todos os objetos
criados pelo homem. Nós o denominamos de corpo imaginário ou corpo
visto.
• O corpo, mais particularmente o rosto, é o símbolo do inconsciente, sua
vitrine. Nós o denominamos corpo simbólico ou corpo significante.
• Seja organismo, força, forma ou símbolo, o corpo continua sendo o
indispensável substrato de todo sentimento de si (Nasio, 2009, pg. 122).
Para Nasio, portanto, o corpo é organismo, força, forma e símbolo.
O corpo biológico (ou organismo) é o corpo de carne, músculos, ossos e
nervos. É a matéria, “o lugar onde se produz o acontecimento sensorial bruto,
independentemente da pessoa que vive o acontecimento” (Nasio, 2009, pg. 7-8).
Todavia, o corpo que independe da pessoa que vive é uma coisa inerte,
destituída de vida. Quando preenchido de vida, o sujeito detentor desse corpo
constrói sempre, e inevitavelmente, a representação mental do acontecimento
vivido.
É essa representação psíquica, consciente ou não, que o autor
denomina de imagem mental do corpo.
Toda sensação percebida imprime inevitavelmente sua imagem; toda
sensação real é necessariamente duplicada por uma virtualidade, [porque] o
corpo não existe só no espaço; existe também na cabeça daquele que o
carrega (Nasio, 2009, pg.8).
Nesse sentido, a construção da imagem mental depende sempre de um
substrato sensorial – a ativação dos circuitos neuronais de recepção e resposta
– e da forma como cada um de nós assimila o impacto da experiência sensorial.
Pois para que um acontecimento se grave automaticamente em nosso
psiquismo, transformando-se em representação psíquica ou imagem mental, são
necessárias três condições: que esteja investido de emoção e sentido; que seja
impregnado da presença interiorizada do outro; e que tenha resultado de um
encadeamento de acontecimentos análogos.
2
O conjunto diacrônico de representações afetivamente investidas,
impregnadas pela presença interiorizada do outro e repetindo-se em nossa
historia, constitui o conjunto das imagens mentais do corpo. É precisamente
essa constelação de imagens que me dá a sensação de existir num corpo
vivo e de ser eu (Nasio, 2009, pg. 10).
2
Diacrônico: relativo ao estudo ou à compreensão de um fato ou de um conjunto de fatos em sua
evolução no tempo.
De posse dessas constatações e feitas essas reflexões, deve-se
considerar, então, que o corpo como força, como forma e como símbolo – ou em
outras palavras, o corpo sentido, o corpo visto e o corpo simbólico – é, em todas
essas condições, uma representação psíquica - uma imagem mental.
Nasio salienta que uma imagem é sempre o duplo exato ou aproximado
de algo que lhe antecede ou, mais precisamente, de um original - cada um
pertencente a um espaço diferente. Organiza sua definição em quatro categorias
gerais: a) o duplo refletido de um ser ou de uma coisa em uma superfície polida;
b) o duplo nominativo que designa uma particularidade do corpo; c) o duplo
impresso na consciência ou no inconsciente quando vivemos uma sensação
afetivamente importante para nós; e d) o duplo cinético de uma emoção, da qual
o indivíduo não tem consciência, mas que se impõe num comportamento
espontâneo (Nasio, 2009, pg.68-70).
Observam-se então, quatro imagens ou quatro formas de viver nosso
corpo: vendo-o (imagem especular); nomeando-o (imagem nominativa);
sentindo-o (imagem do corpo real); sentindo-o e sendo superado por ele
(imagem-ação do corpo real).
O corpo visto é o corpo imaginário; “aquele que vejo, principalmente no
espelho”. É o corpo especular: “a imagem instantânea do corpo percebido de um
relance e como um todo”; a imagem do corpo visto com o olhar único e singular
do espectador (Nasio, 2009, pg. 81). 3
O corpo nominativo é o corpo simbólico na acepção de que o “símbolo
tem o poder não apenas de substituir a realidade, mas, sobretudo de modificá-la,
3
Note que o conceito de corpo especular, tal como salientado por Nasio em trabalho já citado, é o
cerne do conceito de imagem do corpo de Lacan.
até mesmo de engendrá-la”. E ao alterar a realidade, o símbolo passa a ser
denominado significante (Nasio, 2009, pg.92). 4
Mas o que é o corpo simbólico ou significante?
“É a singularidade
corporal que determina direta ou indiretamente o curso de nossa existência”; são
as particularidades físicas (uma cicatriz no rosto, uma silhueta longilínea e
atraente; uma deficiência física, um nariz desproporcional, etc.) capazes de
condicionar toda a vida de um indivíduo. E qual a imagem mental do corpo
simbólico? “Não é a imagem mental de uma sensação, nem a imagem visível de
uma silhueta, mas o nome que designa a parte significante do corpo” (Nasio,
2009, pg.98).
Assim, diferentemente do corpo imaginário que é sempre global, o corpo
significante é sempre parcial, sempre fragmentário.
O corpo sentido é, segundo o autor, o corpo real. A imagem do corpo
sentido é “uma imagem mental inconsciente que pode ou permanecer
inconsciente, ou tornar-se consciente, ou ainda exteriorizar-se num agir
(imagem-ação)” (Nasio, 2009, pg.99).
O corpo real ou corpo sentido é a força que anima um corpo. Assim, o real
do corpo é a sua força. Mas que força? A força que vai e o arrasta, a força
de nascer, desenvolver-se ao máximo, reproduzir-se e superar as doenças
ou a elas sucumbir...É o corpo sensorial (o corpo das sensações internas e
externas); é o corpo dos desejos (nosso corpo erógeno)...; é o corpo do
gozo (o corpo que despende sua energia) (Nasio, 2009, pg.76-77).
Mas como sentimos nosso corpo? Nasio responde que conscientemente
ou em movimento; sendo que ambas atualizam as nossas antigas (e
inconscientes) percepções.
4
Nasio (2009, pg.92) enfatiza que no conceito de “eficácia simbólica”, de Levi Strauss, adotado por
Lacan, adota-se essa denominação quando a dimensão simbólica transforma a realidade. Note-se,
portanto, que, neste contexto, significante nada mais é do que o elemento formal e abstrato capaz de
modificar a realidade.
Em suma, temos uma imagem consciente de nossas sensações presentes,
uma outra, motora, que assume a força de um comportamento involuntário,
e uma terceira, na origem das duas primeiras, protoimagem inconsciente de
nossas sensações passadas (Nasio, 2009, pg.79).
Dentre as imagens ou formas de viver o corpo real, vale ressaltar a
imagem motora por ser a que mais coloca o corpo em ação.
A imagem-ação não é representada no papel, nem refletida no espelho,
nem inscrita na cabeça. Ela intervém nos movimentos corporais de um
sujeito que não percebe que seu comportamento põe em cena um vivido
emocional antigo do qual ele não tem lembrança (Nasio, 2009, pg.66).
A imagem-ação é a imagem dos corpos em movimento. São posturas,
mímicas ou gestos espontâneos; imagens vivenciadas ao invés de refletidas;
signos
não
verbais.
Realizam-se
concretamente
em
gestos
corporais
involuntários, passíveis de serem interpretados pelo psicanalista como
reveladores de conteúdos do inconsciente.
Essas “mensagens emitidas por um corpo modelado pelas emoções”
(Nasio, 2009, pg.71), puras manifestações corporais, não só fornecem a chave
como nos conduzem pelas intrincados caminhos de acesso ao inconsciente.
“O corpo é a via régia que leva ao inconsciente!” (Nasio, 2009, pg.71).
É esse o corpo que aqui nos interessa. E é essa uma das principais idéias
veiculadas por Nasio em sua obra. Na verdade, “o corpo que nos interessa é o
corpo tal como o vivemos, tal como o interpretamos e, para resumir, tal como o
fantasiamos” (Nasio, 2009, pg.75).
Com efeito, a imagem que temos de nosso corpo compõe o nosso
repertório lingüístico; é a linguagem que utilizamos para nos comunicar com o
mundo. Todavia, é uma linguagem que, segundo o autor, deve ser decifrada
pelo psicanalista para que o sujeito a compreenda.
Mas como situar a imagem do corpo na clínica? Segundo Nasio, através,
sobretudo, do desenho do corpo e dos significados aí depositados; através dos
comportamentos, gestos e movimentos; e através das palavras e associações
feitas pelo analisando. O que se espera é que esses conteúdos sejam
entendidos pelo psicanalista, o qual reconhecerá a marca do corpo nas
diferentes produções do inconsciente (Nasio, 2009, pg. 119).
Para entender esses conteúdos psíquicos, para entrar em ressonância
com o paciente e encontrar as palavras certas, necessárias e acessíveis (as
palavras que irão “consolá-lo de seu sofrimento” e resultar em ações autoreveladoras e auto-esclarecedoras para o paciente), Nasio preconiza “mergulhos
eminentemente intuitivos” no inconsciente do analisando. “Se o psicanalista
conseguir perceber dentro de si mesmo o movimento interior do outro, então as
palavras que terá a dizer sairão espontaneamente” (Nasio, 2009, pg.48).
De fato, ao reconhecer a imagem mental que o paciente tem de seu
próprio corpo, o psicanalista capacita-se a decifrar e a falar a linguagem da
imagem inconsciente do corpo de seu paciente. E esse corpo imagético pode
bem assumir o aspecto de um ser bizarro ou caricatural, atravessado e marcado
pelos bloqueios e tensões que o habitam.
Dessa forma, marcado pela visão desse corpo imaginário, e eletrizado pela
intensidade de minha sensação, decido transmitir ao paciente o que sinto e
que lhe concerne, uma vez que minha sensação não é outra coisa senão
seu próprio inconsciente vibrando em mim. (...). Eu interpreto no momento
que estimo mais oportuno, e usando palavras simples, tocantes, mas,
sobretudo, palavras que o conduzirão a voltar-se sobre si mesmo. Assim, o
psicanalista fala com convicção, a língua da imagem inconsciente do corpo
de seu analisando (Nasio, 2009, pg. 43-45).
2.2.2 O ponto de vista de Jung
O eu, isto é, a sensação inefável de sermos nós mesmos, não é nada mais
que a fusão íntima de nossas duas imagens do corpo: a imagem mental de
nossas sensações físicas e a imagem visível de nosso corpo no espelho.
...considero a imagem do corpo a própria substância de nosso eu (Nasio,
2009, pg. 12).
Vale iniciar esta seção com uma frase de Nasio, pois esta não parece ser
muito diferente da compreensão de Jung a respeito do tema.
Nas famosas “Conferências de Tavistock” 5, Jung, no início de seu
primeiro seminário, apresenta, com nitidez, o que entende ser o conceito de ego.
“[Ego] é um dado complexo formado primeiramente por uma percepção
geral de nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória”
(Jung, 1985, pg. 7).
A percepção geral de nosso corpo é a sua representação mental em
nossa mente; é a imagem mental de nosso corpo, formada pelos registros de
fatos objetivos fornecidos pelos canais sensoriais e cinestésicos e permeada
pelos significados afetivos e cognitivos que atribuímos aos mesmos.
Assim, “o corpo físico, tal como é percebido pelo indivíduo, é o
instrumento pelo qual essa pessoa pode estabelecer contato, seja consigo
própria, com seu ambiente ou com os demais indivíduos ao seu redor” (Farah,
1995, pg. 84).
Neste ponto, cabe afirmar que a concepção de ego para Jung, está muito
próxima de sua concepção de imagem mental do corpo (ou nas palavras de
Nasio, do corpo visto e do corpo sentido). Para Jung, o ego é o complexo mais
próximo e valorizado que conhecemos. “É sempre o centro de nossas atenções
5
As “Conferências de Tavistock” foram uma série de palestras proferidas por Jung em Londres, em
1935. Constituem uma espécie de introdução, didaticamente organizada, do pensamento de Jung.
Em sua edição brasileira, aparece sob o título Fundamentos de Psicologia Analítica.
e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência” (Jung, 1985,
pg. 7). Porém, como elemento central da consciência, o ego é derivado do
inconsciente e principalmente do arquétipo, do self 6·
O processo de desenvolvimento do ego, ou, em outras palavras:
...a gradual ampliação da consciência de um indivíduo a respeito de sua
própria imagem corporal [ou imagem mental do corpo], acaba por se
entrelaçar intimamente com o processo de desenvolvimento e ampliação da
sua consciência enquanto individualidade (Farah, 1995, pg. 92).
Sabe-se que para Jung, o auge desse movimento é a individuação: “o
tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a humanidade toda, em
que também nos incluímos” (Jung, apud Farah, 1995, pg. 94).
Sabe-se também, que as reflexões de Jung nunca se centraram na
abordagem corporal propriamente dita, e sim no funcionamento da psique como
um todo. Farah, todavia, observa que o aspecto do corpo na história da
Psicologia não se restringe às idéias de Reich e de seus seguidores. A autora
enfatiza que em “Tocar, Terapia do Corpo e Psicologia Profunda”, de McNeely
(terapeuta de abordagem junguiana), há “um esclarecedor apanhado histórico
sobre aqueles que considera como pioneiros da somatoterapia” (McNeely, apud
Farah, 1995, pg.386).
Segundo McNeely, os pioneiros da somatoterapia são: Freud, Sandor
Ferenczi, Alfred Adler, Groddeck, Reich e Jung. “Começo por esses seis
6
“Nas últimas décadas, a psicologia analítica tem a tendência de encarar o “eu” não somente a partir
dele mesmo e da consciência, mas a partir do inconsciente e, principalmente do arquétipo, do “self”.
Nessa perspectiva, o “eu” consciente seria a primeira manifestação do espírito inconsciente do “self”,
agora parcialmente consciente de si mesmo, isto é, conhecendo-se a si mesmo” (Jung, 1985, nota de
pé de página, pg.7). Note que essa idéia contraria a de Freud, que concebia exatamente o contrário:
o inconsciente sendo um resultado da consciência.
terapeutas porque sua principal preocupação com relação ao corpo foi a
distribuição da energia” (McNeely, apud Farah, 1995, pg.386).
Nota-se, nos escritos de Jung, uma atitude cautelosa e, muitas vezes
parcimoniosa, a respeito do desenvolvimento e aprofundamento dos dinamismos
psicofísicos. Todavia, várias são as passagens, em sua obra, em que “faz
referências a processos corporais, mencionando-os como componentes
intrinsecamente interligados aos dinamismos psíquicos”. Rosa Maria Farah
pontua, em seu livro, que o não aprofundamento da relação corpo-mente devese, em grande parte, a dificuldade, encontrada por Jung, em defender idéias
muito defasadas com a forma de pensar da época. A seguir, a autora apresenta
trechos da edição das “Conferências de Tavistock” em que Jung assinala,
implícita ou explicitamente, a importância dos aspectos corporais nos processos
psíquicos (Farah, 1995, pg. 385-440).
A atenção à sistematização elaborada pela autora possibilitou chegar às
conclusões expostas a seguir.
1. Antes de qualquer tema em particular, Jung parecia interessar-se,
sobretudo, pelo princípio da inseparabilidade entre o corpo e a psique,
chegando a comentar, em uma de suas conferências, que atualmente
sentia-se “totalmente incapaz de afirmar se é o corpo ou a psique que
prevalece” (Jung, 1985 pg. 30).
2. Em segundo lugar, destaca-se a sua atenção com relação aos
processos
psicossomáticos;
questão
essa
presente
em várias
passagens das “Conferências de Tavistock”. Farah apresenta, em seu
livro, um trecho de sua palestra durante os “Seminários sobre Assim
falou Zarathustra” que parece ser bastante ilustrativo de sua posição a
respeito da questão corporal e de sua relação com os conteúdos da
psique.
Nossos conteúdos inconscientes são potencialidades que podem vir a ser,
mas que não são porque não tem definição. Somente quando se tornam
definidas elas podem aparecer. Nada é definido no inconsciente; enquanto
algo estiver no inconsciente, nada pode ser dito sobre ele. Definição
aparece quando a matéria aparece. Enquanto o pensamento de alguém não
atingir um corpo, ele não é definido. (...) Até mesmo certas doenças do
corpo podem trazer o caráter da idéia; talvez representem a idéia de alguma
coisa que simplesmente não pode ser engolida (Farah, 1995, pg.434).
3. Outro aspecto relacionado com o anterior é o de que Jung parece
nunca ter estabelecido relações causais entre os eventos psicofísicos.
Ao invés disso menciona-os como simultâneos ou sincrônicos. Esse
entendimento é importante porque, em Jung, não se trata de descobrir
a origem de uma doença em causas psíquicas, mas de observar a
doença como uma fala do corpo. E se o corpo fala, o psicoterapeuta
deve entender sua linguagem; saber ouvi-lo – em geral, por meio dos
sonhos – para então captar sua mensagem.
Para concluir este item, gostaria de ressaltar o tom transpessoal, digamos
assim, da abordagem terapêutica de Jung. Ao discorrer sobre o agir terapêutico,
ele mostra a relevância do método de cura da medicina antiga, onde se
transportava uma doença pessoal a um nível mais alto e impessoal, atingindo-se
assim um efeito curativo.
O mito ou a lenda emerge do material arquetípico que está constelado pela
doença, e o efeito psicológico consiste em conectar o paciente com o
sentido geral de sua situação. Se a situação subjacente à doença for
expressa de maneira adequada, o paciente estará curado. Caso não se
encontre essa expressão ideal, ele é novamente arremessado ao seu
próprio mal, à isolação de estar doente; ficará só sem nenhuma ligação com
o mundo. Mas se o doente percebe que o problema não é apenas seu, mas
sim um mal geral, até mesmo o sofrimento de um Deus, aí então
reencontrará seu lugar entre os homens e a companhia dos deuses, e só de
saber isso, o alívio já surge (Jung, 1985, pg.96).
2.2.3 A orientação transpessoal de Jean Yves-Leloup
Convido-os a escutar, não minhas palavras, um discurso ou uma teoria.
Convido-os a escutar nosso corpo (Leloup, 1998, pg.15).
É assim que Jean Yves inicia seu seminário realizado em Brasília em
1996, sob os auspícios da UNIPAZ7. E é essa a idéia central de Leloup: escutar
nosso corpo para melhor conhecê-lo, para melhor respeitá-lo, para melhor
penetrar no invisível e mergulhar no desconhecido.
O interesse central de Jean Yves não repousa precisamente sobre a
imagem mental que cada um de nós tem a respeito de nossos próprios corpos,
mas se remete às estórias que esses corpos podem nos contar.
O corpo tem memórias; é nossa memória mais arcaica. Se estivermos
abertos para ouvir, ele nos contará estórias de nós mesmos. “Em cada uma
delas há um sentido a descobrir” (Leloup, 1998, pg.15).
O sentido recolhido dessas estórias memoráveis refere-se, obviamente, a
imagem mental que cada um de nós tem de seu próprio corpo – ou o que Leloup
denomina de “corpo de memórias”. Mas o que importa aqui é mais do que o
acesso aos conteúdos do inconsciente; é isso acompanhado do refinamento de
uma escuta que busca a ressignificação e atualização permanente de estórias
que orientam o nosso caminhar.
Em Nasio – psicanalista emérito, seguidor de Freud e discípulo de Lacan
–, o terapeuta prontifica-se a decifrar o corpo de seu paciente, esclarecê-lo a
respeito de suas tensões e entraves, para então aliviar o seu sofrimento. Em
7
Evento que se transformou em livro sob o título: O Corpo e seus Símbolos: uma Antropologia
Essencial.
Jung, o terapeuta trata de se aprofundar na dimensão arquetípica do ser
humano a qual irá resgatá-lo de uma condição patológica, torná-lo mais
consciente de seus processos psíquicos e servir como um fio condutor de seus
pensamentos e ações. Jean- Yves Leloup, por sua vez – filósofo, educador e
terapeuta, estudioso exemplar da psique humana – convida-nos a escutar nosso
corpo. Ao sugerir a ampla escuta de nós mesmos, pontua a importância da
descoberta de nossos corpos para que nos tornemos, nós mesmos, os principais
oráculos de nossas vidas. Como afirma Leloup: “o homem é o seu próprio livro
de estudo. Basta ir virando as páginas, até encontrar o Autor” (Leloup, 1998,
pg.11).
Quais são as escutas do corpo humano?
Leloup refere-se a três escutas: física, psicológica e espiritual. O processo
de escuta inicia-se, segundo o autor, pela montagem de uma anamnese que, em
seu entender, tem uma importância crucial em sua abordagem do ser humano.
Anamnese é o conjunto de informações colhidas pelo médico, psicólogo ou
terapeuta a respeito do desenrolar da doença. Mas também significa, em sua
raiz grega, recordação, lembrança. Assim, dotada desses dois sentidos (o
reconhecimento dos sintomas e o despontar da recordação), a anamnese
essencial é a arte e a prática de “lembrar-se do Ser, através de memórias do
corpo físico e das marcas psicológicas deixadas neste corpo físico” (Leloup,
1998, pg.16).
É por isso que a orientação de nosso trabalho, mesmo se falamos de coisas
bem concretas ou mesmo triviais, permanece dirigida para a lembrança do
Ser, que é algumas vezes bloqueada pelas memórias do corpo e do
psiquismo (Leloup, 1998, pg.16).
Trata-se aqui do Ser Transpessoal: o campo que perpassa e, ao mesmo
tempo, transcende o ente físico e psicológico que somos.
Na escuta física “reaviva-se a memória do que aconteceu em nosso
corpo, dos pés à cabeça”, buscando encontrar nosso ponto fraco, “o lugar de
nosso corpo aonde vem se alojar, regularmente a doença e o sofrimento”
(Leloup, 1998, pg.16).
Na escuta psicológica observam-se o medo e/ou atração que vivemos em
algumas partes de nosso corpo e em “quais condições psicológicas se
manifestaram certas doenças ou certos sofrimentos” (Leloup, 1998, pg.16).
Na escuta espiritual, ao reconhecer que o Espírito está sempre presente
em nós, busca-se acolher determinadas doenças, crises ou manifestações não
diagnosticáveis cientificamente como “manifestações do Espírito que quer trilhar
um caminho, que quer crescer, que quer desenvolver-se em membros que lhe
resistem” (Leloup, 1998, pg.16).
Assim, esta abordagem dirige-se ao homem em sua inteireza. E o terapeuta
que acompanha este corpo que somos, não é apenas um médico, não é
somente um psicólogo, não é somente um sacerdote. Mas deve manter
unidas, ao mesmo tempo, a competência e a escuta destas três
personalidades. Da mesma maneira ocorria entre os Terapeutas de
Alexandria, que cuidavam do corpo, do psiquismo e também do ser
espiritual. Trata-se, pois, de escutar cada uma das partes do nosso corpo,
do ponto de vista físico, psicológico e espiritual (Leloup, 1998, pg. 17).
Segundo Leloup, o corpo registra, em suas diferentes partes, as diversas
etapas de desenvolvimento da consciência, “desde a vida intra-uterina prépessoal até a abertura ao transpessoal” 8. Passo a relacionar e comentar
sinteticamente cada uma dessas etapas, notando, antes de tudo, que a
8
De agora em diante, quando se tratar de referências de página do livro de Jean-Yves Leloup, O
Corpo e seus Símbolos, 1998, não serão mais inseridas notas de rodapé. Cabe apenas mencionar
que os trechos entre aspas encontram-se entre as páginas 18 e 26 do referido livro.
esquematização do autor sobre as etapas evolutivas do indivíduo baseou-se na
teoria freudiana das etapas do desenvolvimento.
Leloup denomina nosso primeiro local de memória – a vida intra-uterina –
como “consciência matricial ou matriz”.
Ao nascer, o corpo do bebê entra em contato com um outro corpo,
buscando a união e harmonia que ele acabou de perder. “Surge o que
poderíamos chamar de “consciência oral”, o momento em que a consciência
está concentrada em torno da boca”.
Ao desvencilhar-se do corpo da mãe e descobrir seu próprio corpo, a
criança ingressa na fase da consciência anal. “É o momento em que ela chupa
seu dedo, seu pé, em que brinca com suas fezes”. Na verdade, estamos aqui na
fase motora típica desta idade – a fase motora-anal.
À consciência anal segue-se a consciência genital – a descoberta da
sexualidade.
Note-se, fazendo um parêntesis, que em cada fase do desenvolvimento
humano, podem ter ocorrido conflitos/tensões que, transformados em memórias,
se inscrevem em nosso corpo e “impedem que a vida, neste local, se manifeste
de um modo simples e feliz”.
Ao atingirmos a fase inicial da idade adulta, surge a “consciência
familiar..., fase na qual correspondemos à imagem que nossos pais têm de nós –
à imagem que eles têm e que esperam de nós”.
A etapa seguinte é a da “consciência social” que, para Freud, é o ápice: “a
capacidade de ter boa relação sexual com outrem e a capacidade de, por seu
trabalho, estar integrado à sociedade”.
Contudo, segundo Leloup, a escada tem mais três degraus: o da
consciência autônoma, o da consciência do self e o da consciência teoantrópica.
A “consciência autônoma” é a de quem alcançou a percepção de que a
adaptação social não é precisamente um sinal de saúde –“porque estar bem
adaptado a uma sociedade doente não é estar em boa saúde”.
Esta fase,
portanto, é a de atingimento de um estado de liberdade com relação às regras e
condutas sociais.
Poder-se-ia dizer que a consciência social é o reino do eu, do ego bem
adaptado e que, acima dela, é o reino do ego autônomo. No domínio do id
estão os inconscientes matricial, oral, anal, genital. O inconsciente familiar
(e, freqüentemente, o inconsciente social) é o reino do superego. O ego
deve libertar-se do domínio do id e do superego. Esta é a psicologia
clássica que conhecemos.
Mas alguns não se contentam com a afirmação do Eu autônomo pois
percebem que esse ainda não é o objetivo último de suas vidas. Descobrem,
então, a “consciência do self”, “a consciência da Verdade, da Vida, que anima a
sua pequena vida e a sua pequena verdade”.
Leloup menciona, por último, outro estado de consciência, que ele
denomina de “consciência teoantrópica...: um estado de consciência que está
além do desejo e além do medo”.
...Nós somos todas estas etapas. E em alguma parte de nós existe este
estado de não-medo e de não-cobiça (entendendo-se por cobiça o desejo
com interesse), como haverá sempre a pulsão sexual, o medo da doença, o
medo da decomposição. Em nós, todas essas memórias estão sempre
presentes.
Seguindo adiante na argumentação de Leloup, cabe agora localizar cada
uma dessas memórias nas diferentes partes do corpo, buscando “a ressonância,
a sincronicidade entre o nosso corpo físico e o nosso corpo de memórias”. Podese então observá-lo e colocá-lo sobre os degraus da escada.
Isso posto, pode-se descobrir que partes do corpo nos são prazerosas,
estimadas e familiares; outras, nos são desconhecidas, doloridas, desprezadas.
Pode-se também notar que as partes familiares foram as porções estimadas; as
partes não amadas e amedrontadoras, as maltratadas e violentadas.
Colocando cada uma dessas partes em ressonância com cada uma das
fases evolutivas da consciência observa-se que os pés nos remetem ao período
da “consciência matricial”; os joelhos, à “consciência oral”; o sacro e genitais à
“consciência anal e genital”; o ventre, à “consciência familiar”; o coração à
“consciência social”; os ombros à “consciência autônoma”; e o pescoço à
passagem do pessoal ao transpessoal, do rígido ao flexível.
Qual o papel do terapeuta, segundo Leloup? “O papel do terapeuta,
através da anamnese física, psíquica e espiritual, é o de permitir a livre
circulação da energia e da vida neste corpo”. É o de olhar, tocar, ouvir,
compreender esse corpo. E quando se toca alguém nunca se toca apenas um
corpo, pois nele se encontra toda a memória da existência de alguém.
Quando você toca um corpo, lembre-se de que você toca um Sopro, que
esse Sopro é o sopro de uma pessoa com seus entraves e dificuldades e
também é o grande Sopro do universo. Assim , quando você toca um corpo,
9
lembre-se de que você toca um Templo.
9
Segundo Leloup, essa é uma frase que retorna sempre, tanto entre os Terapeutas de Alexandria
quanto na psicologia iniciática de Graf Durckheim (Leloup, 1998, pg. 26).
Ao olhar, tocar e ouvir o corpo dessa forma, Leloup, em sua abordagem10,
pode nos conduzir a uma escuta mais apurada e refinada de nosso corpo. Pois
se se parte do pressuposto de que as memórias de todas as fases evolutivas da
consciência estão sempre presentes, o reconhecimento da consciência do self e
de
consciências
superiores
pode
oportunizar
diálogos
absolutamente
reveladores com nossos próprios corpos. E, nesse sentido, o papel do terapeuta
é mais do que o de interpretar o corpo de memórias a sua frente, mas o de
permitir enxergar que dentro desse corpo habita uma Inteligência pronta a ser
mobilizada a qualquer momento. Basta apenas reconhecê-la, interrogá-la e
escutá-la. Ela certamente irá responder; irá “jorrar do interior de nosso silencio”.
“Procure a resposta lá onde você colocou a pergunta”.
Fiquemos então com o nosso corpo em uma boa postura, os pés bem
firmados na terra, as nádegas relaxadas, a coluna vertebral tão ereta quanto
possível, o queixo um pouco para dentro para liberar a nuca, as mãos
tocando-se sobre os joelhos. Sintamos o contato de uma mão com a outra,
os maxilares descontraídos, a testa o mais relaxada possível. Sintamos todo
o nosso corpo como um templo. E neste templo, acolhamos o Sopro.
Procuremos degustá-lo e saboreá-lo. E deixemos agir em nós a força da
inspiração e da expiração para que todo o nosso corpo seja lavado, curado.
Deixemos vir a luz e que ela se inscreva nas partes mais dolorosas do
nosso ser. Sintamos que somos um corpo de matéria, de lama e também
um corpo de cristal, um corpo de diamante. Simplesmente respiremos na
presença do Ser que É... (Leloup, 1998, pg.132).
2.2.4. Nasio, Jung, Leloup: três autores, três abordagens que
se tocam
Finalizando esse capítulo, gostaria de fazer algumas observações a
respeito de cada um dos autores aqui estudados – Nasio, Jung e Leloup –
pontuando, em cada um deles, quais os aspectos passíveis de serem recrutados
como fontes de inspiração para uma abordagem transpessoal do corpo.
10
Abordagem inspirada “nas pesquisas das ciências contemporâneas e no aporte espiritual das
grandes tradições” ( Leloup, 1998, pg. 132).
Percebo que a forma pela qual Nasio capta a linguagem corporal de seus
pacientes pode ser bastante profícua. Tomando como referência, o método de
Dolto11, ele pratica, na clínica, o olhar e entendimento de quem mergulha no
inconsciente do outro, por meio: a) da observação das manifestações e
expressões da imagem inconsciente do corpo de seu paciente (utilizando,
particularmente, os recursos de desenho do corpo, observação da fala e
gestual); b) da visualização desse corpo inconsciente; c) da sensação, sentida
pelo analista, daquele corpo imagético; d) do vibrar ao ritmo das tensões que
animam aquele corpo; e e) da transmissão, ao paciente, daquilo que ele
(terapeuta) sente. Esse mergulho predominantemente intuitivo no inconsciente
do outro demanda, obviamente, sensibilidade, perspicácia, disponibilidade e,
sobretudo, o desenvolvimento dessa habilidade. Mas não parece prematuro
reconhecer que esse método pode servir como um parâmetro para a atuação
terapêutica (Nasio, 2009, pg.43-45).
Em Jung, interessa, sobretudo, seu olhar arquetípico sobre as situações e
processos psicossomáticos. Nesse sentido, os eventos nunca são únicos, mas
vêm sempre carregados de uma significação mítica, a qual pode ser
invariavelmente acionada em prol da ação terapêutica.
Leloup, por fim, defende a capacidade que todos nós temos de nos
auscultarmos, além de introduzir, com seu brilhantismo de sempre, a abordagem
transpessoal de nosso “corpo de memórias”.
Posto isso, passo a desenvolver, no próximo capítulo, algumas reflexões
e considerações sobre a orientação transpessoal.
11
Françoise Dolto (1908-1988), médica e psicanalista, pertenceu ao círculo de Jacques Lacan e criou
o conceito de imagem inconsciente do corpo com o qual Nasio trabalha (juntamente com o de Lacan)
em seu livro já citado.
3. A Psicologia Transpessoal
“Sem o transcendente e o transpessoal, ficamos doentes, violentos,
niilistas, ou então vazios de esperança e apáticos.”
(Abraham Maslow, apud Fadiman; Frager, 1986, pg.272)
A Psicologia Transpessoal é um estudo empírico e científico dos diferentes
níveis de consciência e suas relações com a nossa percepção da realidade,
crenças, valores e ações... É o estudo e prática psicológica das
experiências transpessoais na saúde, educação, organizações,
12
instituições...(ALUBRAT, 2009, pg.2).
12
Cf. também, SALDANHA, Vera. Psicologia Transpessoal. Abordagem Integrativa – Um
Conhecimento Emergente em Psicologia da Consciência. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008. Este capítulo baseou-
A Psicologia Transpessoal tem suas raízes mais recentes na corrente
humanista e despontou nos anos 60 como uma nova vertente da Psicologia.
Oficializada por Abraham Maslow em 1968 – juntamente com Victor Frankl,
Stanislav Grof, Antony Sutich e James Fadiman –, passou a ser chamada de a
4º grande força, emancipando-se, por assim dizer, da psicologia humanista ou 3º
grande força.
A primeira grande força foi o behaviorismo; a segunda foi o movimento
psicanalítico; e a terceira foi a corrente humanista.
A vertente humanista surgiu nos Estados Unidos e na Europa na década
de 50 com a intenção de se opor à corrente behaviorista e às analogias feitas na
época, em várias áreas científicas, entre o ser humano e a máquina. Inspirou-se,
sobretudo, no pensamento fenomenológico e existencial.
Entre os anos 50 e 70, a ciência cognitiva evoluiu, colocando à margem de
seu objeto de estudo os fatores afetivos e emocionais. Os humanistas
reagiram a essa opção metodológica pela exclusão da emoção, pois a
consideravam como algo inerente e fundamental ao ser humano. Na
verdade, a visão do homem no humanismo é a de um ser criativo, com
capacidade de auto-reflexão, de tomar decisões, de fazer escolhas e de
seguir valores em um nível fenomenológico e existencial (ALUBRAT, 2009,
pg.5).
O diferencial da Transpessoal com relação às outras linhas da corrente
humanista é o de que a primeira amplia sua concepção de ser humano,
percebendo-o também como um ser cósmico e espiritual. Essa orientação
apresenta caráter transdisciplinar e é considerada a Psicologia da Consciência,
pois se dedica ao estudo da consciência, propondo trabalhos em diferentes
estados de consciência.
se no livro de Saldanha e nas apostilas de 2007-2009 do Curso de Pós Graduação em Psicologia
Transpessoal da ALUBRAT.
Com efeito, a Psicologia Transpessoal engloba os aspectos do
desenvolvimento psíquico, já abordados nos primórdios da psicologia, com
Freud, e amplia-os inaugurando uma nova corrente: a da psicologia evolutiva.
A psicologia evolutiva aponta a experiência transpessoal como uma fase
mais adiantada da evolução humana, posterior às fases instintiva,
emocional e mental. O homem intelectual não seria a última etapa evolutiva
da humanidade. Além do intelecto existe um ou vários outros níveis
evolutivos (ALUBRAT, 2009, pg. 2).
Restabelece-se assim a possibilidade, tão cara à tradição filosófica
oriental, de se viver a unidade fundamental Homem-Cosmo.
Desde sua origem até sua visão mais recente, as definições da Psicologia
Transpessoal observam os postulados de Maslow e sua posição de que a
Ciência deve agregar valores. Estes mantêm estreitas correlações com a
educação, princípios éticos e necessidade de se favorecer uma Psicologia
que contemple não só as deficiências, mas também aspectos saudáveis
que podem ser estimulados e desenvolvidos na natureza humana, e que
são fundamentais para a continuidade de nossa espécie e do próprio
planeta (Saldanha, 2008, pg.46).
A orientação transpessoal, contudo, não se encontra apenas no campo
disciplinar da psicologia. Pode desenvolver-se também em várias outras áreas
do conhecimento, quando essas incluem o estudo e/ou a prática das
experiências transpessoais. A título de exemplo, pode-se citar as seguintes
áreas, mencionadas por Saldanha: psiquiatria, antropologia, sociologia, ecologia,
psicologia (Saldanha, 2008, pg. 42-43).
A experiência transpessoal, por sua vez,
pode definir-se como aquela em que o senso de identidade ou do eu
ultrapassa (trans+passar=ir além) o individual e o pessoal a fim de abarcar
aspectos da humanidade, da vida, da psique e do cosmo (Walsh; Vaughan,
apud Saldanha, pg.42).
Neste ponto, é importante salientar que a transpessoalidade não diz
respeito apenas às experiências místicas, estados de êxtase e de consciência
unitiva. Diz respeito também aos conteúdos que atravessam, perpassam a
dimensão pessoal. Não se trata, portanto de excluir ou invalidar o pessoal “mas
enquadrá-lo dentro de um contexto mais amplo, o qual reconhece a importância
de ambas as experiências: pessoais e transpessoais” (Walsh; Vaughan, apud
Saldanha, pg.42).
No tocante à prática e áreas de aplicação de orientação transpessoal,
Pierre Weil nos fornece uma definição sucinta e didática.
Por educação transpessoal compreendemos o conjunto dos métodos que
permitem descobrir ou revelar o transpessoal dentro do ser humano. Por
psicoterapia transpessoal, entendemos o conjunto de métodos de
tratamento das neuroses pelo despertar do transpessoal, e de tratamento
das psicoses pela exteriorização do transpessoal semipotencializado. Por
terapia transpessoal designamos o conjunto de métodos de
restabelecimento da saúde pela progressiva redução da ilusão da existência
de um “eu” separado do mundo (Weil, apud Saldanha, pg.42-43).
No meu entender, a Psicologia Transpessoal trata do estudo da
consciência em suas múltiplas dimensões: resgata a dimensão energética e
considera os vários níveis da realidade na experiência humana. A abordagem
educacional, terapêutica e organizacional de orientação transpessoal recolhe o
conflito do mundo cotidiano e eleva-o a outros níveis da realidade. Uma vez
recolhido e trabalhado, esse conflito é devolvido, transmutado, para a nossa
atualidade terrena e espaço-temporal.
A propósito, vale notar aqui, que o corpo é um dos pontos de interesse na
Psicologia Transpessoal na medida em que esta preconiza o existir e se
expressar no “aqui e agora”. O autor que teve o mérito de introduzir a “ação
corporal” no espaço terapêutico foi Jacob Levy Moreno. Moreno (1892-1974) foi
o criador da psicoterapia de grupo, do psicodrama e do sociodrama e um dos
precursores da Psicologia Transpessoal “especialmente com relação à práxis”
(Saldanha, 2008, pg. 58-60).
Para ele, a essência do psiquismo transmite-se pelo corpo: um gesto, um
toque, um encontro e não só a linguagem verbal. Introduziu também o
“presentificar”, a dimensão do “aqui e agora” no espaço terapêutico. A
realidade experienciada no “como se”, denominada de realidade
complementar, era tão importante e verdadeira como a realidade vivenciada
no fato original (Saldanha, 2008, pg.60).
O tema da aplicação dos métodos pedagógicos e terapêuticos de
orientação transpessoal, remete novamente a questão que aqui interessa: a
abordagem corporal em sua dimensão psicocomportamental – tema do próximo
capítulo – e em sua dimensão transpessoal – tema a ser tratado no capítulo 6.
4. O Método GDS das Cadeias
Musculares e Articulares –
Aspectos Psicocomportamentais13
“O corpo é um meio de comunicação extraordinário, que devemos conhecer e estruturar.
Para tanto, é importante “olhar” as mensagens gestuais e posturais do corpo,
de modo a decifrá-las e comunicar-se com ele de forma verbal ou não-verbal.”
(Godelieve Denys-Struyf, 1995)
4.1. Sobre a autora e sobre os principais conceitos do Método GDS
13
Este capítulo baseia-se, principalmente nos seguintes textos: 1) DENYS-STRUYF, Godelieve.
Cadeias Musculares e Articulares. O Método GDS. Summus Editorial, SP, 1995; 2) CAMPIGNION,
Philippe. Aspectos Biomecânicos – Cadeias Musculares e Articulares – Método GDS. Summus
Editorial, SP, 2003; 3) Fascículos montados, entre 1995 e 2000, pelo Centro Brasileiro de Cadeias
Musculares e Técnicas GDS, São Paulo, sob a direção de Ivaldo Bertazzo e Lúcia Campello Hahn,
com base no ICT-GDS de Bruxelas, Bélgica; e Anotações de Aulas.
O Método GDS das Cadeias Musculares e Articulares foi concebido e
formulado nos anos 1960-1970 pela fisioterapeuta e osteopata, Godelieve
Denys-Struyf.
Filha de pais belgas nasceu, em 1931, no antigo Congo Belga (atual
Brazzaville) e lá viveu até os 16 anos em uma fazenda de cacau. Vale notar que
“esse período, decisivo na organização da maneira de pensar o ser humano, foi
vivido no seio de uma etnia e de uma cultura completamente diversas daquelas
de sua origem familiar” (Bertazzo; Hahn in Struyf, 1995, pg.9).
Chegando à Bélgica, seguiu inicialmente uma formação artística, na
Escola de Belas Artes de Bruxelas, especializando-se na forma humana.
O talento natural de retratista, somado aos anos em que refinou sua técnica
de observação do modelo, imprimiria uma característica fundamental em
sua futura abordagem terapêutica e docente: “aprender a ver”. Em todos os
estágios de seus cursos, Godelieve ensinará a seus alunos como
diferenciar na figura humana os inúmeros aspectos que a personalizam
como indivíduo de uma espécie. Além das características raciais e culturais,
a autora irá considerar os modos de funcionamento e gestão de cada
estrutura humana que a tornam um exemplar único (Bertazzo; Hahn in
Struyf, 1995, pg.9).
A busca e reconhecimento da singularidade de cada indivíduo – daquilo
que o diferencia e o torna único, apesar dos elementos estruturais e funcionais
comuns a todo ser humano –: foi esse o interesse que a acompanhou durante
toda a sua formação acadêmica, em fisioterapia e osteopatia, e após.
Como terapeuta e buscadora incansável, Mme. Godelieve tem perseguido
uma trajetória de intensa experimentação, questionamento e reflexão a respeito
do corpo humano em seu aspecto postural, gestual e psicomotor. Seu trabalho
sempre foi enriquecido por um sentido de observação apurada como retratista;
por um interesse em se alicerçar nos conhecimentos milenares do oriente
(particularmente a vertente chinesa); e pela afirmação de laços com aqueles
profissionais (de filósofos e sociólogos a terapeutas) com os quais sentia ter um
ponto em comum: o da abordagem global do ser humano.
“O método das cadeias GDS nos ensina a ler o que o corpo diz e a
identificar o terreno de predisposições”. (Struyf, apud Campignion, 2003, pg.16).
É um método de leitura psicocomportamental a partir das formas do
corpo. Não se trata, contudo de apenas produzir retratos. Trata-se, sobretudo,
de oferecer ferramentas para se escapar de um determinismo (genético e/ou
resultante de fatores educacionais) que possa conduzir a um “encadeamento” ou
aprisionamento do indivíduo em uma “tipologia motora e morfocomportamental”.
A
tipologia
proposta
por
Struyf
baseia-se
nas
pulsões
psicocomportamentais expressas no corpo pela ativação de certos músculos e
pelas tensões de determinadas cadeias musculares e articulares.
Os “tipos” propostos são absolutamente neutros, não existindo “melhores”
ou “menos bons”. Também não pretendem ser definitivos. Ao contrário,
revelam “instantâneos” na vida de uma pessoa. Servem para que o
indivíduo entre em contato com suas predisposições, seus pontos fortes e
fracos tanto no terreno mecânico quanto orgânico e comportamental. Ao
analisar um paciente, o terapeuta trabalha por comparação e aproximação
aos modelos propostos por Struyf em seu método. Nenhum ser humano
identifica-se inteiramente com qualquer desses tipos. Na verdade, cada um
de nós é um composto dos cinco tipos propostos pelo Método GDS – as
cinco estruturas morfocomportamentais –, porém em quantidade e
qualidade variáveis para cada um (Bertazzo; Hahn in Struyf, 1995, pg.11).
Para além da leitura morfocomportamental, a abordagem GDS traz a
noção de “Terreno”; conceito essencial neste método.
Com efeito, o procedimento GDS busca apreender um conjunto de
informações referentes à “constituição inata ou basal” e aquilo que resultou dos
“conteúdos adquiridos” no decorrer da existência do indivíduo, quer tenha sido
esse percurso bem ou mal vivido. A combinação da tipologia de base com a
tipologia adquirida irá circunscrever um “terreno” de potencialidades, tendências
e predisposições.
Através de uma anamnese psico-morfológica e mecânica da situação
adquirida – manifesta no corpo no momento da análise –, GDS procura chegar o
mais perto possível do “terreno” original – a captura da constituição basal do
indivíduo e dos conteúdos adquiridos –, para então considerar as estratégias de
tratamento possíveis. O que se busca é o resgate e respeito à sua tipologia
original; o equilíbrio de seus vários segmentos; a unidade e organização deles
ao redor de um centro; o desbloqueio das tensões que obstruem a livre
passagem dos circuitos mecânicos e fisiológicos; a harmonização do sistema
locomotor e da estrutura corporal.
Mas a harmonização pretendida associa-se, além de tudo, ao
conhecimento de um “em si”; de um terreno a ser progressivamente decifrado.
Na verdade, Struyf propõe um método que conduz o indivíduo a assumir um
compromisso consigo próprio: a responsabilidade sobre seu próprio corpo; a
responsabilidade sobre a recordação de si a partir de uma consciência corporal;
a responsabilidade sobre o reconhecimento de um terreno de tendências e
predisposições.
Descoberta a constituição de base e o terreno original, bem como seus
pontos fortes e fracos, cabe-nos reconhecer que não estamos reduzidos a nos
submeter a tudo aquilo que a natureza depositou em nós. Existe um trabalho a
ser feito conosco.
Aqui, a noção de “terreno” emerge sob a forma de um “Projeto”; um vir-aser do qual somos os agentes; de um projeto a ser elaborado e realizado para
que não nos aprisionemos nas cadeias e tramas de nossos corpos.
As cadeias ou conjuntos musculares e articulares são:
...tanto estruturantes, dando forma ao nosso corpo, quanto instrumentos de
nossa mobilidade e de nossas metamorfoses. Garantem, ao mesmo tempo,
a unidade e a coesão do indivíduo e a adaptabilidade de nossas estruturas
às necessidades da vida, às possíveis reviravoltas do destino, às mudanças
e aos períodos de passagem no trajeto de nossa existência. Quando se
degradam, se desequilibram ou se tornam excessivas, elas ficam
enrijecidas e criam tipologias muito marcadas, que impõem restrições e
limitações ao corpo. Tornam-se, então, nossas prisões, “cadeias de
forçados”, que diminuem nossa qualidade de vida. Prejudicam as funções
físicas e psíquicas e desencadeiam alarmes, sob a forma de sintomas
diversos e dores (Struyf, apud Campignion, 2003, pg.14).
Cada uma das estruturas psicocorporais apresentadas por Struyf é um
resultado da ação predominante de uma cadeia e também um componente
daquele terreno de tendências e predisposições. Todas estão presentes em
cada um de nós. Às vezes, uma ou outra passa a predominar. Contudo, cada um
de nós manifesta essas estruturas em um arranjo singular. Está ao nosso
alcance reconhecê-las e integrá-las conscientemente a nossa vida. Igualmente,
cabe a cada um de nós nos responsabilizarmos ou não por nossa realização
como individualidade, diferenciando-nos do outro a partir da tomada de
consciência daquilo que nos assemelha e de tudo o que nos singulariza.
O “Projeto” é o potencial que importa desabrochar. E o que importa é
restaurar uma expressão corporal que seja uma livre expressão de si próprio.
Aquela que, a partir do interior, utiliza os conjuntos musculares (as cadeias
musculares e articulares) sem aprisionar o ser.
O papel do terapeuta é o de entender a linguagem corporal daquele
indivíduo a sua frente (fazendo a leitura da postura, gestos e formas do corpo);
delimitar um tipo de terreno psicomotor com seus pontos fortes e fracos; sugerir
uma abordagem terapêutica apropriada ao terreno; e desenvolver uma
estratégia de prevenção. A posição do terapeuta é a de observador, curador e,
antes de tudo, educador.
Quanto às técnicas a serem mobilizadas, Struyf afirma que devem ser
quantas forem necessárias e adequadas às singularidades psicocorporais e
locomotoras do indivíduo que está sendo tratado: ajustamentos ósteo-articulares
e modelagens; harmonização das tensões musculares; manobras que associem
contrações isométricas e alongamentos; posturas
14
, gestos e movimentos;
diálogos verbais e não verbais.
Outro ponto dos mais importantes do Método GDS é o desenvolvimento e
ampliação da consciência psicocorporal do indivíduo que está sendo tratado.
Pois um de seus objetivos é o de oferecer a cada um a possibilidade de assumir
o trabalho terapêutico e preventivo sobre si próprio. O que se busca, em última
instância, é o despertar da memória de si e o tomar para si a responsabilidade e
direção de sua própria vida e destino.
4.2. Sobre a Tipologia GDS e suas Estruturas Psicocorporais
A partir da observação de milhares de casos, Godelieve Denys-Struyf
compôs as diferentes atitudes e encadeamentos musculares que as sustentam.
Ela apresenta e descreve seis tipos ou estruturas que possibilitam ao corpo
exprimir-se por meio de arranjos e tensões biomecânicas governados por cada
uma das cadeias musculares e articulares.
14
Centro Brasileiro de Cadeias Musculares e Técnicas GDS; Fascículo organizado por Ivaldo
Bertazzo e Lúcia C. Hahn com base no ICT- GDS de Bruxelas, Bélgica.
A denominação de cada cadeia está associada a sua localização no
tronco. Nomeia, também, cada uma das estruturas psicocorporais, as quais são
entendidas
como
atitudes
posturais
que
refletem
diferentes
pulsões
comportamentais.
Essa tipologia será brevemente descrita, em consonância com as duas
figuras apresentadas logo adiante.
i.
Na atitude em propulsão para frente é a atividade muscular posterior que
mantém o corpo em equilíbrio. São os grupos musculares principalmente
posteriores e medianos que conduzem a uma atitude governada pela cadeia
PM (posterior mediana) e que impulsionam (ou desequilibram) o corpo à
frente. Ao fazê-lo está respondendo a certas pulsões comportamentais e
certas escolhas.
As escolhas da estrutura PM dirigem-se mais facilmente para o agir ou, no
limite, para a simples agitação mental e física. Comportar-se em PM é, por
exemplo, preferir projetar-se no futuro, prever, antecipar. Para tanto, o
indivíduo necessita saber e dominar certos conhecimentos referentes ao
15
mundo exterior. Trata-se de uma estrutura de ideação e de ação .
ii.
Na atitude inclinada para trás é a atividade de grupos musculares anteriores
que garante o equilíbrio. A cadeia que governa esse padrão gestual é a
cadeia AM (anterior mediana), composta pelos músculos anteriores e
medianos do tronco. Quando se acomoda nessa postura, “o corpo parece
querer recuar, apoiar-se contra uma parede, ou se sentar”.
Comportar-se em AM é escolher preferencialmente uma pulsão que busca o
apoio atrás. Apoiar-se em baixo e atrás pode significar, por exemplo, que,
para avançar, essa tipologia parte das coisas adquiridas do passado, da sua
herança cultural e familiar. É uma construção feita em cima da solidez
daquilo que já se possui. Trata-se também de uma estrutura inclinada para
as esferas afetivas e sensoriais.
15
Centro Brasileiro de Cadeias Musculares e Técnicas GDS; Fascículo organizado por Ivaldo
Bertazzo e Lúcia C. Hahn com base no ICT- GDS de Bruxelas, Bélgica. A partir de agora, até o final
deste capítulo, quando a frase em forma de citação vier sem referência bibliográfica é porque foi
retirada desse fascículo que, a propósito, foi a base para a construção deste item.
iii.
As três atitudes do centro da figura são tensionadas muscularmente pela
impulsividade e sensibilidade, bem como pelo estado de receptividade.
Nessas formas de se equilibrar em pé, não há desequilíbrio nem para frente
nem para trás. PA-AP está no centro e se organiza sagitalmente: ou em um
formato simétrico ondulado e ondulante ou verticalmente retilíneo.
Neste caso, “as cadeias anterior (AM) e posterior (PM) ficam praticamente
em repouso e o tronco fica assim liberado”. Aqui, os grupos que seguem um
trajeto postero-anterior (PA) e antero-posterior (AP) ficam mais ativos. Esses
grupos localizam-se mais internamente, têm uma ação mais sutil do que os
das cadeias PM e AM e intervêm na postura ereta do corpo e na respiração.
As duas cadeias, quando isoladas têm dinamismos opostos: impulsão para
cima em PA; impulsão para baixo em AP. Todavia, quando AP está
associada a PA, “conserva uma potencialidade enorme de impulsão para
cima”.
Física e psiquicamente as duas estruturas reunidas são feitas para o salto,
para a impulsão. AP é a mola; reagrupa o corpo, que relaxa e desce para
melhor saltar. As duas estruturas PA e AP são orientadas por motivações e
escolhas que buscam ultrapassar-se, ir à procura do ideal, do absoluto, da
espiritualidade.
Acima foram descritos os três dinamismos fundamentais – as três formas
de equilíbrio do corpo em pé, examinado no plano sagital. Essas resultam em
quatro padrões posturais, presentes invariavelmente em todos nós, porém em
graus diferentes. Mme. Godelieve afirma que a saúde do sistema psicomotor
está associada, independente do padrão constitucional de cada um, à
capacidade de transitar, com fluidez, de uma atitude a outra.
A seguir, serão apresentadas mais duas formas de expressão, as quais
são mais visivelmente perceptíveis se examinadas no plano frontal. Essas duas
formas de equilíbrio vêm sempre associadas às estruturas fundamentais acima
descritas e refletem o modo relacional ou de comunicação com o meio ambiente.
Na primeira figura aqui apresentada, esses dois padrões comportamentais estão
expostos na porção inferior da página.
iv.
A atitude arqueada e literalmente desdobrada está associada a um padrão
comportamental particularmente extrovertido. Aqui, o corpo apresenta uma
larga base de sustentação. Os grupos musculares recrutados por essa forma
postural agem principalmente na altura dos quadris e dos ombros. “São
músculos abdutores e rotadores externos, cuja localização é posterior e
lateral nos quadris e nos ombros”. É daí que vem a denominação PL
(posterior-lateral).
v.
A atitude de recolhimento está associada a um padrão comportamental
particularmente introvertido. Aqui, a base de sustentação é estreita e o corpo
parece enrolado em torno de si próprio.
Nesta expressão corporal, os
músculos também estão ativos nos quadris e nos ombros. Todavia, são ao
contrário, músculos adutores e rotadores internos localizados anterior e
lateralmente na altura dos quadris e ombros. Essa cadeia denomina-se, em
sua abreviação, AL (anterior-lateral).
“Se o nosso PL extrovertido corre o risco de dispersão, as opções do AL vão
no sentido da redução dos centros de interesse, do aprofundamento e da
especialização”.
Um ponto de suma importância neste método é o de que de todas as
cadeias, quem garante o movimento – as transições de uma condição
comportamental a outra, as passagens de um dinamismo psicocorporal a outro –
é a AP. É AP quem garante a alternância dos contrários; é quem possibilita
vivenciar as polaridades do voar e aterrar na espiral da elevação.
Por suas atitudes, o corpo torna-se símbolo. PL proporciona a
IDA sem a volta. AL garante a VOLTA até o ponto de parada,
sem possibilitar a repartida. AP garante a ALTERNÂNCIA DOS
CONTRÁRIOS (Centre de Formation Philippe Campignion, 2009,
pg. 12).
Fonte: CAMPIGNION, Phillippe. Aspectos Biomecânicos: Cadeias Musculares e Articulares –
Método GDS. São Paulo: Summus Editora, 2003, pg.32. Ilustrações de Godelieve Denys-Struyf.
Fonte: DENYS-STRUYF, Godelieve. Cadeias Musculares e Articulares: o Método GDS. São
Paulo, Summus Editora, 1995, pg.22. Ilustrações de Godelieve Denys-Struyf.
4.3. Sobre as fontes de inspiração da autora – algumas breves
considerações
Espero que essa apresentação, bastante sumária, do método GDS e dos
tipos descritos por Struyf, tenha sido suficiente para expor o quão rica e
envolvente é sua formulação. Mas cabe perguntar, no final deste capítulo, onde
a autora foi buscar a inspiração para a organização de sua tipologia?
As atitudes posturais, que servem de base a nossa compreensão do
terreno das tendências e predisposições, foram definidas quando, nos anos 60,
Mme. Godelieve trabalhava em um serviço de reumatologia, especializado em
patologias vertebrais. Aí, passou a desenhar o retrato detalhado (frente, costas
e perfis) dos pacientes. Tendo observado e retratado milhares de indivíduos,
iniciou um “trabalho estatístico que buscava agrupar os pacientes que
apresentassem a mesma postura com o fim de estabelecer ligações entre tal tipo
de postura e as algias”.
A seguir, passou a definir os principais conjuntos
musculares organizadores de cada uma dessas atitudes, terminando por
encontrar seis cadeias de tensões musculares.
Vale notar, que essa iniciativa
deu seqüência a uma experiência anterior de quinze anos no campo da
antropometria, e como retratista de análise morfológica e psicológica das formas
(Campignion, 2003, pg.18).
Paralelamente a isso, seus interesses em estabelecer elos mais precisos
entre as pulsões psicocomportamentais e a postura, conduziram-na a estudar a
obra de filósofos e cientistas sociais, dentre os quais dois se destacaram em sua
trajetória de pesquisa: Claude Lévi-Strauss e Georges Dúmezil. O antropólogo
Lévi-Strauss e o filólogo Georges Dúmezil – ambos grandes estudiosos da
mitologia – foram suas principais referências ao longo dos processos de
verificação e de refinamento de sua tipologia.
Na verdade, o desenvolvimento e aprofundamento dos seis tipos de
pulsão psicocomportamental provêm da teoria de Dúmezil sobre a “estrutura
trifuncional” das sociedades indo-européias.
Segundo essa teoria, a
humanidade organiza-se em torno de três funções básicas: nutriz, guerreira e
sagrada.
A função nutriz (ou de fecundidade) privilegia a estabilidade e o
enraizamento; confere importância à segurança e à construção de uma família; e
persegue o bem estar, as tradições e as aquisições. A função guerreira “projeta
o homem à ação, ao trabalho”; privilegia a conquista de espaços nas diversas
áreas da vida; e busca o “saber e saber fazer”. A função sagrada (ou mágica)
está associada a “toda a simbologia que engloba, unifica e reconstrói o mundo,
dando-lhe uma noção de ideal”. Sua motivação subjacente é a busca da
essência do ser, a espiritualidade (Dúmezil, apud Valentin, 2009, pg.98-102).
Segundo Struyf, cada um dos dinamismos psicocomportamentais por ela
formulados representa uma dessas funções ou mitos fundadores.
Assim,
partindo da noção, de que o mito fundador é aquele que se encontra
invariavelmente em toda a história humana, Mme. Godelieve baseou-se nele
para colher daí três arquétipos; três expressões, três ideogramas e três palavras;
três estruturas, três linguagens e três denominações: AM, PM e PA-AP.
Posto isso, passo a tecer algumas considerações sobre os aspectos
chave da Abordagem Integrativa Transpessoal para, a seguir, colocar as duas
orientações face a face.
5. A Abordagem Integrativa
Transpessoal
5.1. Sobre a Autora
A Abordagem Integrativa Transpessoal foi criada e sistematizada por
Vera Saldanha, psicóloga brasileira e uma das mais importantes referências
atuais no campo da Psicologia Transpessoal.
A sistematização de seus
principais conceitos foi feita em sua tese de doutorado (Saldanha, 2006), após
ter trilhado um caminho de extensa e profunda aplicação dos postulados da
Psicologia Transpessoal nas áreas da saúde, educação e pesquisa.
A autora vem percorrendo o caminho da orientação transpessoal desde
1978, quando participou do IV Congresso de Psicologia Transpessoal. Aí, teve a
oportunidade de conhecer Pierre Weil e Stanislav Grof (influentes pensadores,
pesquisadores, educadores e terapeutas no campo da psicologia humanista e
transpessoal), tendo estabelecido, a partir de então, uma profunda amizade e
uma parceria intelectual bastante profícua com Pierre Weil.
Hoje, a frente da
Associação Luso-Brasileira de Transpessoal, ela coordena o Curso de PósGraduação Lato Sensu em Psicologia Transpessoal, pesquisando e ensinando a
Abordagem
Integrativa,
com
base
na
Didática
Transpessoal
por
ela
sistematizada.
5.2. O Corpo Teórico
Ao sistematizar os conceitos essenciais, a autora organizou-os em dois
aspectos básicos: o estrutural e o dinâmico. O aspecto dinâmico integra-se em
dois eixos: o eixo experiencial e o eixo evolutivo. A seguir, serão abordados
sumariamente cada um desses dois aspectos.
O “aspecto estrutural” é uma sistematização do “Corpo Teórico da
Psicologia Transpessoal”. Organiza-se em torno de cinco conceitos: conceito de
unidade, conceito de vida, conceito de ego, estados de consciência e cartografia
da consciência.
(1)
Conceito de Unidade.
O pressuposto básico da Transpessoal é o conceito de unidade: a unidade
fundamental do Ser ou a não fragmentação.
(2)
Conceito de Vida.
O entendimento de seu significado relaciona-se a uma dimensão atemporal.
“Tudo é vida, energia, formas diversas de existência, algo que não definimos
exatamente quando começou ou quando terminará. Vida é um pulsar
contínuo no qual nascer, morrer e renascer faz parte de um processo”
(ALUBRAT, Módulo 1, 2009, pg.12).
(3)
Conceito de Ego.
Tal como na psicanálise, o ego é necessário para operacionalizar a vida
cotidiana, sendo responsável pelo princípio secundário, ou princípio da
realidade. No entanto, é também um construto mental, ilusório, que separa o
espaço em duas partes: o eu e o outro. Para a Transpessoal, “a percepção do
ego não representa a totalidade das experiências humanas; em algumas
delas, essa instância psíquica precisa se dissolver circunstancialmente, a fim
de que o indivíduo se torne um com o tudo o que existe, sentindo seu ser
essencial, sua natureza de sabedoria e luz” (ALUBRAT, Módulo 1, 2009,
pg.13).
(4)
Estados de Consciência.
Os estados de consciência são o caminhar através das várias dimensões da
consciência. Na prática clínica e educacional é a forma pela qual se processa
o trabalho de orientação transpessoal e, em geral, é o que diferencia esta das
outras abordagens.
(5)
Cartografia da Consciência.
A cartografia da consciência indica e nomeia os diversos estados já
vivenciados. Em geral,
os autores [de orientação transpessoal] apontam três níveis ou dimensões
da consciência: um primeiro nível refere-se a conteúdos autobiográficos –
desde o nascimento até o momento atual da existência do indivíduo –; um
segundo diz respeito a conteúdos que abrangem as experiências intrauterinas, inclusive o nascimento; e um terceiro, que antecede o nível intrauterino e vai além da existência biológica (ALUBRAT, Módulo 1, 2009,
pg.19).
Os elementos do Corpo Teórico em uma compreensão dinâmica são “os
eixos experiencial e evolutivo”.
De acordo com o modelo de Saldanha, o eixo experiencial simboliza a
integração da Razão, Emoção, Intuição e Sensação (REIS). É representado por
uma linha horizontal sobre outra linha vertical, as quais se cruzam ao meio.
Para que possamos compreendê-lo é preciso que nos remetamos ao
modelo junguiano de tipologia.
Segundo Jung, o tipo psicológico do individuo determina sua maneira de se
relacionar com o mundo interior e exterior, as pessoas e as coisas; o que
ocorre por meio de uma atitude de extroversão ou introversão, relacionada
às funções do pensamento, sentimento, sensação e intuição. A atitude
refere-se ao movimento predominante da libido, ou seja, da energia
psíquica, na qual a extroversão indica a consciência do individuo voltada
para os objetos ou mundo externo, e a introversão, uma orientação para o
mundo interior da psique. As funções psíquicas são os recursos através dos
quais a consciência obtém orientação para a experiência e compõem, no
total, oito tipos de caráter, com distintos graus entre essas combinações de
atitudes e funções psíquicas, segundo Jung (ALUBRAT, Módulo 1, 2009,
pg.19).
Jung preconiza a existência de quatro funções psicológicas basais:
pensamento,
sentimento,
sensação e intuição.
Saldanha revisita
essa
proposição, formula um arranjo que melhor se adéqua a construção de seu
referencial teórico e cria o termo R.E.I.S.; ou seja, as iniciais das palavras razão,
emoção, intuição e sensação, que neste contexto, parecem ser mais estados ou
ânimos psicológicos do que as funções psíquicas de Jung.
A “razão” engloba as duas funções psíquicas de Jung: pensamento e
sentimento. Ambos indicam a inclinação ao julgamento: ou de idéias e de
conceitos (componentes da função pensamento), ou de atribuição de valor (o
gostar ou não gostar típico da função pensamento). A razão busca compreender
e organizar o mundo através da reflexão.
A “emoção”, segundo Jung, é o afeto: representa um ou mais complexos
ativados e é percebida como um “acontecimento”, pelo qual somos
simplesmente “possuídos”. Jung considerava a emoção não necessariamente
patológica, mas indesejável. No entanto, observa que “não há nenhuma
mudança, das trevas para a luz, ou da inércia para o movimento, sem a emoção”
(ALUBRAT, Módulo 1, 2009, pg.24). Na abordagem integrativa transpessoal, a
emoção é considerada uma componente chave do eixo experiencial por ser o
elemento desencadeador da ação e por trazer a energia necessária ao processo
de desenvolvimento psíquico.
A “intuição” é uma percepção clara, direta, autêntica e espontânea sem a
intercessão do raciocínio. Na orientação transpessoal, a intuição é concebida
como tendo sua origem no supraconsciente.
A “sensação” é a função dos sentidos (dos cinco órgãos dos sentidos).
Para Jung, a sensação – tal como a intuição – é uma função irracional e de
percepção, não apresentando em si, nenhuma reflexão ou julgamento.
A
orientação transpessoal resgata essa função, trazendo à tona o interesse pelo
corpo em ação e pela consciência do corpo em sua globalidade.
Na Abordagem Integrativa, as funções psíquicas, percebidas e definidas por
Jung, expressam-se, sobretudo como experiências ou processos psicológicos,
ou até estados de ânimo. Deixam de ser componentes de uma tipologia
psicológica e comportamental16, para se tornarem ingredientes da experiência e
desenvolvimento humanos.
Enfim, sobre a relação do eixo experiencial com o REIS, a autora afirma o
seguinte:
... a experienciação ou eixo experiencial promove a congruência entre a
razão, emoção, intuição e sensação, a qual leva a uma ampliação da
percepção da realidade e à manifestação natural do eixo evolutivo ou nível
superior da consciência, do qual emergem os valores positivos,
construtivos, inerentes ao ser humano. É a dimensão saudável,
transpessoal, aquela que vai através do pessoal, no relacional e mais além
(Saldanha, 2006, pg.135).
Eixo Evolutivo
Eixo experiencial
REIS
O favorecimento ao eixo experiencial é o primeiro passo para emergirem
aspectos mais profundos e integrá-los à consciência de vigília, o qual
permite uma expressão mais saudável da psique em uma preparação para
as fases seguintes (Saldanha, 2006, pg.138).
Tendo feito uma breve descrição do corpo teórico da Abordagem
Integrativa Transpessoal, interessa salientar que os parâmetros aqui focalizados
têm uma estreita relação com sua aplicação prática. Na verdade, o que se
16
Noto e relembro, contudo, que a formulação tipológica de Jung considera como absolutamente
relevante para o processo de individuação, a integração das quatro funções psíquicas (sensação,
pensamento, sentimento e intuição) associadas à extroversão ou introversão.
pretende é que o método terapêutico e educacional privilegie o aspecto vivencial
(tanto na clínica quanto na educação e organizações), por meio da ativação do
REIS e da atualização constante de um referencial teórico embasado nas
noções de “unidade”, “vida”, “ego”, “estados de consciência” e “cartografia da
consciência”.
5.3. Recursos
A partir da formulação do corpo teórico, Saldanha elaborou uma
classificação dos recursos transpessoais a serem aplicados no âmbito da saúde,
educação e organizações. Esses recursos ou forma de intervenção da
Abordagem Integrativa foram classificados em cinco grandes níveis:
Intervenção verbal
Imaginação ativa
Reorganização simbólica
Dinâmica interativa
Recursos auxiliares ou adjuntos
o Intervenção verbal - todo tipo de verbalização que facilite o estabelecimento da
relação entre educador-educando/terapeuta-paciente.
Busca-se aqui, o “encontro télico”; “a comunicação de co-inconsciente a coinconsciente, ampliando a percepção para além dos cinco sentidos, favorecendo a
tele” (Moreno, apud Saldanha, 2008, pg. 212, 213).
Busca-se o deixar fluir a
espontaneidade e propicia-se a presença do eixo experiencial, por meio da
mobilização das quatro funções psicológicas. A ativação do eixo experiencial irá
facilitar, por sua vez, a manifestação do eixo evolutivo.
o Imaginação ativa (ou ativada) - são exercícios que vêm da Psicologia Junguiana.
Trata-se do desenvolvimento de imagens e cenários mentais, aparentemente
aleatórios, “que possibilitam vivenciar experiências e, assim, colori-las com os
conteúdos do inconsciente” (Saldanha, 2008, pg.214).
o Reorganização simbólica – envolve a imaginação, mas vai além. “Essas
dinâmicas facilitam a organização de determinados conteúdos,
numa
seqüência lógica e adequada, seja no aspecto psíquico, temporal
ou
espacial” (Saldanha, 2008, pg.220).
No meu entender, a reorganização simbólica atua no sentido de
clarificar conteúdos manifestos durante a dinâmica (o que emerge, por exemplo,
como uma metáfora na imaginação ativa, pode vir a ser mais bem compreendido
na reorganização simbólica).
Utilizam-se, aqui, técnicas que envolvem as
práticas de visualização (como na imaginação ativa) e outras tais como as
dramatizações, as comunicações orais e as sensibilizações em geral.
o Dinâmica interativa – composta de sete etapas integrativas17: reconhecimento;
identificação;
desidentificação;
transmutação;
transformação;
elaboração;
integração.
Essas sete etapas são mobilizadas e sensibilizadas por meio de vários
recursos:
diálogos,
reorganização
grafismo,
simbólica,
dinâmicas
dramatizações,
corporais,
práticas
de
imaginação
ativa,
concentração
e
contemplação etc.
o Recursos auxiliares ou adjuntos – engloba recursos já existentes e não
exclusivos da Psicologia Transpessoal.
17
“...integrativas pois se interpenetram continuamente e repetem-se sucessivamente sempre que
uma nova aprendizagem está em curso” ( SALDANHA, 2008, pg. 224).
São recursos de autodesenvolvimento e de autoconhecimento tais
como:
meditação,
concentração,
contemplação
(importados
do
Yoga);
relaxamento, exercícios de consciência corporal etc.
Dentre os cinco recursos acima descritos, a “dinâmica interativa” assume
um papel especial, pois além de nomear a abordagem formulada por Saldanha,
pretende-se que esteja presente, regularmente, nas práticas e vivências
propostas nos trabalhos clínicos, educativos e organizacionais que tenham por
base os postulados teóricos da Psicologia Transpessoal.
Segundo a autora, a aproximação e integração do conhecimento podem
se dar através das etapas descritas a seguir, “quando vivenciadas e
experienciadas na inteireza do ser como conhecimento vivo e fértil” (Saldanha,
2006, pg. 162).
1)
Reconhecimento - uma primeira tomada de consciência de uma dada
situação. Momento de início de uma mobilização interna, “que pode ser
desencadeada por estímulos extrínsecos ou intrínsecos”.
Momento em que
ocorre uma pausa na motivação; um não agir decorrente do “desconhecimento
de algo novo” (Saldanha, 2008, pg. 225).
2)
Identificação – o indivíduo mergulha na situação, reconhece-a em si e
experimenta-a mentalmente com intensidade. As emoções, pensamentos e
sensações vêm à tona.
3)
Desidentificação – surge “o discernimento crítico, a análise, a reflexão
articulada em diferentes aspectos em relação à aplicabilidade” (Saldanha, 2008,
pg. 225,226). Etapa em que ocorre um distanciamento da situação, e em que o
indivíduo percebe os vários elementos distintos e opostos aí presentes. Note-se
que a partir dessa etapa, começa-se a vivenciar também o eixo evolutivo.
4)
Transmutação - “o conhecimento adquire significados pessoais”
(Saldanha, 2008, pg. 226). Etapa em que a razão, com seus julgamentos de
bom e mau, certo e errado, não é mais suficiente. Percebe-se que nada é
inteiramente bom, nada é inteiramente mau. Neste momento, emergem, com
ênfase, os atributos da percepção concreta e abstrata em sintonia (ou em
congruência) com a percepção de síntese, advinda da intuição.
5)
Transformação – “as vivências anteriores transformam-se em um novo
conhecimento estabelecido, introjetado” (Saldanha, 2008, pg. 227).
Neste
momento, ocorreu uma travessia, uma mudança (tudo parece indicar que essa
etapa seria um dos marcos mais importantes, talvez o definidor, de um “rito de
passagem” 18). Surge um novo referencial interno e externo para o indivíduo.
6)
Elaboração – o conhecimento da situação atinge uma maturidade por
meio de sua apreensão global e da percepção das possibilidades e articulações.
O estado mental é outro; a situação é outra. O sentido da experiência em seu
eixo experiencial e evolutivo é então revelado (Saldanha, 2008, pg. 227).
7)
Integração – o conhecimento adquirido integra-se a vida pessoal,
profissional, cotidiana do indivíduo. “Há um novo olhar e um novo fazer, seu
horizonte e suas perspectivas se ampliaram com a aquisição desses novos
conhecimentos os quais construíram o sentido de seu saber” (Saldanha, 2008,
pg. 227).
As sete fases da “dinâmica interativa” são mobilizadas através de um
nível imaginário experiencial, com base em diálogos, durante as vivências de
imaginação ativa; trabalhos corporais e sensoriais; grafismos; representação
simbólica e outros recursos terapêuticos e educacionais de orientação
18
Ritos realizados, originalmente, nas sociedades tribais. São práticas e celebrações intensas que
marcam o fim de uma etapa da vida e preparam para a que vem a seguir. Os mais conhecidos são os
da passagem da infância para a adolescência e da adolescência para a fase adulta.
transpessoal. “São de uma riqueza imensa e podem atingir insights de profundo
significado da aprendizagem”.
A constatação das sete etapas ocorreu ao longo da nossa prática em
psicologia e da observação em muitos trabalhos em transpessoal. São
etapas de uma técnica, a que denominamos interativa, e são também
etapas integrativas de um processo de desenvolvimento pessoal, estando
vinculadas às necessidades básicas da teoria da motivação, descrita por
Maslow, e relacionadas por Weil, aos sete centros do desenvolvimento
psíquico e transpessoal (Saldanha, 2006, pg. 161).
Eixo Evolutivo
Transmutação
Desidentificação
Transformação
Eixo Experiencial
Sentido da Experiência
Elaboração
Identificação
Reconhecimento
Integração
Eixo Evolutivo
Fonte: SALDANHA, V. Didática Transpessoal. Tese de Doutorado apresentada à UNICAMP
em 2006; pg. 164.
É importante notar que tudo o que tem sido aqui pontuado, conduz a um
tema que se sobressai como sendo o diferencial da Psicologia Transpessoal
com relação às outras abordagens. Trata-se do “princípio ou pulsão da
transcendência” que será abordado no item que se segue.
5.4 A Pulsão da Transcendência
Sabe-se que a Psicanálise sugere um modelo teórico do aparelho
psíquico, cujos modos de funcionamento foram denominados por Freud de
“processo primário” e de “processo secundário”.
O processo primário é regido pelo principio do prazer, indicando a pulsão
de vida e de morte. “Seriam as necessidades básicas de sobrevivência e
segurança de Maslow” (Saldanha, 2006, pg. 100).
O processo secundário é regido pelo principio da realidade. Desponta na
medida em que o psiquismo vai se desenvolvendo. Relaciona-se à estruturação
do ego, “o qual busca assegurar as satisfações de novas necessidades;
predominantemente, as necessidades de ser amado e de auto-estima”
(Saldanha, 2006, pg. 100).
Durante o processo de desenvolvimento de seu trabalho em Psicologia
Transpessoal, Saldanha observou que considerações feitas por Maslow como
“aspectos instintóides”
19
e por Weil, como “procura da unidade”, estabeleciam
uma correlação entre si, e “poderiam ser englobadas e ampliadas como um
referencial significativo do desenvolvimento humano, sob a denominação de
“princípio da transcendência”” (Saldanha, 2006, pg. 98).
Essa percepção
conduziu-a à formulação do conceito de processo terciário, o qual foi definido
como:
um conjunto de referenciais inerentes ao desenvolvimento do ser humano
que favorecem o despertar da dimensão espiritual, propiciando a
atualização experiencial de valores positivos, saudáveis, curativos, tanto
individual como coletivo, caracterizando um processo regido pelo princípio
da transcendência. O prefixo “trans”, como já esclarecemos anteriormente,
significa “através de” e “muito além de”. Assim, o que denominamos de
19
Para Maslow, a transcendência seria parte do princípio do prazer, sob o domínio do processo
primário; seria “instintóide”, segundo esse autor, ampliando o conceito original de Freud (Maslow,
apud Saldanha, 2006, p.99).
“principio da transcendência” indicaria um impulso em direção ao despertar
espiritual que perpassa a humanidade do ser, a própria pulsão de vida,
morte e para além delas. O “principio da transcendência” envolve a natureza
psicológica, descrita por Freud e ampliada por Maslow e por Weil
(Saldanha, 2006, pg. 98).
Na verdade, o desenvolvimento psíquico continua, podendo emergir, daí,
um novo processo regido pelo princípio da transcendência. O ego prossegue
então seu desenvolvimento; surgem novas necessidades, como as de autorealização ou auto-atualização; e as “metanecessidades do Ser e suas
metamotivações” passam a predominar (Saldanha, 2006, pg.99). 20
Retornando ao modelo teórico e procedimental proposto por Saldanha,
note-se que tanto o eixo experiencial (e evolutivo) quanto a dinâmica interativa
(ambos enriquecidos pelo aspecto estrutural do corpo teórico e pelos demais
recursos
de
orientação
transpessoal)
podem
conduzir
a
experiências
perpassadas tanto pelos processos primários e secundários quanto, sobretudo,
pelas pulsões de transcendência.
20
Afirmação da autora, com base em uma das proposições de Maslow.
6. O Corpo Transpessoal
O divino realiza-se em suas manifestações, inclusive nas do mundo físico.
“Deus não conhece Deus”, diz o poeta medieval Rumi. Para conhecer-Se,
Deus necessita manifestar-Se e experimentar todas as Suas
possibilidades, incluindo as naturais e históricas (Basso; Pustilnik, 2002,
pg. 56).
6.1. Introdução
Este capítulo busca iniciar um diálogo entre a Abordagem Integrativa
Transpessoal e o Método Cadeísta GDS. Trata-se de definir algumas formas de
aproximação, de comunicação entre duas abordagens: uma psicocorporal e
outra transpessoal. Por ser cabalmente previsível que este trabalho não irá
esgotar o assunto, cabe aqui traçar caminhos e definir indagações que
oportunizem e inaugurem uma relação, espera-se que profícua, entre essas
duas abordagens educacionais e terapêuticas.
6.2. Uma Definição
Segundo as várias tradições filosóficas – tanto ocidentais quanto orientais
– nosso corpo físico é reflexo de corpos mais sutis - corpos que se
interpenetram e que refletem a imagem divina do criador. Na Bhagavad Gitâ,
por exemplo, a alma humana é recoberta por três invólucros ou corpos – o do
espírito, da emoção e da matéria densa –, os quais devem estar sob o
comando da alma, na sua longa jornada de volta à casa de Brahman, o
Criador. A literatura ocidental, por sua vez, também se reporta a conexão do
corpo físico aos campos sutis - no Antigo Testamento, por exemplo, lê-se a
seguinte frase: “Deus disse: façamos o homem a nossa imagem como a
nossa semelhança” (Gênesis, 1,26).
Na visão teórico-prática da Psicologia Transpessoal – corroborada pela
herança cultural e filosófica dos mundos ocidental e oriental – sugere-se uma
compreensão tanto física quanto metafísica do corpo. Na verdade, concebese o corpo como sendo formado por campos que se dispõem em camadas
das mais densas as mais sutis.
Barbara Ann Brennan, fundamentada nas tradições espirituais da
humanidade, em investigações científicas passadas e contemporâneas e em
depoimentos de pessoas dotadas de clarividência, propõe a expressão
“Campo de Energia Humana (CEH)” para os anéis que envolvem nosso corpo
físico. Trata-se de:
um corpo ou campo de energia vital que forma a matriz dentro da qual
penetra o denso corpo físico. Essa matriz energética é o modelo básico
sobre o qual se afeiçoa e firma a matéria física dos tecidos, que só existem
como tais por força do campo vital que os sustenta (Brennan, 2005, pg. 57).
De acordo com definição da autora, o Campo da Energia Humana, seria
então, o conjunto de “todos os campos ou emanações do corpo humano”
(Brennan, 2005, pg. 60).
Em extensão a esse campo, há o que a autora denomina de “Campo de
Energia Universal (CEU)”.
O Campo de Energia Universal impregna todo o espaço, os objetos
animados e inanimados, e liga todos eles uns aos outros; flui de um objeto
para outro; e sua densidade varia na razão inversa da distância da sua
origem... O campo está organizado numa série de pontos geométricos,
pontos de luz pulsantes isolados, espirais, teias de linhas, faíscas e nuvens.
Pulsa e pode ser sentido pelo toque, pelo gosto, pelo cheiro e com um som
e uma luminosidade perceptíveis aos sentidos mais elevados... Tem um
efeito organizador sobre a matéria e constrói formas. Parece existir em mais
de três dimensões. Quaisquer mudanças que ocorrem no mundo material
são precedidas de mudança nesse campo. O CEU está sempre associado a
alguma forma de consciência, que vai desde a mais altamente desenvolvida
até a mais primitiva (Brennan, 2005, pg. 665-66).
O Campo da Energia Humana seria, assim, a manifestação do Campo da
Energia Universal quando este se encontra intimamente envolvido com a vida
humana. Tanto pesquisadores quanto pessoas dotadas de clarividência,
como é o caso de Bremann, observam várias camadas que se interpenetram
em camadas sucessivas. Essas camadas – o campo da energia humana –
são chamadas, às vezes, de corpos e mais comumente de aura.
Existem inúmeros esquemas bem fundamentados sobre a aura humana,
encontrando-se nas correntes filosóficas do hinduísmo alguns dos mais
completos e sofisticados. Aqui, o foco dirige-se apenas à proposição de
Bremann. Pois, tudo indica que sua postura investigativa é plenamente
fidedigna, tanto do ponto de vista teórico quanto vivencial, além de ser
nitidamente tributária das tradições mais próximas da cultura ocidental
contemporânea21. Com efeito, não há nenhuma intenção em contrapor vários
esquemas entre si, mas expor brevemente uma visão e interpretação dos
campos energéticos que nos circundam para melhor fundamentar uma
definição de “corpo transpessoal”.
Bremann observou, no decorrer de seu trabalho como pesquisadora e
curadora, a existência de sete camadas (ou corpos) ao redor do corpo físico.
Enfatizou que, embora percebamos os corpos como camadas, esses “são
antes uma versão mais dilatada do nosso eu, o qual carrega dentro de si as
outras formas, mais limitadas”.
Do ponto de vista do cientista, cada camada pode ser considerada um nível
de vibrações mais elevadas, que ocupa o mesmo espaço dos níveis de
vibração inferiores e se estende além deles. Visando perceber cada nível
consecutivo, o observador terá de se mover, com a consciência, para cada
novo nível de freqüência. Temos, assim, sete corpos que ocupam todos o
mesmo espaço ao mesmo tempo, cada qual se estendendo para fora além
do último... As camadas estruturadas contêm todas as formas que o corpo
físico possui, incluindo os órgãos internos, os vasos sanguíneos, etc. e
formas adicionais que o corpo físico não contem. Um fluxo vertical de
energia pulsa para cima e para baixo do campo da medula espinhal.
Estende-se para fora, além do corpo físico, acima da cabeça e abaixo do
cóccix. Chamo-lhe corrente principal de força vertical. Existem, no campo,
vórtices turbilhonantes, em forma de cones, chamados chakras.
Suas
pontas apontam para a corrente principal de força vertical e suas
extremidades abertas estendem-se para a borda de cada camada do campo
em que estão localizados (Brennan, 2005, pg. 69-70).
Nossa anatomia sutil, de forma bastante sintética e esquemática, é
composta, portanto, por camadas de energia que se interpenetram entre si;
por um fluxo vertical de energia no eixo correspondente à coluna vertebral; e
21
Note-se, todavia, que todos os esquemas da anatomia sutil do ser humano, dos mais remotos aos
mais contemporâneos, baseiam-se, particularmente, nas descobertas e revelações feitas pelos
representantes da sabedoria milenar da Índia e também nas tradições posteriores tais como o
Taoísmo e a Cabala entre outras.
por vórtices energéticos dispostos em vários pontos do corpo; os principais
alinhados ao longo do fluxo vertical de energia. 22
As sete camadas ou corpos, tal como sistematizado e observado por
Bremann, são os seguintes: corpo etérico, corpo emocional, corpo mental (em
seu aspecto inferior), corpo astral, corpo etérico (em seu aspecto superior),
corpo celestial (o emocional em seu aspecto superior) e corpo ketérico (o
mental em seu aspecto superior).
Na figura apresentada a seguir, aparecem os sete corpos, bem como os
sete chakras e suas correspondências com cada um dos corpos.
Note-se que o corpo físico mais os três corpos inferiores (o plano físico)
estão evidentemente associados à personalidade, enquanto os superiores (o
plano espiritual) à transpessoalidade. Se nos reportarmos à cartografia da
consciência apresentada por Saldanha, diríamos que os primeiros localizamse nas “regiões pessoais da consciência” e os superiores, nas “regiões
transpessoais da consciência” (Saldanha, 2008, pg. 181).
A segunda figura apresentada a seguir é uma outra representação de
nossos corpos e está exposta aqui também a título de ilustração.
22
Para aprofundar esse tema, consulte entre outros e além do livro de Bremann, já citado: JUNG,
C.G. The Psychology of Kundalini Yoga, Princeton University Press, 1999; e AVALON, A. The
Serpent Power, New York, Dover Publications, 1974.
O sistema de sete camadas do corpo áurico
(diagnóstico por imagem)
Fonte: BREMANN, B.A. Mãos de Luz. São Paulo, Ed. Pensamento, pg.75
Fonte: BASSO, T. e PUSTILNIK, A. Corporificando a Consciência.São Paulo, Instituto
Cultural Dinâmica Energética do Psiquismo, 2002; pg. 22. “Figura inspirada no livro Psicologia da
Alma, de Joshua David Stone.”
O que é então o corpo transpessoal? Em meu entender é o conjunto de
todos esses corpos; são os nossos vários corpos: do mais denso ao mais sutil. É
o corpo físico perpassado pelo campo vibratório que o atravessa e o ultrapassa.
Mas não basta reconhecê-lo. É preciso intuí-lo, tocá-lo, senti-lo. É preciso
interagir com o campo para que possamos vivenciar, atualizar e acolher esse
corpo em nossa vida. Do contrário, do que adiantariam as nossas investigações,
descobertas e revelações?
Nada, pois continuaríamos aprisionados na
dimensão física e egóica de nosso ser.
Como, então, se relacionar com esse corpo?
Para responder a essa questão convoco novamente, colocando agora
face a face, duas autoras comprometidas com a inteireza do ser e a busca do
ser essencial: Godelieve Denys-Struyf e Vera Saldanha. E a pergunta que cabe
aqui é a seguinte: como associar o Método GDS à Abordagem Integrativa
Transpessoal (AIT)?
6.3. Um diálogo entre GDS e AIT
Como interagir com o corpo transpessoal, construindo uma ponte entre
GDS e AIT?
Em primeiro lugar, cabe enfatizar que as constatações empíricas
decorrentes da aplicação do método GDS conduziram-me a buscar o
aprofundamento das relações entre a mente e o corpo. Nesse rumo, as reflexões
e vivências propiciadas pelo Curso de Psicologia Transpessoal (bem como pelos
estudos anteriores das idéias de Jung) apontaram para a possibilidade da
transformação do corpo a partir da psique, mas também da alteração da psique
a partir do corpo.
Em um estudo de caso, um tanto pioneiro na área, a autora, Maria
Eduarda Buarque, estabelece conexões esclarecedoras entre um método de
abordagem corporal (o Método Rolf de Integração Estrutural) e o enfoque
psicológico de Jung. Logo no início, a autora faz uma afirmação que condiz
perfeitamente com os resultados de minha prática com o Método GDS. Ela
constatou que:
ao trazer mais espaço para o corpo, ao liberar tensões, ao permitir que o
corpo caminhasse para uma estrutura mais eficiente em torno da Linha, não
era só o corpo que mudava, mas todo o indivíduo caminhava para um grau
mais profundo de conexão consigo mesmo; ao integrar as estruturas
corporais, o homem psicológico também era afetado (Buarque, 2009, pg.
13).
Com efeito, o corpo afeta a mente. Mas a experiência vivida na e a partir
da Abordagem Transpessoal mostrou que o corpo também afeta a alma. Pois se
nosso corpo é o conjunto de vários corpos dos mais densos aos mais sutis,
parece bastante plausível afirmar que o entrelaçamento dos corpos (no mínimo
os inferiores) produz um campo vibracional interconectado onde uma faixa de
onda afeta necessariamente a outra.
É um fato constatado que quando
consumimos alimentos mais leves, puros e “in natura”; quando praticamos
exercícios físicos com prazer; e quando desenvolvemos hábitos saudáveis de
higiene organizamos e iluminamos o campo sutil a nossa volta, ficamos menos
propensos às doenças e aos processos precoces de envelhecimento, e nos
abrimos à recepção de vibrações mais sutis (ver Brennan entre outros, 2005, pg.
349 e ss.).
Em segundo lugar, cabe notar que para construir uma ponte entre esses
dois métodos seria necessário precisar os pontos de contato entre eles. E nesse
ponto, vale enfatizar que ambas as autoras – Struyf e Saldanha – pontuam a
importância dos processos de integração; a existência de centros ou forças
organizadoras; e a busca do ser essencial.
Ocupadas antes com a saúde do que com a doença, Mme. Struyf e Dra.
Saldanha perseguem a trilha do ser humano que evolui na direção da
completude.
Para Struyf, trata-se de reconhecer e ordenar os pólos e circuitos
biomecânicos de tensão muscular em uma força integrada e harmônica; de
buscar o centro básico de equilíbrio que ao nos conectar com a força gravitaria
nos impulsiona, em movimentos espiralados, para cima; e de compreender a
linguagem falada pelo corpo para ir de encontro a nossa própria individualidade:
aquilo que faz ser, cada um de nós, um ser único e verdadeiro.
Para Saldanha, trata-se de integrar os opostos num processo terapêutico
e/ou educacional que se inicia no reconhecimento de si e que se completa na
integração de si; de buscar o centro organizador no “observador interno” ou na
supra consciência; e de resgatar o Ser Essencial que habita no centro de cada
um de nós.
Os pontos de contato entre o método psicocorporal de Struyf e a
abordagem transpessoal de Saldanha culminam em dois processos vitais em
ambos os enfoques. É neste ponto que mais se evidencia o pressuposto básico
das duas abordagens: a possibilidade e tendência evolutiva da espécie humana.
Para Struyf, quando no corpo (e na psique) as duas estruturas
psicocorporais mais comprometidas com o eixo vertical (PA e AP) se integram independentemente da estrutura de base de um indivíduo – o arquétipo da
Função Mágica entra em cena. PA simboliza a função sagrada e AP a energia
vital, fluida e brincalhona. A celebração de sua união representa a criação do
casal arquetípico; símbolo de equilíbrio e harmonia e aparece graficamente
exposta na figura apresentada a seguir.
Fonte: Centre de Formation Philippe Campignion. Cadeias Musculares e Articulares
GDS. Texto apostilado de um dos módulos de curso de formação oferecido em São Paulo: Ciclo
III: Aspectos Psico-Comportamentais, 2009, pg. 17.
Quando PA encontra sua rainha, a magia acontece. AP simboliza a espiral
que serpenteia ao redor de um eixo vertical, garantia da maleabilidade, da
habilidade e da inteligência das adaptações que preservam as palpitações
da vida. Ela é esta energia; a vida dispensada e gasta sem fazer cálculos,
sempre renovada... PA cresce ereta, de pé, vertical entre céu e terra... PA
permanece no fluxo e refluxo, nos redemoinhos e tempestades; um farol
que garante a segurança; um farol que por sua presença imutável é a
referência. Juntos, PA e AP são símbolos de equilíbrio. O equilíbrio na
complementaridade dos contrários; o milagre dos opostos, realizando o
equilíbrio através da interação recíproca. No centro dessa harmonia, o gesto
também se torna mágico;... torna-se um ato criador.
O gesto opera maravilhas... Esse gesto que cria e que brinca é símbolo
divino. É também o gesto que cura. E o gesto que cura são todos aqueles
que realizam o inexplicável e todos aqueles mil pequenos milagres do
cotidiano. Em nossos gestos existe algo que “gira redondo”, que se
movimenta bem, que nos convém e que não tem erro (Centre de Formation
Philippe Campignion, 2009, pg.48-49).
O gesto que gira redondo, o gesto consciente e organizado, o gesto
resultante da união sagrada entre o feminino e o masculino é o gesto que cura.
Mas é também o gesto que nos faz transcender.
Na mesma trilha de Struyf, Saldanha sugere a aliança nupcial arquetípica
do eixo vertical (símbolo da masculinidade e da força guerreira) aos fluidos e
feixes nervosos que percorrem o eixo vertebral (a medula espinhal; símbolo da
feminilidade, e do movimento com troca e sinuosidade). O encontro dos dois
estaria selando a espiral do desenvolvimento da Consciência em direção ao Ser
Essencial. E, aqui, o trabalho de alinhamento e desbloqueio da coluna vertebral
e dos centros energéticos estaria em pauta para possibilitar a fruição livre da
energia na medula espinhal, no corpo físico e nos corpos sutis. 23
O casal arquetípico representa a união da energia masculina com a
energia feminina. A aliança PA-AP é o Corpo Transpessoal; é a essência do Ser.
O segundo processo que sela e coroa a aliança entre as duas
abordagens é a idéia da ampliação do contato consciente com o corpo como um
meio de possibilitar a expansão da consciência.
Através do corpo vivenciamos [ou podemos vivenciar] nossa Consciência no
aqui e no agora, tendo a coluna vertebral como eixo de nosso corpo;...
como nosso eixo de sustentação na vida” (Basso; Pustilnik, 2002, pg. 115).
23
Sobre esse tema existe uma bibliografia vastíssima: na literatura yóguica e, em especial, na literatura
tântrica; nos textos esotéricos; e em pesquisas científicas contemporâneas.
O corpo é a via régia que nos conduz ao inconsciente.
O corpo é a via régia que nos conduz à Consciência.
As tomadas de consciência do próprio corpo e do que está acontecendo
com ele constituem o portal, por excelência, de contato com o si próprio,
presente tanto nos corpos mais densos quanto nos mais sutis.
Aí estão
depositadas todas as nossas memórias e experiências do passado, do presente
e do futuro.
Tomar consciência do próprio corpo – relacionar-se com o corpo
transpessoal – é, portanto, escutar, sentir, dialogar, interagir com uma
inteligência profunda, nossos “parceiros internos” (Café; Lapin, 2007), tornandoa o nosso próprio oráculo.
6.4. Uma aliança entre GDS e AIT
Como interagir com o corpo transpessoal, acionando os recursos
proporcionados pela aliança entre essas duas abordagens? Como mobilizar este
corpo tornando-o um oráculo?
Note que o corpo não sinaliza apenas o quão saudáveis somos em
nossos aspectos físico, mental e psíquico. Ele é também capaz de decifrar as
mensagens que a Vida nos transmite. Basta querer; basta deixar a inteligência,
presente em nosso corpo, desempenhar a sua capacidade de cura.
Basta
deixar que o corpo, para além de ser curado, torne-se também um curador de si
próprio.
Na introdução do livro de Basso e Pustilnik, há uma afirmação que se
encaixa bem a essa argumentação. As autoras preconizam que a essência do
ser pode ser reencontrada através de processos e ações voltadas para a
reorganização do sistema nervoso; para o alinhamento dos campos e vórtices
energéticos; e para o realinhamento de nossa atualidade corporal “à pulsação de
esferas cada vez mais sutis e abrangentes, até a inefável presença do Ser, a
Consciência Original, tornando-nos um canal de luz coerente, potente e
integrado”.
Quando o ego se entrega ao propósito do Ser, o indivíduo se transforma
numa “espécie de supercondutor”, de resistência quase nula, que
retransmite toda a presença da Consciência que ele pode suportar, sem
distorções (Basso; Pustilnik, 2002, pg. 11).
Para Struyf, ao decifrarmos e refinarmos a linguagem de nossos gestos e
atitudes – buscando, ao mesmo tempo, desbloquear as cadeias musculares e
articulares e harmonizar os circuitos de força que percorrem e organizam nossos
corpos – vamos sendo conduzidos para a descoberta e realização de um
“projeto”. Pois está ao nosso alcance realizarmo-nos como individualidade e
diferenciarmo-nos do outro a partir dos componentes de base presentes em
cada um.
Se estivermos de acordo com o pensamento de Jung, o qual afirma que
não nascemos como uma tabula rasa, mas repletos de conteúdos do
inconsciente coletivo, fica fácil entender que o desabrochar consciente dos
dinamismos psicocorporais próprios de cada um (os inatos e os adquiridos) pode
indicar, se bem trabalhados, o caminho para o reconhecimento e realização de
nosso propósito de vida perante as idiossincrasias do próprio padrão
psicocorporal de cada um.
E então, quando o corpo, em seu dinamismo, tendências, capacidades e
predisposições, se recorda do propósito a que veio “transforma-se em uma
espécie de supercondutor, de resistência quase nula,” de seu ser essencial.
De acordo com Struyf, é preciso conscientizar o corpo para que o espírito
governe as funções e as estruturas desse corpo. O que verdadeiramente importa
é restaurar uma expressão corporal que seja uma livre expressão de si próprio.
Aquela que, a partir do interior, utiliza as cadeias musculares (ou conjuntos
musculares) sem aprisionar o ser.
No Método GDS, o caminho em direção ao ser essencial é o da
recordação do propósito de vida, com suas atitudes, gestual e expressão
próprios; é o da conexão consigo mesmo em um grau mais profundo.
Na
Psicologia Transpessoal, o caminho rumo ao Ser Essencial é um processo de
recordação e de busca em que “o indivíduo vai-se tornando capaz de sustentar
mais e mais a expressão da Consciência em níveis cada vez mais sutis” (Basso;
Pustilnik, 2002, pg. 18).
Fazer o caminho em busca do Ser Essencial, manifestando em si a
Consciência, é o “caminho do herói”; o caminho que nos conduz ao Si Mesmo.
A aliança entre o Método GDS e a Abordagem Integrativa Transpessoal
pode ser uma das chaves do portal que nos conduz a esse caminho. Pois a
instituição do casamento dessas duas abordagens tende a oportunizar a
mobilização da expressão corporal como meio privilegiado de ampliação da
consciência; e como um canal de contato com o si próprio presente tanto nos
corpos mais densos quanto nos mais sutis.
Quais, então, os procedimentos necessários para acionar os recursos
advindos do entrelaçamento desses dois caminhos terapêuticos e educacionais?
Em primeiro lugar, cabe mencionar que o cenário montado deve
comportar tanto os recursos adequados ao bem estar físico do indivíduo quanto
os que possibilitem processos gradativos de tomadas de consciência da própria
imagem corporal, da linguagem dita e escrita por este corpo e das mensagens
sussurradas pelo corpo transpessoal.
Os procedimentos do GDS ocorrem predominantemente da seguinte
forma: a) através das anamneses iniciais e periódicas com base na estrutura
corporal e no padrão gestual do indivíduo; e b) através de gestos estruturantes,
movimentos e manobras corporais.
Nas anamneses busca-se retratar o indivíduo em sua estrutura
psicocorporal e padrão gestual próprios, por meio de observações, intervenção
verbal, toques e movimentos. Essas informações permitem, ao terapeutaeducador, montar uma estratégia de tratamento a ser periodicamente reavaliada.
As
demais
seções
ocorrem
através
de
manipulações,
gestos
estruturantes e movimentos funcionais, onde se busca conquistar volumes
internos e ampliar espaços articulares visando à organização justa das tensões
musculares e à reeducação gestual e motora. O trajeto perseguido é o da
ampliação da consciência corporal; o da tomada de consciência do padrão
psicocorporal de cada um; e o da reorganização das estruturas corporais em
torno de uma verticalidade que evolui em movimentos espiralados24.
24
Sobre o equilíbrio psicomotor em torno da interação bio-mecânica de forças opostas e de tensões
transmitidas e transportadas, consultar o sofisticado trabalho de Piret e Béziers (1992), onde se
revela uma descrição precisa do percurso do movimento humano.
Note que esses e os demais procedimentos podem ser aplicados tanto
em seções terapêuticas individuais quanto em grupos, bastando realizar alguns
arranjos que possibilitem com que o papel de terapeuta seja substituído pelo de
educador.
No GDS nos diferenciamos e evoluímos – nos integramos – ao liberar a
nossa expressão criativa; ao vivenciar conscientemente nossos corpos; e ao
reconhecer o projeto singular de cada um por meio de uma conexão mais
profunda com nossos dinamismos psicocorporais. No GDS é através do olhar
atento do terapeuta, em sua leitura postural e gestual; e do processo de
conquistar volumes internos, de organizar e direcionar as tensões, que o corpo
caminha em direção ao equilíbrio – a interação “justa” entre a força que nos atrai
para baixo e a que a partir da terra nos faz transcender.
Na
AIT
caminhamos
em
direção
a
diferenciação,
evolução
e
transcendência por meio da integração dos estados psicológicos (razão,
emoção, intuição e sensação – REIS) e do percurso consciente no eixo
evolutivo. Nesta abordagem, a atuação do Si Mesmo pode ser revelada e
oportunizada por nosso posicionamento nos eixos integradores de nosso ser – o
experiencial e o evolutivo –; e pela mobilização dos recursos facilitadores desse
percurso – a intervenção verbal, as imagens e manifestações simbólicas, a
expressão corporal e, em particular, a dinâmica interativa. Neste contexto,
propõe-se que a fala; as práticas corporais, respiratórias e de imaginação ativa;
e as produções gráficas e escritas sejam organizadas em torno das sete etapas
integrativas: reconhecimento, identificação, desidentificação, transmutação,
transformação, elaboração e integração. Busca-se aqui, não apenas uma
projeção da personalidade daquele que se submete a esses procedimentos, mas
um processo de resgate de si próprio e de recordação de quem realmente
somos.
A vivência empírica do casamento dessas duas abordagens pode ser feita
em encontros onde se alterne o GDS e a AIT, ou por meio de uma superposição
dos dois processos em cada encontro.
Em ambos os casos, contudo, as anamneses feitas com base na tipologia
do Método GDS poderiam ser bastante promissoras tanto no início quanto em
momentos chave do processo.
De outro lado, os padrões psicocorporais verificados e reconhecidos nas
anamneses podem guardar uma forte relação com as sete fases integrativas. De
fato, quando ficamos congelados, enrijecidos, “encadeados” em um padrão
psicocorporal, não estaríamos tão identificados com ele a ponto de perdermos a
nossa própria autonomia como seres criativos e evolutivos? Não seria profícuo
buscar a ativação do “observador interno” para que, distanciados da situação
(desidentificados), pudéssemos resgatar nossa capacidade de discernimento e
de reflexão crítica? E a partir daí, percorrer as etapas seguintes da dinâmica
interativa buscando a integração dos opostos e a retomada do processo de
desenvolvimento pessoal?
Por fim, que vivências corporais, coerentes com os postulados da
Abordagem Integrativa Transpessoal, poderiam estar sendo elaboradas para
facilitar o processo integrativo, exemplificado no parágrafo anterior? Cabe
adiantar que seriam práticas corporais que partam do chão, como nossa
plataforma de lançamento, e que vivenciem as polaridades do eixo vertical na
espiral da elevação.
O desenvolvimento desses procedimentos será, contudo, o tema da
exploração e investigação previstas para a próxima etapa do trabalho.
7. Conclusão – Meu Corpo Meu
Oráculo 25
Pelo seu aspecto se conhece o homem
e pelo semblante se conhece o homem sensato.
A veste de um homem, seu sorriso
e o seu andar revelam o que ele é (Eclesiástico; 19,30).
O objetivo principal deste estudo foi o de propor uma forma de
aprofundamento da relação entre corpo e psique, por meio da aliança entre o
Método GDS e a Abordagem Integrativa Transpessoal.
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Oráculos eram os locais onde as pessoas buscavam respostas divinas acerca do futuro. É também
o nome dado a respostas de deuses decifradas pelos sacerdotes. Definição retirada do seguinte site:
www.redepsi.com.br.
Imbuída dessa idéia, realizei uma revisão bibliográfica buscando
entrelaçar dois métodos de fundo terapêutico e educacional. A intenção era a de
iniciar a construção de uma base de sustentação para a coexistência de duas
abordagens que, no meu entender, são complementares: uma transpessoal, a
outra psicocorporal e ambas integrativas. Observo, com satisfação, que a
primeira aproximação foi feita; cabe a partir de agora, enriquecer a reflexão
teórica com a ação concreta. E o melhor desdobramento do esforço analítico
aqui feito parece ser o desenvolvimento de um estudo de caso, o que pretendo
realizar na próxima etapa deste trabalho.
Nesta investigação, foram definidos como pontos de apoio para alcançar
a meta almejada, três situações que, juntas compuseram um mosaico: 1) a
ordenação do diálogo entre as duas abordagens; 2) a construção de uma noção
de “corpo transpessoal”; e 3) a fundamentação de séries de vivências corporais
coerentes com os postulados da Abordagem Integrativa Transpessoal.
Noto que o diálogo entre as duas abordagens ocorreu a partir da
apresentação dos pilares centrais de cada uma delas e por intermédio da ênfase
no que seriam seus pontos de contato. A construção de uma noção de corpo
transpessoal despontou espontaneamente da interação entre os dois métodos. E
as séries de vivências corporais – aqui fundamentadas teoricamente – devem
brotar do trabalho analítico e prático que pretendo desenvolver na fase seguinte
desta investigação (o estudo de caso).
Uma questão norteou e atravessou todo o trabalho: a de que nosso corpo
é o nosso próprio oráculo; basta saber decifrá-lo.
Foi esse o tema que, ao perpassar todo o processo investigativo, me
levou a revisitar cada um dos autores aqui destacados, buscando recolher, de
cada um deles, o que seriam suas contribuições para um trabalho cuja proposta
central é a de interagir com o corpo em seu aspecto psicomotor, psicológico e
transpessoal. Minhas observações não são conclusivas. Pelo contrário, estarei
elaborando uma síntese do que foi exposto até aqui e, ao mesmo tempo,
pontuando a questão que continuará sendo a norteadora da próxima fase do
trabalho.
Na fisioterapia o que interessa é o corpo material, visto e palpável. Na
psicoterapia o que importa não é o corpo material, mas a imagem que cada um
tem de seu corpo.
Neste contexto, o corpo que interessa é o corpo
eminentemente relacional: o corpo que se relaciona consigo próprio e com o
mundo a sua volta.
Nasio, o primeiro autor considerado neste texto, traz a noção de que a
imagem que temos de nosso corpo compõe o nosso repertório lingüístico; é a
linguagem que utilizamos para nos comunicarmos com o mundo e com nós
mesmos. Mas para que ela seja decifrada, é preciso a intercessão do
psicanalista, o qual buscará reconhecer a imagem mental que o paciente tem de
seu próprio corpo, capacitando-se, assim, a falar-lhe em uma linguagem
minimamente compreensível. A busca de recursos, que possibilitem o mergulho
intuitivo do terapeuta no corpo imagético do indivíduo em tratamento, poderia ser
de extrema valia no processo terapêutico.
Jung, de outro lado, preconiza a utilização do mito e das expressões
simbólicas como recursos terapêuticos e traz a noção de arquétipo que, quando
referenciada às funções psicológicas e comportamentais, poderiam estar sendo
associadas aos tipos psicocomportamentais formulados por Struyf de uma forma
bastante profícua.
Leloup, por sua vez, convida-nos a escutar nossos corpos. E remete-nos
à capacidade, em potencial, de nos disponibilizarmos a captar o que nossa
sabedoria interior tem a nos transmitir.
O Método GDS traz a visão arquetípica do corpo e do movimento e a
vivência corporal das polaridades. A Psicologia Transpessoal preconiza a
possibilidade de integração dos opostos psíquicos no eixo da espiral evolutiva e
traz a urgência do reconhecimento da pulsão da transcendência como um dos
princípios organizadores de nossas vidas. Juntos – o Método GDS e a
Abordagem Integrativa – emergem como uma orientação plena de recursos para
que amplifiquemos nossa consciência a partir das sensações corporais, e para
que entremos em contato com as diferentes dimensões de nosso Ser. Para
que? Para que nos tornemos os nossos próprios oráculos!
Como? De acordo com o GDS, perseguindo/recordando os nossos
propósitos de vida por meio da expansão da consciência corporal e psicomotora.
Segundo a AIT, buscando o contato com nossos parceiros internos por meio de
vivências que:
1. oportunizem a mobilização do eixo experiencial – através da
ativação dos quatro estados psicológicos (razão, emoção, intuição
e sensação – REIS ); e
2. revelem o eixo evolutivo em suas sete etapas integrativas
(Reconhecimento,
Identificação,
Desidentificação,
Elaboração,
Transformação, Transmutação e Integração).
Acredito que a interação com as realidades mais sutis possa ocorrer,
também e, sobretudo através do corpo, das sensações corporais; e que no
processo de estabelecimento desse contato, o corpo vá se tornando cada vez
mais o nosso próprio oráculo.
Acredito também que a proposta aqui esboçada e a prática daí decorrente
possam vir a ser um campo privilegiado de reorganização e de tomada de
consciência do corpo no caminho da apropriação e reelaboração da imagem
corporal. Com efeito, no decorrer do processo de ampliação da consciência
corporal e de ativação dos eixos experiencial e evolutivo, a interação do GDS
com a AIT aponta para o desabrochar de um corpo capaz de se expandir e de
integrar a multidimensionalidade do Ser. Ao abarcar as dimensões física,
psíquica e sutil, é o corpo transpessoal que desponta e se revela.
Acredito enfim, que o diálogo aqui iniciado tenha servido como uma boa
fundamentação para, na etapa seguinte desse trabalho, formular vivências
baseadas no entrelaçamento das práticas psicocorporais desenvolvidas pelo
GDS e das vivências integrativas propostas pela AIT.
Façamos com que nossos corpos, além de serem curados, transformemse em curadores de si próprios; nossos próprios oráculos!
Concluo o trabalho com uma citação de Sara Marriot.
Compreendi, então, que o nosso corpo é como uma lâmpada: estruturado
de maneira perfeita e orgânica para receber a magnífica Energia
Eletromagnética do Espírito: nossa Realidade eterna e irradiante. Essa
energia traz a sabedoria, a alegria, a segurança interior, a felicidade e o
calor de um amor que cura. Como seres espirituais, a nossa Realidade é
essa energia eletromagnética maravilhosa. Estamos atuando e existindo,
simultaneamente, em diferentes níveis de consciência, eternamente
conectados à Fonte de toda Criação sem jamais, em tempo algum, nos
separarmos dela (Marriot, apud Café; Lapin, 2007, pg.7).
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