_________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil VIGOTSKI E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NA ESCOLA – A RELAÇÃO ENTRE OS “CONCEITOS ESPONTÂNEOS” E “CIENTÍFICOS” PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO INFANTIL Ana Maria Dias Galvão1 Resumo: Discute a importância da realidade do educando na prática pedagógica e dos conhecimentos infantis no processo de aquisição dos conhecimentos científicos. Faz uso das idéias de Vigotski sobre a evolução dos conceitos e a reciprocidade entre conhecimentos espontâneos e científicos para a apropriação de saberes e o desenvolvimento das capacidades cognitivas infantis. Aponta demandas para a ação docente e a intencionalidade da prática pedagógica. Palavras-chave: Vigotski; prática pedagógica; conceitos infantis; linguagem; construção do conhecimento. Abstract: It discusses the importance of the student’s reality in the pedagogic’s experience and the children knowledge in the process of scientific knowledge acquisition. The article uses Vigotski’s ideas about the concepts’ evolution and the reciprocity between the spontaneous and scientific knowledge to appropriation of lores and the development of cognitive capacities of children. It indicates the educational action’s demands and the intention of pedagogic experience. Key-words: Vigotski; pedagogic experience; children concept; language; knowledge construction 1 Introdução Este texto tem como objetivo discutir a importância da significação no espaço escolar, para a construção do conhecimento infantil, a partir do confronto entre algumas idéias acerca da valorização da realidade nesse contexto e da apresentação da tese de Vigotski sobre a relação entre conceitos espontâneos e científicos na construção do conhecimento escolar. 1Especialista em Coordenação Pedagógica e Orientação Educacional – UNIFACS. Professora da Rede Municipal de Educação da cidade de Salvador. E-mail: [email protected]; [email protected] _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 1 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil Se faz necessário para nós explicitar como epistemologicamente se dá essa passagem de um estado de menor grau de conhecimento (conhecimento espontâneo) para uma compreensão mais elaborada a partir da apropriação dos conhecimentos científicos. Para isso, buscamos primeiro explicitar as bases filosóficas e a compreensão de Vigotski acerca do desenvolvimento a partir da relação que o autor estabelece entre a linguagem e o pensamento. Em seguida, descrevemos as etapas de evolução sugeridas por Vigotski no processo de construção da linguagem e do pensamento a partir da experiência. E, finalmente, abordamos a relação entre os conceitos espontâneos e científicos na sala de aula, no processo de construção do conhecimento infantil, seu movimento cognitivo e a repercussão para o seu desenvolvimento. Resgatar a realidade do sujeito, respeitando-a e apoiando sua evolução representa, antes de qualquer ação, perceber a criança na sua diversidade sociocultural, reconhecer as estratégias que utiliza para agir e compreender os fenômenos na sua idade e experiência, perceber suas hipótese e como as construiu. Mas, acima de tudo, apoiar a criança no avanço do seu pensamento, formando uma base sólida de conhecimentos, desenvolvendo seu potencial cognitivo e garantindo assim, a autonomia frente a ação no meio e a interação com o outro. 2 Essa tão Conhecida Realidade No âmbito do currículo oficial a escola lida com o saber sistematizado, historicamente acumulado para que o educando nela inserido construa uma compreensão mais elaborada dos eventos e fenômenos naturais, históricos e sociais. Para tanto, nesse universo ele acessa e se apropria de uma diversidade de linguagens, códigos e símbolos e desenvolve o pensamento lógicomatemático. Todo esse processo desencadeado no sujeito a partir da inserção escolar tem vistas a sua ação qualitativamente orientada no meio, bem como, a manutenção ou modificação de valores e atitudes frente a dinâmica cotidiana, a sociedade que se deseja e a permanente formação de seus membros. Nesse sentido, a garantia do processo mencionado exige uma constante reflexão da escola sobre seu papel e que rumo sua atuação pedagógica deve tomar. Hoje, é consenso no âmbito educacional e entre os professores a importância de se valorizar a realidade do educando para que todo conhecimento construído tenha significação. Porém, durante muito tempo a escola tradicional (LIBÂNEO, 1990; VEIGA, 2004; SAVIANI, 2003) e os _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 2 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil professores trabalharam com um currículo orientado para a apropriação de conhecimentos enciclopédicos, rigorosamente organizados, sem considerar o educando no seu esforço por construir conhecimentos e significá-los, bem como, considerar a relevância desses conteúdos para a concretização dos objetivos escolares: não se pensava em por que e como esses conteúdos apoiariam o desenvolvimento do sujeito. Com o advento da Escola Nova (SAVIANI, 2003) - a preocupação em se valorizar o indivíduo em suas peculiaridades e suas inclinações e com apoio de estudos da psicologia do desenvolvimento cognitivo e as idéias emergentes sobre a aprendizagem a escola passou a orientar o currículo para o interesse do sujeito integral, tornando-o mais dinâmico e flexível. Infelizmente, essas inovações nem sempre representaram avanços para as reflexões curriculares. O ensino centrado no educando com algumas interpretações superficiais, outras equivocadas deixou fragilizada a intencionalidade da prática pedagógica. Uma delas e mais comum é pensar que “valorizar essa realidade é reconhecer as limitações resultantes da inserção econômica e condição da família da criança”, colocando esta numa condição de vítima da qual não se pode esperar muito, e nesse sentido inviabiliza traçar um percurso de desenvolvimento audacioso, sem produzir ações que efetivamente apóiem o sujeito na mudança dessa situação, mesmo que a longo prazo. Outra interpretação bastante divulgada entre os professores é aquela que se utiliza elementos da realidade da criança para compreensão de determinados conteúdos dela extraídos, o que já é um bom caminho, mas corre-se o risco de não ampliar o conhecimento desta acerca do mundo e de outras realidades, contextualizando a sua própria realidade dentro de um universo maior de relações. A presença significativa da escola na realidade e da realidade na escola produziu no pensamento pedagógico brasileiro grandes conquistas. Paulo Freire (1982) empreendeu suas idéias para uma educação do povo onde a construção do conhecimento se daria numa perspectiva transformadora observando o papel da escola no processo de democratização fundamental da sociedade. Para o povo participar é necessário conhecer e nos aponta como caminho a relação dialógica ampla Colaborar com ele [o povo] na indispensável organização reflexiva do seu pensamento. Educação que lhe pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica.(...) Identificada com as condições de nossa realidade. Realmente instrumental, por que integrada ao nosso tempo e ao nosso espaço e levando o homem a refletir sobre sua ontológica vocação de ser sujeito. (FREIRE, 1982, p. 106) _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 3 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil Ele nos indica um caminho que implica no uso “de um método ativo, dialogal, crítico e critizador e na modificação do conteúdo programático da educação”. (FREIRE, 1982, p. 107) Desta forma, o educador precisa reconhecer a realidade na qual o educando vive e para problematizar essa realidade precisa confrontá-la com os conhecimentos científicos. Numa perspectiva semelhante, Saviani (1992) nos descreve cinco categorias básicas no processo de construção do conhecimento numa vertente crítica e transformadora que parte da prática social (ação na realidade) e volta-se para ela. Para esse teórico, só por essa via a aquisição de um conhecimento atende a perspectiva da realidade: o processo inicia-se pela prática social e sua análise, seguida pela problematização desta realidade. Num terceiro momento teríamos a instrumentalização que representa a apropriação de elementos do conhecimento científico para o educando proceder com o dissecar dessa realidade, seguida pela catarse que é a síntese, uma elaboração de nível superior a partir da compreensão/confronto de todas as relações. Ao final, num outro patamar de compreensão o educando se volta à prática social, a realidade, qualificando suas ações e relações com o mundo, transformando-o. Poderíamos escrever muitas páginas acerca das múltiplas interpretações da importância da realidade da criança no processo de apropriação de novos conhecimentos e de como a escola muitas vezes, fez o caminho inverso e seguindo suas pistas, renegou-lhe o direito de se apropriar de conhecimentos essenciais, já que esta, pela própria imaturidade e condição de sujeito menos experiente não está habilitada a indicar o percurso escolar que deve seguir. Mas a perspectiva aqui interessada é das alterações qualitativas no movimento cognitivo, quando na relação dialógica com seu mundo a criança constrói conhecimentos a partir da sua inserção escolar. _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 4 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil 3 Compreendendo o Desenvolvimento do Pensamento a partir da Linguagem e da Ação na Realidade Com bases teóricas expressas no materialismo históricoi, que concebe a natureza humana como fruto das relações de trabalho, as quais produzem a transformação do meio e permite a interação, num exercício dialético entre homem-meio, produzindo cultura, Vigotsky (1998a) observa que a experiência humana é mediada e para tanto, o ser humano desenvolveu os instrumentos materiais para sua ação física e a linguagem como equipamento psicológico. [...] A natureza do próprio desenvolvimento se transforma, do biológico para o sóciohistórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inato, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala. (VIGOTSKI, 1998b, p. 63) Para Vigotsky (1998b), o que nos diferencia de outros animais - já que eles possuem linguagem e pensamento em níveis elementares – é a possibilidade de relação entre pensamento e linguagem o que torna possível representar os objetos na memória, prever relações, planejar, inferir, comunicar, qualificando a ação no meio. A linguagem constitui-se, assim, um instrumento humano, na organização do pensamento, pois, só ela permite a abstração. A função primordial da linguagem é a comunicação, e a perspectiva de generalização. Segundo Vigotsky (1998b), a criança age no meio e a sua ação vai acarretar interpretações naqueles que a cercam. No seu meio social essas interpretações são traduzidas em palavras, são generalizáveis. A criança, nesse processo de interação, veiculará a sua ação a significados oriundos do meio, compreendendo-os e incorporando-os. Nesse instante está surgindo o primeiro plano da fala que é estritamente social. (...) a função primordial da fala tanto nas crianças quanto nos adultos, é a comunicação, o contato social. A fala mais primitiva da criança é, portanto, essencialmente social. (...) Numa certa idade, a fala social da criança divide-se muito nitidamente em fala egocêntrica e fala comunicativa. (...) A fala egocêntrica emerge quando a criança transfere formas sociais e cooperativas de comportamento para a esfera das funções psíquicas interiores e pessoais. (VIGOTSKI, 1998b, p. 23) Nesse processo de interação com o ambiente a criança desenvolve uma fala, fruto da interiorização de comportamentos sociais considerando a primeira função da linguagem, que passa a acompanhar suas ações no meio. _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 5 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil Segundo Vigotsky (1998b), a fala social antecede a fala egocêntrica. Esta tem a função de orientar a ação da criança e, num determinado momento, se desloca da oralidade, constituindo no sujeito o seu pensamento. Assim explica Vigotsky: (...) Quando as circunstâncias obrigam-na a parar e pensar, o mais provável é que ela pense em voz alta. A fala egocêntrica dissociada da fala social geral, leva com o tempo à fala interior, que serve tanto ao pensamento autístico quanto ao pensamento lógico. (VIGOTSKI, 1998b, p. 23) O pensamento vai permitir a exploração do meio de forma mais elaborada, porque as operações concretas, mediadas pela linguagem, permitirão que as funções básicas superiores percepção, memória e atenção - se desenvolvam a partir da imagem vinculada à linguagem, na representação do meio, constituindo-se, assim, a segunda função da linguagem: a generalização e, em conseqüência desta, o desenvolvimento do pensamento e suas funções superiores: [...] Vimos que a fala egocêntrica não paira no vazio, mas tem uma relação direta com o modo como a criança lida com o mundo real. Vimos que isso é parte integrante do processo de atividade racional, adquirindo inteligência, por assim dizer, a partir das ações intencionais da criança, que ainda são incipientes. (VIGOTSKI, 1998b, p. 27) [...] a fala egocêntrica vai, progressivamente, tornando-se apropriada para planejar e resolver problemas, à medida que as atividades da criança tornam-se mais complexas. Esse processo é desencadeado pelas ações da criança; os objetos com os quais ela lida representam a realidade e dão forma aos seus processos mentais. (VIGOTSKI, 1998b, p.27) 4 A Compreensão do Mundo a partir da Experiência e sua Manifestação pela Linguagem Para que a criança se aproprie dos conceitos que traduzem o seu meio, com os quais irá operar o seu pensamento, faz-se necessário que ocorram situações concretas que envolvam um determinado problema. A interação com o meio envolve a percepção do indivíduo de uma totalidade, da qual estabelece uma série de relações, fazendo constatações acerca das propriedades e funções dos objetos para que possa construir os conceitos, dando origem às palavras e aos seus significados e ao conhecimento (Vigotski, 1998b). Sabemos que esses conceitos passam por processos diversificados de mudança de significado ou sua ampliação que dependerá da capacidade de generalização do sujeito naquele momento. Nesse sentido, valemo-nos das considerações do próprio Vigotsky: _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 6 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil [...] um conceito não é uma formação isolada, fossilizada e imutável, mas sim uma parte ativa do processo intelectual, constantemente a serviço da comunicação, do entendimento e da solução de problemas. (VIGOTSKI, 1998b, p. 66-67) [...] a formação de conceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico e passivo; [...] um conceito surge e se configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de algum problema; (VIGOTSKI, 1998b, p. 66-67) Na sua relação com o mundo e com os outros a formação de conceitos se inicia precocemente e se desenvolve durante toda a história do indivíduo, porém, é na adolescência que adquire bases mais sólidas. Vigotsky (1998b) descreve algumas fasesii do percurso realizado pela criança na formação do conceito, cada uma com características específicas marcadas, a princípio, pela percepção. Descreveremos aquelas que consideramos refletir momentos críticos do pensamento infantil e das estratégias de elaboração dos conceitos na apropriação da linguagem. Na primeira fase da construção dos conceitos está o pensamento que é marcado pela indiferenciação: para a criança, os conceitos, veiculados pelas palavras, se referem a objetos que impregnam sua mente, portanto objetos concretos e cotidianos, mas não estabelece ainda nenhuma relação entre eles. Esse estágio inicial, que acreditamos coincidir com a gênese e evolução da fala, é marcado pela apropriação de relações referencial-palavra formando pares, às vezes coincidindo com os convencionais, e outras estabelecidas ocasionalmente, no âmbito do seu cotidiano (VIGOTSKY, 1998b). Tem-se, numa fase seguinte, “o pensamento por complexos” que de forma gradativa, é marcado pela percepção das propriedades e funcionalidade, consistindo no primeiro momento da generalização (VIGOTSKY, 1998b). Esse pensamento abrange algumas subcategorias que têm como marca as relações que a criança passa a estabelecer entre os seres. No primeiro momento a criança associa diversos elementos ao mesmo conceito, considerando algumas semelhanças estabelecidas pela percepção, mas, não consciente deles. Usa a mesma palavra para nominar seres numa determinada situação, devido a alguma semelhança percebida entre eles, por exemplo, ao passar pela rua com a mãe, chama uma criança maior de nenê, talvez por estar sendo levada agarrada ao braço pela mãe (VIGOTSKY, 1998b). No segundo momento, dessa mesma fase, a relação entre os objetos é considerada pela funcionalidade e complementaridade dos mesmos, inferidos à partir da experiência com esses _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 7 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil objetos, que embora diferentes, se complementam funcionalmente. Por exemplo, para garfo, faca, colher utiliza apenas o termo colher, que é a palavra que já se apropriou. Como bem definiu Vigotsky (1998b) esse pensamento é marcado pela formação de coleções, “[...] um agrupamento de objetos com base em sua participação na mesma operação prática.” Numa fase subseqüente, podemos observar ainda os pseudoconceitos que representam o primeiro passo na formação dos conceitos. Nesse instante, a criança constata as relações que realmente interligam os elementos, e é capaz de denominar os seres em consonância com os adultos. O que vai diferenciar os pseudoconceitos dos conceitos reais é a impossibilidade, naquele momento, da criança desenvolver o conceito, isto é, explicitá-lo através da linguagem (VIGOTSKY, 1998b). Os pseudoconceitos estão intimamente ligados à percepção, mas, não à abstração. Nesse sentido, o que permite a comunicação e a compreensão mútua, no processo de interação, entre o pseudoconceito da criança e o conceito do adulto é o referencial a que ambos se dirigem e não o significado (VIGOTSKY, 1998b). Finalmente, encontramos os conceitos potenciais, que diferente dos anteriores, sugerem algum nível de abstração, uma vez que a sua concepção depende da constatação de um único traço peculiar e comum aos elementos, que sugerem algum conceito mais abstrato, conseguindo desconsiderar todos os outros traços para apegar-se apenas a um deles para sugerir uma palavra (VIGOTSKY, 1998b). Perceber a evolução da linguagem implica reconhecer os conceitos e significados já apropriados, como são construídos e o conhecimento a estes atrelados, daí, a unidade palavra ser de fundamental importância para compreensão da capacidade de generalização presente naquele momento. O ser humano utiliza-se de um instrumento de mediação, o signo, que é um artifício da linguagem, para desenvolver suas funções psicológicas superiores - lembrar, relacionar, memorizar, constatar, compreender, idealizar - dentre outros. A linguagem possibilita o desenvolvimento dessas funções, pois só ela permite a abstração. Na construção dos conceitos, a criança busca a apropriação do referente, das palavras e dos sentidos que podem apresentar. A intermediação, que discutiremos mais adiante, cumpre papel fundamental nesse processo de leitura da palavra e leitura do mundoiii. Acerca dessas conclusões, Vigotsky comenta: _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 8 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil [...] A formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. (...) o uso do signo ou palavra como meio pelo qual conduzimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção ao problema que enfrentamos. (VIGOTSKY, 1998b p. 72-73) 5 Aprendizagem Escolar e Desenvolvimento Perceber a evolução dos conceitos infantis e dos seus mecanismos de compreensão como evolução da sua capacidade de elaboração a partir da interação com o meio e com outros indivíduos nos possibilita avaliar, prever e estabelecer uma prática pedagógica atenta as condições do sujeito cognoscente e que o apóie no seu desenvolvimento, fazendo-o avançar. Agora, analisemos como a compreensão do mundo se altera qualitativamente a partir da inserção escolar, quando atentos á realidade da criança a escola explora seu universo de conceitos, ajudando-o a realizar elaborações cada vez mais sofisticadas do ponto de vista conceitual e da inserção no meio. Vigotski (1998a) postula que desenvolvimento e aprendizagem caminham juntos, porém, a aprendizagem precede o desenvolvimento, uma vez que o sujeito aprende, principalmente, por imitaçãoiv, para posteriormente, aplicar e desenvolver de forma autônoma uma ação. Isso ocorre, naturalmente, subordinando ao seu controle suas formas de pensamento e conceitos apreendidos, reorganizados ou ajustados de forma criativa, segundo a demanda da situação, o que indicará marcas do seu desenvolvimento. Nesse sentido, Vigotsky (1998b) destaca como privilegiado o espaço da sala de aulav uma vez que nele a aprendizagem é mediada por dois aspectos: o primeiro, dos conceitos científicos trabalhados pela escola e suas implicações no desenvolvimento da inteligência e na percepção mais elaborada acerca da realidade. O segundo, através da intermediação pessoal, realizada principalmente pela figura do professor orientando ações que envolvam a experiência e a cooperação. Os conceitos espontâneos, que se referem basicamente à linguagem cotidiana da criança, à sua realidade e ao seu nível de desenvolvimento conceitual sem intervenção escolar, apresentam um grau de dificuldade maior para ela, quando enquadrado nas categorias de pensamento, tendo em vistas que, por se referir à realidade, estão ligados à experiência direta, porém sem reflexão. Quando da experiência imediata, a criança está mais ligada ao agir a ao objeto ou à situação em si que à sua compreensão, suas relações e como apreendê-las. A criança não tem consciência dessa realidade uma vez que ela não se apresenta de forma problematizada e especulativa como os _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 9 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil conceitos científicos. Assim diz Vigotsky: “Ao operar com conceitos espontâneos, a criança não está consciente deles, pois a sua atenção está sempre centrada no objeto ao qual o conceito se refere, nunca no próprio ato de pensamento.” (VIGOTSKY, 1998b, p. 115) Apesar dos conceitos científicos serem mais facilmente trabalhados e incorporados pela criança, a aquisição deles subtende o domínio prévio de alguns conceitos espontâneos. Isso implica na adaptação do conceito ao nível de desenvolvimento intelectual e conceitual da criança. A construção de conceitos refere-se à estruturação de um sistema, no qual cada conceito ocupa uma posição e mantém relações com outros. Da mesma forma, esse sistema é flexível e segue uma linha de evolução que, na infância, mal se iniciou. Quando uma criança começa a utilizar uma palavra existe um conceito a ela incorporado. O desenvolvimento desse conceito passará por evoluções significativas (já explicitados no item anterior) a depender da experiência vivenciada e da utilização deste. Nessa perspectiva, a possibilidade de reflexão e organização do pensamento será cada vez mais otimizada à medida que o seu nível conceitual se desenvolve. Daí Vigotsky (1998b) acreditar que seja mais fácil estabelecer relações de causa e efeito, considerando eventos discutidos e explorados pela escola àqueles referentes ao cotidiano infantil. Quando a criança começa a operar com os conhecimentos científicos, fazendo análises, questionando-os, relacionando-os, comentando-os, todos os demais conceitos passam a ser considerados pela criança nessa perspectiva de análise e síntese, principalmente os conceitos cotidianos (VIGOTSKY, 1998B). Podemos inferir, a partir da compreensão do pensamento de Vigotski (1998b) que na idade escolar a criança tem um impulso no seu desenvolvimento, marcado pelo surgimento da conscientizaçãovi e da intencionalidade na orientação do pensamento. Tal evento é conseqüência do tipo de relação estabelecida na escola com o objeto de conhecimento, que é essencialmente mediada pela linguagem. A criança não vivencia diretamente a experiência, mas esta lhe é apresentada, discutida, analisada, concebida na interação com o professor e com os colegas, tendo a linguagem como instrumento essencial para tal. O exercício de pensamento realizado pela criança quando do estudo dos conceitos científicos implicará no desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores. Esse fenômeno justifica o fato de que tais conteúdos sejam mais facilmente enquadrados nas categorias de pensamento da criança, em contraposição aos conceitos espontâneos: _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 10 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil O aprendizado escolar induz o tipo de percepção generalizante, desempenhando assim um papel decisivo na conscientização da criança dos seus próprios processos mentais. [...] o meio no qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros conceitos e a outras áreas do pensamento. A consciência chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos. (VIGOTSKY, 1998b, p. 73) Considerando o fator mencionado acima, Vigotsky (1998b) observa na experiência escolar, o princípio da estruturação do pensamento generalizante, que representa a pesquisa, o conhecimento acerca dos eventos, dos fenômenos, dos seres e suas relações, constantemente traduzidos e expressos em palavras, em conceitos acerca dos elementos observados ao seu redor, mediado desde o princípio pela linguagem e pela reflexão, utilizando-se para tanto, das categorias do pensamento presentes naquele momento, direcionando e controlando-as. O desenvolvimento da linguagem e das funções psicológico superiores, na inter-relação destas, representa um avanço do ensino-aprendizagem se for considerado no universo escolar. A criança em sua realidade lingüística apresenta o seu repertório e o expande discutindo os conceitos apresentados pela escola e os conceitos submersos em sua realidade. Nesse processo se faz de fundamental importância a intermediação, em primeiro plano, entre os pares infantis, pois permite a discussão, a organização e exposição de idéias e, argumentação e reorganização do pensamento, no confronto com as idéias do outro e o conflito entre elas. Porém, a principal intermediação refere-se àquela realizada pelo “sujeito mais experiente”, que nesse instante, quando consideramos a escola, refere-se à figura do professor (VIGOTSKY, 1998b). As experiências vivenciadas com os dois tipos de conceito são diferenciadas e fundamentalmente se orientam em direções opostas, no plano de seu desenvolvimento. Porém, estão intimamente relacionadas e dependem umas das outras, pois para que um conceito científico se desenvolva é necessário que se relacione com conceitos e experiências cotidianas já construídos pela criança, através dos quais os primeiros serão mediados . Em contra-partida para a elaboração dos conceitos cotidianos e análises mais sofisticadas, são necessárias as categorias de pensamento mais complexas, que são introduzidas com o desenvolvimento dos conceitos científicos (VIGOTSKY, 1998b). Nesse sentido, observar a realidade da criança toma uma configuração peculiar – perpassa conhecer como esta compreende esta realidade e se insere lingüístico, afetiva e cognitivamente neste espaço. A partir daí o professor cumpre um papel fundamental na configuração do ambiente desafiador, de situações problematizadoras e através da linguagem, incita o pensamento infantil. _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 11 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil Porém, não se limita à organização ou estruturação destas situações a sua intervenção. O professor deve observar o potencial a desenvolver na criança questionando, dialogando, sugerindo, discutindo e confrontando idéias, utilizando-se para tanto, da linguagem, valorizando o conhecimento e as interpretações acerca do objeto do conhecimento e introduz novos conhecimentos para que relabore os primeiros. Nesse sentido, Vigotsky considera que [...] o único tipo positivo de aprendizado é aquele que caminha à frente do desenvolvimento, servindo-lhe de guia; deve voltar-se não tanto para as funções já maduras, mas principalmente para as funções em amadurecimento. (...) o aprendizado deve voltar-se para o futuro e não para o passado [...] (VIGOTSKY, 1998b, p. 130) A criança em ação, frente a uma determinada situação terá um desempenho diferente se tal ação for estimulada pelo combustível que é a mediação da linguagem. Concluindo as nossas observações acerca dos estudos de Vigotsky com a plena consciência de que ainda temos um longo caminho a percorrer para uma apropriação mais consistente das contribuições deste pensador para o avanço das práticas escolares, encerramos esse artigo com uma espécie de síntese sobre o papel da linguagem e das características tipicamente humanas e seu desenvolvimento: 6 Conclusão Referenda-se a partir deste estudo, a importância de se considerar na prática pedagógica do educador o papel do conhecimento científico, como elemento que permite ampliar o saber das crianças e principalmente como fator que possibilita o amadurecimento do seu potencial cognitivo, utilizando-se para tanto, do saber já construído pela criança, na sua experiência cotidiana, das suas interpretações iniciais e das suas estratégias de compreensão. Uma prática pedagógica atenta ao duplo compromisso estabelecido para com o desenvolvimento, de apropriação de saberes e de ampliação das capacidades cognitivas, exigirá do professor também o domínio sobre esse saber e qualificação no sentido de manipular esse conhecimento de forma significativa e intencional para os objetivos pedagógicos da escola. Referências FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade.13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1990. _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 12 _________________________ Vigotski e a Construção do Conhecimento na Escola – A Relação entre os “Conceitos Espontâneos” e “Científicos” para o Desenvolvimento Cognitivo Infantil MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2001. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 36. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2003. (Coleção polêmicas do nosso tempo). VEIGA, Ilma Passos. Repensando a didática. São Paulo: Papirus, 2004. VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a. ______________. Pensamento e Linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b. NOTAS Método formulado por Marx e Engels, tomando como princípio que todas as coisas do mundo têm sua causa e a causa fundamental de toda evolução social e, portanto, de todo movimento histórico, é a luta que o homem trava com a natureza para assegurar sua própria existência. ii As fases mencionadas foram observadas em um experimento que Vigotsky denominou de “método da dupla estimulação” onde se utilizou de objetos com características variadas às quais a criança relacionava com palavras artificiais, criadas para esse contexto, desenvolvendo conceitos (VIGOTSKY, 1998a). i iii Expressão utilizada muito apropriadamente por Paulo Freire (1982). Para Vigotsky, imitação não se refere a uma ação mecânica e “menor”. A imitação é resultado de um esforço realizado pelo sujeito, com maturação adequada para desenvolvê-la, a qual exige coordenação da seqüência de ações e reflexão sobre o desencadear lógico destas em sintonia com seu fim (objetivo). (VIGOTSKY, 1998B) iv v vi O espaço de aprendizagem escolar, que provavelmente, restringia-se ao âmbito dos muros escolares. Aqui entendida por percepção das ações realizadas. _____________________________________________________________________________________________ Diálogos & Ciência –- Revista Eletrônica da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ano IV, n. 8, jun. 2006. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/revistafsa 13