O MODERNO SAMBA URBANO Síntese de parte do livro Nós a Música Popular Brasileira Dilmar Miranda O samba amaxixado, da geração da Tia Ciata, tem sua fase de glória até os anos 20, com a difusão em discos e nos teatros de revistas, sendo Sinhô, seu maior expoente. Surge, depois, em fins dessa década, a 2ª. geração de sambistas que o fixa num certo padrão que, no limite, perdura até hoje. Donga e Sinhô representam a geração pioneira do samba amaxixado, aglutinada em torno da Tia Ciata, enquanto que Ismael encarna a 2ª geração que irá jogar papel decisivo nos rumos do samba moderno, ao realizar, de forma intencional, segundo o próprio afirma, uma sutil alteração de sua síncope. Ismael Silva compositor do chamado pessoal do Estácio de Sá, sabia que estava criando um novo samba, quando diz : Quando comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na rua, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava pra andar. Comecei a notar que havia essa coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurudum. Considera-se portanto samba urbano, o gênero que surge no Estácio, bairro carioca situado nos limites da Cidade Nova, próximo à Pequena África,com um grupo de jovens sambistas liderados por Ismael Silva, como Nilton Bastos, Rubem e Alcebíades Barcelos (Bide), Baiaco, Brancura e Marçal. Os sambas amaxixados eram bons de dançar, mas ruins para caminhar. Diz ainda Ismael: a gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile. Assim, era necessário modificar a figuração rítmica básica do samba, desgarrando-o das origens amaxixadas, para melhor adequá-lo aos desfiles, propiciando um andamento mais leve dos foliões. Até então, a rítmica do velho gênero, procedente das rodas do recôncavo baiano, se dava por uma síncope a tempo, mais “pesada”, pela afirmação do tempo forte na cabeça do compasso, portanto, uma sincopação realizada nos limites das barras de cada compasso, com a percussão do pandeiro e prato-efaca. Construído sobre uma estrutura rítmico-melódica simples, possibilitava a participação de todos, batendo palmas, podendo também ser acompanhado com um cavaquinho ou com este e um violão. Materializando a intenção da nova geração (1927/28), entra em cena o samba batucado e “marchado” do bloco carnavalesco, Deixa Falar, transformado depois na 1ª Escola de Samba. Ao adequá-lo à progressão dos préstitos de rua, propicia um andamento mais leve dos foliões, do carnaval carioca. Agora, para empurrar o samba para frente, com um ritmo mais acelerado, introduz-se o surdo de marcação, cuja pancada faz prevalecer o tempo forte do ritmo 2/4, em oposição ao movimento mais lento, em meneios do lundu, ou em volteios do samba baiano. Introduzindo a batida forte no 2º tempo do compasso, através da pancada do surdo, de registro mais grave, tal procedimento contribui para anular o amaxixado do ritmo. A par disso, outros instrumentos médios e agudos, executam o contraponto, como o tamborim, que, ao preencher os claros entre os tempos fortes do surdo, ajuda a consolidar o novo padrão rítmico. Outro efeito sutil no pulso foi gerado pela articulação da nova batida com a nota de antecipação. Recuada no final do compasso, esta passa a anunciar no compasso anterior, a nota idêntica situada no compasso seguinte, roubando seu valor pelo recurso da ligadura, o que, por si só, já quebrava a previsibilidade métrica do andamento da música. As novidades introduzidas pela nova geração faziam certamente parte de uma estratégia de negociação: transformar o novo samba num forte meio de expressão cultural da comunidade afro-carioca, adequando-o a padrões socialmente aceitos. Para se organizar como escola de samba, a Deixa Falar toma de empréstimo a formação processional de um rancho, adicionando procedimentos dos sujos e dos cordões da época. “Pertencente originalmente à tradição folclórica natalina da Bahia o rancho consistia na reunião de um grupo misto- pastores, pastoras, mestre-salas e porta-bandeiras, que trajando vistosas vestimentas, percorriam um enorme trajeto em direção a um presépio... O principal responsável pela transposição dos ranchos para o RJ foi Hilário Jovino... Após vierem seu período áureo nas décadas de 20 e 30 quando eram considerados a maior atração do carnaval carioca, os ranchos entram em declínio sendo superados pelas escolas de samba.” (Jairo Severiano em Uma história da música popular brasileira). Os ranchos possuíam uma organização mais familiar, como o famoso Ameno Resedá, (que surgiu em 1908 e libertou os ranchos cariocas da forma afro-religiosa) contando inclusive com a presença de crianças da família da Tia Ciata. Já a Deixa Falar fora criada por negros e mulatos representantes da massa de subempregados e desempregados, conhecidos como os bambas do Estácio. O novo samba era a expressão musical que adensava ritmos da Cidade Nova, com o estilo dos sambas de Ismael Silva e outros, de levada mais leve, diferente dos amaxixados da geração anterior. O Estácio e seu entorno (morro de S. Carlos, Catumbi, Cidade Nova) formava um reduto negro de libertos, que irá ostentar com orgulho a figura do malandro, ou seu equivalente, o vadio, termos que designavam, desde a instauração da República, o liberto sem trabalho. Se o samba amaxixado de Donga está mais próximo do mundo rural das rodas baianas, o sentido de seu gesto apropriando o Pelo Telefone, é ostensivamente urbano. Se até à geração de Ciata, criava-se anônima e solidariamente, a partir de evocações de um mundo rural o samba do Estácio tem procedência urbana e autoria definidas. Afinal, o samba malandro é produto urbano dessa nova realidade que individualiza artistas criadores e criações artísticas. Através de sua difusão pela indústria cultural da época como o disco, rádio e, mais tarde, o cinema falado e outros meios, como o teatro de revista, cabarés, bares, cassinos e hotéis, constrói-se a cena urbana propícia para consolidar o artista popular profissional. O ingresso no mundo fonográfico de elementos percussivos afro-poplares teve, como marco inaugural, em 1929, a gravação de Na Pavuna, quando o som de instrumentos como o surdo, reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca participam do feito, em grande estilo. O ineditismo do fato infringira um forte interdito. Na opinião dos técnicos, a percussão afro “sujava” a gravação. Ismael da Silva nasceu em Niterói RJ em 14 de Setembro de 1905. Filho de um operário e de uma lavadeira, aos três anos mudou-se com a família da praia de Jurujuba (Niterói), para o bairro do Estácio e mais tarde para vários outros bairros do Rio de Janeiro. Em 1928, com os principais sambistas do Estácio, reuniu integrantes dos blocos de sujos existentes no bairro, e fundou a Deixa Falar, a primeira escola de samba do Rio de Janeiro. Segundo ele próprio, seria de sua autoria a expressão "escola de samba", por analogia com a Escola Normal existente no Estácio, bairro de onde saíram os "professores" de samba. Fundada a 12 de agosto de 1928, desfilou pela primeira vez no ano seguinte, cantando na Praça Onze os sambas do pessoal do Estácio, com ele do lado de fora da corda, vestindo seu tradicional terno de linho branco. Nessa época, como o samba carioca guardava ainda semelhanças com o maxixe, esse grupo de sambistas – segundo afirmação dele – foi o responsável pela criação e fixação de um novo tipo de samba, cuja batida marcada por instrumentos de percussão era mais apropriada para os desfiles das escolas que surgiam.