Universidade Federal do Rio de Janeiro PARTITURAS LITERÁRIAS Duo para Marcel Proust e René Girard Natália da Silva Gama 2011 1 PARTITURAS LITERÁRIAS Duo para Marcel Proust e René Girard Por NATÁLIA DA SILVA GAMA Departamento de Ciência da Literatura Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Literatura Comparada Orientadora: Professora Doutora Vera Lins Rio de Janeiro 2 Março / 2011 FICHA CATALOGRÁFICA GAMA, Natália da Silva. Partituras Literárias. Duo para Marcel Proust e René Girard. Natália da Silva Gama. Rio de Janeiro: UFRJ - Faculdade de Letras, 2011. 104 fls Orientadora: Vera Lins Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2011. Referências bibliográficas: 104 fls 1. Literatura Comparada 2. Marcel Proust 3. René Girard 4. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Partituras Literárias. Duo para Marcel Proust e René Girard. RESUMO 3 Partituras Literárias Duo para Marcel Proust e René Girard Natália da Silva Gama Orientadora: Professora Doutora Vera Lins Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em Literatura Comparada. Aprovada por: _______________________________________________________________ Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins _______________________________________________________________ Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins _______________________________________________________________ Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina _______________________________________________________________ Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira (Suplente) _______________________________________________________________ Professor Júlio Dalloz (Suplente) Rio de Janeiro Março/2011 4 RESUMO Partituras Literárias. Duo para Marcel Proust e René Girard Natália da Silva Gama Orientadora: Vera Lins Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ . Neste trabalho propomos uma leitura do romance Em busca do tempo perdido de Marcel Proust em parceria com a teoria do desejo mimético desenvolvida por René Girard. Privilegiamos para essa leitura o processo de reconhecimento da mímesis no desejo e a sua implicação tanto na literatura como na vida. Para nos auxiliar nesse projeto, recorremos aos estudos sobre a memória involuntária e a sua relação com o romance, pois se a memória transfigura o objeto, o romance nos descreve não como uma ilusão vivida no momento do desejo, mas como uma ilusão nova. A partir dessa perspectiva, acompanhamos o trabalho do narrador de salvaguardar na obra literária o tempo de outrora em seus enganos e desenganos. Tarefa de refazer travessias imaginárias, caminhos da memória, ficções, tempos perdidos e recuperados. Malhas de um pentagrama sobre o qual a escrita literária se impõe. História de um canto. Partitura para o concerto de Em busca do tempo perdido na nossa interpretação de Proust e Girard. Palavras-Chaves: Literatura, Teoria literária, Marcel Proust, René Girard, Teoria mimética. 5 RÉSUMÉ Partituras Literárias. Duo para Marcel Proust e René Girard Natália da Silva Gama Orientadora: Vera Lins Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Dans cet article nous proposons une lecture du roman À la recherche du temps perdu de Marcel Proust, en dialogue avec la théorie du désir mimétique développée par René Girard. Nous sommes favorables à cette lecture pour le processus de reconnaissance de la mimesis, le désir et son implication dans la littérature et dans la vie. Pour nous aider avec ce projet, nous avons tourné à l'étude de la mémoire involontaire et sa relation avec le roman, car si la mémoire transforme l'objet, décrit dans le roman non pas comme une illusion d'expérience dans le moment du désir, mais une nouvelle illusion. Dans cette perspective, nous suivons le travail du narrateur pour protéger les œuvres littéraires de l'époque dans leurs erreurs passées et des déceptions. Travail de re-croiser le chemin imaginaire de la mémoire, la fiction, le temps perdu et retrouvé. Mailles d'un pentagramme sur lequel l'écriture littéraire est nécessaire. Histoire d´un chant. Partitions pour le concert de À la recherche du temps perdu dans notre interprétation de Proust et de Girard. Palavras-Chaves: Literatura, Teoria literária, Marcel Proust, René Girard, Teoria mimética. 6 Para os meus pais, Maira e Joel, e para minha irmã, Juliana, com afeto e doçura 7 AGRADECIMENTOS A Deus e a Nossa Senhora pelas infinitas graças concedidas. A minha mãe, Maira, pela confiança depositada em mim através de um amor devotado e piedoso. A meu pai, Joel, pelos constantes cuidados e pela beleza ensinada nas pequenas coisas. A minha irmã, Juliana, por partilhar comigo calmarias e tempestades sempre de mãos dadas. A minha avó Corina e aos meus avós, Margarida, Jorge e Joaquim, em memória, pelo carinho. A professora Vera Lins pela orientação paciente e delicada. A professora Martha Alkimin pelo terno incentivo. A Pedro Sette-Câmara que bondosamente me apresentou aos estudos de Girard. Ao CNPq pelo auxílio da bolsa de mestrado. Gostaria de agradecer especialmente a Hugo Langone, Irene Milhomes e Olívia Guedes e a todos os meus amigos e familiares por me apontarem, cada um ao seu modo através da amizade e compreensão, notas dessa estranha partitura. E a você, leitor, pela boa vontade de ler este trabalho. Muito obrigada! 8 SUMÁRIO 1. Introdução: Entre leituras e desleituras - Um caso de afinidades eletivas Penas, Papéis e Partituras – Notas de um prelúdio 2. Primeiro Movimento: René Girard – Uma poética do paradoxo 2.1 Desejo Triangular – A base de um interminável paradoxo 2.2 Sejamos sacrificadores, não carniceiros 3. Segundo Movimento: Marcel Proust – A história de uma vocação 3.1 Por um frescor perdido 3.2 O velho jogo dos duplos 3.3 O mundo não é mais do que um reflexo do que se passa no amor 3.4 Da sonata ao septeto – Uma teoria literária 3.5 Pequenas iluminuras – Um estudo da composição de Em busca do tempo perdido 4. Intermezzo: Rearrumando a biblioteca 5. Conclusão: Terceiro Movimento: Partituras literárias 6. Referências Bibliográficas 6.1. Obras consultadas de Marcel Proust 6.2. Obras consultadas de René Girard 6.3. Outras obras 7. Anexos 9 As coisas que a literatura pode buscar e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a maneira de olhar o próximo e a si próprio, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assim necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente. Ítalo Calvino 10 1. ENTRE LEITURAS E DESLEITURAS: UM CASO DE AFINIDADES ELETIVAS Antes de falar sobre o dueto entre Marcel Proust e René Girard para o qual esse trabalho se destina, gostaria de retomar brevemente o conto ‘Kafka e seus precursores’ de J. L. Borges. No conto, conhecemos a ambição de um curioso experimento: o exame dos precursores de Kafka. ‘De início, [diz Borges] eu o julgara [Kafka] tão singular como a fênix das loas retóricas; depois de algum convívio, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, nos textos de diversas literaturas e de diversas épocas’1 Borges cita sete textos dessa pesquisa: o paradoxo de Zeno, um comentário sobre o unicórnio de Han Yu ( autor chinês de século IX ), duas parábolas religiosas de Kierkegaard, um poema ( ‘Fears and Scruples’ ) de Robert Browning e dois contos de Léon Bloy e Lord Dunsany. Apesar da aparente dissemelhança, Borges percebe que essas obras, em maior ou em menor grau, guardam algo de Kafka. Mas que só pode ser percebido devido à própria literatura de Kafka que reúne essas obras sobre um terreno comum. Vale lembrar que Browning ou Han Yu não são precursores cronológicos de Kafka e sim literários, pois o anunciam dentro de uma dimensão temporal fabricada pela leitura. ‘O poema Fears and Scruples’, de Robert Browning, [ por exemplo] profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina e desvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browning não o lia como agora nós o lemos ’2. Logo, conclui Borges, ‘cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro’3 1 BORGES, 2005, p.12. Id. ibid. p.98. 3 Id.ibid. 2 11 Harold Bloom, em A angústia da influência, aborda esse renascer perpétuo de linhagens literárias através de um longo movimento de apropriação e desapropriação de textos. Pura relação textual. Pensamos que seria mais apropriado dialogar com Bloom através de uma teoria da literatura que caminhasse menos em direção a alusões e a demonstrações de causa e efeitos e mais no reconhecimento de uma possível tonalidade comum, demonstrando porque ‘depois de Kafka, a literatura está permeada de Kafka. Depois de Proust, Constant, Henry James, até mesmo Kierkegaard nos parecem proustianos, e depois de Shakespeare o Livro de Jó ressoa ecos de Lear.’4. Chamamos atenção para esses ecos porque a partir deles inauguram-se novas chaves de leitura capazes de reverter o modo como compreendemos o cânone e a literatura de uma forma mais abrangente. Dentro dessa perspectiva, A literatura não é feita apenas de obras isoladas, mas de bibliotecas, sistemas em que as diversas épocas e tradições organizam os textos ‘canônicos’ e aqueles ‘apócrifos’. Dentro desses sistemas, cada obra é diferente de como seria se estivesse isolada ou inserida em outra biblioteca. Uma biblioteca pode ter um catálogo fechado, ou pode tender a se tornar a biblioteca universal, mas sempre se expandindo ao redor de um núcleo de livros ‘canônicos’. E é o lugar onde reside o centro de gravidade que diferencia uma biblioteca de outra, muito mais que o catálogo. A biblioteca ideal para a qual eu tendo é aquela que gravita em direção ao exterior, em direção aos livros ‘apócrifos’, no sentido etimológico da palavra, isto é, os livros ‘escondidos’. A literatura é busca do livro escondido distante, que muda o valor dos livros conhecidos, é a tensão em direção ao novo texto apócrifo a ser reencontrado ou inventado.5 Talvez esse trabalho seja um testemunho dessa angústia da influência, do desconforto de perder o centro de gravidade e a agradável surpresa de reencontrá-lo sempre igual, sempre diferente. Para mostrar um pouco mais dessa dinâmica entre 4 5 BLOOM, 1991, p.12. CALVINO, 2009, p.240- 241. 12 autores, leitores e precursores, proponho um retorno para nosso encontro com Proust, Girard e a possível origem dessa história. PENAS, PAPÉIS E PARTITURAS – NOTAS DE UM PRELÚDIO Todas às vezes em que lia algum romance de Em busca do tempo perdido, tinha a impressão de estar diante de um eterno recomeçar, tecendo junto ao narrador, como Penélope, as tramas de uma vida que se conta. Desconfio que essas incessantes tentativas foram responsáveis por me motivar a ler com mais paciência e atenção a obra de Proust. Na verdade, a consciência dessa suposta motivação é recente, mas o interesse por esse tear data das primeiras leituras do romance. Leituras cujo ritmo constantemente me proporcionava a sensação de estar diante de um concerto, pois me forçava a repetir uma velha lição: a aceitação do tempo. Tenho a impressão de que para falar melhor sobre isso, devo começar falando um pouco sobre algumas exigências da música. Esta por ser uma arte do tempo, já que só se realiza nele, pede tanto ao ouvinte como ao intérprete paciência para acompanhar seu desenvolvimento. Não admite abreviações. Ao propor essa condição, a música nos ensina o valor da espera e, reparem, quando concordamos com ela, vivenciamos uma espécie de metamorfose. Nunca saímos os mesmos depois de ouvir uma música. Ficamos mais calmos ou mais agitados, alegres ou melancólicos, mas sempre transformados. Na literatura a dinâmica, apesar de não parecer, é a mesma. Para partilhar das histórias, é necessário aprender a viver as pausas, a respeitar o curso da narração sem pressa, apenas com boa vontade para se apresentar aos personagens e para permitir que eles se apresentem a nós. São lições de música e de literatura que nos ajudam a lidar melhor com o tempo e com as vicissitudes que o acompanham. 13 Ainda sobre essas lições e nossa inabilidade frente ao tempo, o narrador de Em busca do tempo perdido lembra que muitas vezes não se entende nada, quando é uma música um pouco complicada que ouvimos pela primeira vez. E, no entanto, quando mais tarde me tocaram duas ou três vezes aquela mesma sonata, aconteceu-me conhecê-la perfeitamente. Assim, não está mal dizer-se ‘ouvir pela primeira vez’. Se nada se tivesse distinguido na primeira audição, como se pensava, a segunda e a terceira seriam tantas primeiras, e não haveria razão para que se compreendesse alguma coisa mais na décima. Provavelmente o que falta na primeira vez não é a compreensão, mas a memória.6 Seguindo essa linha de raciocínio, a memória, além de um encontro com o tempo passado, constituiria o pré-requisito da aprendizagem. À primeira vista, esta frase soa como se fosse desnecessária porque é sabido que aprendemos pela memória, mas, já notaram que as coisas mais difíceis de serem aprendidas são aquelas que supostamente já sabíamos? Penso que Proust percebeu isso e passou a investigar o conhecido, as coisas cotidianas, o tempo, as experiências humanas comuns e fez da memória a matéria do seu texto. Dentro dessa configuração que reúne tempo, memória e aprendizagem, optamos uma possível linha de leitura para o romance: a busca pela escrita. Busca que se confunde com o desejo de construir uma identidade e uma subjetividade. Busca por um modo de estar no mundo. Busca pelo tempo... Sobre essas buscas o narrador diz que o que antes não precisamos decifrar deslindar à nossa custa, o que já antes de nós era claro, não nos pertence. Só vem de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem. E como a arte recompõe exatamente a vida, em torno dessas verdades dentro de nós atingidas flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério que não é senão a penumbra que atravessamos.7 6 7 PROUST. À sombra das raparigas em flor, 2004, p.160. PROUST. O tempo recuperado, 2004, p. 628. 14 Por essa penumbra, procuramos guiar nossa leitura. Arte, vida e memória, pois, segundo Proust, para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro, um grande escritor não precisa, no sentido corrente da palavra, inventá-lo, pois já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo. O dever e a tarefa do escritor são as do tradutor.8 Para entender este projeto literário, que chamamos de uma ‘estética da tradução’, é preciso deixar claro que tradução assume aqui dois sentidos. No primeiro, tradução equivale a dar forma porque modela as impressões e as memórias do escritor em matéria literária, as reverte em ficção. Mas em uma segunda acepção, que não deixa de ser concomitante com a primeira, tradução significa um modo de ler, desleitura, movimento. Foi por essa instância que os escritos de René Girard, especialmente os estudos sobre a teoria do desejo mimético, (re) modularam nossa escuta de Em busca do tempo perdido. Em 1961, com a publicação de Mentira Romântica e Verdade Romanesca, René Girard apresentou a matriz de toda sua teoria: a origem mimética do desejo humano. Essa obra é fruto da leitura de diferentes literaturas distantes uma das outras por diversos contextos culturais e pelos séculos.9 Ao observar esses romances, Girard intui um traço comum: a presença de uma dinâmica semelhante durante a descrição do desejo humano. Girard percebe que o desejo acontece indiretamente através da presença de um terceiro. Em outras palavras, o desejo precisa ser ensinado, necessitamos que alguém nos mostre o quê desejar. É importante ressaltar que desejo não se confunde com apetites. Apetites ‘envolvem coisas como comida e sexo, que não estão necessariamente ligadas a desejos, pois têm um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser 8 Id.ibid p.678. 9 Girard propõe nesta obra leituras de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e Dostoieviski. 15 contaminado pelo desejo mimético a partir do momento em que exista um modelo – a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético’10. Desse modo, nosso apego ao objeto do desejo é de certa maneira predeterminado. Entretanto, nem sempre essa predeterminação é percebida porque quase nunca recorremos a esse primeiro estágio e adotamos a imitação como expressão genuína do nosso próprio desejo. Esse é o x da equação de Girard: a crença na suposta autenticidade do desejo e na ilusão de autonomia por ela conferida. Vejamos: Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto e desejo. Ou seja, se ‘meu’ desejo tem sua origem na minha individualidade, então, ele é fixo – característica dos instintos, que nada são individuais! A mobilidade do desejo, em contraste com a fixidez dos apetites, decorre da imitação. Aí reside a grande diferença: todos nós temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético 11 pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem que escolher um modelo’ Continuando com esta intuição, Girard observa também duas formas diametralmente opostas de se relacionar com a mediação do desejo. Daí o título do livro. A mentira romântica estaria em negar o mimetismo do desejo, em postulá-lo como algo natural e espontâneo. Para observar como também vivenciamos esta postura, basta retomar o clichê do ‘amor à primeira vista’, quando, pela ótica mimética, é o nosso modelo quem nos indica por quem devemos nos apaixonar. Na verdade, essa é uma fórmula tipicamente shakespeariana, apenas iluminada por Girard. É muito comum nas peças de Shakespeare que um personagem se apaixone por outro sem jamais tê-lo visto. Como é possível? Se lida com olhos girardianos, Shakespeare, na comédia Muito barulho por nada, responde da seguinte forma: Agora, Úrsula, quando percebermos que Beatriz se escondeu, continuando 10 11 GIRARD, 2000, p.84. Id. Ibid, p.84 e 85. 16 nossas voltas, façamos que a conversa gire em torno, tão-só, de Benedito. Sempre que eu pronunciar o nome dele, trata de cumulá-lo de louvores como nenhum mortal os merecera. Toda minha conversa há de cingir-se a um só tema: a paixão de Benedito por Beatriz.Desse jeito é que o pequeno deus cupido prepara as suas setas, que ferem só de outiva.12 (grifo nosso) É claro que esse mecanismo, na maioria das vezes, é acionado sem a nossa consciência, muitas vezes não temos noção da presença do nosso modelo. Por outro lado, há aqueles romances que assumem a verdade romanesca, a mediação do desejo. Todavia, apesar das diferentes formas de enxergar essa mecânica, a matéria-prima da literatura continua sendo o desejo. Sob esse prisma, correntes estéticas e filosóficas como romantismo, realismo, subjetivismo, objetivismo, individualismo, idealismo, positivismo tornam-se apenas modos distintos de traduzir essa mediação. Nesse sentido, buscar entender o desejo equivale a fazer teoria literária, a tentar compreender uma metalinguagem não só da literatura, mas da própria sociedade que, contada em seus enganos e desenganos, acaba por explicar a vida. Embora pouco convencional, Girard recupera aquilo que talvez fosse a dimensão primeira da literatura – as relações interpessoais. Contudo, não se trata aqui da defesa de um modelo realista tradicional, mas de um possível entendimento do propriamente humano, do desejo. Partindo da premissa de que desejamos por imitação, Girard observa que em muitos momentos não desejamos um objeto apenas por uma qualidade particular que é apontada pelo modelo, mas para nos tornarmos como o modelo. Para vermos como isso 12 Muito barulho por nada de W. Shakespeare. In: Comédias.Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p.451. 17 funciona na prática, basta lembrar as propagandas e as razões para o seu sucesso. Dentro dessa lógica, Girard identifica um componente importante em toda relação mimética: o distanciamento. Em situações em que há distância entre sujeito e o mediador, a mímesis tende a ser produtiva, pois não há busca por exclusividade e sim por um ideal a ser seguido, como acontece na imitação de Cristo para um cristão ou a imitação d´Amadis de Gaula para Dom Quixote. O mesmo não ocorre quando há aproximação do modelo. A relação mimética torna-se competitiva, o impulso sobre o objeto recai sobre o mediador. Essa rivalidade pode ser facilmente observada quando uma criança começa a interagir com outras crianças. Santo Agostinho nas Confissões relata esse tipo de mediação da seguinte forma: Em que podia pecar, neste tempo? Em desejar ardentemente chorando, os peitos de minha mãe? (...) Assim, a debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de inveja, que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o irmãozinho de leite. Quem não é testemunha do que afirmo? Diz-se até que as mães e as amas procuram esconjurar este defeito, não sei com que práticas supersticiosas. 13 Notem que a rivalidade começou não pelo risco de perder o objeto, não há nenhuma referência ao risco do leite não ser suficiente para ambas; mas, a exclusividade do objeto foi ameaçada, por isso a relação mimética tende a se tornar competitiva. Como nos modelamos a partir de outrem, é natural que o desejo mimético apreenda também os objetos que o outro possui. Esse mimetismo infantil em nada difere do mimetismo do adulto; a não ser pelo fato de que no mundo do adulto essa modelagem é em todo momento camuflada. O desejo começa através da mediação de alguém que tomamos por modelo e terminamos por considerá-lo como um inimigo, pois passamos a invejá-lo. Sim, invejamos, a palavra é feia, nunca a admitimos, mas é o que acontece. O 13 Santo Agostinho. Confissões, I, 7. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrosio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2000, p.30. 18 objeto desejado perde sua importância ante o desejo de ser como o modelo, de ser o próprio modelo. A observação dessas mediações e suas respectivas conseqüências viabilizou a Girard uma nova leitura de Proust, talvez um Proust menos lírico e mais cético, diria até mais pungente; além de um vasto material de pesquisa sobre o qual procuramos iniciar uma leve abordagem ao longo deste trabalho. Mas, voltando a Proust, confesso que inicialmente, Em busca do tempo perdido se apresentou a mim como um grande teatro onde grandes dramas eram encenados; intermináveis monólogos ensaiados; diários e pequenas fotografias expostas em pátina, denunciando o tempo que passa, além de uma coleção de objetos que já não existem mais... E tudo isso embalado ao som de uma vagarosa melodia, estranha, mas de certa forma familiar também. Não sei se faz algum sentido para os demais leitores de Proust semelhante geografia, mas foi assim que percorri as páginas do romance. Em meio a tantas memórias, para tentar me guiar, adotei a estratégia de costurá-las em um pentagrama a fim de guardar algo daquela melodia. Encontrei no percurso do narrador para a vocação literária um possível diapasão. Durante esse período de leitura e transcrição, tive a feliz surpresa de encontrar nos textos de Girard, a tradução dessas lembranças em experiência romanesca. Com essa nova sintaxe, ganhei um novo romance, outro concerto... A partir dessa leitura do desejo como algo fabricado e compartilhado, pontos de intersecção podem ser encontrados nas mais variadas relações – entre personagens; entre autor e leitor; autor e narrador; entre autor e a obra e, por que não entre autor e autores, entre literaturas? Chego ao motivo desse prelúdio. Uma possível chave interpretativa. Se ‘cada escritor cria seus precursores’, como disse Borges, a base comum entre eles pode estar na teoria do desejo mimético. Ora, o que seria capaz de 19 reunir homens de lugares, épocas e culturas tão diversas entre si? Penso que uma resposta coerente deve remeter a algo de natureza antropológica, algo capaz de religar o homem a sua própria humanidade. Girard sugere o desejo mimético. No plano da leitura, esse reencontro pode ser observado pelo próprio movimento realizado por Girard em direção ao seu objeto de estudo. Lembrando que a gêneses da teoria mimética se encontra na leitura de diferentes literaturas, inclusive a de Proust, Girard, ao fazer teoria literária, acaba refazendo o mesmo movimento apontado por Borges. Afinal, foram Shakespeare, Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust, Dostoievski entre outros que anunciaram e anunciam o desejo mimético, mas foi Girard quem o traduziu. Logo, podemos ler essa tradução como uma dupla certidão de nascimento. Na primeira, o desejo mimético é registrado; na segunda, Shakespeare, Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e Dostoievski e toda uma tradição literária renascem. Assim, nesse cartório, a cada leitura, uma nova literatura nasce e com ela um pouco da humanidade também. É como se, no fundo, o trabalho do escritor, vale dizer, do leitor, fosse recolher essas vozes, descobrir seu tom e reuni-las sob uma nova harmonia. Nesse sentido, ler é fazer arqueologia. É buscar por essa nota misteriosa que reúne os povos e atravessa os tempos silenciosamente... 20 1. PRIMEIRO MOVIMENTO: RENÉ GIRARD - UMA POÉTICA DO PARADOXO Nomais, Canção, nomais; que irei falando, Sem sentir, mil anos. E se acaso te culparem de larga e de pesada, Não pode ser – lhe dize limitada A água do mar em tão pequeno vaso. Nem eu delicadezas vou cantando Co gosto do louvor, mas explicando Puras verdades já passadas. Oxalá foram fábulas sonhadas Luís de Camões, Lírica ‘O homem difere dos outros animais por sua maior capacidade de imitação’, diz Aristóteles na Poética. No entanto, para que partamos de um mesmo terreno, é preciso deixar claro sobre qual perspectiva inserimos esse texto. Pedimos para que quando falarmos em mímesis, o leitor leia imitação. É com esse sentido, retomado da tradição clássica, que procuramos trabalhar. Somos miméticos. A própria existência da língua comprova nossa capacidade de imitação. Caso contrário, não seríamos capazes de compartilhar códigos, afinidades, comportamentos... Imitação. É desconfortante ouvir. Ainda mais em tempos como o nosso, em que a originalidade está em alta, imitar soa como um retrocesso, certa incapacidade, não é verdade? Segundo Girard, essa indiferença em relação à mímesis não é gratuita, pois ‘acredita-se que, ao insistirmos no papel da imitação, estaríamos acentuando os aspectos gregários da humanidade, tudo aquilo que nos transforma em rebanhos. Teme-se minimizar tudo o que vai em direção à divisão, à alienação do conflito.’14 Como se, ao assumir a imitação, nos tornássemos cúmplices de certa 14 GIRARD, 2008 b, p.28. 21 uniformização. Exagero? Talvez, não. Façamos o seguinte exame: Por que todo mundo é contra a moda? Por que tanto a sua renúncia como a sua adoção, na verdade, são uma questão de moda? Ora, todos nós queremos ser diferentes. Trabalhamos para isso. Identidades são construídas sobre esse pilar. Afinal, cada grupo se diferencia dos demais pelos objetos que desejam. É a exclusividade do objeto que sustenta o modismo e também a identidade do grupo. Como todos buscam a diferença, mais cedo ou mais tarde, a exclusividade prometida por determinado modismo se esvai como fumaça pelo ar. É por isso que a moda acaba saindo de moda. É também por isso que somos hostis à moda e a qualquer tipo de imitação. Essa aversão à imitação repousa em última análise em uma concepção que remonta a Platão. Na República, Platão fala de imitação sempre como representação através de exemplos sobre comportamentos, hábitos, modos de falar etc. Nunca como comportamentos de apropriação. Ora, se somos capazes de imitar os mesmos gestos, apreciar as mesmas coisas, por que não imitaríamos os desejos? Por que não buscaríamos possuir as mesmas coisas? Embora não apresentada nessa dimensão, Platão desconfia de uma força desagregadora na mímesis, de possíveis rivalidades. No livro X, durante o episódio da expulsão do poeta da República, Platão o expulsa porque ‘a atividade artística que é uma forma de mímesis e não o inverso’. 15 Apesar da suspeita, Platão não concebe a mímesis nessa dimensão apropriativa. Dimensão negligenciada também por Aristóteles e por toda uma tradição filosófica que o sucedeu. Nesse quadrante, o emprego da mímesis se limitou apenas às modalidades de imitação sem entrar na ordem dos conflitos. Girard diz que Isso não é um simples ‘erro’ ou ‘esquecimento’: é uma espécie de repressão do próprio conflito mimético. Há nessa repressão algo de fundamental para todas as culturas humanas, mesmo a nossa. As 15 GIRARD, 2008 b, p.36 22 sociedades primitivas reprimem o conflito mimético proibindo, é claro, tudo o que poderia suscitá-lo, mas também dissimulando-o por trás dos grandes símbolos do sagrado, como a contaminação e a mácula etc. Essa repressão perpetua-se entre nós, mas sob formas paradoxais. (...) Em vez de temê-la, nós a desprezamos. Estamos sempre ‘contra’ a imitação, mas de um modo diferente de Platão; nós a expulsamos um pouco de toda a parte, mesmo da nossa estética. Nossa psicologia, nossa psicanálise e mesmo nossa sociologia só lhe concedem espaço a contragosto. Nossa arte e nossa literatura esforçam-se por não se parecer com nada ou com ninguém, mimeticamente.16 Esse esforço já se encontra de certa forma, em O mercador de Veneza, na cena em que Bassânio olha fixamente para o retrato de Pórcia, O retrato de Pórcia, a inigualável? Que semideus já se encontrou tão perto da criação? Esses olhos se deslocam? Ou parece que o fazem, tão somente porque na órbita os meus também se movem? Doce hálito perpassa entre esses lábios. Jamais barreira tão suave amigos tão gratos separou. Nestes cabelos fez-se aranha o pintor e uma áurea teia preparou, para nela se enredarem os corações dos homens mais depressa do que nas verdadeiras os mosquitos17 (grifo nosso) Incapaz de contemplar toda a beleza de Pórcia, Bassânio faz do retrato um meio para admirar Pórcia. Shakespeare, com esse artifício da réplica sobre o original, prenuncia um possível debate sobre a crise mimética que vivemos hoje. Notem que antes do Renascimento, a pintura buscava se concentrar na realidade empírica. Havia um respeito em relação à superioridade da criação divina sobre a criação humana. Depois do Renascimento, as reproduções roubam a cena. A ênfase que antes era dada a um determinado modelo é deslocada para a criação humana, para o processo de reprodução em si mesmo. Instaura-se, assim, um clima de competição entre os artistas e 16 GIRARD, 2008 b, p. 38 e 39 O mercador de Veneza de W. Shakespeare. In: Comédias. Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008. 17 23 uma espécie de veto à imitação. Com isso, ‘o receio de repetir o que os outros já tinham feito, ou estavam prestes a fazer, tomou o lugar do antigo medo de não imitar com suficiente fidelidade’18, acelerando uma cadeia de sucessivas buscas por originalidade. Ainda sobre nosso desprezo à imitação, algumas observações são necessárias: Existe uma mudança de eixo dentro da arquitetura da teoria mimética. Na contramão de Kant e da própria modernidade, se assim podemos dizer, Girard, ao apresentar o desejo mimético como parte constituinte do ser humano, esvazia o sujeito do seu centro de decisão. Na prática isso significa que o sujeito deixa de ocupar o lugar central na produção da realidade e do conhecimento para partilhá-lo com outros sujeitos. É importante chamar atenção para o fato de que a teoria mimética não pretende negar a subjetividade, pois seria um absurdo se assim o fosse, mas relativizar a capacidade do sujeito de decidir por si próprio. Em outras palavras, se o desejo é sempre compartilhado, ou seja, se não parte do outro como fim, como finalidade, mas como princípio, então como pode o sujeito ocupar sozinho o centro de decisão? Crer em um sujeito autocentrado é nesse sentido negar o caráter relacional do desejo, sua natureza mimética. É acreditar na mentira romântica, pois. Dentro da lógica em que o desejo depende da participação do modelo, conscientemente ou inconscientemente adotado, aquilo que chamamos de originalidade se assemelha ao ouro que em certas fábulas vira pó, apenas uma ilusão. Mas, como é caro desfazer ilusões... 18 GIRARD, 2010, p. 605. 24 2.1. DESEJO TRIANGULAR – A BASE DE UM INTERMINÁVEL PARADOXO Dissemos anteriormente que o homem deseja por imitação, logo, depende de mediação. Nessa perspectiva, a configuração do desejo deixa de ser linear (do sujeito ao objeto) e adquire uma forma triangular (sujeito – mediador – objeto). A partir dessa nova silhueta, Girard identifica que a qualidade da mímesis era influenciada pela distância entre o sujeito e o mediador.19 Nos casos em que o modelo encontrava-se distante do sujeito, Girard nota que a qualidade mimética tende a ser produtiva, pois a mímesis ganha uma dimensão agregadora, reúne sujeito e modelo sob ideais comuns. É o que acontece em Dom Quixote de La Mancha. De tanto ler Amadis de Gaula, Alonso Quijano se transforma em Dom Quixote. São os códigos e as aventuras da cavalaria que são desejados. Porém, conforme o mediador se aproxima, o desejo que antes se limitava a uma especulação intelectual, aos ideais, é transferido para os objetos desejados pelo modelo, instaurando, portanto, uma disputa. Vale lembrar que no desejo tudo, a não ser a fome pelo sagrado, é teatral, pois não é na ordem do real que o desejo se inscreve, mas da metafísica. É preciso crer em uma transcendência, em uma promessa de felicidade, para desejar. Com a aproximação do mediador, o sujeito projeta sobre o objeto essa promessa de felicidade, acreditando que a posse exclusiva deste lhe renderá passaportes para outros mundos, para uma realidade sonhada. Por sua vez, o modelo continua fiel à posse do objeto, lutando pelo seu domínio. Conclusão: instaura-se o conflito. Para a sorte de nosso Dom Quixote, o modelo é literário (as novelas de cavalaria) incapaz de oferecer alguma ameaça à exclusividade do objeto, eliminando assim a possibilidade de 19 Para melhor desenhar os efeitos da influência da distância sobre as relações miméticas, Girard classificou os casos em que sujeito e modelo estão distantes como mediação externa e as situações em que há proximidade entre sujeito e modelo como mediações internas. 25 um confronto. Mas, imaginem se Amadis de Gaula fosse vizinho de Alonso Quijano. Certamente a história seguiria por trilhos bem diferentes. Sobre o papel do distanciamento na configuração do desejo, Girard em ‘Conversion in Literature and Christanity’20 compara o grau de rivalidade entre sujeito e modelo durante a mediação com os círculos do inferno da Divina Comédia. Essa analogia é pertinente não só na medida em que nos apresenta a distância entre sujeito/mediador como grandezas proporcionais, mas também porque chama atenção para algumas leis do desejo mimético (sobre esse ponto trataremos um pouco mais adiante). Em relação à distância, a lógica é a seguinte: quanto maior for a distância, mais vasto se torna o círculo infernal e mais estável será a mediação. Isso significa que menos penosa será a relação mimética, pois o objeto é empobrecido de desejo metafísico. Agora, conforme a distancia é reduzida, mais estreito se torna o círculo e a relação cresce em rivalidade. Aumenta-se o desejo de ser como o outro através da posse do objeto, pior, não só do objeto, mas da própria figura do outro. Dentro desse raciocínio, a eliminação do modelo torna-se inevitável. Além do dilema ético, existe em todas essas figurações miméticas uma sombra, uma zona de ressentimento. Na realidade, o que acontece é uma inversão da cronologia dos desejos. O sujeito afirma que seu desejo é anterior ao do modelo. Não reconhece a mediação e tampouco a sua responsabilidade pelo conflito. Dentro dessa ótica, o sujeito, para preservar a autonomia do seu desejo, deprecia tudo o que remete ao modelo, enxergando-o e apresentando-o aos demais como um inimigo, um intruso. Entretanto, há nessa raiva algo de veneração também, pois para eleger um modelo é preciso admirá-lo antes. A esse impasse, o sujeito acrescenta uma mistura de frustração (por não se considerar aceito pelo modelo como discípulo), de orgulho (por não conseguir se assumir discípulo), e de inveja (que 20 In: GIRARD, 2008a. 26 confere prestígio ao modelo em detrimento do ‘eu’), estreitando cada vez o círculo dessa mediação. Um exemplo extremo dessa relação mimética talvez seja Os Demônios de Dostoievski. No romance, Stravoguine, o personagem principal, funciona como o mediador de todos os outros personagens. Todos, através de atitudes de aparente indiferença, o veneram secretamente. Se lermos ao avesso a angústia e a raiva experimentadas pelos personagens, vamos identificar uma espécie de amor divino. Uma promessa de felicidade a ser cumprida pelo modelo, independentemente da afirmação ou da negação de Deus, pois, como já dissemos, a ordem do desejo é metafísica. O inferno em Os Demônios encontra-se justamente na frustração dessa promessa, uma vez que ‘a mesure que le ciel se dépeule le sacré reflue sur la terre; il isole l´individu de tous les biens terrestres; Il creuse, entre lui et l´ici-bas um gouffre plus profond que l´ancien au-delà. La surface de la terre où habitent les Autres devient un inacessible paradis.’21 Embora em menor grau, o frenesi e o desencanto presentes no mundo d´Os Demônios já se encontra em Flaubert com Madame Bovary. Na verdade o bovarismo é feito dessa mesma matéria: a necessidade de uma transcendência e o fracasso de um projeto de auto-divinização. Os heróis de Flaubert experimentam a amargura de não conseguir se igualar aos modelos que eles se propõem (além de nunca, NUNCA, admitir a eleição desses modelos). Dentro dessa pretensão, os personagens não conseguem perceber que são eles mesmos quem se depreciam e se condenam. Como alternativa para escapar desses julgamentos, Emma Bovary se refugia nas paixões com a expectativa de uma possível transcendência. Daí surge o termo bovarismo que comumente associamos a uma fuga de realidade, mas, vale ressaltar, de uma realidade que a própria personagem se impôs. Notem que quando Emma escreve cartas de amor 21 Os demônios. Apud. Girard, 1961, p.78 27 para Rodolfo, um de seus amantes, na verdade, é sobre a natureza metafísica do desejo que se escreve. Mais, en écrivant, elle percevait un autre homme, un fantôme fait de ses plus ardents souvenirs, de ses lectures les plus belles, de ses convoitises les plus fortes; et il devenait à la fin si véritable, et accessible, qu´elle en palpitait, émerveillée, sans pouvoir néanmoins le nettement imaginer, tant il se perdait, comme um dieu, sous l´abondance de ses attributs.22 O interessante em todas essas situações de mediação interna do desejo é que todas, sem exceção, buscam esconder o modelo, instaurando assim uma espécie de contra-imitação. Dizendo de outro modo, de tanto tentar se diferenciar do modelo, o sujeito acaba por se tornar igual a ele. Essa é a estratégia narcísica, por excelência; fingir que não há modelos. Durante a leitura de Em busca do tempo perdido encontramos diversas cenas que apontam para esse mecanismo. Citamos o ‘passeio no dique’ dos burgueses em férias em Balbec: Todas as pessoas (...) fingiam não se ver, para dar entender que não se preocupavam umas com as outras, mas olhando à esquiva, para evitar encontrões, as pessoas andando a seu lado, ou vindo em sentido inverso, não obstante se chocavam com elas, enredavam-se nelas, pois tinham sido reciprocamente, de sua parte, alvo da mesma atenção secreta, oculta sob o mesmo desdém aparente’23 Notem que nesse episódio todos se tornaram indiferenciados. É a cartilha de um difícil imperativo que é seguida. Quando o modelo, aos olhos do sujeito, diz ‘imite-me, pois tenho a chave da felicidade’, logo em seguida ecoa um ‘não me imite’. Com esse duplo comando, o modelo rouba a cena, estimulando a rivalidade mimética. Não queremos dizer com isso que o modelo seja o culpado da rivalidade, somente chamamos atenção para essa forma egoísta de desejar. Forma pela qual também desejamos e que 22 23 Madame Bovary. Apud. GIRARD, 1961, p.80. PROUST, À sombra da s raparigas em flor, 2004, p.788. 28 não cessamos de imitar. ‘No passeio no dique’, pode-se observar que em decorrência da crescente aproximação física entre o sujeito e o modelo, a mímesis se torna cada vez mais simétrica, pois, ‘à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo’24; portanto, alvo da mesma atenção secreta, oculta sob o mesmo desdém aparente. Em casos como este onde há uma dupla mediação, a simetria entre os envolvidos resulta na produção de duplos, reduzindo sujeito e modelo aos papéis de rivais. Entretanto, conforme a mímesis se converte em antagonismo, mais membros da comunidade são envolvidos em seu mecanismo. Isso porque para quem assiste à disputa, o objeto desejado torna-se precioso, caso contrário, não estaria dentro de uma disputa. Porém, após essa cobiça inicial o objeto tende a desaparecer. A rivalidade, por contágio mimético, fabrica cada vez mais duplos, acirrando uma crise de indiferenciação. Girard, partindo da literatura, desenvolve a intuição do desejo mimético, meditando sobre a influência que exercemos uns sobre os outros. Contemplação, inveja, ciúme, frustração, conflitos, nessa ótica, soam como respostas aos efeitos da mediação. Entretanto, a observação de Girard partiu de sociedades já constituídas, organizadas sobre mecanismos de controle de violência. Mas, e antes disso? Imaginem a rivalidade de uma mediação interna generalizada em âmbitos civilizacionais. Seria um curtocircuito mimético! A partir desses questionamentos em relação às crises miméticas, Girard investiga como esses conflitos podem ser superados ‘entre grupos de hominídeos que ainda não haviam desenvolvido atributos considerados humanos – linguagem, 24 GIRARD, 2000, p.87 29 instituições, proibições, entre outros. Como a violência mimética pode ser controlada na ausência de formas de mediação que integram o que denominamos cultura?’25 Cultura, etimologicamente, significa plantar/colher, ou seja, a criação de uma raiz comum. Nesse sentido, o que é a língua senão uma superfície comum na qual transitamos, aprendemos, imitamos? Porém, quanto mais esses horizontes comuns se ampliam, maiores são as chances de conflito, pois maiores são as incidências de mediação interna. Para conter os efeitos dessa mediação, criam-se as instituições. Seguindo essa linha de raciocínio, pode se observar já nos principais interditos (interditos de objeto, sexual e alimentar) essa dimensão desagregadora da mímesis. ‘Não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não darás falso testemunho contra o próximo; não cobiçarás a casa do teu próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença’26. Observem que o limite é sempre fixado no próximo, pois ele constitui o modelo. Por extensão, tudo que pertence ao próximo passa a ser vetado também. Afinal, esses seriam os objetos mais próximos aos demais membros do grupo, portanto, mais suscetíveis de rivalidade mimética. (É claro que a proibição pode surtir um efeito contrário, mas, em tese, ela funciona como mecanismo de controle.) A alternativa sugerida por Girard, dentro do contexto dos hominídeos, é o mecanismo do bode expiatório. Se não há mais objeto visível nas crises miméticas, a solução pode estar em trazer à cena outro objeto. Assim, ‘a violência, antes indiscriminada, de todos contra todos na disputa fratricida pelo(s) mesmo(s) objeto(s), é dirigida arbitrariamente contra um único membro do grupo. Todos se voltam contra ele, canalizando a violência que, de geral e inespecífica, portanto anárquica e 25 26 Id.ibid, p.17. Êxodo 20, 13-17 30 autodestruidora, adquire uma direção única, por isso mesmo, re-ordenadora do grupo.’27 Dizendo de outro modo, culpamos o bode expiatório pela nossa violência e a expiamos durante o sacrifício deste. Eis aqui mais um paradoxo da teoria mimética: como é através do sacrifício que a paz e a ordem voltam ao cenário, o bode expiatório que antes era visto como culpado passa a ser divinizado. Nesse sentido, podemos entender por que os ritos das mais diversas religiões geralmente começam por uma desordem, com uma re-encenação da crise mimética, e terminam com o sacrifício. De acordo com essa premissa, a violência não seria um mal-estar da civilização, mas a condição para o surgimento da cultura. Muitos estudiosos da teoria mimética apresentam o pensamento de Girard como uma espiral cujos desdobramentos são impossíveis de se determinar a priori. Nunca se sabe onde nem como o mimético vai se instalar. O próprio Girard diz que ‘a análise mimética não é uma receita. Jamais deve ser reduzida a uma receita pronta, já que o mimético é fluidez absoluta. O mimético é anti-sistêmico por excelência na medida em que a própria realidade impõe constantes requestionamentos.’28 Acompanhando essa fluidez, a teoria mimética nos surpreende ao alcançar crescentes graus de complexidade. Da hipótese do desejo triangular, a teoria desenha durante seu percurso pela cultura uma possível matriz originária e original daquilo que é propriamente humano. Além da ambição desse debate, a teoria mimética repercute uma dimensão ética: Se me reconheço mimético, enxergo minha violência, então, consigo perceber a mentira do mecanismo do bode expiatório. Ao perceber que sou co-partícipe da violência mimética, em vez de acusar o outro, posso ao menos partilhar a culpa. Isso, acreditem, já seria muito... 27 João Cesár de Castro Rocha. Introdução à edição brasileira de Shakespeare. Teatro da inveja, p.19. R.Girard. ‘A teoria mimética não se limita à crítica das linguagens’ In: Assmann, Hugo (org) René Girard com os teólogos da libertação. Um diálogo sobre ídolos e sacrifícios. Petrópolis: Vozes, 1991, p.41. 28 31 2.2. SEJAMOS SACRIFICADORES, NÃO CARNICEIROS 29 Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem Lucas 23, 34 Na contramão de Freud e de outros filósofos da modernidade, Girard, ao defender a instabilidade do eu e a necessidade de recorrer aos outros para a configuração da identidade, apresenta também uma nova forma de compreensão da violência. Diferentemente da ideia de um instinto ou de uma pulsão de morte em que a violência é vista como algo externo ao homem, na teoria mimética a violência é intrínseca ao mimetismo. Para compreender essa inversão de perspectivas, é preciso orientar o desejo para a própria violência, ou seja, para o rival, uma vez que é por ele que o sujeito deseja. Não se trata apenas de uma identificação do rival, mas de definir sua posição de modelo para a confecção dos desejos. Ao mostrar o homem como um ser que sabe perfeitamente o que deseja, ou como um ser que tem sempre um ‘inconsciente’ que sabe por ele, os teóricos modernos deixam em segundo plano aquilo que a teoria mimética entende como o centro das relações pessoais, as incertezas humanas. Pois, Uma vez que seus desejos primários estejam satisfeitos, e às vezes mesmo antes, o homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual algum outro parece-lhe ser dotado. O sujeito espera que este outro diga-lhe o que é necessário desejar para adquirir este ser. Se o modelo, aparentemente, já dotado um ser superior, deseja algo, só pode se tratar de um objeto capaz de conferir uma plenitude de ser ainda mais total. Não é por meio de palavras, mas de seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto sumamente desejável Dessa forma, Girard reavalia o caráter ambivalente da mímesis. Se por uma lado ela possibilita a formação de um grupo através de zonas comuns compartilhadas pela 29 Conferir Júlio César de W. Shakespeare e o capítulo 24 de Shakespeare. Teatro da inveja de R. Girard. 32 cultura; por outro ela pode ser a causa da destruição desse mesmo grupo. À medida que a mímesis cresce em rivalidades, a tendência é que ela se torne cumulativa, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o bode expiatório. Para encerrar a crise mimética, é fundamental que o grupo acredite na culpa daquele que foi escolhido como bode expiatório. É a crença dessa culpa que legitima o assassinato em sacrifício, convertendo o linchamento em acontecimento ritual. Por essa razão, o rito sempre repete indefinidamente esse mecanismo mimético com vítimas substitutas. Assim, por corresponder à resolução de um conflito, o rito sempre surge em situações de crise, funcionando como uma instituição reguladora. A essa leitura dos ritos e das religiões, Girard propõe um enfoque antropológico capaz de iluminar possíveis bases para o nascimento da cultura e para um entendimento do homem de uma forma abrangente, incluindo a violência como parte constitutiva deste. Para prosseguirmos nessa leitura da violência, uma observação é importante: Como, especialmente depois do Iluminismo, o ambiente intelectual se tornou antireligioso em sua grande maioria, a interlocução com um estudo das religiões e sua implicação sobre as mais diversas esferas do saber é emudecida, quando muito ganha uma dicção um tanto confusa, geralmente associada a superstições. Mas para compreender os desdobramentos da teoria mimética, o estudo do religioso faz-se necessário, afinal, estamos trabalhando com a hipótese de um começo, um começo da cultura e das instituições. Portanto, para continuarmos dialogando com essas ideias, devemos perceber uma função real no sacrifício. O papel de proteger a comunidade de sua própria violência, pois o sacrifício polariza sobre a vítima os germes de desavenças espalhados por toda parte. Nesse sentido, quando se escolhe uma vítima como bode expiatório, não se escolhe um substituto para tal ou tal indivíduo particularmente ameaçado, mas a todos os membros da sociedade. É uma catarse coletiva. Vale lembrar 33 que antes dos concursos de tragédias, fazia-se o sacrifício do bode. Trágos significa bode, e tragoidía, a ode a esse animal. Girard diz que ‘essa é a ‘literarização’ (literarization) do sacrifício. (...) Os sacrifícios sanguinários vieram primeiro e, mais tarde, foram substituídos por evocações verbais da mesma coisa – o mito, a épica, a tragédia, etc.30 Em Medéia de Eurípides, por exemplo, Medéia substitui o verdadeiro objeto do seu ódio por seus filhos. Lendo pela lógica do sacrifício, Medéia revela que caso a violência não seja saciada, ela continua a se acumular até transbordar, espalhando-se com os mais desastrosos efeitos. O sacrifício procura controlar e canalizar para a ‘boa’ direção as desavenças, as rivalidades, os ciúmes, as disputas entre próximos, restaurando a harmonia da comunidade. É importante lembrar que para manter a eficácia do sacrifício, é de extrema importância que a vítima seja vista como culpada. Partindo desse princípio, na peça Júlio César de Shakespeare, Brutus define como deve ser a apresentação do sacrifício, inconsciente de sua própria violência; Assim, parecerá, quando fizermos, necessário, sem laivo de inveja, o que aos olhos do povo há de ensejar-nos sermos chamados purificadores, não assassinos.31 Trazendo a lógica do sacrifício para os dias de hoje, observamos a atualidade desse recurso. Embora de forma secularizada, sacrificamos o tempo todo. Como na modernidade a oferta de modelos é grande, a mediação interna passou a predominar as relações sociais. Já não há mais diferença, no plano do desejo mimético, entre as pessoas de um patamar social mais baixo e aquelas de um patamar mais alto, por exemplo. Ambas desejam os mesmos objetos; ao passo que antes, para os 30 GIRARD, 2000, p.128. Júlio César de W. Shakespeare. In: Tragédias. Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008. 31 34 desprivilegiados essa posse era inviável. Outro exemplo poderia ser as novas tecnologias de comunicação que propagam com velocidade o contágio mimético e assim por diante. Com essas mudanças, é natural nos tornarmos cada vez mais indiferenciados. A mediação externa tende a se tornar mais rara neste cenário, restando apenas a lógica do modelo/rival. Para conter essas rivalidades, o skándalon32, acionamos com uma recorrência maior o mecanismo do bode expiatório em escalas cada vez menores. Podemos dizer que na modernidade a teoria mimética se desenvolve em miniaturas, pois ‘a era dos escândalos na qual vivemos corresponde a um deslocamento do desejo. Um grande skándalon coletivo equivale ao pequeno skándalon entre dois vizinhos multiplicado muitas vezes’33 Entretanto, existe um caráter oportunista que permeia a cadeia dos escândalos. Os pequenos escândalos tendem a se unir a um escândalo maior, este por sua vez, engloba todos os escândalos menores até restar um único escândalo – uma única vítima – o bode expiatório. Para exemplificar como a crise de indiferenciação e a solução via sacrifício acontecem na prática, hoje, basta lembrar os reality-shows como o Big Brother. Afinal em que consiste o famoso ‘paredão’ senão uma forma de sacrifício? Todos contra um, contra o suposto culpado. Proust apresenta esse traço arbitrário da eleição do bode expiatório e a secularização do sacrifício através do episódio do caso Dreyfus34. No romance 32 Segundo o Dictionnaire Grec Français (1984) de Anatole Bailly, skándalo significa ‘armadilha posta no caminho, obstáculo para fazer cair’. Sobre skándalon, Girard diz que ‘é preciso ver em todas as violências míticas e bíblicas acontecimentos reais cuja recorrência, em todas as culturas, está ligada à universalidade de certo tipo de conflito entre os homens, as rivalidades miméticas, que Jesus chama de escândalos (...) este termo grego vem de um verbo que significa ‘mancar’, e o manco parece alguém ‘que segue como uma sombra, um obstáculo invisível sobre o qual vai tropeçando incessantemente’. Girard salienta que ‘escândalo significa não um desses obstáculos comuns por nós facilmente evitados, depois de termos tropeçado neles a primeira vez, mas um obstáculo paradoxal quase impossível de evitar: quanto mais o escândalo nos repele, mais nos atrai (In: GIRARD, R. Je vois satan tomber comme l´éclair. Paris: Grasset, 1999, p. 36-9.) 33 GIRARD, 2000, 89. 34 Alfred Dreyfus (1859-1935) oficial do exército francês de origem judaica, foi acusado erroneamente de ter transmitido segredos militares ao major alemão Schwartzkoppen. Condenado em 1894, ele seria deportado à ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Em 1896, o comandante Picquart, convencido da inocência de Dreyfus e da culpa de outro oficial francês, Esterhazy, pediu a revisão do processo. Em 35 inacabado de Jean Santeuil, essas questões já estão presentes durante a narração das audiências do processo. No romance Em busca do tempo perdido, esse caso retorna desenhando um quadro político-social da França de 1894. Imaginem como um francês desse período deveria se sentir diante do constante perigo de uma invasão alemã. Dentro dessa atmosfera de tensão, é viável, para não dizer ‘necessária’, a criação de uma figura que reunisse sobre si tanta adversidade e as retirasse consigo. Foi isso que fizeram com Dreyfus, um bode expiatório capaz de garantir certo conforto em meio a tantas rivalidades. Desconfiar da culpabilidade de Dreyfus, nesse contexto, significa desconstruir uma possível paz momentânea, ou, ao menos, uma ilusão desta naquele momento. No caminho de Guermantes, em diversos momentos a conversa do salão Guermantes gira em torno da questão Dreyfus, apontando que ‘o caleidoscópio social estava em via de virar e que o caso Dreyfus ia preciptar os judeus no último degrau da escala social. 35 Nesse ambiente anti-dreyfusista, o marquês Robert Saint-Loup propõe outro olhar sobre Dreyfus, mas não encontra interlocução, correndo o risco de ser banido da roda aristrocrática, como podemos observar pelo discurso do Sr. Guermantes: Você há de confessar que, se um dos nossos fosse recusado no Jockey, e principalmente Robert, cujo pai foi seu presidente durante anos, seria o cúmulo. Que quer, minha cara? A coisa alarmou essa gente... Não posso condená-los, pessoalmente, bem você sabe que não tenho preconceito racial, acho que isso não é do nosso tempo e tenho a pretensão de marchar com minha época, mas, enfim, que diabo! Quando a gente se chama marquês de Saint-loup, não pode ser dreyfusista! 36 1898, Esterhazy seria declarado inocente e Picquart, mandado para Tunísia. É quando Zola publica seu texto ‘J´accuse’, no jornal Aurore, denunciando o anti-semitismo e a corrupção no Exército francês. Descobre-se que o coronel Henry fabricara dois documentos para condenar Dreyfus. O coronel se suicida e uma nova revisão do processo se inicia em 1899. Mas o Conselho de Guerra declara Dreyfus culpado, com circunstâncias atenuantes. Ele seria liberado dias depois, mas só reabilitaria no Exército em 1906. (Nota de Guilherme Ignácio da Silva para a tradução de No caminho de Guermantes. São Paulo: Globo, 2007, p. 118.) 35 PROUST, 2007, p. 207 . 36 Id.ibid, p. 258. 36 Em Sodoma e Gomorra, o debate volta à cena quando o narrador comenta sobre o dreyfusismo do príncipe Von O e obtém do Sr. Guermantes a seguinte resposta: ‘Mas sendo ele dreyfusista ou não, pouco me importa, visto que é estrangeiro. É-me perfeitamente indiferente. No caso de um francês, a coisa muda de figura’37. Sobre essa tentativa de preservação da hegemonia e da identidade presentes no mecanismo mimético, o narrador revela algumas leis: O sr. de Guermantes pronunciou com ênfase estas palavras: ‘Quando a gente se chama marques de Saint-loup, não pode ser dreyfusista!’. Bem sabia, no entanto, que era muito mais importante chamar-se ‘duque de Guermantes’. Mas, se o seu amor- próprio tendia antes a enxergar a superioridade do título de duque de Guermantes, talvez não fossem tanto as regras do bom gosto como as leis da imaginação que o levavam a diminuí-lo. Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o que vê nos outros. Pois as leis gerais que regulam a perspectiva na imaginação tanto se aplicam aos duques como aos outros homens.38 Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o que vê nos outros. Eis o sentido do desejo mimético! Sem essa base, não é possível reconhecer a violência mimeticamente engendrada. A admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, constata nossa insuficiência e nossa dependência do modelo. Como o outro não é passivo dentro deste mecanismo, pelo contrário, ele incentiva ainda mais o desejo do sujeito sobre seu objeto a fim de valorizar-se e aquilo que possui. Esse é o círculo infernal dos desejos e dos conflitos. Não aceitamos que procuramos no outro, através da observação do que ele possui, deseja, aparenta, uma forma de saber o que somos. Pela ótica da teoria mimética, essa atitude constituiria o pecado original. O orgulho que aspira à singularidade, concebendo essa singularidade primeiro como um prêmio que se deve vencer, depois como um fardo insuportável que tentamos freneticamente descarregar sobre os outros. A vitimização dos outros é 37 38 PROUST, Sodoma e Gomorra, 2004, p. 561. PROUST, 2007, p. 259. 37 uma defesa contra a autovitimização a que o fracasso do orgulho leva inevitavelmente.39 Mas, ‘aquele de vós que estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra’40. Pecar, etimologicamente, significa desviar-se do caminho. Podemos entender pecado como um escândalo, algo que desencadeia a rivalidade mimética. Girard durante uma leitura antropológica das Sagradas Escrituras demonstra um entendimento crescente da inocência da vítima. Opostamente aos mitos pagãos em que o bode expiatório era visto como culpado, os Evangelhos desmistificam essa crença ao apresentar a imolação do sagrado. Ora, se o próprio sagrado é sacrificado, como pode ser a vítima culpada? Paulo na I Epístola aos Coríntios, responde da seguinte maneira: ‘Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam sabedoria; mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos’. Em outras palavras, Paulo prega o escândalo da cruz, o não entendimento sobre o qual sempre tropeçamos - um Deus impotente que humildemente sofre perseguição. A essa resposta se acrescenta a fala de Jesus: ‘A pedra rejeitada pelos construtores torna-se a pedra fundamental da edificação’41, ou seja, uma definição do sistema vitimador que funda a sociedade. No episódio em que Jesus anuncia a paixão a Pedro e este o refuta, dizendo que isso não aconteceria, Jesus manda Satã sair da sua frente. Satã também é um escândalo, uma pedra de tropeço. ‘Satanás’ quer dizer ‘o acusador, esse é o significado mais antigo da palavra e repete o momento final do ciclo mimético com a escolha do bode expiatório (...)’42 De acordo com a teologia tradicional, não há menção a Satã como um ser ou uma entidade, podemos compreendê-lo mais como o sujeito da mímesis nociva. Isso não quer dizer que exista uma manipulação superior na mímesis. O sistema funciona sozinho. Embora fosse 39 GIRARD, 2010, p. 593. João 8, 7. 41 Lucas 20, 17. 42 GIRARD, 2000, p.235. 40 38 recorrente a identificação de uma espécie de força que na épica indiana chama-se ‘Destino, Moira na cultura grega, Schicksal na obra de Heidegger (...) na história de Caim e Abel, não existe destino. Caim é livre para escolher, e Deus procura persuadi-lo a não matar o irmão. Por isso em termos cristãos, Satã não existe.’43 Nessa leitura, o evangelho trás uma alternativa para se compreender e viver a imitação. A busca por um modelo que nos resguarde da rivalidade mimética, em vez de estimulá-la. O sentido da imitação de Cristo repousa nessa premissa, a privação não do desejo, mas do escândalo; pois ‘sempre seremos miméticos, mas não temos que ser satânicos. Não precisamos engajar-nos perpetuamente em rivalidades miméticas. Em vez de acusar o próximo, podemos aprender a amá-lo’44 43 44 Id.ibid, p. 236. Id.ibid. 39 2. SEGUNDO MOVIMENTO: MARCEL PROUST – A HISTÓRIA DE UMA VOCAÇÃO Je ne savais pas encore, je devais comprendre plus tard Marcel Proust Se me pedissem para resumir Proust em uma palavra, acho que diria sonhos. Penso que essa seja a própria matéria da obra, um devaneio fixo. Sobre essa textura, Proust mostra incessantemente que o desejo não pertence a esse mundo. Para desejar, é preciso ser iniciado em uma espécie de ordem estrangeira. É preciso crer em uma transcendência sugerida pelo outro. Vale dizer, uma transcendência um tanto quanto ilusória, como as miragens no deserto que desaparecem quando dela nos aproximamos. Como se bastasse possuir o objeto desejado, para que o desejo se dissolvesse como castelos de areia. Dentro dessa lógica, quanto mais difícil for o acesso ao objeto, quanto maior for o obstáculo, mais intenso e durável se faz o desejo. São leis do desejo. Leis de uma poética tipicamente proustiana. Em Proust, essa mecânica do desejo é aplicada tanto à história narrada como à forma. Através de um ritmo e de uma escrita que oscila entre o sono e a vigília, Proust já denuncia essa instabilidade a ser vivenciada pelo desejo. Logo no início de Em busca do tempo perdido, somos apresentados a esse ambiente vago, a um clima de incertezas, que percorrerá todo o romance. Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Vou dormir’. E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgara ainda ter, porém, tais reflexões haviam tomado um aspecto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava (...) Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acessa. Depois (...) o assunto do livro se desligava de mim, eu 40 ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade (...) Perguntava-me que horas pode, poderiam ser (...) Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite (...) Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante (...) enquanto dormia, havia regredido sem esforço a uma era passada da minha vida (...) A verdade é que, quando acordava, meu espírito agitando-se para tentar saber, sem o conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as coisas, os países, os anos.45 Dentro dessa atmosfera nebulosa, em que tempo, espaço e memória se fundem em outra configuração, utopias são escritas a bico de pena - frágeis, lânguidas, imprecisas. Por meio desse contorno, Proust, como uma Penélope às avessas, destece os enganos da vida diurna para inscrevê-los na vida noturna, na literatura.46 Seguindo as linhas dessa trama, propomos uma abordagem de Em busca do tempo perdido em que o narrador, ao buscar a vocação literária, refaz esse mesmo bordado, buscando resgatar no livro uma vida já soterrada pelo tempo. Partindo dessa escavação, iniciamos a nossa leitura. 2.1 POR UM FRESCOR PERDIDO Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a realidade. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o risco de se ter a realidade. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. Na fronteira entre realidade e ficção, particularmente no terreno ambíguo das memórias, Proust recupera um saber que em última instância remonta aos narradores da tradição oral, ao universo das fábulas. Sem se preocupar com estatutos de Verdade como a ciência ou a história, o narrador se concentra sobre aquilo que há de verdadeiro 45 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p. 21-22 Como curiosidade, lembramos que no caso de Proust essa inversão pode ser lida literalmente, pois é sabido que o autor trocava o dia pela noite. 46 41 nos seus contares. Digo verdadeiro não em oposição ao falso, mas como tudo que pode trazer dinamismo e gerar o novo na vida das pessoas. É nesse sentido que o romance se aproxima das fábulas, pois ambos guardam em si o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher, sobretudo pela parte de vida que justamente é o perfazer-se de um destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para se tornar adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano. E, neste sumário desenho tudo: a drástica divisão dos vivos em reis e pobres, mas sua paridade substancial; a perseguição do inocente e seu resgate como termos para uma dialética interna a vida; o amor encontrado antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto bem perdido; a sorte comum de sofrer encantamentos, isto é, ser determinado por forças complexas e desconhecidas, e o esforço para libertar-se e autodeterminarse como um dever elementar, junto ao de libertar os outros, ou melhor, não poder libertar-se sozinho, o libertar-se libertando; a fidelidade a uma promessa e a pureza de coração como virtudes basilares que conduzem à salvação e ao triunfo; a beleza como sinal de graça, mas que pode estar oculta sob aparências de humilde feiúra como um corpo de rã; e sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe.47 Dentro dessa sintaxe, o romance se constitui como a urgência de um devir, buscando incessantemente mundos possíveis, criados, relembrados. Sobre essa urgência, o desejo, em Proust, adquire a forma de uma vontade de iniciar uma vida nova. Cada novo desejo se apresenta como uma chance de recomeçar. É uma escrita feita de ritornellos.48 Já no primeiro romance da série, essa grafia nos é apresentada através do recurso da lanterna mágica, instrumento com o qual o narrador reconstrói a realidade. Para distrair-me nas noites em que me julgava muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam a minha lâmpada, enquanto esperávamos à hora do jantar; e, a maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores (...) Se mexiam na lanterna, eu distinguia o 47 CALVINO, 1999, p. 14-15 Ritornello, símbolo da escrita musical que indica a repetição de compasso(s) ou de frase(s). Em algumas peças o primeiro ou o último movimento aparece sob a forma de ritornello, retornando em parte ou totalmente ao longo dos demais movimentos. 48 42 cavalo de Golo que continuava a avançar sobre as cortinas da janela, inflando-se nas suas dobras (...) Mesmo o corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como o da sua montaria, aproveitava todo o obstáculo material, todo objeto incômodo que aparecesse, para tomá-lo como ossatura e torná-lo interior, ainda que se tratasse da maçaneta da porta, à qual se adaptava logo, e onde sobrenadava invencivelmente.49 Projeções como essas, o narrador também direciona para as leituras da infância, especialmente aos romances de George Sand; pois, para o narrador, um livro novo figura não como ‘uma coisa que tivesse muitos semelhantes, mas uma personalidade única, que só em si possuísse motivo de existência – uma emanação perturbadora da essência própria de François le Champi50. Esse desprendimento de luz da lanterna, através da indicação de alguns colegas pelos quais o narrador nutria admiração, alcança o escritor Bergotte, que desempenhará ao longo da narrativa, juntamente com Swann, o papel de mentor do narrador-menino. Dentro dessa lógica, o teatro recebe um destaque especial, formando para o narrador uma espécie de santuário onde se esconde um mundo mais real e verdadeiro. Sem a permissão dos pais para ir ao teatro, essa possível beleza divina guardada se torna ainda mais cara ao narrador. Sabendo desse amor que Marcel 51 nutria pelo teatro, Bergotte o indica Fedra na interpretação de Berma. Quando finalmente este consegue permissão para assistir à peça, através do intermédio do Sr. Norpois, diplomata amigo dos seus pais, o narrador espera encontrar tal como a descrição de Bergotte uma ‘nobreza plástica, cilício cristão, palidez jansenista, princesa de Terèzéne e de Clèves, drama miceniano, símbolo délfico mito solar’,52mas se decepciona. Tentando entender o porquê dessa frustração, o narrador recorre ao Sr. Norpois e entende que a graça de 49 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p. 25 Id, ibid. 49. 51 Gostaríamos de esclarecer que em todas às vezes que falamos de Marcel, estamos nos referindo ao narrador, não a Marcel Proust. 52 PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p. 345 50 43 Berma está na escolha de seus papéis. A partir desse argumento de autoridade, o narrador muda de perspectiva, dizendo para si mesmo ‘que voz bonita, que ausência de gritos, que vestidos simples, que inteligência em ter escolhido a Fedra!Não, não fiquei decepcionado.53 Notem a agilidade da mudança de opinião do narrador. Podemos dizer que não é Berma, Norpois, Bergotte nem o próprio narrador quem atuam nessa cena, mas o desejo mimético. A necessidade de se recorrer aos outros para definir gostos, opiniões, identidades. Proust, durante a narrativa, reencena esse drama inúmeras vezes sob as mais diversas formas, percorrendo da expectativa à desilusão incansavelmente. Sobre essa mecânica, citamos o episódio em que o narrador assiste novamente a Berma, porém, já sem o entusiasmo da primeira vez: A falar a verdade, não ligava eu importância alguma a essa oportunidade de ouvir a Berma que alguns anos antes me causara tamanha agitação. E que outrora preferiria à saúde e ao repouso. Não porque fosse menos apaixonado do que então o meu desejo de contemplar de perto as preciosas parcelas da realidade que a minha imaginação entrevia. Mas esta já não as situava agora na dicção de uma grande atriz; desde as minhas visitas a Elstir, era a certas tapeçarias, a certos quadros modernos que eu reportava a fé interior que tivera outrora naquele desempenho, naquela arte trágica de Berma; como a minha fé e o meu desejo não mais viessem prestar um culto incessante à dicção e às atitudes da Berma, o ‘duplo’ que eu deles possuía em meu coração fora pouco a pouco definhando, como esses outros ‘duplos’ dos mortos do antigo Egito que era preciso alimentar constantemente para lhes conservar a vida.54 Pensando sobre esses ‘duplos’ e suas implicações na mediação do desejo, gostaríamos de chamar atenção para a diferença entre o modo como Freud e a teoria mimética entendem o desejo. Para Freud, o desejo nunca cessa, é uma pulsão constante; já para a teoria mimética, o desejo é finito. Na verdade, a morte é a figura central na 53 54 Id.ibid. p.366. PROUST, 2007, p. 43. 44 mímesis. Para compreender esse papel da morte no desejo, é preciso lembrar que o desejo segundo o outro retém, em certa medida, o desejo de ser o outro, ou ao menos, de ser como o outro. Nessa ótica, desejar significa esperar por uma metamorfose. O problema dessa semântica é que essa espera é vã, pois não é pela posse de determinado objeto que o sujeito se transforma, tampouco pela posse do modelo. Insistindo sobre essa gramática, o sujeito caminha de desejo em desejo e/ou de mediador em mediador. A cada novo desejo, um novo desencanto. Um vazio de ilusões perdidas... Esse fenômeno não é tão estrangeiro como pode parecer, apenas o chamamos por outros nomes: desejo pós-moderno, pós-cristão ou pós-mimético. Embora experimentemos a morte do desejo, pouco se fala sobre isso. Especialmente em tempos como o nosso em que o individualismo se empenha em negar a falência do desejo. Cremos, através da negação do desejo mimético, que sempre estamos a um passo de nos tornarmos autossuficientes. Compramos a mentira romântica. A essa compra, são adicionadas as obsessões miméticas, mães de todos os vícios, em uma tentativa desesperada de autosatisfação. A literatura (também a religião e algumas filosofias) compreende a morte do desejo e tenta negociar com ela. Transforma essa falência em saber, na aprendizagem da impossibilidade de autossatisfação através do desejo. Nesse sentido, Girard aproxima literatura e cristianismo55 sob a perspectiva de que em ambos narra-se a história de uma conversão, isto é, de uma mudança de perspectiva. Para esse objetivo, talvez um dos maiores exemplos seja a Divina Comédia de Dante Alighiere. Virgílio nesse contexto simboliza essa experiência de conversão. As razões para a escolha de Virgílio são muitas como o episódio da visita de Enéias ao inferno na Eneida ou a associação de Virgílio como um dos profetas de Cristo na Idade Média. Além desses motivos, existe mais um dado que merece especial atenção. De acordo com 55 Cf. ‘Conversion in literature and christianity’. In. GIRARD, 2008a. 45 Dante, a função da literatura profana seria guiar pelo inferno e purgatório. Nesse sentido, Virgílio, ao descrever a violência infernal da Eneida, já nos oferece um possível mapa. Dante, ao escolhê-lo como seu guia, repete o mesmo papel. No caso de Girard, a descida ao inferno se deu pelas mãos de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e Dostoievski 56, constatando que quanto mais moderno é o romance, mais se desce pelos círculos do inferno, pois se perde a medida da mediação externa. Em O caminho de Guermantes, com a mudança do narrador e de sua família para um apartamento pertencente ao palácio dos Guermantes, a narrativa paulatinamente desloca o eixo da mediação externa para mediação interna. No episódio em que o narrador vai à ópera, esse deslocamento já pode ser observado através da descrição dos camarotes. as pessoas do alto mundo estavam em seus camarotes (por trás dos balcões em terraços) como em pequenos salões suspensos de que fora retirada uma parede (...) quase por toda parte, as brancas deidades que habitavam essas sombrias devesas se haviam refugiado contra as paredes obscuras e permaneciam invisíveis. No entanto, à medida que o espetáculo avançava, as suas formas vagamente humanas se destacavam molemente uma após outra (...) Como uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades inferiores, a princesa permanecera voluntariamente um pouco para o fundo (...) ao reconhecer a princesa, todos os que procuravam saber quem estava na sala sentiam erguer-se no seu coração o trono legítimo da beleza (...) O marquês de Palancy (...) parava, venerável, resfolegante, musgoso (...) Ninguém me causava tanta inveja quanto ele, por causa do hábito que parecia ter daquele camarote e da indiferença com que deixava a princesa oferecer-lhe bombons.57 Observem que o desejo do narrador agora é o de pertencer a esses ‘pequenos salões suspensos’. O olhar contemplativo sobre os Guermantes instaura os novos ídolos do narrador, inserindo-o em uma nova ordem de mediação. Podemos ler o camarote, metaforicamente, como o espetáculo do desejo, um espetáculo real ou imaginário, não faz diferença, pois o que importa no desejo é o olhar do outro. Nesse sentido, a aparente 56 57 Conferir Mentira romântica e Verdade romanesca para obter mais detalhes sobre essa peregrinação. PROUST, 2007, p. 46-50. 46 indiferença com que o marquês se relaciona com a princesa, na verdade, constitui uma estratégia de salvaguardar, ou melhor, de apresentar certa ‘autonomia’ sobre os demais. São rivalidades veladas. O embate de querer ser o outro sem deixar de ser você mesmo. Puro jogo mimético. Em outras palavras, o camarote representaria o locus da mediação interna. Essa mesma cena, Proust escreveu em Jean Santeuil, porém sob outro ângulo. Aqui, o herói se encontra no camarote e partilha os meios aristocráticos, não por esnobismo como faz o marquês de Palancy; mas pelas afinidades artísticas e intelectuais que mantém. Jean figura no romance, especialmente nessa cena, segundo as leis do narcisismo freudiano. Apresentando-se como uma fonte de verdadeira riqueza poética e espiritual, um eu romântico capaz de comunicar uma beleza que só dele emana. O interesse de Jean é voltado unicamente para si e para os efeitos que produz sobre os outros. Um estudo comparado dessas duas cenas mostra uma revolução do modo como o Proust passa a entender o desejo. Longe de constituir uma contradição, Jean Santeuil e os manuscritos publicados antes da Guerra confirmam e completam a saga de Em busca do tempo perdido. Trata-se de uma experiência de conversão, de uma revisão de si e do desejo. Como na parábola do filho pródigo em que o filho regressa à casa paterna, o escritor retorna de um tempo perdido em ilusões, mediocridades e idolatrias para recuperá-lo na literatura. O itinerário da mentira romântica para a verdade romanesca. Com essas duas noções, simultaneamente, o escritor faz a sua obra. Mas, sobre esse ponto voltaremos mais tarde. O que não podemos perder de vista, neste momento, é a dupla referência – do eu e do outro – do modelo e do rival, além das conseqüências para esta mundana tragicomédia. 47 3.2. O VELHO JOGO DOS DUPLOS Vaidade de vaidade, tudo é vaidade Eclesiastes 12, 8 Em busca do tempo perdido é estruturado sobre dois pilares – o caminho de Swann e o caminho de Guermantes. No caminho de Swann, particularmente em Combray, a narrativa experimenta predominantemente a coloração da mediação externa. A infância de Marcel nos é contada através de um ambiente semelhante às vilas medievais. A família do narrador funciona como uma espécie de mini sociedade feudal, uma cultura fechada, patriarcal. Dentro desse sistema, Combray possui uma relativa autonomia. A tia Leonie, imóvel no seu leito, confere as diretrizes do funcionamento da casa, estabelecendo os horários e os afazeres cotidianos. Compassadamente a essa estrutura, a unidade de Combray é dada por imagens religiosas que subordinam toda a dinâmica do vilarejo à afirmação de Deus e da Igreja. Era o campanário de Saint-Hilaire que dava a todas as ocupações, todas as horas, a todos os pontos de vista da cidade, a sua figura, o seu arremate, a sua consagração. Do meu quarto, eu só podia avistar-lhe a base (...) mas quando no domingo, numa quente manhã de verão, eu o via (...) dizia comigo: ‘Meu Deus! São nove horas! Tenho que me preparar para ir à missa cantada.58 Diferentemente do caminho de Swann, o caminho de Guermantes nos conduz para o mundo dos salões, para as rodas da mediação interna. Para melhor compreender a engrenagem do salão Guermantes, sugerimos uma contraposição com o salão Verdurin, pois, no fundo, ambos formam o verso e reverso de uma mesma moeda. Enquanto em 58 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.65-66. 48 Combray a unidade era dada por uma busca pelo divino da teologia cristã, nos salões, os ritos de união são mascarados por uma suposta segregação. O sagrado é pervertido em uma disputa pelo senhorio mundano. No salão burguês dos Verdurin, por exemplo, a divindade é reportada aos artistas de forma a exigir Para fazer parte do ‘pequeno núcleo’, do ‘pequeno grupo’, do pequeno clã’ dos Verdurin, uma condição bastava, mas era necessária: seria preciso aderir tacitamente a um credo, do qual um dos artigos rezava que o jovem pianista, protegido pela Sra. Verdurin naquele ano e do qual ela dizia: ‘Não devia ser permitido saber tocar Wagner tão bem assim!’, ‘liquidava’ ao mesmo tempo com Planté e Rubinstein (...) Todo ‘novo recruta’, a quem os Verdurin não podiam convencer que os saraus das pessoas que não freqüentavam a casa eram aborrecidos como a chuva, via-se imediatamente excluído.59 Esse mesmo mecanismo de exclusão é aplicado ao faubourg Saint- Germain por meio de um altruísmo hipócrita que esconde a vaidade da criação de um eu quase divino, de uma supremacia. Como é o caso da marquesa Villeparisis que enfatiza os modos aristocráticos com que uma dama deve mostrar, aos burgueses em cuja companhia se alegra de estar, que não é orgulhosa. E a única falta de polidez que se podia observar nela eram os excessos dessa mesma polidez; pois nisso era possível reconhecer o vinco profissional de uma dama do faubourg de Saint-Germain, que, vendo sempre em certos burgueses os descontentes que estava destinada a fazer em alguns dias, aproveitava avidamente todas as ocasiões em que é possível escrever, no livro de contas de sua ambilidade para com eles, a antecipação de um tostão de crédito que lhe permitirá compensar no seu débito a festa ou o jantar a que não os convidará 60 Como podemos observar, é a mediação interna quem dita as regras dos salões, mais do que isso, é a mediação dupla, pois um salão vive em função do outro. Ambos desempenham o papel de sujeito e modelo simultaneamente um sobre o outro. São simetrias miméticas. Como os salões negam essa particularidade do desejo e como não há objeto concreto na disputa, ‘o nada do prestígio aparece como o tudo, não para um 59 60 Id.ibid. p. 157. PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p.550. 49 adversário somente, mas para todos’61; ou seja, os rivais antes mesmo de serem reconciliados por uma possível expulsão violenta, já vivenciam a violência metafísica em que acusam e são acusados a todo instante, fazendo do outro um fantasma que os assombra perpetuamente. Por essa razão, não é gratuito o emprego de alguns termos típicos das operações militares quando se descrevem as rivalidades mundanas, uma vez que a mesma fascinação mimética que gera o individualismo no plano individual, gera no plano coletivo aquilo que chamamos de nacionalismo. Dessa forma, a Grande Guerra e a guerra dos salões não são tão distantes como parecem, já que ambas são frutos do mesmo desejo metafísico. Metonimicamente, podemos ler o salão Verdurin como a França burguesa e o salão Guermantes como a Alemanha aristocrata. O desacordo entre esses personagens, nessa lógica, constituiria a trama de uma inter-relação, que só pode existir enquanto relação. Com esse sentido, lemos o seguinte comentário de Proust: Mesmo aqueles que foram favoráveis a minha percepção das verdades (...) felicitaram-me por tê-las descoberto ao microscópio, quando, ao contrário, eu me servia de um telescópio para perceber as coisas, de fato muito pequenas, mas porque estavam situadas a uma grande distância e porque eram, cada uma, um mundo. Ali onde eu buscava as grandes leis, chamavam-me de escavador de detalhes.62 Embora sem o aparato militar dos salões, Combray não é isenta da mediação interna. Citamos algumas situações dessa mediação. A primeira acontece quando o beijo de boa noite da mãe é negado ao narrador. Nesse momento, a divindade da família é substituída pelo sofrimento de amante. Isso porque existe também um critério negativo na escolha do mediador, é a recusa do outro que desencadeia o desejo obsessivo. Desejo este que posteriormente Marcel sentirá pelas personagens de Gilberte e Albertine, rendendo à obra um longo e minucioso estudo sobre o ciúme. A segunda pode ser 61 62 GIRARD, 2008 c, p. 355 Proust, Apud. Brassai, 2005, p.127 50 encontrada no personagem de Legrandin. Um esnobe continuamente corroído pelo sofrimento de não ser aceito pelos aristocratas locais, capaz de qualquer coisa para conseguir seus objetivos. Ou, então, quando a tia Leonie abusa do seu prestígio, alimentando rixas entre as criadas; há também a recusa da mãe do narrador em receber a Sra. Swann devido à má reputação desta; e, por fim, Swann, que não é bem aceito pela avó de Marcel. Dessa forma, guardadas as devidas proporções, Combray é semelhante aos salões. Duas culturas fechadas, eliminatórias. Dois modos de ver, sentir e julgar. Nesse jogo de espelhos o romance vai revelando aquilo que geralmente não queremos ver. Sem nunca resolver numa síntese, o romancista abarca as diferenças que existem no mundo romântico e as dissolve no mundo romanesco, mostrando que todo julgamento indignado sobre o outro, pode carregar um julgamento indignado sobre si porque quando ‘julgas os outros, a ti mesmo te condenas, pois praticas as mesmas coisas, tu que julgas’.63 3.3.O MUNDO NÃO É MAIS DO QUE UM REFLEXO DO QUE SE PASSA NO AMOR 64 Desilusão, desilusão dança eu,dança você na dança da solidão. Paulinho da Viola, Dança da solidão Em muitos momentos de Em busca do tempo perdido, nos deparamos com a Fedra de Racine. A peça aparece diversas vezes durante as idas do narrador ao teatro sob o pretexto de assistir a Berma, sem contar as várias cenas em que o encontramos em seu quarto a memorizar seus versos. Partindo dessa recorrente incidência da peça no 63 64 Romanos 2,1. ‘Le monde n´est qu´un reflet de ce qui se passe en amour.’ Marcel Proust. 51 romance, procuramos observar em que medida essa relação intertextual afeta o texto. Descobrimos no verso ‘tu me haïssais plus, je ne t´aimais pas moins’ 65 , um presságio daquilo que viria marcar todos os relacionamentos amorosos: a indiferença e a paixão. Apenas para contextualizar, recuperaremos brevemente o enredo da peça: Fedra é uma rainha grega que se apaixona por seu enteado, Hipólito. Para evitar maiores confusões, Fedra expulsa Hipólito do reino. Durante esses acontecimentos, Teseu, seu marido, encontra-se ausente devido à batalhas. Certo tempo depois, Fedra recebe a notícia de que Teseu está morto. Diante das circunstâncias, Fedra resolve se declarar para Hipólito, mas não é correspondida. Em contrapartida, Teseu consegue permissão para sair do mundo dos mortos e retorna ao reino. Através de um malogrado mal entendido, Teseu pensa que Hipólito tentou violentar Fedra e manda matá-lo. Fedra suicida-se, findando a tragédia. Resquícios dessa violência e desses sofrimentos atravessam a peça e desembocam no romance sob a forma do ciúme. Para entender esse deslocamento, é preciso não excluir Eros do desejo mimético. É preciso ter em mente que é o mimetismo que provoca as paixões. Se de acordo com o desejo triangular, sempre existe um modelo que direciona nosso olhar sobre o objeto a ser desejado, então, não seria absurdo dizer que é para o modelo que desejamos. Logo, estaríamos constantemente buscando aprovações deste, mesmo quando de forma inconsciente, visto que, o desejo é mimético. Dentro dessa estrutura, o ciúme figura como um estratagema de assegurar que o objeto do desejo também seja desejado por outros, portanto, digno de valor. Sobre essa exigência do desejo, o narrador diz que Em amor, nosso rival feliz, ou melhor, nosso inimigo, é o nosso benfeitor. A uma criatura que não despertaria em nós senão um insignificante desejo físico, ele acrescenta logo um valor imenso, estranho, mas que confundimos com ele. Se não tivéssemos rivais, o 65 Racine, Fedra, ato II, cena V, verso 688. 52 prazer não se transformaria em amor. Se não tivéssemos ou se não julgássemos tê-los. Pois não é necessário que existam de verdade. Para o nosso bem, é suficiente essa vida ilusória dada a rivais inexistentes por nossa desconfiança, nosso ciúme. 66 Dentro da ótica mimética, em consonância com o ciúme, a indiferença do sujeito, do amante, visa o mesmo objetivo: exibir o desejo. Isso acontece porque só conseguimos nos convencer dos nossos desejos quando estes são espelhados pelos desejos do outro. Em outras palavras, todo desejo é um espetáculo de outro desejo real ou não. Amostras desse teatro podem ser vistas na dissimulação da coquete. Segundo a lógica do coquetismo, desejo atrai desejo. ‘Portanto, para se fazer desejar é preciso convencer os outros que desejamos a nós mesmos’.67 Para persuadir o amante, a coquete usa o desejo do amante a seu favor: ela se deseja graças ao desejo do próprio amante. São desejos copiados. Envolta em um desejo de si, a coquete nega-se ao amante. Como conseqüência dessa negação, a coquete é divinizada aos seus próprios olhos e aos olhos do amante. Essa técnica da coquete, como as estratégias do desejo, consiste em apresentar ao outro uma autossuficiência em que gostaríamos de acreditar. (Na verdade, até acreditaríamos se conseguíssemos convencer o outro dessa existência) Em situações como esta do coquetismo, podemos perceber que quanto mais os amantes se parecem mais se vêem como diferentes, caso contrário, não seria possível desprezar o outro sem desprezar a si mesmo. Isso significa que a indiferença, longe de ser uma atitude neutra, no plano da mímesis, é extremamente tendenciosa, pois defende o desejo de si. Os heróis românticos, Tristão e Isolda, ilustram bem essa mediação porque se amam a partir de si mesmo, operando um duplo narcisismo. Aqui, como nos demais casos de 66 67 PROUST, O tempo recuperado, 2004, p. 691. GIRARD, 2008 b, p.421. 53 mediação dupla, a relação amorosa é transformada em disputa cujo ‘vencedor’ é aquele que melhor esconde seu desejo. Em Um amor de Swann, podemos acompanhar as diferentes fases da mímesis no desejo amoroso através do relacionamento de Swann e Odette. É importante lembrar que, de imediato, Swann não enxerga Odette como um possível amor, na verdade, chega até a desconsiderá-la. Vale dizer que Swann é um personagem culto que faz das artes um modo de se relacionar com a realidade. Modo pelo qual Swann também irá se relacionar com Odette. Swann, ao perceber em Odette ‘um rosto digno de figurar na Vila de Moisés de Botticelli’68, semelhante à figura de Céfora69 de As filhas de Jetro da Capela Sistina, introduz ‘a imagem de Odette em um mundo de sonhos ao qual ela não tivera acesso até então.’70 Ao passo que Swann comparava as qualidades do rosto, fundava seu amor em uma estética precisa, ‘ sem considerar que o beijo e a posse, que pareciam naturais e medíocres se obtidos através de uma carnação murcha, vinham coroar a adoração de uma peça de museu, parecendo ser sobrenaturais e deliciosos’71 A partir dessa associação, Swann se empenha em um projeto de conquista que percorre desde uma disfarçada indiferença até os encontros e declarações amorosas. Para prevenir um possível cansaço de Odette, e às vezes o seu próprio, Swann escrevialhe ‘um carta cheia de decepções fingidas e de cóleras simuladas (...) Sabia que ela se sentiria apavorada, lhe responderia, e esperava que, no choque que o medo de perdê-lo causaria à sua alma (...) brotaria palavras que ela jamais pronunciara antes’;72 e, de fato, foi desse modo que obteve as mais ternas cartas que ela lhe escreveu. Nesse jogo de amor, Swann descobre, quando Odette não responde como de costume, que 68 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.183. Cf. anexo7. 70 Id.ibid, p. 182. 71 Id.ibid, p.184. 72 Id.ibid. 69 54 De todas as formas de produção do amor, de todos os agentes de disseminação do mal sagrado, um dos mais efetivos é esse turbilhão agitado que por vezes passa por nós. Então, o ser com quem nos divertimos nesse instante – a sorte está lançada –há de ficar sendo a pessoa amada. Nem há necessidade que aquele momento nos tenha agradado mais que as outras. Precisava era que o nosso gosto por ela se tornasse exclusivo. E semelhante condição se realiza quando – no momento em que ela nos fez falta – a busca de prazeres que sua convivência nos trazia é de repente substituída em nós por uma necessidade angustiosa, que tem por objeto essa mesma pessoa, uma necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam de satisfação impossível e de difícil cura: a precisão insensata e dolorosa de possuílo.73 Com essa observação, Swann experimenta o ciúme e faz de Odette uma busca constante, a ponto de enxergá-la nos lugares e nas obras por ela amadas. Nesse sentido, o salão Verdurin freqüentado por Odette, que antes não agradava muito a Swann, tornase um lugar encantado, uma recordação do seu amor. Afinal, ‘transforma-se o amador na cousa amada, por virtude de muito imaginar’, de muito desejar. Mas como dissemos anteriormente, o desejo requer a aprovação do modelo. Dentro dessa estrutura, os Verdurin funcionam como modelos de Odette. No começo da narrativa, Swann é bem visto pelo pequeno clã, mas, conforme a história se desenvolve seu prestígio diminui. Isso porque Swann não entende os signos do salão, para ele só uma coisa importa: Odette. Sua presença no salão se deve unicamente a ela. Ressentidos por estarem em um segundo plano, os Verdurin encontram em Forcheville um possível diálogo. Diferentemente de Swann, Forcheville se encanta com a conversação vazia típica dos salões, mesmo sem nada entender. Por esse motivo, Swann rapidamente é substituído por Forcheville, primeiro pelos Verdurin, depois por Odette. Como um prelúdio da trajetória amorosa de Swann e Odette, a pequena sonata de Vinteuil já anuncia a fragilidade das relações miméticas, das relações amorosas: 73 Id,ibid, p.188. 55 o pianista tocava para os dois, o pequeno trecho musical de Vinteuil, que era como a área nacional do seu amor. Ele começava com os trêmulos dos sustenidos no violino, que durante alguns compassos era só o que se ouvia, ocupando todo o primeiro plano; depois, de repente, pareciam se afastar e, como nesses quadros de Pieter Hooch,74 que aprofundam o quadro estreito de uma porta entreaberta, ao longe, com uma cor bem diversa, no aveludado de uma luz interposta, o pequeno trecho aparecia, dançante, pastoral, intercalado, episódico, como se pertencesse a outro mundo. (...) O trecho musical parecia conhecer que aquela felicidade, cujo caminho mostrava, era vã. Em sua graça leve, possuía algo de completo, como o desinteresse que sucede à mágoa (...) Swann quase lamentava que a frase tivesse um sentido, uma beleza intrínseca e fixa, estranha. 75 Essa debilidade é devida à própria natureza metafísica do desejo. Swann cultua um absoluto erótico (a Céfora de Botticelli) que não corresponde às qualidades reais de Odette. Assim como os namorados de Sonho de uma noite de verão, Swann vive um faz de conta por ele mesmo produzido. Passado o efeito da febre mimética, Swann faz uma avaliação de tudo o que passou, e, mais uma vez, insiste em continuar apaixonado por Odette, mas conclui que ‘não é possível mudar, isto é, tornar-se outra pessoa, e continuar a obedecer aos sentimentos da pessoa que deixou de ser’, 76 Com essa constatação, desiludido, exclama para si mesmo: ‘ E dizer que desperdicei anos da minha vida, que desejei morrer, que vivi o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu tipo!’77 Essa experiência de um frenesi amoroso seguido de desencanto, o narrador vivencia intensamente ao longo dos seus romances. Partindo de uma possível mediação externa, Marcel, da mesma forma que Madame Bovary, crê retirar da literatura o modelo para seus relacionamentos amorosos, como podemos ver no fragmento abaixo: 74 Cf.anexo 8. PROUST, No caminho de Swann, 2004, p179. 76 Id.ibid p.295. 77 Id.ibid, p.298. 75 56 a mulher que ia se apaixonar por mim e dar-me a réplica na comédia amorosa que eu trazia inteiramente escrita na cabeça desde a infância. (...) Nessa peça, fosse a nova ‘estrela’ que eu chamasse para criar ou repetir o papel, o cenário, as peripécias e o próprio texto conservavam uma forma ne varietur. 78 Mas, como nem na vida nem na literatura, tudo é em preto e branco, Marcel experimenta os matizes da mediação interna. Descobre que muitas vezes são os obstáculos que desencadeiam o desejo e dirigem ‘a comédia amorosa’. Sobre essa peculiaridade dos obstáculos, não há exemplo melhor do que o amor do narrador por Albertine. A lógica é a seguinte: Quando Albertine está ausente, ele está apaixonado por ela; quando presente, não mais. Desconfio que, talvez, seja melhor deixar o próprio narrador falar sobre isso: [Não] era um amor como aquele por Gilberte, e sim criado pela divisão entre várias moças. Era bem possível que fosse por sua causa e porque me pareciam um tanto análogas a ela, que suas amigas tinham me agradado tanto. O caso é que, durante muito tempo, foi possível a hesitação entre todas, e minha escolha passeava de uma a outra e, quando eu julgava preferir esta, bastava que esta me deixasse esperando, recusasse ver-me, para que eu sentisse por ela um princípio de amor. (...) Minha separação de Albertine, no dia em que Françoise me dissera: - A senhorita Albertine foi-se embora – era como uma alegoria de tantas outras separações. Pois muitas vezes, para descobrir que estamos apaixonados, talvez mesmo para que o fiquemos, é preciso que chegue o dia da separação. (...) Em todo caso, se essa vida com Albertine não era necessária em sua essência, ela se me tornara indispensável. Eu tremia ao amar a Sra de Guermantes porque dizia para mim mesmo que, com seus grandes meios de sedução, não só quanto à beleza mas pela situação social e pela fortuna, ela seria muito mais livre para entregar-se a um bom número de pessoas, e eu teria muito pouco domínio sobre ela. Albertine era pobre, obscura, devia ter desejos de se casar comigo. E, no entanto, eu não pudera tê-la só para mim’79 No calendário do desejo mimético, esse dia da separação, que coincide com o dia do início do amor, marca a passagem da rivalidade de objeto para o desejo metafísico. Para entender essa cronologia, é preciso admitir que tudo começa na rivalidade pelo 78 79 PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p. 670. PROUST, A fugitiva, 2004, p.380. 57 objeto na mediação interna. O objeto de desejo sempre é o objeto proibido, não pela ‘lei’, mas pelo modelo que apresenta o objeto como desejável no momento em que ele próprio o deseja. Em resposta a esse ‘interdito’, o sujeito passa a desejar ainda mais o objeto, pois desconfia que a posse deste poderá lhe conferir a ‘plenitude’ que vê no outro. A essa transfiguração do objeto de simples matéria a uma realidade imaterial capaz de conter tudo aquilo que há de mais real para o sujeito, como, por exemplo, o prestigio do mediador; chamamos de desejo metafísico. Dessa maneira, o dia da separação seria uma das formas de desencadear essa transfiguração. Em vez de concluir que o próprio desejo é um impasse, Marcel aposta em segunda(s) chance(s), crendo que por trás dos obstáculos, nesse caso a partida de Albertine, há sempre algo pelo qual vale à pena lutar. Porém, basta desaparecer o obstáculo para o desejo desvanecer. Por esta razão, vemos o narrador andar de desejo em desejo, de ídolo em ídolo, sempre em busca de um novo desejo, da verdade nova capaz de lhe entregar um tesouro escondido. Diz o narrador: Erramos ao pensar que a satisfação do nosso desejo tenha pouca importância, pois, desde que supomos que ele não pode se realizar, novamente nos aferramos a ele, e só admitimos que não valia a pena persegui-lo quando estamos seguros de alcançá-lo. E, no entanto, temos razão. Pois, se tal satisfação e tal felicidade só nos parecem mesquinhos devido à certeza, são, todavia, algo de instável de onde só podem sair desgostos. E estes serão tanto mais intensos quanto mais completa for a realização do desejo, e mais impossíveis de suportar se, contra a lei da natureza, a felicidade tiver sido prolongada por algum tempo, recebendo a consagração do hábito. 80 À luz da leitura dos textos evangélicos feita por Girard, esses obstáculos podem ser lidos como túmulos. Por trás dos obstáculos, o que há são cadáveres. Restos de 80 Id.ibid, p. 348. 58 violência mimética. Nesse sentido, ‘seguir o Cristo é renunciar ao desejo mimético’81 no que diz respeito às rivalidades. Como exemplo dessa inversão de perspectiva, citamos o episódio em que as mulheres, na manhã da ressurreição, vão ao túmulo e acostumadas com as histórias de cadáveres, se surpreendem ao ver que nada por lá as espera: Passado o sábado, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir o corpo. De madrugada, no primeiro dia da semana, elas foram ao túmulo ao nascer do sol. E diziam entre si: ‘Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós? E erguendo os olhos, viram que a pedra já fora removida; ora, ela era muito grande82 3.4. DA SONATA AO SEPTETO – UMA TEORIA LITERÁRIA Tudo é falso no desejo, tudo é teatral, exceto a fome pelo sagrado - a promessa de uma transcendência sugerida pelo outro. Por trás de cada desejo, há sempre um mediador cujo prestígio é sobrenatural. Em Proust, o desejo metafísico assume diferentes formas em vários estágios do romance. Logo no início da narrativa, em Combray, o narrador faz da família, do escritor Bergotte e de Swann uma espécie de divindade, imita-os na esperança de se tornar um deles. Para melhor visualizarmos essa particularidade do desejo, há um episódio que merece especial atenção, vejamos: Cena I: Swann é convidado pelos pais do narrador para jantar em sua casa Eu não desviava o olhar de minha mãe, sabia que quando estivessem à mesa não me permitiriam que ficasse até o fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, mamãe não me deixaria beijá-la várias vezes diante de todos, como se estivessem no meu quarto (...) Mas eis que ao tocarem a sineta para o jantar, meu avô inconsciente de dizer: ‘O menino parece cansado; deveria subir para se deitar. Aliás, a gente janta bem tarde esta noite’. E meu pai que não observava com tanto escrúpulo quanto minha avó e minha mãe o espírito dos tratados disse: ‘Sim. Vamos, vai te deitar!’ Eu quis beijar mamãe; nesse momento ouviu-se a sineta do jantar. ‘Não, não, larga a tua mãe, vocês já se despediram 81 82 GIRARD, 2008 b, p. 485 Marcos 16, 1-4. 59 bastante, essas manifestações são ridículas. Vamos sobe!’E tive que subir sem viático (...) como diz a expressão popular, ‘contra o coração’83 Cena 2: Após o jantar No vão da escada, vi a luz projetada pela vela de mamãe. Depois vi ela própria; atirei-me ao seu encontro.No primeiro instante ela me olhou com espanto (...) mas ela ouviu meu pai que subia (...) e para evitar a cena que ele me faria, me disse com a voz entrecortada de raiva: ‘Anda, anda, que pelo menos teu pai não te veja aqui esperando como um idiota!’ Mas eu lhe repetia ‘Vem me dar boa-noite!’, horrorizado ao ver que o reflexo da vela de meu pai já se erguia na parede, mas ainda usando a sua aproximação como forma de chantagear minha mãe, na esperança de que ela, para evitar que meu pai me encontrasse ainda ali se insistisse na sua recusa, afinal me dissesse: ‘Volta para o teu quarto; eu vou para lá’. Era tarde demais, meu pai estava diante de nós. Sem querer, murmurei estas palavras que ninguém ouviu: ‘Estou perdido!’ Mas não foi assim. (...) Olhou-me por um instante com ar entre espantado e furioso,e, depois que mamãe, com algumas palavras embaraçadas, lhe explicou o que ocorrera, ele disse: ‘Mas então vai com ele; já que justamente estavas dizendo que não tinha sono, fica um pouco no quarto dele; quanto a mim, não preciso de nada’84 Através do consentimento do pai, em lugar de uma esperada punição, Proust desenha aquilo que viria ser a trajetória dos próximos relacionamentos de Marcel. Aos olhos do narrador, a onipotência do pai de certa forma é desfeita. Já não há mais uma distância intransponível entre eles. Algo se perdeu e, com isso, a fé do narrador nos deuses de Combray. A partir desse momento, o narrador passa a buscar em outros mediadores algo daquela antiga relação, inflexível e dominante. Todo o percurso emocional do narrador se repete sobre esta noite. O sagrado de um imaginário cristão medieval característico de Combray é substituído agora pelo fetiche da ambição social e do mundo das paixões; por tudo aquilo que possa remeter a uma autoridade, a uma proibição. Podemos ver essa perversão do sagrado, na cena em que o narrador conhece a Sra. de Guermantes, como segue abaixo: 83 84 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.38-39. Id.ibid, p. 44-45. 60 era ela! Grande foi a minha decepção. Provinha de que eu nunca prestara atenção, quando pensava na sra. de Guermantes, em que a representava com as cores de uma tapeçaria ou de um vitral, em outro século, de outra matéria que não o restante das pessoas vivas. Jamais me dera conta que ela poderia ter um rosto vermelho (...) e a forma oval de suas faces me fez lembrar a tal ponto pessoas que havia visto em casa (...) ‘É isto, não é mais que isto a Sra. de Guermantes!’, dizia a cara atenta e assombrada com que eu contemplava essa imagem que, naturalmente, não tinha qualquer relação com as que, sob o nome de Sra. de Guermantes, haviam aparecido tantas vezes nos meus devaneios (...) mas, ‘ao mesmo tempo, sobre essa imagem que o nariz proeminente, os olhos penetrantes fincavam na minha visão (...) sobre essa imagem bem recente, imutável, tentei aplicar a idéia: ‘É a Sra. de Guermantes’, (...) Mas essa Sra. de Guermantes com quem eu tanto sonhara, agora que via existir efetivamente fora de mim, obteve ainda mais poder sobre a imaginação que paralisada por um instante ao contato da realidade tão diversa do que esperava, pos-se a reagir e a me dizer: ‘Gloriosos desde antes de Carlos Magno, os Guermantes tinham direito de vida e morte sobre seus vassalos; a duquesa de Guermantes descende de Geneviève de Brabant. Não conhece, nem admitiria conhecer nenhuma das pessoas que aqui estão’. 85 É importante esclarecer que o sagrado não constitui o carro chefe da obra, mas as metáforas. Para Proust, a arte culmina na criação de metáforas. Do grego, metáfora significa transposição, tradução, ou seja, estabelecimento de relações de semelhança. Em À sombra das raparigas em flor, Proust, através da alegoria da visita de Marcel ao ateliê do pintor Elstir, justifica o uso das metáforas como forma de representação artística, como exercício de metamorfose. Daí o narrador comparar o ateliê com ‘um laboratório da criação do mundo’ onde se realizava ‘uma espécie de nova criação’ em que ‘se Deus Pai havia criado as coisas nomeando-as, era tirando-lhes o nome ou dando-lhes outro que Elstir as recriava. Os nomes que designam as coisas respondem sempre a uma noção de inteligência, estranha às nossas impressões verdadeiras’86 Por meio de um rico vocabulário relativo à transcendência, o autor confere às metáforas um valor de ritual, embora não fale em religião. No romance, a arte ocupa o lugar do 85 86 Id.ibid, p. 147. PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p.550. 61 sagrado, só os artistas87, os modelos eleitos, gozam das beatitudes eternas. A mitologia clássica também colabora com este projeto, evocando uma atmosfera sagrada, como pode ser vista na descrição do apartamento de Swann onde, entre quadros, estátuas e tapetes, o imaginário pagão aparece sob a forma de um santuário. A partir dessas associações, a metáfora traduz também a mecânica do desejo, revelando a sonhada metamorfose do sujeito em seu mediador. Com essa linha melódica, o romancista pauta um realismo não de objetos e/ou costumes, mas do desejo. Do ponto de vista romanesco, a divindade do mediador é estável; não é a imagem que sacraliza, mas é a percepção que sacraliza a imagem. A imagem falsa e verdadeira citada tantas vezes por Proust é a imagem envolvida pelo sagrado. Dentro desse compasso, a memória involuntária, a memória afetiva, possui a tarefa de devolver a lembrança ao élan do sagrado. A alegria que Marcel sente ao experimentar a madeleine ou quando tropeça no calçamento de Veneza é uma alegria proveniente da dissociação de elementos contraditórios do desejo, a raiva e o fascínio. Desse modo, a madeleine, como as demais situações de memória involuntária, funciona como uma espécie de comunhão, como um sacramento capaz de religar o sujeito a uma primeira impressão. A lembrança surge desfazendo o mito do desejo original, pois assinala o papel do mediador. Nessa leitura, Girard compara a memória involuntária a um oráculo, uma vez que esta anuncia a lição a ser aprendida apenas n´O tempo recuperado. Nesse sentido, podemos dizer que é a partir da memória involuntária que Proust desenvolve sua estética literária. Uma poética do realismo do desejo. Se a memória transfigura o objeto, o romance nos descreve não como uma ilusão vivida no momento do desejo, mas como uma nova ilusão, atualizando o eterno duelo entre o eu e o outro. Ao longo de Em busca do tempo perdido, podemos ver esse velho drama por 87 Cf. texto do anexo 3. 62 meio do aval dos modelos sobre o narrador. Cada opinião de Marcel é direcionada pelo olhar dos mediadores e acolhida como se fosse autêntica. O retorno para as próprias opiniões, para uma possível espontaneidade, é vislumbrado apenas nos desejos infantis e nos artistas. Mais uma ilusão? Cremos que não. Na cena em que o narrador descreve os campanários de Martinville, essa semente de uma primeira subjetividade já está presente. Não há mediador, não há desejo de posse, mas de expressão. Encontra-se emoção estética, cessação de todo desejo. Um prelúdio da calma e da alegria a ser redescoberta no último volume da série. Reconstruindo a narrativa, percebemos que esse primeiro esboço literário do narrador é logo esquecido. Primeiro porque este não crê ter aptidão para as letras; segundo, devido à preguiça e ao esforço de abrir mão das horas com Gilberte na época em que ainda era por ela apaixonado. Contudo, além desses motivos, há um terceiro, sobre o qual Proust define mais uma plataforma da sua estética. Através de um pastiche dos diários dos Goncourt inserido no romance, Proust, pela leitura do narrador, questiona o que seria realismo: A literatura que se limita a ‘descrever as coisas’, a fornecer-lhes um esquema de linhas e superfície, é, a despeito de suas pretensões realistas, a mais fora da realidade, pois corta bruscamente toda comunicação de nosso eu presente com o passado, do qual as coisas guardavam a essência, e com o futuro, onde nos convidam a gozá-lo de novo.88 Justificando-se, assim, a falta de vocação literária do narrador, uma vez que ‘a literatura não revelasse nenhuma verdade profunda’89, esta não valeria à pena. Na contramão da ‘literatura realista’, a memória involuntária, ao relacionar ideias, sensações e épocas, proporciona ao narrador uma nova perspectiva do que seria o 88 89 PROUST, 1988, p.167. PROUST, O tempo recuperado, 2004, p. 541. 63 verdadeiro trabalho literário, resumindo a tarefa do artista ao dever de desvendar impressões e com elas o próprio tempo: Um som já ouvido, um olor outrora aspirado (...) tanto no presente como no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, logo se libera a essência permanente das coisas, ordinariamente escondida, e nosso verdadeiro eu, que permanecia morto, por vezes havia muito, desperta, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem. Um minuto livre da ordem do tempo recriou em nós, para o podermos sentir, o homem livre da ordem do tempo.90 Em O tempo recuperado, encontramos não mais o jovem Marcel, mas um narrador maduro, desolado, que após um longo período de isolamento devido ao luto à morte de Albertine e das ilusões perdidas, retorna ao salão Guermantes. Nesse episódio, os pressupostos para uma poética literária são realinhados sob a ótica da descoberta da natureza imitativa do desejo. Reparem a seguinte descrição do narrador: Assim, no faubourg Saint-Germain, as aparências inexpugantes do duque e da duquesa de Guermantes, do barão de Charlus, tinham perdido sua inviolabilidade, como todas as coisas se modificam neste mundo, pela ação de um princípio interno em que ninguém pensara: no Sr. de Charlus, o amor de Charlie que o tornara escravo dos Verdurin e, depois, a caduquice; na Sra. de Guermantes, a mania da novidade e da arte; no Sr. de Guermantes, um amor exclusivo, como já o tivera muitos na vida, mas que a fraqueza da idade tornava mais tirânico e a cujos desmandos a severidade da duquesa, onde o duque não mais aparecia e que aliás já não funcionava, não mais opunha seu desmentido, seu resgate mundano. Assim muda o aspecto das coisas neste mundo; assim o centro dos impérios, o cadastro das fortunas e a carta dos privilegiados, tudo o que parecia definitivo é perpetuamente remanejado, e aos olhos de um homem vivido podem contemplar a mais completa mudança justo onde lhe parecia mais impossível.91 Nessa ‘mais completa mudança justo onde lhe parecia mais impossível’, revela-se não só o caráter mimético do desejo, mas também do seu traço metafísico. Quando o narrador diz que os personagens do faubourg Saint-Germain ‘perderam sua inviolabilidade, como todas as coisas (...) pela ação de um principio interno em que ninguém pensara’, podemos traduzir essa perda como uma das metamorfoses do 90 91 PROUST, 1988, p153 e 154. PROUST, O tempo recuperado, 2004, p.774. 64 sagrado. Trocam-se os mediadores; mudam-se os deuses, e, consequentemente, ‘muda o aspecto das coisas neste mundo; assim o centro dos impérios, o cadastro das fortunas e a carta dos privilegiados, tudo o que parecia definitivo é perpetuamente remanejado’. A partir desse reconhecimento, já previsto pelas insurreições da memória involuntária, Marcel entende a mecânica do desejo. Compreende que as impressões nos conferem, fora do tempo, a essência comum às sensações do passado e do presente, as quais, mais preciosas, são todavia muito raras para só delas compor-se a obra de arte. Prontas para serem aproveitadas, eu sentia aglomeradamente em torno de mim inúmeras verdades relativas às paixões, aos caracteres, aos costumes (...) A arte de viver consiste em nos servir de quem nos atormenta como de degraus de acesso à sua forma divina, povoando de deuses a nossa vida. Satisfaziame verificar essas verdades (...) vislumbrar na obra de arte o único meio de reaver o Tempo perdido, nova luz se fez em mim (...) sem nunca imaginar que minha vida devesse entrar em contado com os livros que sonhara escrever e cujo assunto, quando outrora me sentava à mesa de trabalho buscara em vão. Assim a minha existência até este dia e não poderia resumir-se neste título: uma vocação.92 Reaver o tempo perdido, nesse sentido, equivale a recuperar as primeiras impressões; é retornar à primeira subjetividade que necessita da mirada alheia para se definir; é reconhecer que se copia a fim de parecer original a si e aos outro; é abolir o orgulho; é, portanto, sair da mentira romântica para entrar na verdade romanesca. Sob essa nova luz, o narrador, ao repensar as impressões e a sua vida passada, percebe que a matéria do seu livro não poderia ser outra senão a sua própria vida. Seu trabalho, desse momento em diante, destina-se à tarefa de salvaguardar no livro uma vida já soterrada pelo tempo e pelos vícios miméticos. Mas, haveria tempo? Em contraste, com a degradação física e moral dos convidados do salão Guermantes, o narrador percebe-se também corroído pelo tempo e passa a temer a morte, não por si, mas pelo livro: Compreendi que morrer não me seria novidade, que, ao contrario, já morrera muitas vezes desde a infância. Para reportar-me ao período mais próximo, não prezara Albertine mais do que a própria vida? Poderia então ter-me concedido a mim mesmo sem o amor que lhe dedicava? Ora, já 92 Id.ibid, p.174 e 175. 65 não a amava; não era mais o ente que a amara, porém outro muito diverso; cessara de amá-la quando me transformara. E não sofria por ter me tornado esse outro, por não amar Albertine; certo, deixar um dia de possuir meu corpo não podia de modo algum parecer tão triste como outrora me parecera deixar de amar Albertine. E, no entanto, quão pouco me importava agora não amá-la mais! Essas mortes sucessivas, tão terríveis ao ser que hão de aniquilar, tão inócuas, tão suaves uma vez realizadas, quando já não existia quem as receara, me haviam feito entender quão pouco sensato era o medo da morte. Ora, após haver aprendido a considerá-la com sobranceria, punha-me agora de novo a temê-la, por motivos diferentes, é verdade, não mais por mim, porém pelo livro (...) Victor Hugo disse: ‘Il faut que l´herbe pousse et les enfants meurent’ E, eu afirmo que a lei mais cruel da arte exige que os seres pereçam, que nós mesmos morramos padecendo todos os tormentos, a fim de que cresça a relva, não do olvido, mas da vida eterna, a dura relva das obras fecundas, sobre a qual as gerações futuras virão alegremente, sem cogitar dos que sob ela dormem, fazer piqueniques. 93 A essas sucessivas mortes, soma-se a morte de mais uma ilusão, a crença em uma autossuficiência engendrada pelo desejo mimético. Para testemunhar sobre essa jornada dos desatinos da mediação interna até o reconhecimento do mimetismo, chamamos Dom Quixote que em seu leito de morte conta que as misericórdias sobrinha – respondeu Dom Quixote – são as que neste momento Deus teve comigo, sem as impedirem os meus pecados. Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já conheço os meus disparates e os seus embelecos e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. (...) - Daí-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou Dom Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano, que adquiri pelos meus costumes o apelido de ‘Bom’. (...) já conheço a minha necedade. – Senhores – acudiu Dom Quixote-, deixemo-nos dessas coisas; o que foi já não é: fui louco e estou em meu juízo; fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o Bom; possam o meu arrependimento e a minha verdade restituir-me a estima em que Vossas Mercês me tinham.94 Compartilhando esse sentimento de arrependimento com Alonso Quijano, o narrador empreende um projeto de redenção, um projeto literário em que se possa recuperar o tempo perdido nos escândalos e nas frustrações. Podemos ler essa 93 94 PROUST, 1988, p. 283-284. CERVANTES, 2002, p.675-676. 66 transformação, esse novo empreendimento, a partir da sonata de Vinteuil. Em Um amor de Swann, a pequena frase da sonata representa a relação amorosa de Swann e Odette. Swann a subverte em ‘hino nacional do seu amor’, ou seja, transmuta o signo artístico em signo amoroso, romanticamente. Porém, em A prisioneira, o narrador descobre a pequena frase em um septeto, como mostramos abaixo: Seria esta a felicidade sugerida pela frase da Sonata a Swann que errou assimilando-a ao prazer amoroso, e não soube encontrar na criação artística, a felicidade que, ainda mais do que a frase da sonata, me fez pressentir supraterrestre o apelo rubro e misterioso do septeto que Swann não chegou a conhecer, tendo morrido, como tantos outros, antes de ser revelada a verdade para ele feita? Aliás, de nada lhe valeria a frase, já que podia simbolizar um apelo, mas não suscitar forças e transformá-lo no escritor que não era. Essa felicidade, análoga à alegria proveniente da memória involuntária, não conhecida por Swann, o narrador encontra no trabalho literário a ser feito. Música romanesca cujo canto refaz a história de uma peregrinação, na esperança de recuperar um frescor perdido, de reencontrar vida que um dia habitou nas flores secas guardadas dentro de um livro. O septeto, assim, pode representar o percurso do narrador pela vocação literária. Os sete livros de Em busca do tempo perdido, reensaiam a pequena frase, apresentando-a límpida de todo desejo, como Fernando Pessoa em Pobre e velha música Não sei por que agrado, enche-se de lágrimas meu olhar parado. Recordo outro ouvir-te não sei se te ouvi nesta minha infância que me lembra em ti. Com que ânsia tão raiva quero aquele outro. E eu era feliz. Não sei Fui-o outrora agora. 67 Assim, como o som do septeto, Em busca do tempo perdido embala ‘uma epopéia da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce, cheio de um sofrimento que também liberta e tranqüiliza; esse nunca cessa e sempre flui, que sempre nos oprime e sempre nos impele’95 3.5 PEQUENAS ILUMINURAS UM ESTUDO SOBRE A COMPOSIÇÃO DO ROMANCE Um galo sozinho não tece a manhã Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele (...) E o lance a outro; e de outros galos Que com muitos outros galos se cruzem Os fios de sol de seus gritos de galo, Para que a manhã, desde uma teia tênue, Se vá tecendo, entre todos os galos. (...) A manhã, toldo de um tecido tão aéreo Que, tecido, se eleva por si: luz balão João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã. Nenhum romancista pode esperar de imediato tanta atenção de seus leitores. Por esse motivo, é preciso que as suas perspectivas sejam introduzidas logo de início. Proust, diante dessa exigência, extrai um fragmento da conclusão e o implanta no começo do romance – a cena da madeleine96 – com o cuidado de não afetar a ordem cronológica da narrativa. ‘Esta cena, no momento em que a vemos pela primeira vez, parece cair do céu e a ele retornar, pois não tem nenhuma consequência imediata para a experiência do narrador’97. Atuando como se fornecesse uma realidade por vir, a cena 91 ‘Marcel Proust. O romance do tempo perdido’ In: Auerbach, 2007, p.340. 96 Cf. anexo 1. 97 GIRARD, 1962, p. 10-11. 68 oferece ao leitor uma promessa; ao narrador uma anunciação do tempo recuperado. Desse modo, Proust abre a narrativa para o leitor no primeiro volume e, apenas, no último, para o narrador onde este, pela revelação romanesca, escreverá o romance que acabamos de ler. Dessa forma, como o evangelho do Apocalipse, a madeleine representa um começo e um fim, uma nova criação do mundo, uma nova literatura. Semelhantemente a uma catedral, que se edifica sobre um dogma, o romance faz da madeleine a sua pedra angular. Contudo, não é sob a forma de uma catedral que o narrador pretende escrever sua obra (assim ele diz) mas, como um vestido em que se costura aqui e ali fragmentos de um mundo despedaçado, estilhaços de ilusão, recompondo-os em arte. Nessa malha rapsódica, o narrador faz do como se, da lanterna mágica, sua ferramenta de trabalho. Como a narrativa é contada pelo ponto de vista de Marcel, as personagens, como as demais circunstâncias em que estão envolvidas, são vistas, não pela ótica de um narrador onisciente que tudo sabe; mas por janelas que lhes são abertas, por diferentes ângulos de uma percepção. Entretanto, nem sempre esse recurso é suficiente para captar determinadas situações. Para esses casos, o narrador recorre aos depoimentos de outros personagens, de modo à sempre relativizar a veracidade de cada relato. Adjetivos como ‘imutáveis’, ‘absolutos’, são pontos que essa costura não pode figurar, pois, como vimos nos capítulos anteriores, é o desejo mimético que ensaia essa trama. Assim, como os vitrais de uma igreja cujo desenho é transformado pela refração da luz, os lugares e os acontecimentos descritos Em busca do tempo perdido são redescobertos a cada projeção da lanterna mágica. Uma projeção, vale dizer, sempre transversal que reúne, sem totalizar, sem unificar, fragmentos dessas iluminuras. Sobre esse modo de ver / contar, Proust dialoga, através da citação, com diversos artistas, como Giotto, Carpaccio ou Vermeer, além, é claro, do pintor imaginário Elstir. 69 Essas referências nos levam a perceber certa fusão entre o modo como esses pintores e o narrador versam sobre a realidade. Giotto98, por exemplo, ao romper com as proporções das figuras, confere uma nova dimensão sobre a aparência das coisas na natureza, mostrando-as, agora, de acordo como sua importância no pensamento humano. A esses diferentes modos de ver, o narrador denomina estilo. Sobre esse modo de ver e a sua relação com o fazer artístico, nos diz que: A grandeza da verdadeira arte (...) consiste em captar, fixar, revelar-nos cada vez mais à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade das noções convencionais que se lhe subsistem, essa realidade que corremos o risco de morrer sem conhecer, e é apenas a nossa vida, a verdadeira vida, por conseguinte, realmente vivida, essa vida que, em certo sentido, está sempre nos homens e nos artistas. Mas não vêem, porque não a tentam desvendar (...) Captar a nossa vida; e também a dos outros; pois o estilo para o escritor como para o pintor não é um problema de técnica,mas de visão. É a revelação, impossível por meios diretos e conscientes, da diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, a diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós. Só pela arte podemos sair de nós mesmos, sem saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as porventura existentes na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito, e que, muitos séculos após a extinção do núcleo de onde emanam, chama-se Rembrant ou Vermeer, ainda nos enviam seus raios.99 Ainda pensando sobre a importância do estilo, Proust faz do pastiche uma iniciação literária, pois, segundo o autor, o estudo do pastiche permitiria um reconhecimento de estruturas, de ritmos, de uma musicalidade gramatical capaz de remodelar a percepção.100 Partindo dessa premissa, Proust inclui um pastiche dos diários dos 98 Cf. anexo 6 PROUST, 1988, p. 172. 100 Sobre esse assunto Proust diz que ‘The best advice I can give to my fellow-writers is that they would be well-advised to indulge in the cleansing, exorcisng, pastime of parody, when we come to the end of a book, we find that not only do we want to go on living with its characters, with Madame de Beauséant, with Frédéric Moreau, etc., but that our inner voice, which hás grown accustomed, through the long hours of perusal, to follow the Balzacian or Flaubertian rhythm, insists on talking Just like those authors. The one means of escape from the toils lies in letting the influence have its way for a while, in keeping one´s foot on the pedal and permitting the resonance to contineu: in other words, in embarking upon a deliberate act of parody, with the object once we have got the stuff out o four system, of becoming 99 70 Goncourt, além de um pastiche si mesmo no romance. campanários de Martinville 101 O texto do narrador sobre os , antes de se apresentar Em busca do tempo perdido, veio ao público em novembro de 1907 no Figaro, com o título de Impreessions de route en automobile. Essa reapropriação de um mesmo texto, submetido aqui e ali a reformas, já demonstra aquilo que viria marcar toda a trajetória literária de Proust: uma constante releitura de si. No outono de 1908, com o artigo, Contre Sainte-Beuve, o autor delineia sua área de trabalho - as fronteiras entre realidade e ficção; o hiato entre o sono e a vigília. Após a publicação, o artigo é transformando em um longo ensaio, e, posteriormente, na série de Em busca do tempo perdido. Esta, por sua vez, continua a obedecer aos comandos de uma incessante revisão. A série, originalmente alocada em três volumes (No caminho de Swann, No caminho de Guermantes e O tempo recuperado) se estende para mais quatro (À sombra das raparigas em flor, Sodoma e Gomorra, A prisioneira e A fugitiva). Esse crescimento é fruto de uma constante revisão que acontece tanto na macro-narrativa dos romances, como na micro-narrativa das frases. Por meio de um compasso em largo, as frases crescem por dentro, incham-se, conferindo à obra uma estrutura orgânica. Como podemos notar, desde a origem do romance, não há diferenciação entre teoria e prática, pois, para Proust, reflexão sobre a escrita já é a própria escrita. Nesse sentido, a obra de Proust adquire um caráter híbrido que guarda em si os limites entre realidade e ficção; entre literatura e teoria literária. Com a cautela de não reduzir a obra a estanques dicotomias, poderíamos dizer que se trata de um ensaio ficcional – um discurso anfíbio, híbrido, por excelência. ourselves again, instead of spending the rest of our working lives producing unconscious parodies. But deliberate parody must be spontaneous. When I set producing my, parody of Flaubert, I did not stop to ask myself whether the ‘tune’ ringing in my ears owed its peculiar quality to a recurrent series of imperfects oro f present participles. If I had bothered about that, I should never have got the thing on a paper at all.’( W. Strauss. Criticism and Creative. In: GIRARD, 1962, p. 65) 101 Cf. anexo 2. 71 A partir de uma prosa ensaística, Proust, assim como Baudelaire ao analisar a pintura de Camille Corot, conclui que uma obra feita não é acabada e uma obra completamente acabada não é totalmente feita. Em outras palavras, a obra seria um constante fazer que se impõe. Assim como o ensaio que denuncia, enquanto forma e ficção, as marcas de um movimento feito sobre as leituras; a obra de Proust também guarda as digitais desse mesmo fazer. Semelhantemente a Samuel Beckett ou a Bertolt Brecht que ‘rasgam a cortina’ e conversam com a platéia sobre as concepções do teatro moderno, Proust, durante a narração de Em busca do tempo perdido, dialoga conosco, através das falas dos personagens, sobre o processo de confecção da obra literária. Além dessas fronteiras entre a teoria e o texto ficcional, Proust insere, pela metáfora, sua obra em um não-lugar, em um amálgama de diferentes sistemas artísticos onde os limites espaço-temporal são apagados, conduzindo a obra no tempo, como a música, e a estendendo em imagens, como a pintura. Ancorado nesse espaço do entre, do intervalo, Proust critica métodos de análise literária em que as filigranas biográficas são colocadas acima do estilo, como faz SainteBeuve. Proust discorda desses critérios analíticos porque tende a tornar tudo aleatório na obra, quando, em sua construção, tudo decorre de uma necessidade estética. Quando, no romance, o autor escreve a provável autobiografia do narrador-herói, apresentando certa substancia biográfica parecida com a sua, podemos ler essa escrita como uma resposta ao ‘biografismo’ em voga da época. A desconstrução dessa premissa parte de um desdobramento da coincidência autor/narrador em dois níveis de atuação, mostrando que os dois discursos são homólogos, mas não análogos. ‘O narrador vai escrever e este futuro faz com que ele se mantenha numa ordem de existência e não da palavra; está a 72 braços com um psicólogo e não com a técnica. Marcel Proust, pelo contrário, escreve; luta com as categorias da linguagem, e não com as do comportamento’. 102 Na nossa leitura, procuramos aproximar Proust do narrador não naquilo que diz respeito às biografias em um sentido restrito, mas a partir de uma metamorfose literária. Recuperando o pressuposto de que o desejo é mimético, podemos observar que tanto o narrador como Proust passaram por uma experiência de conversão. Para ambos foi revelada a natureza imitativa do desejo. Ao narrador, pelas ocasiões de memória involuntária e pela matinée na casa dos Guermantes, em O tempo recuperado, como falamos no capítulo anterior. A Proust, pelo itinerário de Jean Santeuil e outros contos até Em busca do tempo perdido. Se em Jean Santeuil, Proust pinta uma superioridade do eu sobre o mundo, um narcisismo que projeta indiferença sobre os demais; No romance Em busca do tempo perdido, esse eu é consolado de suas desilusões. Através das estratégias do desejo amoroso e mundano, Proust revela as mentiras do desejo mimético, o vazio de um eu romântico que se pensa divino, que se quer divino. Esse é o ponto de encontro entre Proust e o narrador. A partir da revelação da cegueira em relação ao seu próprio desejo mimético, os dois romancistas constroem uma literatura, ao menos o narrador nos deixa essa promessa, de desmistificação da imagem consagrada de um eu como fonte de riqueza poética e espiritual dominante no início do século XX, com a estética romântica e simbolista. Nesse sentido, a descoberta do link entre duas sensações, oferecido pela memória involuntária, é repassada pelo romancista de forma a permitir que seus leitores se tornem ‘leitores de si mesmos, não passando [a obra] de uma espécie de vidro de aumento (...) graças ao qual [o romancista] lhes forneceria meios de se lerem.’103Assim, ao revelar o jogo dos duplos, da eterna 102 103 R. BARTHES, 1974, p. 60. PROUST, 1988, p. 280. 73 mediação, Proust e Marcel empregam uma corrida em busca do tempo, fotografando, em todo instante, simetrias veladas, para as revelar em iluminuras, em literatura, em releituras, mostrando que o eu e o outro - a verdade e a ficção – autor e leitor, não estão tão distantes uns dos outros como pode parecer. Basta mudar o foco, ajustar a lente, para ver que tudo isso se resume a uma questão de mera percepção... 74 4. INTERMEZZO: REARRUMANDO A BIBLIOTECA O verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida Carlo Guinzburg, O fio e os rastros. Verdadeiro, falso e fictício Aristóteles, para realizar seu projeto de tentar entender a natureza, partiu daquilo que lhe era conhecido, das vivências comuns, cotidianas. Refazendo a mesma trajetória, o narrador de Em busca do tempo perdido recupera, através da memória, conhecimentos partilhados, as ideias comuns que compõem um patrimônio do pensamento humano a respeito de tudo, escrevendo-os sob a forma de um saber. Um reconhecimento da sua própria humanidade que se traduz na aprendizagem da escrita. Durante a realização dessa tradução, Proust, por meio das leituras do narrador-menino, oferece um acervo de concepções literárias vigentes na época e edita, se assim podemos dizer, um romance da história literária não oficial. Um romance de caráter não pedagógico, mas que questiona a prática da leitura em face da escrita. Nesse sentido, as leituras do narrador-menino constituem alavancas de um pensar crítico, não de prescrições literárias, e sim de uma autoria, uma infância da escrita. Dessa forma, o romance versa não apenas sobre uma redescoberta do eu e do outro, mas também sobre a criação de uma crítica-artística a partir de uma releitura da tradição literária. Assim, a essa tensão da leitura/escrita, impõem-se algumas reflexões sobre a obra proustiana e o cânone da literatura. Em Journées de lecture, o narrador depara-se com uma força imperativa inerente a toda leitura: a citação. Citare, do latim, significa por em movimento. Pois, ‘suspende o contexto presente, deixa-o de lado para se inserir em um novo contexto. (...) A citação estabelece uma relação entre o agora (...) e o que já foi; (...) porta, em grau máximo, o 75 selo do momento crítico, do momento de perigo que é fundamento de toda leitura.’104 Em outras palavras, um perigo de desleitura. Um momento em que predileções autorais, memórias e enciclopédias são realinhadas sob outra configuração. Examinando essas construções históricas da citação, Proust prenuncia o caráter intertextual dos estudos polifônicos de Bakhtin; fazendo do diálogo a superfície onde ‘homens e ideias, separados por séculos, se chocam’105. Da mesma forma que Borges, Proust descobre na citação diferentes genealogias literárias, abrindo, assim, possíveis mesas redondas para o leitor, autor e potenciais precursores. Desse modo, a citação torna-se uma prática constante na poética de Proust, transformando sua obra literária em uma grande biblioteca, uma biblioteca móvel, a ser situada de acordo com o cânone escolhido. Para demonstrar a maleabilidade desta, recuperamos alguns eixos canônicos apontados pelas leituras do narrador-menino, como pelas leituras de outros personagens, além da referência a outras obras. No romance Em busca do tempo perdido, através da citação de Mme. Sevigné, presente da avó para o narrador-menino, Proust situa a biblioteca sob a perspectiva do final do século XVII e seus estertores. Porém, com a personagem do barão Charlus, o ideário decadentista de Des Esseintes transporta a biblioteca para o século XIX. Já com o escritor Bergotte, Anatole France e a contemporaneidade de Proust entram em cena. Pelas leituras de Saint-Loup, o universo nietzsheano e a dicção finissecular. Com A menina dos olhos de ouro e outros romances da Comédia Humana, Balzac. Com Swann, o esteticismo de Ruskin; além de outras referências como o livro d´As mil e uma noites, a Fedra de Racine, as Contemplations de V. Hugo, os diários dos Goncourt, os livros do Gênesis, Êxodo, Esther e Jó. Há também segundo a pesquisa de Marie 104 OEHLER, D. Ciência e poesia da citação no Trabalho das passagens. In: Terrenos vulcânicos. São Paulo: Cosac Naif, 2004, p. 242-243. 76 Miguet-Ollagnier, em La mythologie de Marcel Proust, cerca de duzentos mitos citados. No campo das artes, participam Vermeer106, Giotto, Rembrant, Botticelli, Pieter de Hooch, Delacroix, Wagner, Beethoven entre outros. Já com os ensaios Sur la lecture e Contre Sainte-Beuve, Proust resgata Nerval, Flaubert, Baudelaire e o espírito de modernidade. A partir desse catálogo, Proust realiza um duplo diálogo com a tradição, com a história e com as memórias, reescrevendo-as ao escrever-se nelas. Se por um lado o cânone faz a escrita, ao oferecer-lhe material para isto; por outro, a escrita refaz o cânone, realocando-o na biblioteca. A essa dupla tarefa, o narrador-adulto de Em busca do tempo perdido soma uma terceira: a busca pela biblioteca ideal. Para encontrá-la, o narrador visita a tradição não como quem busca fazer teoria literária ou algum estudo histórico-científico, mas, como quem tenta reaver algo da atmosfera, da ambiência, do entorno das coisas na época em que lia, na esperança de recuperar, pela memória, algo que ficou para trás. Como se a volta aos livros da infância pudesse trazer novamente a própria infância. Como o passado só volta enquanto irrealidade, o narrador conclui que a única maneira de reavê-lo é pela criação107. Inventando um povo que falta, o narrador encontra, na zona entre o vivido e o vivível, um momento de ressurreição. Vida e memória renascidas em imagem, renascidas em devir. Através desse contrato com a instância imaginária, o narrador faz das leituras da infância uma espécie de biografema que o conduz para a escritura, para um saber sobre si mesmo e sobre os outros. Para um faz de conta capaz de lançar a vida, as memórias e até mesmo a tradição para fora dos limites do tempo, para a biblioteca ideal, para um saber enciclopédico de alguém que 106 107 Cf. anexo 3,4,5. Cf. anexo 1. 77 tomou consciência de si, do tempo, e que olha em volta com espanto de estar no mundo... 78 5. CONCLUSÃO: TERCEIRO MOVIMENTO: PARTITURAS LITERÁRIAS Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza Chico Buarque e Cristovão Bastos, Todo o sentimento ‘De tudo fica um pouco’, já dizia Drummond em Resíduo. Acho que é dessa matéria que se constitui esse trabalho – resíduos, sobras, ruínas... Vestígios de um tempo que passou, mas que continua. Será isso literatura? Após a leitura de Proust, que corre em busca do tempo perdido, e de Girard, que nos apresenta o desejo em busca de uma identidade que falta, resta-nos fazer o balanço do que nos fica. Desconfio que seja uma aprendizagem de contabilidade. Um estudo de cálculos, razões e proporções daquilo que passou pela vida, deixando, aqui e ali, rastros da nossa humanidade. Nesse sentido, aproximo a literatura dos provérbios, restos de antigas narrativas, cuja moral nos sugere um modo de recontar, ou melhor, de continuar contando a vida, e, assim, de alguma forma, nos ajuda a deixar, no tempo, fragmentos da nossa existência. Porque, embora o não haja coincidência entre a pessoa civil (do autor e do leitor) com a pessoa literária (do narrador e dos personagens), todos são um só. Simplesmente pessoas. Vidas que se contam, que se mesclam, que se identificam; que não se deixam enganar pelo o que é superficial, pois sabem que nas profundezas tudo se torna lei. Por esta razão, Flaubert pode dizer, ‘Madame Bovary, c´est moi’; podemos entender o esnobismo dos salões do final do século XIX mesmo esses não existindo mais; podemos compreender porque apesar da gama de diferentes culturas que há no mundo, todas se fundam sobre um mesmo princípio, o mecanismo vitimário; podemos perceber o jogo de espelho entre 79 o eu e o outro. Para partilhar dessas associações, uma experiência se faz necessária: a experiência de morte. Talvez, a isso se pudesse resumir a literatura – uma iniciação, uma educação para a morte. Morte do eu romântico que se diviniza ante os seus olhos; morte das paixões; morte da juventude; morte do próprio corpo; morte de sonhos e de fases da vida. A partir dessas mortes, a literatura surge como registro da presença da ausência. À luz de Proust, especialmente em O tempo recuperado, essas mortes podem ser lidas pelo signo da ressurreição. Por meio de uma revolução estética em diálogo com uma revolução espiritual e moral, Proust refaz, através do narrador Marcel, a saga que cabe a todo homem: uma aprendizagem de si e dos outros. Através do reconhecimento do mimetismo do desejo, o narrador reconhece a mentira do orgulho. Entende que imitamos os outros a fim de nos parecermos originais aos outros e a nós mesmos. Retorna a uma primeira subjetividade escondida sob a falsa idéia de autonomia e de espontaneidade. Mostra que quando conseguimos nos reconhecer no outro ‘mau’ que sempre acusamos e deixamos de crer na imagem de autossuficiência por nós mesmos projetada, quando cessamos de confirmar nossa justiça nas rivalidades miméticas; conseguimos perceber o tempo perdido em vazias querelas. Isso implica em uma experiência de morte. Apenas quando se reconhece a queda, a falha, torna-se possível uma redenção, um novo começo, um modo de recuperar o tempo. Por essa razão, Em busca do tempo perdido termina no exato momento em que se propõe começar. Narrando uma história de conversão, de uma mudança de perspectiva, o romancista tenta reaver na arte aquilo que de alguma forma foi perdido na vida. Trata-se da busca por uma segunda chance. Essa metamorfose Girard chama de experiência romanesca em que a morte do herói permite o nascimento do romancista. Este, ao transformar seus desenganos em matéria literária, faz do texto uma luta corpo a corpo contra o próprio 80 tempo, contra o esquecimento, vale dizer, contra a morte. Assim como Sherazade que conta histórias para não morrer, o narrador de Em busca do tempo perdido faz da história de si tantas mil e uma noites quanto forem necessárias. Um testemunho, um saber que se encerra para além da ordem do tempo. Uma longa recordação que ‘faz-nos respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado’108 Pergunto, então, se a literatura seria um retorno? Uma volta ao momento passado? Proust diz que não, mas ‘alguma coisa que comum ao passado e ao presente, é mais essencial do que ambos.’109 Uma promessa de eternidade, quem sabe. Uma possível reconciliação. Penso que, para falar sobre esse assunto, a pessoa mais indicada é Pórcia de O mercador de Veneza. Para com ela conversarmos, um breve retorno ao enredo da peça faz-se necessário. Pórcia é uma rica dama italiana à procura de um marido. Seu pai, no leito de morte, decreta a seguinte condição para a escolha do esposo: Dentre três porta-jóias (um do ouro, um de prata e um de chumbo) apenas um contém a foto de Pórcia, aquele que a encontrar receberá permissão para desposá-la. Bassânio, um dos seus pretendentes, para conseguir encontrá-la, recorre ao amigo Antônio, um comerciante ultramarinho de Veneza, a soma de três mil ducados. Este, por ter investido seu dinheiro em um navio, pede um empréstimo ao judeu Shylock que o faz assinar uma promissória onde acordam o pagamento dentro de três meses, caso contrário, Antônio deverá pagar a dívida com uma libra de sua carne. Decorrido o tempo previsto para o pagamento, Antônio não consegue pagar a dívida devido ao naufrágio dos seus navios. Diante de tal situação, cria-se um tribunal onde o judeu reclama o pagamento da libra de carne. Dentro desse contexto, Shakespeare desenha, através da imagem do usurário judeu do imaginário 108 109 PROUST,1988, p.152. Id. Ibid, p.153 81 antissemita do fim da Idade Média ( e da época moderna) e da figura idealizada de uma Veneza cristã, a trama dos duplos na qual todos somos envolvidos. Durante a cena do tribunal, Shyloc argumenta da seguinte forma: Se nos fizeres cócegas, não rimos? Se nos deres veneno, não morremos? E se nos ofenderes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinaste, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.110 Essa simetria é ao longo da peça afirmada das mais diferentes maneiras. Shakespeare descreve Shyloc e Antônio como rivais de longa data. ‘Com freqüência dizemos que essas pessoas possuem suas diferenças, mas esta expressão seria enganosa. ‘O conflito trágico (e cômico) se resume a uma dissolução das diferenças que é paradoxal porque procede da intenção oposta’111. Todos querem ressaltar suas diferenças. Por trás da esquisitice do pedido de Shyloc pela ‘libra de carne’, podemos ler a crise de indiferenciação mimética em que dinheiro e pessoas, orgulho e humildade, ganância e generosidade se confundem em uma Veneza onde judeus e cristão se esforçam ao máximo para se diferenciar. Essa obsessão mimética se torna ainda mais clara na cena em que Pórcia pergunta, ao entrar no tribunal: ‘onde está o mercador? qual o judeu?’. Dentro dessa lógica, Shyloc é transformado, pelos demais venezianos que se encontram no tribunal, em bode expiatório. A violência apresentada por este, ao cobrar a libra de carne de Antônio, reflete a violência de um mundo, de uma Veneza, em que seres humanos e dinheiro são trocados indistintamente. Uma violência comum que precisa ser controlada, portanto, expiada. Shakespeare sabe que para esta expiação ser 110 111 SHAKESPEARE, 2007, p.73. GIARAD, 2010, p. 458. 82 eficaz, ela deve ser unânime, por esta razão, nenhuma voz se levanta a favor de Shyloc durante o julgamento. Como a criação do bode expiatório afeta cada vez mais as pessoas, o contágio mimético torna-se avassalador, atingindo também a platéia e os leitores da peça que não conseguem deixar de ver, na derrota de Shyloc, um pouco da sua própria vitória também. É um curto-circuito mimético. Ancorada nos jogos dos duplos miméticos e na violência a eles inerente, a peça aponta o caráter circular da lógica da vingança própria desses conflitos. Como alternativa para sair desses círculos miméticos, Pórcia, na cena do tribunal, nos apresenta o seguinte discurso: A misericórdia é uma virtude que não se pode passar à força por uma peneira, mas pinga como a chuva mansa cai dos céus na terra. É duplamente abençoada: abençoa quem tem compaixão para dar e quem a recebe. Poderosa nos poderosos, harmoniza-se com o monarca ao trono melhor que a coroa. O cetro denota força do poder temporal, o atributo real que inspira o respeito à majestade, fonte do temor e da reverência aos reis. Mas a misericórdia está acima de qualquer movimento de cetro. Ela tem seu trono no coração dos reis, é um atributo de Deus e um tributo a Deus, é um poder mundano que se mostra divino... quando a misericórdia vem temperar a justiça. 112 Na contramão da lógica da justiça, da lógica da recompensa, a misericórdia insere o sujeito em outra ordem, purga-o de sua violência contida (sem precisar recorrer ao expediente do bode expiatório), proporcionando uma espécie de metamorfose. Uma transformação muito similar àquela proporcionada pela música. Um rompimento com a ordem necessária da retribuição. Um rompimento com a ordem necessária do tempo. Para receber a música como para receber a misericórdia, é preciso ter humildade; é preciso respeitar o curso das coisas sem querer ser dele detentor. Transformação semelhante a da experiência romanesca que, ao abolir o orgulho, nos pauta o eu e o outro em contínua relação; afina e desvia, esteticamente, nossa percepção para o tempo 112 SHAKESPEARE, 2007, p. 104 83 e para as nossas contingências cotidianas, nos escrevendo em partituras um pouquinho daquilo que chamamos de humanidade... 84 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 6.1 Obras consultadas de Marcel Proust PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Paris: Laffont, 1987. ____. No caminho de Swann / Á sombra das raparigas em flor. Trad. Fernando Py. Vol.I. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. ____. No caminho de Guermantes / Sodoma e Gomorra. Trad. Fernando Py. Vol. II. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. ____. A Prisioneira / A fugitiva / O tempo recuperado. Trad. Fernando Py. Vol. III. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. ____. No caminho de Guermantes. Trad. Mario Quintana. Rio de Janeiro: Globo, 2007 ____. A Prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa Aguiar de A lencar. 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ANEXOS: ANEXO 1: Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim,quando num dia de inverno,chegando eu casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que eu tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando (...) E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva do dia seguinte igualmente sombrio, levei a boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos de biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? (...) Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. (...) Deponho a xícara e me dirijo ao meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade. Mas de que modo? (...) Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz. E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não apresentava nenhuma prova lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a qual as outras se desvaneciam (...) Peço ao meu espírito mais um 95 esforço, que me traga ainda a sensação que me escapa. (...) não sei o que é, mas aquilo sobe devagar; experimento a resistência e ouço o rumor de distâncias atravessadas (...) e de súbito a lembrança me apareceu (...). E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia Leonie (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim (...) e com a casa, a cidade, da manha à noite e em todos os tempos, a praça para onde se passeava quando fazia bom tempo (...) e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda a Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.113 ANEXO 2: Sozinhas, elevando-se do nível da planície e como que perdidas em campo raso, subiam para o céu as duas torres de Martinville. Em breve, observamos três: vindo colocar-se à frente delas, numa volta ousada, uma torre retardatária, a de Vieuxvicq, a elas se reunia. Os minutos passavam, andávamos depressa e, no entanto, as três torres estavam sempre ao longe diante de nós, como três passarinhos pousados na planície, imóveis, e que se distinguirem ao sol. Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, tomou distância, e as torres de Martinville ficaram sós, iluminadas pela luz do poente que mesmo a essa distância eu via brincar e sorrir em suas telhas. Tínhamos levado tanto tempo a nos aproximar delas, de repente, tendo o carro dado uma volta, depositou-nos a seus pés; e de modo tão áspero haviam elas se lançado contra o carro que mal tivemos tempo de parar a fim de não nos chocarmos contra o pórtio. Prosseguindo o 113 PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.51-53. 96 caminho, já tínhamos deixado Martinville há pouco, e a aldeia desaparecera depois de nos ter acompanhado por alguns segundos e suas torres e a de Vieuxvicq ainda agitavam, em sinal de despedida, os seus cumes ensolarados. Às vezes, uma delas se apagava para que as outras duas pudessem nos ver um instante ainda; mas a estrada mudou de direção, elas viraram na luz como três pivôs de ouro e desapareceram aos meus olhos. Mas, um pouco depois, como já estivéssemos perto de Combray, já tendo o sol se posto, avistei-as pela última vez, de muito longe, e não passavam de três flores pintadas no céu acima da linha baixa dos campos. Faziam-me pensar também nas três moças de uma lenda abandonadas numa solidão onde já caía a treva; e enquanto nos distanciávamos a galope, vi-as procurando o caminho com timidez e, após algumas oscilações hesitantes de suas nobres silhuetas, apertarem umas contra as outras, e formarem no céu ainda róseo apenas um só vulto negro, charmoso e resignado, e se apagarem na noite.114 ANEXO 3: [Bergotte] morrreu nas seguintes circunstâncias. Por causa de uma crise de uremia bem leve fora motivo para que lhe prescrevessem repouso. Mas, tendo um crítico escrito que na Vista de Delf, de Vermeer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e julgava conhecer muito bem, havia um pequeno lanço de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado era, se lhe fixassem o olhar, como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastava em si mesma - Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e foi à exposição. Logo aos primeiros degraus que teve de subir, sentiu umas tonteiras. Passou diante de vários quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão 114 Id. ibid. p.152. 97 artificial, e que não valia as correntes de ar e os raios de sol de um palácio de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Por fim chegou diante do Vermeer que ele recordava ser mais cintilante, mais diverso de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez em pequenos personagens em azul, e que a areia era rósea, e, afinal, a preciosa matéria do pedacinho bem pequeno de muro amarelo. Suas tonteiras aumentavam; não tirava os olhos do precioso pedacinho de muro, como procede a criança com a borboleta amarela a que quer agarrar. - Assim é que devia ter escrito - dizia. - Meus últimos livros são muito secos, seria preciso passar-lhes diversas camadas de cor, tornar a minha frase precisa em si mesma, como este pedacinho de muro amarelo. - Entretanto, a gravidade de suas tonteiras não lhe escapava. Numa celeste balança lhe parecia, depositada num dos pratos, sua vida, ao passo que no outro, continha o pedacinho de muro tão bem pintado em amarelo. Sentia Bergotte haver dado imprudentemente o primeiro pelo segundo. – No entanto não gostaria – disse consigo – de ser para os jornais vespertinos a nota sensacional da exposição. – Repetia para si mesmo: ‘Pedacinho de muro amarelo com uma varanda, pedacinho de muro amarelo.’ Nisso deixou-se cair num canapé circular; e subitamente parou de pensar que a vida estava em jogo e,voltando ao otimismo, disse consigo: ‘É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não é nada.’Uma nova crise o derrubou, fazendo-o rolar do canapé para o chão; acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá afirmar? Certo, as experiências espíritas, não mais que os dogmas religiosos, não provam que a alma subsiste. (...) Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrines iluminadas, seus livros, dispostos de três em três, velavam como os anjos de asas 98 abertas e apareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo de sua ressurreição.115 115 PROUST, A Prisioneira. 2004, p. 141-142. 99 ANEXO 4: Jan Vermeer, Vista de Delf. Museu Mauritshuis, Haia 100 ANEXO 5: Jan Vermeer, Vista de Delf (detalhe) Museu Mauritshuis, Haia 101 ANEXO 6: Giotto, O juízo final, Capela dos Scrovengi, Pádua, Itália 102 ANEXO 7: Sandro Botticelli, As filhas de Jetro (detalhe de As provações de Moisés), Capela Sistina, Vaticano. 103 ANEXO 8: A mãe. Pieter de Hooch. Berlin. Staatliche Museen. Preussischer Kulturbeisitz 104