Universidade Federal do Rio de Janeiro
PARTITURAS LITERÁRIAS
Duo para Marcel Proust e René Girard
Natália da Silva Gama
2011
1
PARTITURAS LITERÁRIAS
Duo para Marcel Proust e René Girard
Por
NATÁLIA DA SILVA GAMA
Departamento de Ciência da Literatura
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
parte dos requisitos necessários para a obtenção
do Título de Mestre em Literatura Comparada
Orientadora: Professora Doutora Vera Lins
Rio de Janeiro
2
Março / 2011
FICHA CATALOGRÁFICA
GAMA, Natália da Silva.
Partituras Literárias. Duo para Marcel Proust e René
Girard. Natália da Silva Gama. Rio de Janeiro: UFRJ - Faculdade
de Letras, 2011. 104 fls
Orientadora: Vera Lins
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, 2011.
Referências bibliográficas: 104 fls
1. Literatura Comparada 2. Marcel Proust 3. René Girard
4. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Partituras
Literárias. Duo para Marcel Proust
e René Girard.
RESUMO
3
Partituras Literárias
Duo para Marcel Proust e René Girard
Natália da Silva Gama
Orientadora: Professora Doutora Vera Lins
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do título de Mestre em Literatura Comparada.
Aprovada por:
_______________________________________________________________
Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins
_______________________________________________________________
Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins
_______________________________________________________________
Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina
_______________________________________________________________
Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira (Suplente)
_______________________________________________________________
Professor Júlio Dalloz (Suplente)
Rio de Janeiro
Março/2011
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RESUMO
Partituras Literárias.
Duo para Marcel Proust e René Girard
Natália da Silva Gama
Orientadora: Vera Lins
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
.
Neste trabalho propomos uma leitura do romance Em busca do tempo perdido de
Marcel Proust em parceria com a teoria do desejo mimético desenvolvida por René
Girard. Privilegiamos para essa leitura o processo de reconhecimento da mímesis no
desejo e a sua implicação tanto na literatura como na vida. Para nos auxiliar nesse
projeto, recorremos aos estudos sobre a memória involuntária e a sua relação com o
romance, pois se a memória transfigura o objeto, o romance nos descreve não como
uma ilusão vivida no momento do desejo, mas como uma ilusão nova. A partir dessa
perspectiva, acompanhamos o trabalho do narrador de salvaguardar na obra literária o
tempo de outrora em seus enganos e desenganos. Tarefa de refazer travessias
imaginárias, caminhos da memória, ficções, tempos perdidos e recuperados. Malhas de
um pentagrama sobre o qual a escrita literária se impõe. História de um canto. Partitura
para o concerto de Em busca do tempo perdido na nossa interpretação de Proust e
Girard.
Palavras-Chaves: Literatura, Teoria literária, Marcel Proust, René Girard, Teoria
mimética.
5
RÉSUMÉ
Partituras Literárias.
Duo para Marcel Proust e René Girard
Natália da Silva Gama
Orientadora: Vera Lins
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Dans cet article nous proposons une lecture du roman À la recherche du temps
perdu de Marcel Proust, en dialogue avec la théorie du désir mimétique développée par
René Girard. Nous sommes favorables à cette lecture pour le processus de
reconnaissance de la mimesis, le désir et son implication dans la littérature et dans la
vie. Pour nous aider avec ce projet, nous avons tourné à l'étude de la mémoire
involontaire et sa relation avec le roman, car si la mémoire transforme l'objet, décrit
dans le roman non pas comme une illusion d'expérience dans le moment du désir, mais
une nouvelle illusion. Dans cette perspective, nous suivons le travail du narrateur pour
protéger les œuvres littéraires de l'époque dans leurs erreurs passées et des déceptions.
Travail de re-croiser le chemin imaginaire de la mémoire, la fiction, le temps perdu et
retrouvé. Mailles d'un pentagramme sur lequel l'écriture littéraire est nécessaire.
Histoire d´un chant. Partitions pour le concert de À la recherche du temps perdu dans
notre interprétation de Proust et de Girard.
Palavras-Chaves: Literatura, Teoria literária, Marcel Proust, René Girard, Teoria
mimética.
6
Para os meus pais, Maira e Joel,
e para minha irmã, Juliana,
com afeto e doçura
7
AGRADECIMENTOS
A Deus e a Nossa Senhora pelas infinitas graças concedidas.
A minha mãe, Maira, pela confiança depositada em mim através de um amor devotado e
piedoso.
A meu pai, Joel, pelos constantes cuidados e pela beleza ensinada nas pequenas
coisas.
A minha irmã, Juliana, por partilhar comigo calmarias e tempestades sempre
de mãos dadas.
A minha avó Corina e aos meus avós, Margarida, Jorge e Joaquim, em memória, pelo
carinho.
A professora Vera Lins pela orientação paciente e delicada.
A professora Martha Alkimin pelo terno incentivo.
A Pedro Sette-Câmara que bondosamente me apresentou aos estudos de Girard.
Ao CNPq pelo auxílio da bolsa de mestrado.
Gostaria de agradecer especialmente a Hugo Langone, Irene Milhomes e Olívia Guedes
e a todos os meus amigos e familiares por me apontarem, cada um ao seu modo através
da amizade e compreensão, notas dessa estranha partitura.
E a você, leitor, pela boa vontade de ler este trabalho.
Muito obrigada!
8
SUMÁRIO
1. Introdução: Entre leituras e desleituras - Um caso de afinidades eletivas
Penas, Papéis e Partituras – Notas de um prelúdio
2. Primeiro Movimento: René Girard – Uma poética do paradoxo
2.1 Desejo Triangular – A base de um interminável paradoxo
2.2 Sejamos sacrificadores, não carniceiros
3. Segundo Movimento: Marcel Proust – A história de uma vocação
3.1 Por um frescor perdido
3.2 O velho jogo dos duplos
3.3 O mundo não é mais do que um reflexo do que se passa no amor
3.4 Da sonata ao septeto – Uma teoria literária
3.5 Pequenas iluminuras – Um estudo da composição de Em busca do tempo
perdido
4. Intermezzo: Rearrumando a biblioteca
5. Conclusão: Terceiro Movimento: Partituras literárias
6.
Referências Bibliográficas
6.1. Obras consultadas de Marcel Proust
6.2. Obras consultadas de René Girard
6.3. Outras obras
7. Anexos
9
As coisas que a literatura pode buscar e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a
maneira de olhar o próximo e a si próprio, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de
atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios
e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e
seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode
ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assim
necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em outro lugar, da ciência, da história,
da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente.
Ítalo Calvino
10
1. ENTRE LEITURAS E DESLEITURAS: UM CASO DE AFINIDADES ELETIVAS
Antes de falar sobre o dueto entre Marcel Proust e René Girard para o qual esse
trabalho se destina, gostaria de retomar brevemente o conto ‘Kafka e seus precursores’
de J. L. Borges. No conto, conhecemos a ambição de um curioso experimento: o exame
dos precursores de Kafka. ‘De início, [diz Borges] eu o julgara [Kafka] tão singular
como a fênix das loas retóricas; depois de algum convívio, pensei reconhecer sua voz,
ou seus hábitos, nos textos de diversas literaturas e de diversas épocas’1
Borges cita sete textos dessa pesquisa: o paradoxo de Zeno, um comentário sobre
o unicórnio de Han Yu ( autor chinês de século IX ), duas parábolas religiosas de
Kierkegaard, um poema ( ‘Fears and Scruples’ ) de Robert Browning e dois contos de
Léon Bloy e Lord Dunsany. Apesar da aparente dissemelhança, Borges percebe que
essas obras, em maior ou em menor grau, guardam algo de Kafka. Mas que só pode ser
percebido devido à própria literatura de Kafka que reúne essas obras sobre um terreno
comum. Vale lembrar que Browning ou Han Yu não são precursores cronológicos de
Kafka e sim literários, pois o anunciam dentro de uma dimensão temporal fabricada pela
leitura. ‘O poema Fears and Scruples’, de Robert Browning, [ por exemplo] profetiza a
obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina e desvia sensivelmente nossa leitura do
poema. Browning não o lia como agora nós o lemos ’2. Logo, conclui Borges, ‘cada
escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como
há de modificar o futuro’3
1
BORGES, 2005, p.12.
Id. ibid. p.98.
3
Id.ibid.
2
11
Harold Bloom, em A angústia da influência, aborda esse renascer perpétuo de
linhagens literárias através de um longo movimento de apropriação e desapropriação de
textos. Pura relação textual. Pensamos que seria mais apropriado dialogar com Bloom
através de uma teoria da literatura que caminhasse menos em direção a alusões e a
demonstrações de causa e efeitos e mais no reconhecimento de uma possível tonalidade
comum, demonstrando porque ‘depois de Kafka, a literatura está permeada de Kafka.
Depois de Proust, Constant, Henry James, até mesmo Kierkegaard nos parecem
proustianos, e depois de Shakespeare o Livro de Jó ressoa ecos de Lear.’4.
Chamamos atenção para esses ecos porque a partir deles inauguram-se novas
chaves de leitura capazes de reverter o modo como compreendemos o cânone e a
literatura de uma forma mais abrangente. Dentro dessa perspectiva,
A literatura não é feita apenas de obras isoladas, mas de bibliotecas,
sistemas em que as diversas épocas e tradições organizam os textos
‘canônicos’ e aqueles ‘apócrifos’. Dentro desses sistemas, cada obra é
diferente de como seria se estivesse isolada ou inserida em outra
biblioteca. Uma biblioteca pode ter um catálogo fechado, ou pode tender
a se tornar a biblioteca universal, mas sempre se expandindo ao redor de
um núcleo de livros ‘canônicos’. E é o lugar onde reside o centro de
gravidade que diferencia uma biblioteca de outra, muito mais que o
catálogo. A biblioteca ideal para a qual eu tendo é aquela que gravita em
direção ao exterior, em direção aos livros ‘apócrifos’, no sentido
etimológico da palavra, isto é, os livros ‘escondidos’. A literatura é busca
do livro escondido distante, que muda o valor dos livros conhecidos, é a
tensão em direção ao novo texto apócrifo a ser reencontrado ou
inventado.5
Talvez esse trabalho seja um testemunho dessa angústia da influência, do
desconforto de perder o centro de gravidade e a agradável surpresa de reencontrá-lo
sempre igual, sempre diferente. Para mostrar um pouco mais dessa dinâmica entre
4
5
BLOOM, 1991, p.12.
CALVINO, 2009, p.240- 241.
12
autores, leitores e precursores, proponho um retorno para nosso encontro com Proust,
Girard e a possível origem dessa história.
PENAS, PAPÉIS E PARTITURAS – NOTAS DE UM PRELÚDIO
Todas às vezes em que lia algum romance de Em busca do tempo perdido, tinha a
impressão de estar diante de um eterno recomeçar, tecendo junto ao narrador, como
Penélope, as tramas de uma vida que se conta. Desconfio que essas incessantes
tentativas foram responsáveis por me motivar a ler com mais paciência e atenção a obra
de Proust. Na verdade, a consciência dessa suposta motivação é recente, mas o interesse
por esse tear data das primeiras leituras do romance. Leituras cujo ritmo constantemente
me proporcionava a sensação de estar diante de um concerto, pois me forçava a repetir
uma velha lição: a aceitação do tempo.
Tenho a impressão de que para falar melhor sobre isso, devo começar falando um
pouco sobre algumas exigências da música. Esta por ser uma arte do tempo, já que só se
realiza nele, pede tanto ao ouvinte como ao intérprete paciência para acompanhar seu
desenvolvimento. Não admite abreviações. Ao propor essa condição, a música nos
ensina o valor da espera e, reparem, quando concordamos com ela, vivenciamos uma
espécie de metamorfose. Nunca saímos os mesmos depois de ouvir uma música.
Ficamos mais calmos ou mais agitados, alegres ou melancólicos, mas sempre
transformados. Na literatura a dinâmica, apesar de não parecer, é a mesma. Para
partilhar das histórias, é necessário aprender a viver as pausas, a respeitar o curso da
narração sem pressa, apenas com boa vontade para se apresentar aos personagens e para
permitir que eles se apresentem a nós. São lições de música e de literatura que nos
ajudam a lidar melhor com o tempo e com as vicissitudes que o acompanham.
13
Ainda sobre essas lições e nossa inabilidade frente ao tempo, o narrador de Em
busca do tempo perdido lembra que
muitas vezes não se entende nada, quando é uma música um pouco
complicada que ouvimos pela primeira vez. E, no entanto, quando mais
tarde me tocaram duas ou três vezes aquela mesma sonata, aconteceu-me
conhecê-la perfeitamente. Assim, não está mal dizer-se ‘ouvir pela
primeira vez’. Se nada se tivesse distinguido na primeira audição, como
se pensava, a segunda e a terceira seriam tantas primeiras, e não haveria
razão para que se compreendesse alguma coisa mais na décima.
Provavelmente o que falta na primeira vez não é a compreensão, mas a
memória.6
Seguindo essa linha de raciocínio, a memória, além de um encontro com o tempo
passado, constituiria o pré-requisito da aprendizagem. À primeira vista, esta frase soa
como se fosse desnecessária porque é sabido que aprendemos pela memória, mas, já
notaram que as coisas mais difíceis de serem aprendidas são aquelas que supostamente
já sabíamos? Penso que Proust percebeu isso e passou a investigar o conhecido, as
coisas cotidianas, o tempo, as experiências humanas comuns e fez da memória a matéria
do seu texto. Dentro dessa configuração que reúne tempo, memória e aprendizagem,
optamos uma possível linha de leitura para o romance: a busca pela escrita. Busca que
se confunde com o desejo de construir uma identidade e uma subjetividade. Busca por
um modo de estar no mundo. Busca pelo tempo... Sobre essas buscas o narrador diz que
o que antes não precisamos decifrar deslindar à nossa custa, o que já
antes de nós era claro, não nos pertence. Só vem de nós o que tiramos da
obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem. E
como a arte recompõe exatamente a vida, em torno dessas verdades
dentro de nós atingidas flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um
mistério que não é senão a penumbra que atravessamos.7
6
7
PROUST. À sombra das raparigas em flor, 2004, p.160.
PROUST. O tempo recuperado, 2004, p. 628.
14
Por essa penumbra, procuramos guiar nossa leitura. Arte, vida e memória, pois,
segundo Proust,
para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro, um grande escritor
não precisa, no sentido corrente da palavra, inventá-lo, pois já existe em
cada um de nós, e sim traduzi-lo. O dever e a tarefa do escritor são as do
tradutor.8
Para entender este projeto literário, que chamamos de uma ‘estética da tradução’,
é preciso deixar claro que tradução assume aqui dois sentidos. No primeiro, tradução
equivale a dar forma porque modela as impressões e as memórias do escritor em matéria
literária, as reverte em ficção. Mas em uma segunda acepção, que não deixa de ser
concomitante com a primeira, tradução significa um modo de ler, desleitura,
movimento. Foi por essa instância que os escritos de René Girard, especialmente os
estudos sobre a teoria do desejo mimético, (re) modularam nossa escuta de Em busca do
tempo perdido.
Em 1961, com a publicação de Mentira Romântica e Verdade Romanesca, René
Girard apresentou a matriz de toda sua teoria: a origem mimética do desejo humano.
Essa obra é fruto da leitura de diferentes literaturas distantes uma das outras por
diversos contextos culturais e pelos séculos.9 Ao observar esses romances, Girard intui
um traço comum: a presença de uma dinâmica semelhante durante a descrição do desejo
humano. Girard percebe que o desejo acontece indiretamente através da presença de um
terceiro. Em outras palavras, o desejo precisa ser ensinado, necessitamos que alguém
nos mostre o quê desejar. É importante ressaltar que desejo não se confunde com
apetites. Apetites ‘envolvem coisas como comida e sexo, que não estão necessariamente
ligadas a desejos, pois têm um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser
8
Id.ibid p.678.
9
Girard propõe nesta obra leituras de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e Dostoieviski.
15
contaminado pelo desejo mimético a partir do momento em que exista um modelo – a
presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético’10. Desse
modo, nosso apego ao objeto do desejo é de certa maneira predeterminado. Entretanto,
nem sempre essa predeterminação é percebida porque quase nunca recorremos a esse
primeiro estágio e adotamos a imitação como expressão genuína do nosso próprio
desejo. Esse é o x da equação de Girard: a crença na suposta autenticidade do desejo e
na ilusão de autonomia por ela conferida. Vejamos:
Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais
diferença entre instinto e desejo. Ou seja, se ‘meu’ desejo tem sua origem
na minha individualidade, então, ele é fixo – característica dos instintos,
que nada são individuais! A mobilidade do desejo, em contraste com a
fixidez dos apetites, decorre da imitação. Aí reside a grande diferença:
todos nós temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético
11
pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem que escolher um modelo’
Continuando com esta intuição, Girard observa também duas formas
diametralmente opostas de se relacionar com a mediação do desejo. Daí o título do
livro. A mentira romântica estaria em negar o mimetismo do desejo, em postulá-lo
como algo natural e espontâneo. Para observar como também vivenciamos esta postura,
basta retomar o clichê do ‘amor à primeira vista’, quando, pela ótica mimética, é o
nosso modelo quem nos indica por quem devemos nos apaixonar. Na verdade, essa é
uma fórmula tipicamente shakespeariana, apenas iluminada por Girard. É muito comum
nas peças de Shakespeare que um personagem se apaixone por outro sem jamais tê-lo
visto. Como é possível? Se lida com olhos girardianos, Shakespeare, na comédia Muito
barulho por nada, responde da seguinte forma:
Agora, Úrsula, quando percebermos
que Beatriz se escondeu, continuando
10
11
GIRARD, 2000, p.84.
Id. Ibid, p.84 e 85.
16
nossas voltas, façamos que a conversa
gire em torno, tão-só, de Benedito.
Sempre que eu pronunciar o nome dele,
trata de cumulá-lo de louvores
como nenhum mortal os merecera.
Toda minha conversa há de cingir-se
a um só tema: a paixão de Benedito
por Beatriz.Desse jeito é que o pequeno
deus cupido prepara as suas setas,
que ferem só de outiva.12 (grifo nosso)
É claro que esse mecanismo, na maioria das vezes, é acionado sem a nossa
consciência, muitas vezes não temos noção da presença do nosso modelo. Por outro
lado, há aqueles romances que assumem a verdade romanesca, a mediação do desejo.
Todavia, apesar das diferentes formas de enxergar essa mecânica, a matéria-prima da
literatura continua sendo o desejo. Sob esse prisma, correntes estéticas e filosóficas
como romantismo, realismo, subjetivismo, objetivismo, individualismo, idealismo,
positivismo tornam-se apenas modos distintos de traduzir essa mediação.
Nesse
sentido, buscar entender o desejo equivale a fazer teoria literária, a tentar compreender
uma metalinguagem não só da literatura, mas da própria sociedade que, contada em seus
enganos e desenganos, acaba por explicar a vida. Embora pouco convencional, Girard
recupera aquilo que talvez fosse a dimensão primeira da literatura –
as relações
interpessoais. Contudo, não se trata aqui da defesa de um modelo realista tradicional,
mas de um possível entendimento do propriamente humano, do desejo.
Partindo da premissa de que desejamos por imitação, Girard observa que em
muitos momentos não desejamos um objeto apenas por uma qualidade particular que é
apontada pelo modelo, mas para nos tornarmos como o modelo. Para vermos como isso
12
Muito barulho por nada de W. Shakespeare. In: Comédias.Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio
de Janeiro: Agir, 2008, p.451.
17
funciona na prática, basta lembrar as propagandas e as razões para o seu sucesso. Dentro
dessa lógica, Girard identifica um componente importante em toda relação mimética: o
distanciamento. Em situações em que há distância entre sujeito e o mediador, a mímesis
tende a ser produtiva, pois não há busca por exclusividade e sim por um ideal a ser
seguido, como acontece na imitação de Cristo para um cristão ou a imitação d´Amadis
de Gaula para Dom Quixote. O mesmo não ocorre quando há aproximação do modelo.
A relação mimética torna-se competitiva, o impulso sobre o objeto recai sobre o
mediador. Essa rivalidade pode ser facilmente observada quando uma criança começa a
interagir com outras crianças. Santo Agostinho nas Confissões relata esse tipo de
mediação da seguinte forma:
Em que podia pecar, neste tempo? Em desejar ardentemente chorando, os
peitos de minha mãe? (...) Assim, a debilidade dos membros infantis é
inocente, mas não a alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de
inveja, que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o
irmãozinho de leite. Quem não é testemunha do que afirmo? Diz-se até
que as mães e as amas procuram esconjurar este defeito, não sei com que
práticas supersticiosas. 13
Notem que a rivalidade começou não pelo risco de perder o objeto, não há
nenhuma referência ao risco do leite não ser suficiente para ambas; mas, a exclusividade
do objeto foi ameaçada, por isso a relação mimética tende a se tornar competitiva.
Como nos modelamos a partir de outrem, é natural que o desejo mimético apreenda
também os objetos que o outro possui. Esse mimetismo infantil em nada difere do
mimetismo do adulto; a não ser pelo fato de que no mundo do adulto essa modelagem é
em todo momento camuflada. O desejo começa através da mediação de alguém que
tomamos por modelo e terminamos por considerá-lo como um inimigo, pois passamos a
invejá-lo. Sim, invejamos, a palavra é feia, nunca a admitimos, mas é o que acontece. O
13
Santo Agostinho. Confissões, I, 7. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrosio de Pina. Petrópolis: Vozes,
2000, p.30.
18
objeto desejado perde sua importância ante o desejo de ser como o modelo, de ser o
próprio modelo.
A observação dessas mediações e suas respectivas conseqüências viabilizou a
Girard uma nova leitura de Proust, talvez um Proust menos lírico e mais cético, diria até
mais pungente; além de um vasto material de pesquisa sobre o qual procuramos iniciar
uma leve abordagem ao longo deste trabalho. Mas, voltando a Proust, confesso que
inicialmente, Em busca do tempo perdido se apresentou a mim como um grande teatro
onde grandes dramas eram encenados; intermináveis monólogos ensaiados; diários e
pequenas fotografias expostas em pátina, denunciando o tempo que passa, além de uma
coleção de objetos que já não existem mais... E tudo isso embalado ao som de uma
vagarosa melodia, estranha, mas de certa forma familiar também. Não sei se faz algum
sentido para os demais leitores de Proust semelhante geografia, mas foi assim que
percorri as páginas do romance. Em meio a tantas memórias, para tentar me guiar,
adotei a estratégia de costurá-las em um pentagrama a fim de guardar algo daquela
melodia. Encontrei no percurso do narrador para a vocação literária um possível
diapasão. Durante esse período de leitura e transcrição, tive a feliz surpresa de encontrar
nos textos de Girard, a tradução dessas lembranças em experiência romanesca. Com
essa nova sintaxe, ganhei um novo romance, outro concerto...
A partir dessa leitura do desejo como algo fabricado e compartilhado, pontos de
intersecção podem ser encontrados nas mais variadas relações – entre personagens;
entre autor e leitor; autor e narrador; entre autor e a obra e, por que não entre autor e
autores, entre literaturas? Chego ao motivo desse prelúdio. Uma possível chave
interpretativa. Se ‘cada escritor cria seus precursores’, como disse Borges, a base
comum entre eles pode estar na teoria do desejo mimético. Ora, o que seria capaz de
19
reunir homens de lugares, épocas e culturas tão diversas entre si? Penso que uma
resposta coerente deve remeter a algo de natureza antropológica, algo capaz de religar o
homem a sua própria humanidade. Girard sugere o desejo mimético. No plano da
leitura, esse reencontro pode ser observado pelo próprio movimento realizado por
Girard em direção ao seu objeto de estudo. Lembrando que a gêneses da teoria mimética
se encontra na leitura de diferentes literaturas, inclusive a de Proust, Girard, ao fazer
teoria literária, acaba refazendo o mesmo movimento apontado por Borges. Afinal,
foram Shakespeare, Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust, Dostoievski entre outros que
anunciaram e anunciam o desejo mimético, mas foi Girard quem o traduziu. Logo,
podemos ler essa tradução como uma dupla certidão de nascimento. Na primeira, o
desejo mimético é registrado; na segunda, Shakespeare, Cervantes, Flaubert, Stendhal,
Proust e Dostoievski e toda uma tradição literária renascem. Assim, nesse cartório, a
cada leitura, uma nova literatura nasce e com ela um pouco da humanidade também. É
como se, no fundo, o trabalho do escritor, vale dizer, do leitor, fosse recolher essas
vozes, descobrir seu tom e reuni-las sob uma nova harmonia. Nesse sentido, ler é fazer
arqueologia. É buscar por essa nota misteriosa que reúne os povos e atravessa os tempos
silenciosamente...
20
1. PRIMEIRO MOVIMENTO:
RENÉ GIRARD - UMA POÉTICA DO PARADOXO
Nomais, Canção, nomais; que irei falando,
Sem sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
Não pode ser – lhe dize limitada
A água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas
Luís de Camões, Lírica
‘O homem difere dos outros animais por sua maior capacidade de imitação’, diz
Aristóteles na Poética. No entanto, para que partamos de um mesmo terreno, é preciso
deixar claro sobre qual perspectiva inserimos esse texto. Pedimos para que quando
falarmos em mímesis, o leitor leia imitação. É com esse sentido, retomado da tradição
clássica, que procuramos trabalhar.
Somos miméticos. A própria existência da língua comprova nossa capacidade de
imitação. Caso contrário, não seríamos capazes de compartilhar códigos, afinidades,
comportamentos... Imitação. É desconfortante ouvir. Ainda mais em tempos como o
nosso, em que a originalidade está em alta, imitar soa como um retrocesso, certa
incapacidade, não é verdade? Segundo Girard, essa indiferença em relação à mímesis
não é gratuita, pois ‘acredita-se que, ao insistirmos no papel da imitação, estaríamos
acentuando os aspectos gregários da humanidade, tudo aquilo que nos transforma em
rebanhos. Teme-se minimizar tudo o que vai em direção à divisão, à alienação do
conflito.’14 Como se, ao assumir a imitação, nos tornássemos cúmplices de certa
14
GIRARD, 2008 b, p.28.
21
uniformização. Exagero? Talvez, não. Façamos o seguinte exame: Por que todo mundo
é contra a moda? Por que tanto a sua renúncia como a sua adoção, na verdade, são uma
questão de moda? Ora, todos nós queremos ser diferentes. Trabalhamos para isso.
Identidades são construídas sobre esse pilar. Afinal, cada grupo se diferencia dos demais
pelos objetos que desejam. É a exclusividade do objeto que sustenta o modismo e
também a identidade do grupo. Como todos buscam a diferença, mais cedo ou mais
tarde, a exclusividade prometida por determinado modismo se esvai como fumaça pelo
ar. É por isso que a moda acaba saindo de moda. É também por isso que somos hostis à
moda e a qualquer tipo de imitação.
Essa aversão à imitação repousa em última análise em uma concepção que
remonta a Platão. Na República, Platão fala de imitação sempre como representação
através de exemplos sobre comportamentos, hábitos, modos de falar etc. Nunca como
comportamentos de apropriação. Ora, se somos capazes de imitar os mesmos gestos,
apreciar as mesmas coisas, por que não imitaríamos os desejos? Por que não
buscaríamos possuir as mesmas coisas? Embora não apresentada nessa dimensão, Platão
desconfia de uma força desagregadora na mímesis, de possíveis rivalidades. No livro X,
durante o episódio da expulsão do poeta da República, Platão o expulsa porque ‘a
atividade artística que é uma forma de mímesis e não o inverso’. 15 Apesar da suspeita,
Platão não concebe a mímesis nessa dimensão apropriativa. Dimensão negligenciada
também por Aristóteles e por toda uma tradição filosófica que o sucedeu. Nesse
quadrante, o emprego da mímesis se limitou apenas às modalidades de imitação sem
entrar na ordem dos conflitos. Girard diz que
Isso não é um simples ‘erro’ ou ‘esquecimento’: é uma espécie de
repressão do próprio conflito mimético. Há nessa repressão algo de
fundamental para todas as culturas humanas, mesmo a nossa. As
15
GIRARD, 2008 b, p.36
22
sociedades primitivas reprimem o conflito mimético proibindo, é claro,
tudo o que poderia suscitá-lo, mas também dissimulando-o por trás dos
grandes símbolos do sagrado, como a contaminação e a mácula etc. Essa
repressão perpetua-se entre nós, mas sob formas paradoxais. (...) Em vez
de temê-la, nós a desprezamos. Estamos sempre ‘contra’ a imitação, mas
de um modo diferente de Platão; nós a expulsamos um pouco de toda a
parte, mesmo da nossa estética. Nossa psicologia, nossa psicanálise e
mesmo nossa sociologia só lhe concedem espaço a contragosto. Nossa
arte e nossa literatura esforçam-se por não se parecer com nada ou com
ninguém, mimeticamente.16
Esse esforço já se encontra de certa forma, em O mercador de Veneza, na cena em
que Bassânio olha fixamente para o retrato de Pórcia,
O retrato de Pórcia, a inigualável?
Que semideus já se encontrou tão perto
da criação? Esses olhos se deslocam?
Ou parece que o fazem, tão somente
porque na órbita os meus também se movem?
Doce hálito perpassa entre esses lábios.
Jamais barreira tão suave amigos
tão gratos separou. Nestes cabelos
fez-se aranha o pintor e uma áurea teia
preparou, para nela se enredarem
os corações dos homens mais depressa
do que nas verdadeiras os mosquitos17
(grifo nosso)
Incapaz de contemplar toda a beleza de Pórcia, Bassânio faz do retrato um meio
para admirar Pórcia. Shakespeare, com esse artifício da réplica sobre o original,
prenuncia um possível debate sobre a crise mimética que vivemos hoje. Notem que
antes do Renascimento, a pintura buscava se concentrar na realidade empírica. Havia
um respeito em relação à superioridade da criação divina sobre a criação humana.
Depois do Renascimento, as reproduções roubam a cena. A ênfase que antes era dada a
um determinado modelo é deslocada para a criação humana, para o processo de
reprodução em si mesmo. Instaura-se, assim, um clima de competição entre os artistas e
16
GIRARD, 2008 b, p. 38 e 39
O mercador de Veneza de W. Shakespeare. In: Comédias. Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio de
Janeiro: Agir, 2008.
17
23
uma espécie de veto à imitação. Com isso, ‘o receio de repetir o que os outros já tinham
feito, ou estavam prestes a fazer, tomou o lugar do antigo medo de não imitar com
suficiente fidelidade’18, acelerando uma cadeia de sucessivas buscas por originalidade.
Ainda sobre nosso desprezo à imitação, algumas observações são necessárias:
Existe uma mudança de eixo dentro da arquitetura da teoria mimética. Na contramão de
Kant e da própria modernidade, se assim podemos dizer, Girard, ao apresentar o desejo
mimético como parte constituinte do ser humano, esvazia o sujeito do seu centro de
decisão. Na prática isso significa que o sujeito deixa de ocupar o lugar central na
produção da realidade e do conhecimento para partilhá-lo com outros sujeitos. É
importante chamar atenção para o fato de que a teoria mimética não pretende negar a
subjetividade, pois seria um absurdo se assim o fosse, mas relativizar a capacidade do
sujeito de decidir por si próprio. Em outras palavras, se o desejo é sempre
compartilhado, ou seja, se não parte do outro como fim, como finalidade, mas como
princípio, então como pode o sujeito ocupar sozinho o centro de decisão? Crer em um
sujeito autocentrado é nesse sentido negar o caráter relacional do desejo, sua natureza
mimética. É acreditar na mentira romântica, pois.
Dentro da lógica em que o desejo depende da participação do modelo,
conscientemente ou inconscientemente adotado, aquilo que chamamos de originalidade
se assemelha ao ouro que em certas fábulas vira pó, apenas uma ilusão. Mas, como é
caro desfazer ilusões...
18
GIRARD, 2010, p. 605.
24
2.1. DESEJO TRIANGULAR – A BASE DE UM INTERMINÁVEL PARADOXO
Dissemos anteriormente que o homem deseja por imitação, logo, depende de
mediação. Nessa perspectiva, a configuração do desejo deixa de ser linear (do sujeito ao
objeto) e adquire uma forma triangular (sujeito – mediador – objeto). A partir dessa
nova silhueta, Girard identifica que a qualidade da mímesis era influenciada pela
distância entre o sujeito e o mediador.19 Nos casos em que o modelo encontrava-se
distante do sujeito, Girard nota que a qualidade mimética tende a ser produtiva, pois a
mímesis ganha uma dimensão agregadora, reúne sujeito e modelo sob ideais comuns. É
o que acontece em Dom Quixote de La Mancha. De tanto ler Amadis de Gaula, Alonso
Quijano se transforma em Dom Quixote. São os códigos e as aventuras da cavalaria que
são desejados. Porém, conforme o mediador se aproxima, o desejo que antes se limitava
a uma especulação intelectual, aos ideais, é transferido para os objetos desejados pelo
modelo, instaurando, portanto, uma disputa. Vale lembrar que no desejo tudo, a não ser
a fome pelo sagrado, é teatral, pois não é na ordem do real que o desejo se inscreve, mas
da metafísica. É preciso crer em uma transcendência, em uma promessa de felicidade,
para desejar. Com a aproximação do mediador, o sujeito projeta sobre o objeto essa
promessa de felicidade, acreditando que a posse exclusiva deste lhe renderá passaportes
para outros mundos, para uma realidade sonhada. Por sua vez, o modelo continua fiel à
posse do objeto, lutando pelo seu domínio. Conclusão: instaura-se o conflito. Para a
sorte de nosso Dom Quixote, o modelo é literário (as novelas de cavalaria) incapaz de
oferecer alguma ameaça à exclusividade do objeto, eliminando assim a possibilidade de
19
Para melhor desenhar os efeitos da influência da distância sobre as relações miméticas, Girard
classificou os casos em que sujeito e modelo estão distantes como mediação externa e as situações
em que há proximidade entre sujeito e modelo como mediações internas.
25
um confronto. Mas, imaginem se Amadis de Gaula fosse vizinho de Alonso Quijano.
Certamente a história seguiria por trilhos bem diferentes.
Sobre o papel do distanciamento na configuração do desejo, Girard em
‘Conversion in Literature and Christanity’20 compara o grau de rivalidade entre sujeito e
modelo durante a mediação com os círculos do inferno da Divina Comédia. Essa
analogia é pertinente não só na medida em que nos apresenta a distância entre
sujeito/mediador como grandezas proporcionais, mas também porque chama atenção
para algumas leis do desejo mimético (sobre esse ponto trataremos um pouco mais
adiante). Em relação à distância, a lógica é a seguinte: quanto maior for a distância,
mais vasto se torna o círculo infernal e mais estável será a mediação. Isso significa que
menos penosa será a relação mimética, pois o objeto é empobrecido de desejo
metafísico. Agora, conforme a distancia é reduzida, mais estreito se torna o círculo e a
relação cresce em rivalidade. Aumenta-se o desejo de ser como o outro através da posse
do objeto, pior, não só do objeto, mas da própria figura do outro. Dentro desse
raciocínio, a eliminação do modelo torna-se inevitável. Além do dilema ético, existe em
todas essas figurações miméticas uma sombra, uma zona de ressentimento. Na
realidade, o que acontece é uma inversão da cronologia dos desejos. O sujeito afirma
que seu desejo é anterior ao do modelo. Não reconhece a mediação e tampouco a sua
responsabilidade pelo conflito. Dentro dessa ótica, o sujeito, para preservar a autonomia
do seu desejo, deprecia tudo o que remete ao modelo, enxergando-o e apresentando-o
aos demais como um inimigo, um intruso. Entretanto, há nessa raiva algo de veneração
também, pois para eleger um modelo é preciso admirá-lo antes. A esse impasse, o
sujeito acrescenta uma mistura de frustração (por não se considerar aceito pelo modelo
como discípulo), de orgulho (por não conseguir se assumir discípulo), e de inveja (que
20
In: GIRARD, 2008a.
26
confere prestígio ao modelo em detrimento do ‘eu’), estreitando cada vez o círculo
dessa mediação. Um exemplo extremo dessa relação mimética talvez seja Os Demônios
de Dostoievski. No romance, Stravoguine, o personagem principal, funciona como o
mediador de todos os outros personagens. Todos, através de atitudes de aparente
indiferença, o veneram secretamente. Se lermos ao avesso a angústia e a raiva
experimentadas pelos personagens, vamos identificar uma espécie de amor divino. Uma
promessa de felicidade a ser cumprida pelo modelo, independentemente da afirmação
ou da negação de Deus, pois, como já dissemos, a ordem do desejo é metafísica. O
inferno em Os Demônios encontra-se justamente na frustração dessa promessa, uma vez
que ‘a mesure que le ciel se dépeule le sacré reflue sur la terre; il isole l´individu de tous
les biens terrestres; Il creuse, entre lui et l´ici-bas um gouffre plus profond que l´ancien
au-delà. La surface de la terre où habitent les Autres devient un inacessible paradis.’21
Embora em menor grau, o frenesi e o desencanto presentes no mundo d´Os
Demônios já se encontra em Flaubert com Madame Bovary. Na verdade o bovarismo é
feito dessa mesma matéria: a necessidade de uma transcendência e o fracasso de um
projeto de auto-divinização. Os heróis de Flaubert experimentam a amargura de não
conseguir se igualar aos modelos que eles se propõem (além de nunca, NUNCA, admitir
a eleição desses modelos). Dentro dessa pretensão, os personagens não conseguem
perceber que são eles mesmos quem se depreciam e se condenam. Como alternativa
para escapar desses julgamentos, Emma Bovary se refugia nas paixões com a
expectativa de uma possível transcendência. Daí surge o termo bovarismo que
comumente associamos a uma fuga de realidade, mas, vale ressaltar, de uma realidade
que a própria personagem se impôs. Notem que quando Emma escreve cartas de amor
21
Os demônios. Apud. Girard, 1961, p.78
27
para Rodolfo, um de seus amantes, na verdade, é sobre a natureza metafísica do desejo
que se escreve.
Mais, en écrivant, elle percevait un autre homme, un fantôme fait de ses
plus ardents souvenirs, de ses lectures les plus belles, de ses convoitises
les plus fortes; et il devenait à la fin si véritable, et accessible, qu´elle en
palpitait, émerveillée, sans pouvoir néanmoins le nettement imaginer, tant
il se perdait, comme um dieu, sous l´abondance de ses attributs.22
O interessante em todas essas situações de mediação interna do desejo é que
todas, sem exceção, buscam esconder o modelo, instaurando assim uma espécie de
contra-imitação. Dizendo de outro modo, de tanto tentar se diferenciar do modelo, o
sujeito acaba por se tornar igual a ele. Essa é a estratégia narcísica, por excelência;
fingir que não há modelos. Durante a leitura de Em busca do tempo perdido
encontramos diversas cenas que apontam para esse mecanismo. Citamos o ‘passeio no
dique’ dos burgueses em férias em Balbec:
Todas as pessoas (...) fingiam não se ver, para dar entender que não se
preocupavam umas com as outras, mas olhando à esquiva, para evitar
encontrões, as pessoas andando a seu lado, ou vindo em sentido inverso,
não obstante se chocavam com elas, enredavam-se nelas, pois tinham
sido reciprocamente, de sua parte, alvo da mesma atenção secreta, oculta
sob o mesmo desdém aparente’23
Notem que nesse episódio todos se tornaram indiferenciados. É a cartilha de um
difícil imperativo que é seguida. Quando o modelo, aos olhos do sujeito, diz ‘imite-me,
pois tenho a chave da felicidade’, logo em seguida ecoa um ‘não me imite’. Com esse
duplo comando, o modelo rouba a cena, estimulando a rivalidade mimética. Não
queremos dizer com isso que o modelo seja o culpado da rivalidade, somente chamamos
atenção para essa forma egoísta de desejar. Forma pela qual também desejamos e que
22
23
Madame Bovary. Apud. GIRARD, 1961, p.80.
PROUST, À sombra da s raparigas em flor, 2004, p.788.
28
não cessamos de imitar. ‘No passeio no dique’, pode-se observar que em decorrência da
crescente aproximação física entre o sujeito e o modelo, a mímesis se torna cada vez
mais simétrica, pois, ‘à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo
seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se,
ao mesmo tempo, modelo de seu modelo’24; portanto, alvo da mesma atenção secreta,
oculta sob o mesmo desdém aparente. Em casos como este onde há uma dupla
mediação, a simetria entre os envolvidos resulta na produção de duplos, reduzindo
sujeito e modelo aos papéis de rivais. Entretanto, conforme a mímesis se converte em
antagonismo, mais membros da comunidade são envolvidos em seu mecanismo. Isso
porque para quem assiste à disputa, o objeto desejado torna-se precioso, caso contrário,
não estaria dentro de uma disputa. Porém, após essa cobiça inicial o objeto tende a
desaparecer. A rivalidade, por contágio mimético, fabrica cada vez mais duplos,
acirrando uma crise de indiferenciação.
Girard, partindo da literatura, desenvolve a intuição do desejo mimético,
meditando sobre a influência que exercemos uns sobre os outros. Contemplação, inveja,
ciúme, frustração, conflitos, nessa ótica, soam como respostas aos efeitos da mediação.
Entretanto, a observação de Girard partiu de sociedades já constituídas, organizadas
sobre mecanismos de controle de violência. Mas, e antes disso? Imaginem a rivalidade
de uma mediação interna generalizada em âmbitos civilizacionais. Seria um curtocircuito mimético! A partir desses questionamentos em relação às crises miméticas,
Girard investiga como esses conflitos podem ser superados ‘entre grupos de hominídeos
que ainda não haviam desenvolvido atributos considerados humanos – linguagem,
24
GIRARD, 2000, p.87
29
instituições, proibições, entre outros. Como a violência mimética pode ser controlada na
ausência de formas de mediação que integram o que denominamos cultura?’25
Cultura, etimologicamente, significa plantar/colher, ou seja, a criação de uma raiz
comum. Nesse sentido, o que é a língua senão uma superfície comum na qual
transitamos, aprendemos, imitamos? Porém, quanto mais esses horizontes comuns se
ampliam, maiores são as chances de conflito, pois maiores são as incidências de
mediação interna. Para conter os efeitos dessa mediação, criam-se as instituições.
Seguindo essa linha de raciocínio, pode se observar já nos principais interditos
(interditos de objeto, sexual e alimentar) essa dimensão desagregadora da mímesis.
‘Não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não darás falso testemunho contra
o próximo; não cobiçarás a casa do teu próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o
boi, nem o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença’26. Observem que o limite é
sempre fixado no próximo, pois ele constitui o modelo. Por extensão, tudo que pertence
ao próximo passa a ser vetado também. Afinal, esses seriam os objetos mais próximos
aos demais membros do grupo, portanto, mais suscetíveis de rivalidade mimética. (É
claro que a proibição pode surtir um efeito contrário, mas, em tese, ela funciona como
mecanismo de controle.)
A alternativa sugerida por Girard, dentro do contexto dos hominídeos, é o
mecanismo do bode expiatório. Se não há mais objeto visível nas crises miméticas, a
solução pode estar em trazer à cena outro objeto. Assim, ‘a violência, antes
indiscriminada, de todos contra todos na disputa fratricida pelo(s) mesmo(s) objeto(s), é
dirigida arbitrariamente contra um único membro do grupo. Todos se voltam contra ele,
canalizando a violência que, de geral e inespecífica, portanto anárquica e
25
26
Id.ibid, p.17.
Êxodo 20, 13-17
30
autodestruidora, adquire uma direção única, por isso mesmo, re-ordenadora do grupo.’27
Dizendo de outro modo, culpamos o bode expiatório pela nossa violência e a expiamos
durante o sacrifício deste. Eis aqui mais um paradoxo da teoria mimética: como é
através do sacrifício que a paz e a ordem voltam ao cenário, o bode expiatório que antes
era visto como culpado passa a ser divinizado. Nesse sentido, podemos entender por que
os ritos das mais diversas religiões geralmente começam por uma desordem, com uma
re-encenação da crise mimética, e terminam com o sacrifício. De acordo com essa
premissa, a violência não seria um mal-estar da civilização, mas a condição para o
surgimento da cultura.
Muitos estudiosos da teoria mimética apresentam o pensamento de Girard como
uma espiral cujos desdobramentos são impossíveis de se determinar a priori. Nunca se
sabe onde nem como o mimético vai se instalar. O próprio Girard diz que ‘a análise
mimética não é uma receita. Jamais deve ser reduzida a uma receita pronta, já que o
mimético é fluidez absoluta. O mimético é anti-sistêmico por excelência na medida em
que a própria realidade impõe constantes requestionamentos.’28 Acompanhando essa
fluidez, a teoria mimética nos surpreende ao alcançar crescentes graus de complexidade.
Da hipótese do desejo triangular, a teoria desenha durante seu percurso pela cultura uma
possível matriz originária e original daquilo que é propriamente humano. Além da
ambição desse debate, a teoria mimética repercute uma dimensão ética: Se me
reconheço mimético, enxergo minha violência, então, consigo perceber a mentira do
mecanismo do bode expiatório. Ao perceber que sou co-partícipe da violência mimética,
em vez de acusar o outro, posso ao menos partilhar a culpa. Isso, acreditem, já seria
muito...
27
João Cesár de Castro Rocha. Introdução à edição brasileira de Shakespeare. Teatro da inveja, p.19.
R.Girard. ‘A teoria mimética não se limita à crítica das linguagens’ In: Assmann, Hugo (org) René
Girard com os teólogos da libertação. Um diálogo sobre ídolos e sacrifícios. Petrópolis: Vozes, 1991,
p.41.
28
31
2.2. SEJAMOS SACRIFICADORES, NÃO CARNICEIROS 29
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem
Lucas 23, 34
Na contramão de Freud e de outros filósofos da modernidade, Girard, ao defender
a instabilidade do eu e a necessidade de recorrer aos outros para a configuração da
identidade, apresenta também uma nova forma de compreensão da violência.
Diferentemente da ideia de um instinto ou de uma pulsão de morte em que a violência é
vista como algo externo ao homem, na teoria mimética a violência é intrínseca ao
mimetismo. Para compreender essa inversão de perspectivas, é preciso orientar o desejo
para a própria violência, ou seja, para o rival, uma vez que é por ele que o sujeito deseja.
Não se trata apenas de uma identificação do rival, mas de definir sua posição de modelo
para a confecção dos desejos. Ao mostrar o homem como um ser que sabe
perfeitamente o que deseja, ou como um ser que tem sempre um ‘inconsciente’ que sabe
por ele, os teóricos modernos deixam em segundo plano aquilo que a teoria mimética
entende como o centro das relações pessoais, as incertezas humanas. Pois,
Uma vez que seus desejos primários estejam satisfeitos, e às vezes
mesmo antes, o homem deseja intensamente, mas ele não sabe
exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser do qual se sente
privado e do qual algum outro parece-lhe ser dotado. O sujeito espera que
este outro diga-lhe o que é necessário desejar para adquirir este ser. Se o
modelo, aparentemente, já dotado um ser superior, deseja algo, só pode se
tratar de um objeto capaz de conferir uma plenitude de ser ainda mais
total. Não é por meio de palavras, mas de seu próprio desejo que o
modelo designa ao sujeito o objeto sumamente desejável
Dessa forma, Girard reavalia o caráter ambivalente da mímesis. Se por uma lado
ela possibilita a formação de um grupo através de zonas comuns compartilhadas pela
29
Conferir Júlio César de W. Shakespeare e o capítulo 24 de Shakespeare. Teatro da inveja de R. Girard.
32
cultura; por outro ela pode ser a causa da destruição desse mesmo grupo. À medida que
a mímesis cresce em rivalidades, a tendência é que ela se torne cumulativa, até que o
processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o bode expiatório.
Para encerrar a crise mimética, é fundamental que o grupo acredite na culpa daquele que
foi escolhido como bode expiatório. É a crença dessa culpa que legitima o assassinato
em sacrifício, convertendo o linchamento em acontecimento ritual. Por essa razão, o rito
sempre repete indefinidamente esse mecanismo mimético com vítimas substitutas.
Assim, por corresponder à resolução de um conflito, o rito sempre surge em situações
de crise, funcionando como uma instituição reguladora. A essa leitura dos ritos e das
religiões, Girard propõe um enfoque antropológico capaz de iluminar possíveis bases
para o nascimento da cultura e para um entendimento do homem de uma forma
abrangente, incluindo a violência como parte constitutiva deste.
Para prosseguirmos nessa leitura da violência, uma observação é importante:
Como, especialmente depois do Iluminismo, o ambiente intelectual se tornou antireligioso em sua grande maioria, a interlocução com um estudo das religiões e sua
implicação sobre as mais diversas esferas do saber é emudecida, quando muito ganha
uma dicção um tanto confusa, geralmente associada a superstições. Mas para
compreender os desdobramentos da teoria mimética, o estudo do religioso faz-se
necessário, afinal, estamos trabalhando com a hipótese de um começo, um começo da
cultura e das instituições. Portanto, para continuarmos dialogando com essas ideias,
devemos perceber uma função real no sacrifício. O papel de proteger a comunidade de
sua própria violência, pois o sacrifício polariza sobre a vítima os germes de desavenças
espalhados por toda parte. Nesse sentido, quando se escolhe uma vítima como bode
expiatório, não se escolhe um substituto para tal ou tal indivíduo particularmente
ameaçado, mas a todos os membros da sociedade. É uma catarse coletiva. Vale lembrar
33
que antes dos concursos de tragédias, fazia-se o sacrifício do bode. Trágos significa
bode, e tragoidía, a ode a esse animal. Girard diz que ‘essa é a ‘literarização’
(literarization) do sacrifício. (...) Os sacrifícios sanguinários vieram primeiro e, mais
tarde, foram substituídos por evocações verbais da mesma coisa – o mito, a épica, a
tragédia, etc.30 Em Medéia de Eurípides, por exemplo, Medéia substitui o verdadeiro
objeto do seu ódio por seus filhos. Lendo pela lógica do sacrifício, Medéia revela que
caso a violência não seja saciada, ela continua a se acumular até transbordar,
espalhando-se com os mais desastrosos efeitos. O sacrifício procura controlar e
canalizar para a ‘boa’ direção as desavenças, as rivalidades, os ciúmes, as disputas entre
próximos, restaurando a harmonia da comunidade.
É importante lembrar que para manter a eficácia do sacrifício, é de extrema
importância que a vítima seja vista como culpada. Partindo desse princípio, na peça
Júlio César de Shakespeare, Brutus define como deve ser a apresentação do sacrifício,
inconsciente de sua própria violência;
Assim, parecerá, quando fizermos,
necessário, sem laivo de inveja,
o que aos olhos do povo há de ensejar-nos
sermos chamados purificadores,
não assassinos.31
Trazendo a lógica do sacrifício para os dias de hoje, observamos a atualidade
desse recurso. Embora de forma secularizada, sacrificamos o tempo todo. Como na
modernidade a oferta de modelos é grande, a mediação interna passou a predominar as
relações sociais. Já não há mais diferença, no plano do desejo mimético, entre as
pessoas de um patamar social mais baixo e aquelas de um patamar mais alto, por
exemplo. Ambas desejam os mesmos objetos; ao passo que antes, para os
30
GIRARD, 2000, p.128.
Júlio César de W. Shakespeare. In: Tragédias. Trad. Carlos Alberto da Costa Nunes. Rio de Janeiro:
Agir, 2008.
31
34
desprivilegiados essa posse era inviável. Outro exemplo poderia ser as novas
tecnologias de comunicação que propagam com velocidade o contágio mimético e
assim por diante. Com essas mudanças, é natural nos tornarmos cada vez mais
indiferenciados. A mediação externa tende a se tornar mais rara neste cenário, restando
apenas a lógica do modelo/rival. Para conter essas rivalidades, o skándalon32, acionamos
com uma recorrência maior o mecanismo do bode expiatório em escalas cada vez
menores. Podemos dizer que na modernidade a teoria mimética se desenvolve em
miniaturas, pois ‘a era dos escândalos na qual vivemos corresponde a um deslocamento
do desejo. Um grande skándalon coletivo equivale ao pequeno skándalon entre dois
vizinhos multiplicado muitas vezes’33 Entretanto, existe um caráter oportunista que
permeia a cadeia dos escândalos. Os pequenos escândalos tendem a se unir a um
escândalo maior, este por sua vez, engloba todos os escândalos menores até restar um
único escândalo – uma única vítima – o bode expiatório. Para exemplificar como a
crise de indiferenciação e a solução via sacrifício acontecem na prática, hoje, basta
lembrar os reality-shows como o Big Brother. Afinal em que consiste o famoso
‘paredão’ senão uma forma de sacrifício? Todos contra um, contra o suposto culpado.
Proust apresenta esse traço arbitrário da eleição do bode expiatório e a
secularização do sacrifício através do episódio do caso Dreyfus34. No romance
32
Segundo o Dictionnaire Grec Français (1984) de Anatole Bailly, skándalo significa ‘armadilha posta
no caminho, obstáculo para fazer cair’. Sobre skándalon, Girard diz que ‘é preciso ver em todas as
violências míticas e bíblicas acontecimentos reais cuja recorrência, em todas as culturas, está ligada à
universalidade de certo tipo de conflito entre os homens, as rivalidades miméticas, que Jesus chama de
escândalos (...) este termo grego vem de um verbo que significa ‘mancar’, e o manco parece alguém ‘que
segue como uma sombra, um obstáculo invisível sobre o qual vai tropeçando incessantemente’. Girard
salienta que ‘escândalo significa não um desses obstáculos comuns por nós facilmente evitados, depois de
termos tropeçado neles a primeira vez, mas um obstáculo paradoxal quase impossível de evitar: quanto
mais o escândalo nos repele, mais nos atrai
(In: GIRARD, R. Je vois satan tomber comme l´éclair. Paris: Grasset, 1999, p. 36-9.)
33
GIRARD, 2000, 89.
34
Alfred Dreyfus (1859-1935) oficial do exército francês de origem judaica, foi acusado erroneamente de
ter transmitido segredos militares ao major alemão Schwartzkoppen. Condenado em 1894, ele seria
deportado à ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Em 1896, o comandante Picquart, convencido da
inocência de Dreyfus e da culpa de outro oficial francês, Esterhazy, pediu a revisão do processo. Em
35
inacabado de Jean Santeuil, essas questões já estão presentes durante a narração das
audiências do processo. No romance Em busca do tempo perdido, esse caso retorna
desenhando um quadro político-social da França de 1894. Imaginem como um francês
desse período deveria se sentir diante do constante perigo de uma invasão alemã. Dentro
dessa atmosfera de tensão, é viável, para não dizer ‘necessária’, a criação de uma figura
que reunisse sobre si tanta adversidade e as retirasse consigo. Foi isso que fizeram com
Dreyfus, um bode expiatório capaz de garantir certo conforto em meio a tantas
rivalidades. Desconfiar da culpabilidade de Dreyfus, nesse contexto, significa
desconstruir uma possível paz momentânea, ou, ao menos, uma ilusão desta naquele
momento. No caminho de Guermantes, em diversos momentos a conversa do salão
Guermantes gira em torno da questão Dreyfus, apontando que ‘o caleidoscópio social
estava em via de virar e que o caso Dreyfus ia preciptar os judeus no último degrau da
escala social.
35
Nesse ambiente anti-dreyfusista, o marquês Robert Saint-Loup propõe
outro olhar sobre Dreyfus, mas não encontra interlocução, correndo o risco de ser
banido da roda aristrocrática, como podemos observar pelo discurso do Sr. Guermantes:
Você há de confessar que, se um dos nossos fosse recusado no Jockey, e
principalmente Robert, cujo pai foi seu presidente durante anos, seria o
cúmulo. Que quer, minha cara? A coisa alarmou essa gente... Não posso
condená-los, pessoalmente, bem você sabe que não tenho preconceito
racial, acho que isso não é do nosso tempo e tenho a pretensão de
marchar com minha época, mas, enfim, que diabo! Quando a gente se
chama marquês de Saint-loup, não pode ser dreyfusista! 36
1898, Esterhazy seria declarado inocente e Picquart, mandado para Tunísia. É quando Zola publica seu
texto ‘J´accuse’, no jornal Aurore, denunciando o anti-semitismo e a corrupção no Exército francês.
Descobre-se que o coronel Henry fabricara dois documentos para condenar Dreyfus. O coronel se suicida
e uma nova revisão do processo se inicia em 1899. Mas o Conselho de Guerra declara Dreyfus culpado,
com circunstâncias atenuantes. Ele seria liberado dias depois, mas só reabilitaria no Exército em 1906.
(Nota de Guilherme Ignácio da Silva para a tradução de No caminho de Guermantes. São Paulo: Globo,
2007, p. 118.)
35
PROUST, 2007, p. 207 .
36
Id.ibid, p. 258.
36
Em Sodoma e Gomorra, o debate volta à cena quando o narrador comenta sobre o
dreyfusismo do príncipe Von O e obtém do Sr. Guermantes a seguinte resposta: ‘Mas
sendo ele dreyfusista ou não, pouco me importa, visto que é estrangeiro. É-me
perfeitamente indiferente. No caso de um francês, a coisa muda de figura’37. Sobre essa
tentativa de preservação da hegemonia e da identidade presentes no mecanismo
mimético, o narrador revela algumas leis:
O sr. de Guermantes pronunciou com ênfase estas palavras: ‘Quando a
gente se chama marques de Saint-loup, não pode ser dreyfusista!’. Bem
sabia, no entanto, que era muito mais importante chamar-se ‘duque de
Guermantes’. Mas, se o seu amor- próprio tendia antes a enxergar a
superioridade do título de duque de Guermantes, talvez não fossem tanto
as regras do bom gosto como as leis da imaginação que o levavam a
diminuí-lo. Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o que vê nos
outros. Pois as leis gerais que regulam a perspectiva na imaginação tanto
se aplicam aos duques como aos outros homens.38
Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o que vê nos outros. Eis o sentido
do desejo mimético! Sem essa base, não é possível reconhecer a violência
mimeticamente engendrada. A admiração velada do prestígio do outro, do que o outro
possui, constata nossa insuficiência e nossa dependência do modelo. Como o outro não
é passivo dentro deste mecanismo, pelo contrário, ele incentiva ainda mais o desejo do
sujeito sobre seu objeto a fim de valorizar-se e aquilo que possui. Esse é o círculo
infernal dos desejos e dos conflitos. Não aceitamos que procuramos no outro, através da
observação do que ele possui, deseja, aparenta, uma forma de saber o que somos. Pela
ótica da teoria mimética, essa atitude constituiria o pecado original.
O orgulho que aspira à singularidade, concebendo essa singularidade primeiro
como um prêmio que se deve vencer, depois como um fardo insuportável que
tentamos freneticamente descarregar sobre os outros. A vitimização dos outros é
37
38
PROUST, Sodoma e Gomorra, 2004, p. 561.
PROUST, 2007, p. 259.
37
uma defesa contra a autovitimização a que o fracasso do orgulho leva
inevitavelmente.39
Mas, ‘aquele de vós que estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra’40. Pecar,
etimologicamente, significa desviar-se do caminho. Podemos entender pecado como um
escândalo, algo que desencadeia a rivalidade mimética. Girard durante uma leitura
antropológica das Sagradas Escrituras demonstra um entendimento crescente da
inocência da vítima. Opostamente aos mitos pagãos em que o bode expiatório era visto
como culpado, os Evangelhos desmistificam essa crença ao apresentar a imolação do
sagrado. Ora, se o próprio sagrado é sacrificado, como pode ser a vítima culpada? Paulo
na I Epístola aos Coríntios, responde da seguinte maneira: ‘Os judeus pedem milagres,
os gregos reclamam sabedoria; mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os
judeus e loucura para os pagãos’. Em outras palavras, Paulo prega o escândalo da cruz,
o não entendimento sobre o qual sempre tropeçamos - um Deus impotente que
humildemente sofre perseguição. A essa resposta se acrescenta a fala de Jesus: ‘A pedra
rejeitada pelos construtores torna-se a pedra fundamental da edificação’41, ou seja, uma
definição do sistema vitimador que funda a sociedade. No episódio em que Jesus
anuncia a paixão a Pedro e este o refuta, dizendo que isso não aconteceria, Jesus manda
Satã sair da sua frente. Satã também é um escândalo, uma pedra de tropeço. ‘Satanás’
quer dizer ‘o acusador, esse é o significado mais antigo da palavra e repete o momento
final do ciclo mimético com a escolha do bode expiatório (...)’42 De acordo com a
teologia tradicional, não há menção a Satã como um ser ou uma entidade, podemos
compreendê-lo mais como o sujeito da mímesis nociva. Isso não quer dizer que exista
uma manipulação superior na mímesis. O sistema funciona sozinho. Embora fosse
39
GIRARD, 2010, p. 593.
João 8, 7.
41
Lucas 20, 17.
42
GIRARD, 2000, p.235.
40
38
recorrente a identificação de uma espécie de força que na épica indiana chama-se
‘Destino, Moira na cultura grega, Schicksal na obra de Heidegger (...) na história de
Caim e Abel, não existe destino. Caim é livre para escolher, e Deus procura persuadi-lo
a não matar o irmão. Por isso em termos cristãos, Satã não existe.’43
Nessa leitura, o evangelho trás uma alternativa para se compreender e viver a
imitação. A busca por um modelo que nos resguarde da rivalidade mimética, em vez de
estimulá-la. O sentido da imitação de Cristo repousa nessa premissa, a privação não do
desejo, mas do escândalo; pois ‘sempre seremos miméticos, mas não temos que ser
satânicos. Não precisamos engajar-nos perpetuamente em rivalidades miméticas. Em
vez de acusar o próximo, podemos aprender a amá-lo’44
43
44
Id.ibid, p. 236.
Id.ibid.
39
2. SEGUNDO MOVIMENTO:
MARCEL PROUST – A HISTÓRIA DE UMA VOCAÇÃO
Je ne savais pas encore, je devais comprendre plus tard
Marcel Proust
Se me pedissem para resumir Proust em uma palavra, acho que diria sonhos.
Penso que essa seja a própria matéria da obra, um devaneio fixo. Sobre essa textura,
Proust mostra incessantemente que o desejo não pertence a esse mundo. Para desejar, é
preciso ser iniciado em uma espécie de ordem estrangeira. É preciso crer em uma
transcendência sugerida pelo outro. Vale dizer, uma transcendência um tanto quanto
ilusória, como as miragens no deserto que desaparecem quando dela nos aproximamos.
Como se bastasse possuir o objeto desejado, para que o desejo se dissolvesse como
castelos de areia. Dentro dessa lógica, quanto mais difícil for o acesso ao objeto, quanto
maior for o obstáculo, mais intenso e durável se faz o desejo. São leis do desejo. Leis de
uma poética tipicamente proustiana.
Em Proust, essa mecânica do desejo é aplicada tanto à história narrada como à
forma. Através de um ritmo e de uma escrita que oscila entre o sono e a vigília, Proust
já denuncia essa instabilidade a ser vivenciada pelo desejo. Logo no início de Em busca
do tempo perdido, somos apresentados a esse ambiente vago, a um clima de incertezas,
que percorrerá todo o romance.
Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela,
meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:
‘Vou dormir’. E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de
conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgara ainda
ter, porém, tais reflexões haviam tomado um aspecto singular; parecia-me
que era de mim mesmo que o livro falava (...) Essa crença sobrevivia por
alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como
escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não
estava acessa. Depois (...) o assunto do livro se desligava de mim, eu
40
ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me
surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade (...)
Perguntava-me que horas pode, poderiam ser (...) Riscava um fósforo
para ver o relógio. Quase meia-noite (...) Voltava a adormecer, e às vezes
só despertava por um breve instante (...) enquanto dormia, havia
regredido sem esforço a uma era passada da minha vida (...) A verdade é
que, quando acordava, meu espírito agitando-se para tentar saber, sem o
conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as
coisas, os países, os anos.45
Dentro dessa atmosfera nebulosa, em que tempo, espaço e memória se fundem em
outra configuração, utopias são escritas a bico de pena - frágeis, lânguidas, imprecisas.
Por meio desse contorno, Proust, como uma Penélope às avessas, destece os enganos da
vida diurna para inscrevê-los na vida noturna, na literatura.46 Seguindo as linhas dessa
trama, propomos uma abordagem de Em busca do tempo perdido em que o narrador, ao
buscar a vocação literária, refaz esse mesmo bordado, buscando resgatar no livro uma
vida já soterrada pelo tempo. Partindo dessa escavação, iniciamos a nossa leitura.
2.1 POR UM FRESCOR PERDIDO
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não
é vivível. Terei que criar sobre a realidade. E sem mentir. Criar sim,
mentir não. Criar não é imaginação, é correr o risco de se ter a realidade.
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.
Na fronteira entre realidade e ficção, particularmente no terreno ambíguo das
memórias, Proust recupera um saber que em última instância remonta aos narradores da
tradição oral, ao universo das fábulas. Sem se preocupar com estatutos de Verdade
como a ciência ou a história, o narrador se concentra sobre aquilo que há de verdadeiro
45
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p. 21-22
Como curiosidade, lembramos que no caso de Proust essa inversão pode ser lida literalmente, pois é
sabido que o autor trocava o dia pela noite.
46
41
nos seus contares. Digo verdadeiro não em oposição ao falso, mas como tudo que pode
trazer dinamismo e gerar o novo na vida das pessoas. É nesse sentido que o romance se
aproxima das fábulas, pois ambos guardam em si
o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher,
sobretudo pela parte de vida que justamente é o perfazer-se de um
destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo um
auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para se
tornar adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano. E,
neste sumário desenho tudo: a drástica divisão dos vivos em reis e
pobres, mas sua paridade substancial; a perseguição do inocente e seu
resgate como termos para uma dialética interna a vida; o amor encontrado
antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto bem perdido; a
sorte comum de sofrer encantamentos, isto é, ser determinado por forças
complexas e desconhecidas, e o esforço para libertar-se e autodeterminarse como um dever elementar, junto ao de libertar os outros, ou melhor,
não poder libertar-se sozinho, o libertar-se libertando; a fidelidade a uma
promessa e a pureza de coração como virtudes basilares que conduzem à
salvação e ao triunfo; a beleza como sinal de graça, mas que pode estar
oculta sob aparências de humilde feiúra como um corpo de rã; e
sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisas, a
infinita possibilidade de metamorfose do que existe.47
Dentro dessa sintaxe, o romance se constitui como a urgência de um devir,
buscando incessantemente mundos possíveis, criados, relembrados. Sobre essa
urgência, o desejo, em Proust, adquire a forma de uma vontade de iniciar uma vida
nova. Cada novo desejo se apresenta como uma chance de recomeçar. É uma escrita
feita de ritornellos.48 Já no primeiro romance da série, essa grafia nos é apresentada
através do recurso da lanterna mágica, instrumento com o qual o narrador reconstrói a
realidade.
Para distrair-me nas noites em que me julgava muito infeliz, haviam
inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam a minha
lâmpada, enquanto esperávamos à hora do jantar; e, a maneira dos
primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna
substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições
sobrenaturais multicores (...) Se mexiam na lanterna, eu distinguia o
47
CALVINO, 1999, p. 14-15
Ritornello, símbolo da escrita musical que indica a repetição de compasso(s) ou de frase(s). Em
algumas peças o primeiro ou o último movimento aparece sob a forma de ritornello, retornando em parte
ou totalmente ao longo dos demais movimentos.
48
42
cavalo de Golo que continuava a avançar sobre as cortinas da janela,
inflando-se nas suas dobras (...) Mesmo o corpo de Golo, de uma essência
tão sobrenatural como o da sua montaria, aproveitava todo o obstáculo
material, todo objeto incômodo que aparecesse, para tomá-lo como
ossatura e torná-lo interior, ainda que se tratasse da maçaneta da porta, à
qual se adaptava logo, e onde sobrenadava invencivelmente.49
Projeções como essas, o narrador também direciona para as leituras da infância,
especialmente aos romances de George Sand; pois, para o narrador, um livro novo
figura não como ‘uma coisa que tivesse muitos semelhantes, mas uma personalidade
única, que só em si possuísse motivo de existência – uma emanação perturbadora da
essência própria de François le Champi50. Esse desprendimento de luz da lanterna,
através da indicação de alguns colegas pelos quais o narrador nutria admiração, alcança
o escritor Bergotte, que desempenhará ao longo da narrativa, juntamente com Swann, o
papel de mentor do narrador-menino.
Dentro dessa lógica, o teatro recebe um destaque especial, formando para o
narrador uma espécie de santuário onde se esconde um mundo mais real e verdadeiro.
Sem a permissão dos pais para ir ao teatro, essa possível beleza divina guardada se torna
ainda mais cara ao narrador. Sabendo desse amor que Marcel 51 nutria pelo teatro,
Bergotte o indica Fedra na interpretação de Berma. Quando finalmente este consegue
permissão para assistir à peça, através do intermédio do Sr. Norpois, diplomata amigo
dos seus pais, o narrador espera encontrar tal como a descrição de Bergotte uma
‘nobreza plástica, cilício cristão, palidez jansenista, princesa de Terèzéne e de Clèves,
drama miceniano, símbolo délfico mito solar’,52mas se decepciona. Tentando entender o
porquê dessa frustração, o narrador recorre ao Sr. Norpois e entende que a graça de
49
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p. 25
Id, ibid. 49.
51
Gostaríamos de esclarecer que em todas às vezes que falamos de Marcel, estamos nos referindo ao
narrador, não a Marcel Proust.
52
PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p. 345
50
43
Berma está na escolha de seus papéis. A partir desse argumento de autoridade, o
narrador muda de perspectiva, dizendo para si mesmo ‘que voz bonita, que ausência de
gritos, que vestidos simples, que inteligência em ter escolhido a Fedra!Não, não fiquei
decepcionado.53
Notem a agilidade da mudança de opinião do narrador. Podemos dizer que não é
Berma, Norpois, Bergotte nem o próprio narrador quem atuam nessa cena, mas o desejo
mimético. A necessidade de se recorrer aos outros para definir gostos, opiniões,
identidades. Proust, durante a narrativa, reencena esse drama inúmeras vezes sob as
mais diversas formas, percorrendo da expectativa à desilusão incansavelmente. Sobre
essa mecânica, citamos o episódio em que o narrador assiste novamente a Berma,
porém, já sem o entusiasmo da primeira vez:
A falar a verdade, não ligava eu importância alguma a essa oportunidade
de ouvir a Berma que alguns anos antes me causara tamanha agitação. E
que outrora preferiria à saúde e ao repouso. Não porque fosse menos
apaixonado do que então o meu desejo de contemplar de perto as
preciosas parcelas da realidade que a minha imaginação entrevia. Mas
esta já não as situava agora na dicção de uma grande atriz; desde as
minhas visitas a Elstir, era a certas tapeçarias, a certos quadros modernos
que eu reportava a fé interior que tivera outrora naquele desempenho,
naquela arte trágica de Berma; como a minha fé e o meu desejo não mais
viessem prestar um culto incessante à dicção e às atitudes da Berma, o
‘duplo’ que eu deles possuía em meu coração fora pouco a pouco
definhando, como esses outros ‘duplos’ dos mortos do antigo Egito que
era preciso alimentar constantemente para lhes conservar a vida.54
Pensando sobre esses ‘duplos’ e suas implicações na mediação do desejo,
gostaríamos de chamar atenção para a diferença entre o modo como Freud e a teoria
mimética entendem o desejo. Para Freud, o desejo nunca cessa, é uma pulsão constante;
já para a teoria mimética, o desejo é finito. Na verdade, a morte é a figura central na
53
54
Id.ibid. p.366.
PROUST, 2007, p. 43.
44
mímesis. Para compreender esse papel da morte no desejo, é preciso lembrar que o
desejo segundo o outro retém, em certa medida, o desejo de ser o outro, ou ao menos, de
ser como o outro. Nessa ótica, desejar significa esperar por uma metamorfose. O
problema dessa semântica é que essa espera é vã, pois não é pela posse de determinado
objeto que o sujeito se transforma, tampouco pela posse do modelo. Insistindo sobre
essa gramática, o sujeito caminha de desejo em desejo e/ou de mediador em mediador.
A cada novo desejo, um novo desencanto. Um vazio de ilusões perdidas... Esse
fenômeno não é tão estrangeiro como pode parecer, apenas o chamamos por outros
nomes: desejo pós-moderno, pós-cristão ou pós-mimético. Embora experimentemos a
morte do desejo, pouco se fala sobre isso. Especialmente em tempos como o nosso em
que o individualismo se empenha em negar a falência do desejo. Cremos, através da
negação do desejo mimético, que sempre estamos a um passo de nos tornarmos
autossuficientes. Compramos a mentira romântica. A essa compra, são adicionadas as
obsessões miméticas, mães de todos os vícios, em uma tentativa desesperada de autosatisfação. A literatura (também a religião e algumas filosofias) compreende a morte do
desejo e tenta negociar com ela. Transforma essa falência em saber, na aprendizagem da
impossibilidade de autossatisfação através do desejo.
Nesse sentido, Girard aproxima literatura e cristianismo55 sob a perspectiva de que
em ambos narra-se a história de uma conversão, isto é, de uma mudança de perspectiva.
Para esse objetivo, talvez um dos maiores exemplos seja a Divina Comédia de Dante
Alighiere. Virgílio nesse contexto simboliza essa experiência de conversão. As razões
para a escolha de Virgílio são muitas como o episódio da visita de Enéias ao inferno na
Eneida ou a associação de Virgílio como um dos profetas de Cristo na Idade Média.
Além desses motivos, existe mais um dado que merece especial atenção. De acordo com
55
Cf. ‘Conversion in literature and christianity’. In. GIRARD, 2008a.
45
Dante, a função da literatura profana seria guiar pelo inferno e purgatório. Nesse
sentido, Virgílio, ao descrever a violência infernal da Eneida, já nos oferece um possível
mapa. Dante, ao escolhê-lo como seu guia, repete o mesmo papel. No caso de Girard, a
descida ao inferno se deu pelas mãos de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e
Dostoievski 56, constatando que quanto mais moderno é o romance, mais se desce pelos
círculos do inferno, pois se perde a medida da mediação externa. Em O caminho de
Guermantes, com a mudança do narrador e de sua família para um apartamento
pertencente ao palácio dos Guermantes, a narrativa paulatinamente desloca o eixo da
mediação externa para mediação interna. No episódio em que o narrador vai à ópera,
esse deslocamento já pode ser observado através da descrição dos camarotes.
as pessoas do alto mundo estavam em seus camarotes (por trás dos
balcões em terraços) como em pequenos salões suspensos de que fora
retirada uma parede (...) quase por toda parte, as brancas deidades que
habitavam essas sombrias devesas se haviam refugiado contra as paredes
obscuras e permaneciam invisíveis. No entanto, à medida que o
espetáculo avançava, as suas formas vagamente humanas se destacavam
molemente uma após outra (...) Como uma grande deusa que preside de
longe aos jogos das divindades inferiores, a princesa permanecera
voluntariamente um pouco para o fundo (...) ao reconhecer a princesa,
todos os que procuravam saber quem estava na sala sentiam erguer-se no
seu coração o trono legítimo da beleza (...) O marquês de Palancy (...)
parava, venerável, resfolegante, musgoso (...) Ninguém me causava tanta
inveja quanto ele, por causa do hábito que parecia ter daquele camarote e
da indiferença com que deixava a princesa oferecer-lhe bombons.57
Observem que o desejo do narrador agora é o de pertencer a esses ‘pequenos
salões suspensos’. O olhar contemplativo sobre os Guermantes instaura os novos ídolos
do narrador, inserindo-o em uma nova ordem de mediação. Podemos ler o camarote,
metaforicamente, como o espetáculo do desejo, um espetáculo real ou imaginário, não
faz diferença, pois o que importa no desejo é o olhar do outro. Nesse sentido, a aparente
56
57
Conferir Mentira romântica e Verdade romanesca para obter mais detalhes sobre essa peregrinação.
PROUST, 2007, p. 46-50.
46
indiferença com que o marquês se relaciona com a princesa, na verdade, constitui uma
estratégia de salvaguardar, ou melhor, de apresentar certa ‘autonomia’ sobre os demais.
São rivalidades veladas. O embate de querer ser o outro sem deixar de ser você mesmo.
Puro jogo mimético. Em outras palavras, o camarote representaria o locus da mediação
interna. Essa mesma cena, Proust escreveu em Jean Santeuil, porém sob outro ângulo.
Aqui, o herói se encontra no camarote e partilha os meios aristocráticos, não por
esnobismo como faz o marquês de Palancy; mas pelas afinidades artísticas e intelectuais
que mantém. Jean figura no romance, especialmente nessa cena, segundo as leis do
narcisismo freudiano. Apresentando-se como uma fonte de verdadeira riqueza poética e
espiritual, um eu romântico capaz de comunicar uma beleza que só dele emana. O
interesse de Jean é voltado unicamente para si e para os efeitos que produz sobre os
outros. Um estudo comparado dessas duas cenas mostra uma revolução do modo como
o Proust passa a entender o desejo. Longe de constituir uma contradição, Jean Santeuil
e os manuscritos publicados antes da Guerra confirmam e completam a saga de Em
busca do tempo perdido. Trata-se de uma experiência de conversão, de uma revisão de
si e do desejo. Como na parábola do filho pródigo em que o filho regressa à casa
paterna, o escritor retorna de um tempo perdido em ilusões, mediocridades e idolatrias
para recuperá-lo na literatura. O itinerário da mentira romântica para a verdade
romanesca. Com essas duas noções, simultaneamente, o escritor faz a sua obra. Mas,
sobre esse ponto voltaremos mais tarde. O que não podemos perder de vista, neste
momento, é a dupla referência – do eu e do outro – do modelo e do rival, além das
conseqüências para esta mundana tragicomédia.
47
3.2. O VELHO JOGO DOS DUPLOS
Vaidade de vaidade, tudo é vaidade
Eclesiastes 12, 8
Em busca do tempo perdido é estruturado sobre dois pilares – o caminho de
Swann e o caminho de Guermantes. No caminho de Swann, particularmente em
Combray, a narrativa experimenta predominantemente a coloração da mediação externa.
A infância de Marcel nos é contada através de um ambiente semelhante às vilas
medievais. A família do narrador funciona como uma espécie de mini sociedade feudal,
uma cultura fechada, patriarcal. Dentro desse sistema, Combray possui uma relativa
autonomia. A tia Leonie, imóvel no seu leito, confere as diretrizes do funcionamento da
casa, estabelecendo os horários e os afazeres cotidianos. Compassadamente a essa
estrutura, a unidade de Combray é dada por imagens religiosas que subordinam toda a
dinâmica do vilarejo à afirmação de Deus e da Igreja.
Era o campanário de Saint-Hilaire que dava a todas as ocupações, todas
as horas, a todos os pontos de vista da cidade, a sua figura, o seu
arremate, a sua consagração. Do meu quarto, eu só podia avistar-lhe a
base (...) mas quando no domingo, numa quente manhã de verão, eu o via
(...) dizia comigo: ‘Meu Deus! São nove horas! Tenho que me preparar
para ir à missa cantada.58
Diferentemente do caminho de Swann, o caminho de Guermantes nos conduz
para o mundo dos salões, para as rodas da mediação interna. Para melhor compreender a
engrenagem do salão Guermantes, sugerimos uma contraposição com o salão Verdurin,
pois, no fundo, ambos formam o verso e reverso de uma mesma moeda. Enquanto em
58
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.65-66.
48
Combray a unidade era dada por uma busca pelo divino da teologia cristã, nos salões, os
ritos de união são mascarados por uma suposta segregação. O sagrado é pervertido em
uma disputa pelo senhorio mundano. No salão burguês dos Verdurin, por exemplo, a
divindade é reportada aos artistas de forma a exigir
Para fazer parte do ‘pequeno núcleo’, do ‘pequeno grupo’, do pequeno
clã’ dos Verdurin, uma condição bastava, mas era necessária: seria
preciso aderir tacitamente a um credo, do qual um dos artigos rezava que
o jovem pianista, protegido pela Sra. Verdurin naquele ano e do qual ela
dizia: ‘Não devia ser permitido saber tocar Wagner tão bem assim!’,
‘liquidava’ ao mesmo tempo com Planté e Rubinstein (...) Todo ‘novo
recruta’, a quem os Verdurin não podiam convencer que os saraus das
pessoas que não freqüentavam a casa eram aborrecidos como a chuva,
via-se imediatamente excluído.59
Esse mesmo mecanismo de exclusão é aplicado ao faubourg Saint- Germain por
meio de um altruísmo hipócrita que esconde a vaidade da criação de um eu quase
divino, de uma supremacia. Como é o caso da marquesa Villeparisis que enfatiza
os modos aristocráticos com que uma dama deve mostrar, aos burgueses
em cuja companhia se alegra de estar, que não é orgulhosa. E a única
falta de polidez que se podia observar nela eram os excessos dessa
mesma polidez; pois nisso era possível reconhecer o vinco profissional de
uma dama do faubourg de Saint-Germain, que, vendo sempre em certos
burgueses os descontentes que estava destinada a fazer em alguns dias,
aproveitava avidamente todas as ocasiões em que é possível escrever, no
livro de contas de sua ambilidade para com eles, a antecipação de um
tostão de crédito que lhe permitirá compensar no seu débito a festa ou o
jantar a que não os convidará 60
Como podemos observar, é a mediação interna quem dita as regras dos salões,
mais do que isso, é a mediação dupla, pois um salão vive em função do outro. Ambos
desempenham o papel de sujeito e modelo simultaneamente um sobre o outro. São
simetrias miméticas. Como os salões negam essa particularidade do desejo e como não
há objeto concreto na disputa, ‘o nada do prestígio aparece como o tudo, não para um
59
60
Id.ibid. p. 157.
PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p.550.
49
adversário somente, mas para todos’61; ou seja, os rivais antes mesmo de serem
reconciliados por uma possível expulsão violenta, já vivenciam a violência metafísica
em que acusam e são acusados a todo instante, fazendo do outro um fantasma que os
assombra perpetuamente. Por essa razão, não é gratuito o emprego de alguns termos
típicos das operações militares quando se descrevem as rivalidades mundanas, uma vez
que a mesma fascinação mimética que gera o individualismo no plano individual, gera
no plano coletivo aquilo que chamamos de nacionalismo. Dessa forma, a Grande Guerra
e a guerra dos salões não são tão distantes como parecem, já que ambas são frutos do
mesmo desejo metafísico. Metonimicamente, podemos ler o salão Verdurin como a
França burguesa e o salão Guermantes como a Alemanha aristocrata. O desacordo entre
esses personagens, nessa lógica, constituiria a trama de uma inter-relação, que só pode
existir enquanto relação. Com esse sentido, lemos o seguinte comentário de Proust:
Mesmo aqueles que foram favoráveis a minha percepção das verdades
(...) felicitaram-me por tê-las descoberto ao microscópio, quando, ao
contrário, eu me servia de um telescópio para perceber as coisas, de fato
muito pequenas, mas porque estavam situadas a uma grande distância e
porque eram, cada uma, um mundo. Ali onde eu buscava as grandes leis,
chamavam-me de escavador de detalhes.62
Embora sem o aparato militar dos salões, Combray não é isenta da mediação
interna. Citamos algumas situações dessa mediação. A primeira acontece quando o beijo
de boa noite da mãe é negado ao narrador. Nesse momento, a divindade da família é
substituída pelo sofrimento de amante. Isso porque existe também um critério negativo
na escolha do mediador, é a recusa do outro que desencadeia o desejo obsessivo. Desejo
este que posteriormente Marcel sentirá pelas personagens de Gilberte e Albertine,
rendendo à obra um longo e minucioso estudo sobre o ciúme. A segunda pode ser
61
62
GIRARD, 2008 c, p. 355
Proust, Apud. Brassai, 2005, p.127
50
encontrada no personagem de Legrandin. Um esnobe continuamente corroído pelo
sofrimento de não ser aceito pelos aristocratas locais, capaz de qualquer coisa para
conseguir seus objetivos. Ou, então, quando a tia Leonie abusa do seu prestígio,
alimentando rixas entre as criadas; há também a recusa da mãe do narrador em receber a
Sra. Swann devido à má reputação desta; e, por fim, Swann, que não é bem aceito pela
avó de Marcel. Dessa forma, guardadas as devidas proporções, Combray é semelhante
aos salões. Duas culturas fechadas, eliminatórias. Dois modos de ver, sentir e julgar.
Nesse jogo de espelhos o romance vai revelando aquilo que geralmente não queremos
ver. Sem nunca resolver numa síntese, o romancista abarca as diferenças que existem no
mundo romântico e as dissolve no mundo romanesco, mostrando que todo julgamento
indignado sobre o outro, pode carregar um julgamento indignado sobre si porque
quando ‘julgas os outros, a ti mesmo te condenas, pois praticas as mesmas coisas, tu que
julgas’.63
3.3.O MUNDO NÃO É MAIS DO QUE UM REFLEXO DO QUE SE PASSA NO AMOR 64
Desilusão, desilusão
dança eu,dança você
na dança da solidão.
Paulinho da Viola,
Dança da solidão
Em muitos momentos de Em busca do tempo perdido, nos deparamos com a
Fedra de Racine. A peça aparece diversas vezes durante as idas do narrador ao teatro
sob o pretexto de assistir a Berma, sem contar as várias cenas em que o encontramos em
seu quarto a memorizar seus versos. Partindo dessa recorrente incidência da peça no
63
64
Romanos 2,1.
‘Le monde n´est qu´un reflet de ce qui se passe en amour.’ Marcel Proust.
51
romance, procuramos observar em que medida essa relação intertextual afeta o texto.
Descobrimos no verso ‘tu me haïssais plus, je ne t´aimais pas moins’
65
, um presságio
daquilo que viria marcar todos os relacionamentos amorosos: a indiferença e a paixão.
Apenas para contextualizar, recuperaremos brevemente o enredo da peça: Fedra é uma
rainha grega que se apaixona por seu enteado, Hipólito. Para evitar maiores confusões,
Fedra expulsa Hipólito do reino. Durante esses acontecimentos, Teseu, seu marido,
encontra-se ausente devido à batalhas. Certo tempo depois, Fedra recebe a notícia de
que Teseu está morto. Diante das circunstâncias, Fedra resolve se declarar para
Hipólito, mas não é correspondida. Em contrapartida, Teseu consegue permissão para
sair do mundo dos mortos e retorna ao reino. Através de um malogrado mal entendido,
Teseu pensa que Hipólito tentou violentar Fedra e manda matá-lo. Fedra suicida-se,
findando a tragédia.
Resquícios dessa violência e desses sofrimentos atravessam a peça e desembocam
no romance sob a forma do ciúme. Para entender esse deslocamento, é preciso não
excluir Eros do desejo mimético. É preciso ter em mente que é o mimetismo que
provoca as paixões. Se de acordo com o desejo triangular, sempre existe um modelo que
direciona nosso olhar sobre o objeto a ser desejado, então, não seria absurdo dizer que é
para o modelo que desejamos. Logo, estaríamos constantemente buscando aprovações
deste, mesmo quando de forma inconsciente, visto que, o desejo é mimético. Dentro
dessa estrutura, o ciúme figura como um estratagema de assegurar que o objeto do
desejo também seja desejado por outros, portanto, digno de valor. Sobre essa exigência
do desejo, o narrador diz que
Em amor, nosso rival feliz, ou melhor, nosso inimigo, é o nosso
benfeitor. A uma criatura que não despertaria em nós senão um
insignificante desejo físico, ele acrescenta logo um valor imenso,
estranho, mas que confundimos com ele. Se não tivéssemos rivais, o
65
Racine, Fedra, ato II, cena V, verso 688.
52
prazer não se transformaria em amor. Se não tivéssemos ou se não
julgássemos tê-los. Pois não é necessário que existam de verdade. Para o
nosso bem, é suficiente essa vida ilusória dada a rivais inexistentes por
nossa desconfiança, nosso ciúme. 66
Dentro da ótica mimética, em consonância com o ciúme, a indiferença do sujeito,
do amante, visa o mesmo objetivo: exibir o desejo. Isso acontece porque só
conseguimos nos convencer dos nossos desejos quando estes são espelhados pelos
desejos do outro. Em outras palavras, todo desejo é um espetáculo de outro desejo real
ou não. Amostras desse teatro podem ser vistas na dissimulação da coquete. Segundo a
lógica do coquetismo, desejo atrai desejo. ‘Portanto, para se fazer desejar é preciso
convencer os outros que desejamos a nós mesmos’.67 Para persuadir o amante, a coquete
usa o desejo do amante a seu favor: ela se deseja graças ao desejo do próprio amante.
São desejos copiados. Envolta em um desejo de si, a coquete nega-se ao amante. Como
conseqüência dessa negação, a coquete é divinizada aos seus próprios olhos e aos olhos
do amante. Essa técnica da coquete, como as estratégias do desejo, consiste em
apresentar ao outro uma autossuficiência em que gostaríamos de acreditar. (Na verdade,
até acreditaríamos se conseguíssemos convencer o outro dessa existência) Em situações
como esta do coquetismo, podemos perceber que quanto mais os amantes se parecem
mais se vêem como diferentes, caso contrário, não seria possível desprezar o outro sem
desprezar a si mesmo. Isso significa que a indiferença, longe de ser uma atitude neutra,
no plano da mímesis, é extremamente tendenciosa, pois defende o desejo de si. Os
heróis românticos, Tristão e Isolda, ilustram bem essa mediação porque se amam a
partir de si mesmo, operando um duplo narcisismo. Aqui, como nos demais casos de
66
67
PROUST, O tempo recuperado, 2004, p. 691.
GIRARD, 2008 b, p.421.
53
mediação dupla, a relação amorosa é transformada em disputa cujo ‘vencedor’ é aquele
que melhor esconde seu desejo.
Em Um amor de Swann, podemos acompanhar as diferentes fases da mímesis no
desejo amoroso através do relacionamento de Swann e Odette. É importante lembrar
que, de imediato, Swann não enxerga Odette como um possível amor, na verdade, chega
até a desconsiderá-la. Vale dizer que Swann é um personagem culto que faz das artes
um modo de se relacionar com a realidade. Modo pelo qual Swann também irá se
relacionar com Odette. Swann, ao perceber em Odette ‘um rosto digno de figurar na
Vila de Moisés de Botticelli’68, semelhante à figura de Céfora69 de As filhas de Jetro da
Capela Sistina, introduz ‘a imagem de Odette em um mundo de sonhos ao qual ela não
tivera acesso até então.’70 Ao passo que Swann comparava as qualidades do rosto,
fundava seu amor em uma estética precisa, ‘ sem considerar que o beijo e a posse, que
pareciam naturais e medíocres se obtidos através de uma carnação murcha, vinham
coroar a adoração de uma peça de museu, parecendo ser sobrenaturais e deliciosos’71
A partir dessa associação, Swann se empenha em um projeto de conquista que
percorre desde uma disfarçada indiferença até os encontros e declarações amorosas.
Para prevenir um possível cansaço de Odette, e às vezes o seu próprio, Swann escrevialhe ‘um carta cheia de decepções fingidas e de cóleras simuladas (...) Sabia que ela se
sentiria apavorada, lhe responderia, e esperava que, no choque que o medo de perdê-lo
causaria à sua alma (...) brotaria palavras que ela jamais pronunciara antes’;72 e, de fato,
foi desse modo que obteve as mais ternas cartas que ela lhe escreveu. Nesse jogo de
amor, Swann descobre, quando Odette não responde como de costume, que
68
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.183.
Cf. anexo7.
70
Id.ibid, p. 182.
71
Id.ibid, p.184.
72
Id.ibid.
69
54
De todas as formas de produção do amor, de todos os agentes de
disseminação do mal sagrado, um dos mais efetivos é esse turbilhão
agitado que por vezes passa por nós. Então, o ser com quem nos
divertimos nesse instante – a sorte está lançada –há de ficar sendo a
pessoa amada. Nem há necessidade que aquele momento nos tenha
agradado mais que as outras. Precisava era que o nosso gosto por ela se
tornasse exclusivo. E semelhante condição se realiza quando – no
momento em que ela nos fez falta – a busca de prazeres que sua
convivência nos trazia é de repente substituída em nós por uma
necessidade angustiosa, que tem por objeto essa mesma pessoa, uma
necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam de satisfação
impossível e de difícil cura: a precisão insensata e dolorosa de possuílo.73
Com essa observação, Swann experimenta o ciúme e faz de Odette uma busca
constante, a ponto de enxergá-la nos lugares e nas obras por ela amadas. Nesse sentido,
o salão Verdurin freqüentado por Odette, que antes não agradava muito a Swann, tornase um lugar encantado, uma recordação do seu amor. Afinal, ‘transforma-se o amador
na cousa amada, por virtude de muito imaginar’, de muito desejar. Mas como dissemos
anteriormente, o desejo requer a aprovação do modelo. Dentro dessa estrutura, os
Verdurin funcionam como modelos de Odette. No começo da narrativa, Swann é bem
visto pelo pequeno clã, mas, conforme a história se desenvolve seu prestígio diminui.
Isso porque Swann não entende os signos do salão, para ele só uma coisa importa:
Odette. Sua presença no salão se deve unicamente a ela. Ressentidos por estarem em um
segundo plano, os Verdurin encontram em Forcheville um possível diálogo.
Diferentemente de Swann, Forcheville se encanta com a conversação vazia típica dos
salões, mesmo sem nada entender. Por esse motivo, Swann rapidamente é substituído
por Forcheville, primeiro pelos Verdurin, depois por Odette. Como um prelúdio da
trajetória amorosa de Swann e Odette, a pequena sonata de Vinteuil já anuncia a
fragilidade das relações miméticas, das relações amorosas:
73
Id,ibid, p.188.
55
o pianista tocava para os dois, o pequeno trecho musical de Vinteuil, que
era como a área nacional do seu amor. Ele começava com os trêmulos
dos sustenidos no violino, que durante alguns compassos era só o que se
ouvia, ocupando todo o primeiro plano; depois, de repente, pareciam se
afastar e, como nesses quadros de Pieter Hooch,74 que aprofundam o
quadro estreito de uma porta entreaberta, ao longe, com uma cor bem
diversa, no aveludado de uma luz interposta, o pequeno trecho aparecia,
dançante, pastoral, intercalado, episódico, como se pertencesse a outro
mundo. (...) O trecho musical parecia conhecer que aquela felicidade,
cujo caminho mostrava, era vã. Em sua graça leve, possuía algo de
completo, como o desinteresse que sucede à mágoa (...) Swann quase
lamentava que a frase tivesse um sentido, uma beleza intrínseca e fixa,
estranha. 75
Essa debilidade é devida à própria natureza metafísica do desejo. Swann cultua
um absoluto erótico (a Céfora de Botticelli) que não corresponde às qualidades reais de
Odette. Assim como os namorados de Sonho de uma noite de verão, Swann vive um faz
de conta por ele mesmo produzido. Passado o efeito da febre mimética, Swann faz uma
avaliação de tudo o que passou, e, mais uma vez, insiste em continuar apaixonado por
Odette, mas conclui que ‘não é possível mudar, isto é, tornar-se outra pessoa, e
continuar a obedecer aos sentimentos da pessoa que deixou de ser’, 76 Com essa
constatação, desiludido, exclama para si mesmo: ‘ E dizer que desperdicei anos da
minha vida, que desejei morrer, que vivi o meu maior amor, por uma mulher que não
me agradava, que não fazia o meu tipo!’77
Essa experiência de um frenesi amoroso seguido de desencanto, o narrador
vivencia intensamente ao longo dos seus romances. Partindo de uma possível mediação
externa, Marcel, da mesma forma que Madame Bovary, crê retirar da literatura o
modelo para seus relacionamentos amorosos, como podemos ver no fragmento abaixo:
74
Cf.anexo 8.
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p179.
76
Id.ibid p.295.
77
Id.ibid, p.298.
75
56
a mulher que ia se apaixonar por mim e dar-me a réplica na comédia
amorosa que eu trazia inteiramente escrita na cabeça desde a infância. (...)
Nessa peça, fosse a nova ‘estrela’ que eu chamasse para criar ou repetir o
papel, o cenário, as peripécias e o próprio texto conservavam uma forma
ne varietur. 78
Mas, como nem na vida nem na literatura, tudo é em preto e branco, Marcel
experimenta os matizes da mediação interna. Descobre que muitas vezes são os
obstáculos que desencadeiam o desejo e dirigem ‘a comédia amorosa’. Sobre essa
peculiaridade dos obstáculos, não há exemplo melhor do que o amor do narrador por
Albertine. A lógica é a seguinte: Quando Albertine está ausente, ele está apaixonado por
ela; quando presente, não mais. Desconfio que, talvez, seja melhor deixar o próprio
narrador falar sobre isso:
[Não] era um amor como aquele por Gilberte, e sim criado pela divisão
entre várias moças. Era bem possível que fosse por sua causa e porque
me pareciam um tanto análogas a ela, que suas amigas tinham me
agradado tanto. O caso é que, durante muito tempo, foi possível a
hesitação entre todas, e minha escolha passeava de uma a outra e, quando
eu julgava preferir esta, bastava que esta me deixasse esperando,
recusasse ver-me, para que eu sentisse por ela um princípio de amor. (...)
Minha separação de Albertine, no dia em que Françoise me dissera: - A
senhorita Albertine foi-se embora – era como uma alegoria de tantas
outras separações. Pois muitas vezes, para descobrir que estamos
apaixonados, talvez mesmo para que o fiquemos, é preciso que chegue o
dia da separação. (...) Em todo caso, se essa vida com Albertine não era
necessária em sua essência, ela se me tornara indispensável. Eu tremia ao
amar a Sra de Guermantes porque dizia para mim mesmo que, com seus
grandes meios de sedução, não só quanto à beleza mas pela situação
social e pela fortuna, ela seria muito mais livre para entregar-se a um bom
número de pessoas, e eu teria muito pouco domínio sobre ela. Albertine
era pobre, obscura, devia ter desejos de se casar comigo. E, no entanto, eu
não pudera tê-la só para mim’79
No calendário do desejo mimético, esse dia da separação, que coincide com o dia
do início do amor, marca a passagem da rivalidade de objeto para o desejo metafísico.
Para entender essa cronologia, é preciso admitir que tudo começa na rivalidade pelo
78
79
PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p. 670.
PROUST, A fugitiva, 2004, p.380.
57
objeto na mediação interna. O objeto de desejo sempre é o objeto proibido, não pela
‘lei’, mas pelo modelo que apresenta o objeto como desejável no momento em que ele
próprio o deseja. Em resposta a esse ‘interdito’, o sujeito passa a desejar ainda mais o
objeto, pois desconfia que a posse deste poderá lhe conferir a ‘plenitude’ que vê no
outro. A essa transfiguração do objeto de simples matéria a uma realidade imaterial
capaz de conter tudo aquilo que há de mais real para o sujeito, como, por exemplo, o
prestigio do mediador; chamamos de desejo metafísico. Dessa maneira, o dia da
separação seria uma das formas de desencadear essa transfiguração. Em vez de concluir
que o próprio desejo é um impasse, Marcel aposta em segunda(s) chance(s), crendo que
por trás dos obstáculos, nesse caso a partida de Albertine, há sempre algo pelo qual vale
à pena lutar. Porém, basta desaparecer o obstáculo para o desejo desvanecer. Por esta
razão, vemos o narrador andar de desejo em desejo, de ídolo em ídolo, sempre em busca
de um novo desejo, da verdade nova capaz de lhe entregar um tesouro escondido. Diz o
narrador:
Erramos ao pensar que a satisfação do nosso desejo tenha pouca
importância, pois, desde que supomos que ele não pode se realizar,
novamente nos aferramos a ele, e só admitimos que não valia a pena
persegui-lo quando estamos seguros de alcançá-lo. E, no entanto, temos
razão. Pois, se tal satisfação e tal felicidade só nos parecem mesquinhos
devido à certeza, são, todavia, algo de instável de onde só podem sair
desgostos. E estes serão tanto mais intensos quanto mais completa for a
realização do desejo, e mais impossíveis de suportar se, contra a lei da
natureza, a felicidade tiver sido prolongada por algum tempo, recebendo
a consagração do hábito. 80
À luz da leitura dos textos evangélicos feita por Girard, esses obstáculos podem
ser lidos como túmulos. Por trás dos obstáculos, o que há são cadáveres. Restos de
80
Id.ibid, p. 348.
58
violência mimética. Nesse sentido, ‘seguir o Cristo é renunciar ao desejo mimético’81 no
que diz respeito às rivalidades. Como exemplo dessa inversão de perspectiva, citamos o
episódio em que as mulheres, na manhã da ressurreição, vão ao túmulo e acostumadas
com as histórias de cadáveres, se surpreendem ao ver que nada por lá as espera:
Passado o sábado, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, e Salomé
compraram aromas para ungir o corpo. De madrugada, no primeiro dia da
semana, elas foram ao túmulo ao nascer do sol. E diziam entre si: ‘Quem
rolará a pedra da entrada do túmulo para nós? E erguendo os olhos, viram
que a pedra já fora removida; ora, ela era muito grande82
3.4. DA SONATA AO SEPTETO – UMA TEORIA LITERÁRIA
Tudo é falso no desejo, tudo é teatral, exceto a fome pelo sagrado - a promessa de
uma transcendência sugerida pelo outro. Por trás de cada desejo, há sempre um
mediador cujo prestígio é sobrenatural. Em Proust, o desejo metafísico assume
diferentes formas em vários estágios do romance. Logo no início da narrativa, em
Combray, o narrador faz da família, do escritor Bergotte e de Swann uma espécie de
divindade, imita-os na esperança de se tornar um deles. Para melhor visualizarmos essa
particularidade do desejo, há um episódio que merece especial atenção, vejamos:
Cena I: Swann é convidado pelos pais do narrador para jantar em sua casa
Eu não desviava o olhar de minha mãe, sabia que quando estivessem à
mesa não me permitiriam que ficasse até o fim da refeição, e que, para
não contrariar meu pai, mamãe não me deixaria beijá-la várias vezes
diante de todos, como se estivessem no meu quarto (...) Mas eis que ao
tocarem a sineta para o jantar, meu avô inconsciente de dizer: ‘O menino
parece cansado; deveria subir para se deitar. Aliás, a gente janta bem
tarde esta noite’. E meu pai que não observava com tanto escrúpulo
quanto minha avó e minha mãe o espírito dos tratados disse: ‘Sim.
Vamos, vai te deitar!’ Eu quis beijar mamãe; nesse momento ouviu-se a
sineta do jantar. ‘Não, não, larga a tua mãe, vocês já se despediram
81
82
GIRARD, 2008 b, p. 485
Marcos 16, 1-4.
59
bastante, essas manifestações são ridículas. Vamos sobe!’E tive que subir
sem viático (...) como diz a expressão popular, ‘contra o coração’83
Cena 2: Após o jantar
No vão da escada, vi a luz projetada pela vela de mamãe. Depois vi ela
própria; atirei-me ao seu encontro.No primeiro instante ela me olhou com
espanto (...) mas ela ouviu meu pai que subia (...) e para evitar a cena que
ele me faria, me disse com a voz entrecortada de raiva: ‘Anda, anda, que
pelo menos teu pai não te veja aqui esperando como um idiota!’ Mas eu
lhe repetia ‘Vem me dar boa-noite!’, horrorizado ao ver que o reflexo da
vela de meu pai já se erguia na parede, mas ainda usando a sua
aproximação como forma de chantagear minha mãe, na esperança de que
ela, para evitar que meu pai me encontrasse ainda ali se insistisse na sua
recusa, afinal me dissesse: ‘Volta para o teu quarto; eu vou para lá’. Era
tarde demais, meu pai estava diante de nós. Sem querer, murmurei estas
palavras que ninguém ouviu: ‘Estou perdido!’
Mas não foi assim. (...) Olhou-me por um instante com ar entre espantado
e furioso,e, depois que mamãe, com algumas palavras embaraçadas, lhe
explicou o que ocorrera, ele disse: ‘Mas então vai com ele; já que
justamente estavas dizendo que não tinha sono, fica um pouco no quarto
dele; quanto a mim, não preciso de nada’84
Através do consentimento do pai, em lugar de uma esperada punição, Proust
desenha aquilo que viria ser a trajetória dos próximos relacionamentos de Marcel. Aos
olhos do narrador, a onipotência do pai de certa forma é desfeita. Já não há mais uma
distância intransponível entre eles. Algo se perdeu e, com isso, a fé do narrador nos
deuses de Combray. A partir desse momento, o narrador passa a buscar em outros
mediadores algo daquela antiga relação, inflexível e dominante. Todo o percurso
emocional do narrador se repete sobre esta noite. O sagrado de um imaginário cristão
medieval característico de Combray é substituído agora pelo fetiche da ambição social e
do mundo das paixões; por tudo aquilo que possa remeter a uma autoridade, a uma
proibição. Podemos ver essa perversão do sagrado, na cena em que o narrador conhece a
Sra. de Guermantes, como segue abaixo:
83
84
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.38-39.
Id.ibid, p. 44-45.
60
era ela! Grande foi a minha decepção. Provinha de que eu nunca prestara
atenção, quando pensava na sra. de Guermantes, em que a representava
com as cores de uma tapeçaria ou de um vitral, em outro século, de outra
matéria que não o restante das pessoas vivas. Jamais me dera conta que
ela poderia ter um rosto vermelho (...) e a forma oval de suas faces me fez
lembrar a tal ponto pessoas que havia visto em casa (...) ‘É isto, não é
mais que isto a Sra. de Guermantes!’, dizia a cara atenta e assombrada
com que eu contemplava essa imagem que, naturalmente, não tinha
qualquer relação com as que, sob o nome de Sra. de Guermantes, haviam
aparecido tantas vezes nos meus devaneios (...) mas, ‘ao mesmo tempo,
sobre essa imagem que o nariz proeminente, os olhos penetrantes
fincavam na minha visão (...) sobre essa imagem bem recente, imutável,
tentei aplicar a idéia: ‘É a Sra. de Guermantes’, (...) Mas essa Sra. de
Guermantes com quem eu tanto sonhara, agora que via existir
efetivamente fora de mim, obteve ainda mais poder sobre a imaginação
que paralisada por um instante ao contato da realidade tão diversa do que
esperava, pos-se a reagir e a me dizer: ‘Gloriosos desde antes de Carlos
Magno, os Guermantes tinham direito de vida e morte sobre seus
vassalos; a duquesa de Guermantes descende de Geneviève de Brabant.
Não conhece, nem admitiria conhecer nenhuma das pessoas que aqui
estão’. 85
É importante esclarecer que o sagrado não constitui o carro chefe da obra, mas as
metáforas. Para Proust, a arte culmina na criação de metáforas. Do grego, metáfora
significa transposição, tradução, ou seja, estabelecimento de relações de semelhança.
Em À sombra das raparigas em flor, Proust, através da alegoria da visita de Marcel ao
ateliê do pintor Elstir, justifica o uso das metáforas como forma de representação
artística, como exercício de metamorfose. Daí o narrador comparar o ateliê com ‘um
laboratório da criação do mundo’ onde se realizava ‘uma espécie de nova criação’ em
que ‘se Deus Pai havia criado as coisas nomeando-as, era tirando-lhes o nome ou
dando-lhes outro que Elstir as recriava. Os nomes que designam as coisas respondem
sempre a uma noção de inteligência, estranha às nossas impressões verdadeiras’86 Por
meio de um rico vocabulário relativo à transcendência, o autor confere às metáforas um
valor de ritual, embora não fale em religião. No romance, a arte ocupa o lugar do
85
86
Id.ibid, p. 147.
PROUST, À sombra das raparigas em flor, 2004, p.550.
61
sagrado, só os artistas87, os modelos eleitos, gozam das beatitudes eternas. A mitologia
clássica também colabora com este projeto, evocando uma atmosfera sagrada, como
pode ser vista na descrição do apartamento de Swann onde, entre quadros, estátuas e
tapetes, o imaginário pagão aparece sob a forma de um santuário. A partir dessas
associações, a metáfora traduz também a mecânica do desejo, revelando a sonhada
metamorfose do sujeito em seu mediador.
Com essa linha melódica, o romancista pauta um realismo não de objetos e/ou
costumes, mas do desejo. Do ponto de vista romanesco, a divindade do mediador é
estável; não é a imagem que sacraliza, mas é a percepção que sacraliza a imagem. A
imagem falsa e verdadeira citada tantas vezes por Proust é a imagem envolvida pelo
sagrado. Dentro desse compasso, a memória involuntária, a memória afetiva, possui a
tarefa de devolver a lembrança ao élan do sagrado. A alegria que Marcel sente ao
experimentar a madeleine ou quando tropeça no calçamento de Veneza é uma alegria
proveniente da dissociação de elementos contraditórios do desejo, a raiva e o fascínio.
Desse modo, a madeleine, como as demais situações de memória involuntária, funciona
como uma espécie de comunhão, como um sacramento capaz de religar o sujeito a uma
primeira impressão. A lembrança surge desfazendo o mito do desejo original, pois
assinala o papel do mediador. Nessa leitura, Girard compara a memória involuntária a
um oráculo, uma vez que esta anuncia a lição a ser aprendida apenas n´O tempo
recuperado. Nesse sentido, podemos dizer que é a partir da memória involuntária que
Proust desenvolve sua estética literária. Uma poética do realismo do desejo. Se a
memória transfigura o objeto, o romance nos descreve não como uma ilusão vivida no
momento do desejo, mas como uma nova ilusão, atualizando o eterno duelo entre o eu e
o outro. Ao longo de Em busca do tempo perdido, podemos ver esse velho drama por
87
Cf. texto do anexo 3.
62
meio do aval dos modelos sobre o narrador. Cada opinião de Marcel é direcionada pelo
olhar dos mediadores e acolhida como se fosse autêntica. O retorno para as próprias
opiniões, para uma possível espontaneidade, é vislumbrado apenas nos desejos infantis
e nos artistas. Mais uma ilusão? Cremos que não. Na cena em que o narrador descreve
os campanários de Martinville, essa semente de uma primeira subjetividade já está
presente. Não há mediador, não há desejo de posse, mas de expressão. Encontra-se
emoção estética, cessação de todo desejo. Um prelúdio da calma e da alegria a ser
redescoberta no último volume da série.
Reconstruindo a narrativa, percebemos que esse primeiro esboço literário do
narrador é logo esquecido. Primeiro porque este não crê ter aptidão para as letras;
segundo, devido à preguiça e ao esforço de abrir mão das horas com Gilberte na época
em que ainda era por ela apaixonado. Contudo, além desses motivos, há um terceiro,
sobre o qual Proust define mais uma plataforma da sua estética. Através de um pastiche
dos diários dos Goncourt inserido no romance, Proust, pela leitura do narrador,
questiona o que seria realismo:
A literatura que se limita a ‘descrever as coisas’, a fornecer-lhes um
esquema de linhas e superfície, é, a despeito de suas pretensões realistas,
a mais fora da realidade, pois corta bruscamente toda comunicação de
nosso eu presente com o passado, do qual as coisas guardavam a
essência, e com o futuro, onde nos convidam a gozá-lo de novo.88
Justificando-se, assim, a falta de vocação literária do narrador, uma vez que ‘a
literatura não revelasse nenhuma verdade profunda’89, esta não valeria à pena. Na
contramão da ‘literatura realista’, a memória involuntária, ao relacionar ideias,
sensações e épocas, proporciona ao narrador uma nova perspectiva do que seria o
88
89
PROUST, 1988, p.167.
PROUST, O tempo recuperado, 2004, p. 541.
63
verdadeiro trabalho literário, resumindo a tarefa do artista ao dever de desvendar
impressões e com elas o próprio tempo:
Um som já ouvido, um olor outrora aspirado (...) tanto no presente como
no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, logo se
libera a essência permanente das coisas, ordinariamente escondida, e
nosso verdadeiro eu, que permanecia morto, por vezes havia muito,
desperta, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem. Um
minuto livre da ordem do tempo recriou em nós, para o podermos sentir,
o homem livre da ordem do tempo.90
Em O tempo recuperado, encontramos não mais o jovem Marcel, mas um
narrador maduro, desolado, que após um longo período de isolamento devido ao luto à
morte de Albertine e das ilusões perdidas, retorna ao salão Guermantes. Nesse episódio,
os pressupostos para uma poética literária são realinhados sob a ótica da descoberta da
natureza imitativa do desejo. Reparem a seguinte descrição do narrador:
Assim, no faubourg Saint-Germain, as aparências inexpugantes do duque
e da duquesa de Guermantes, do barão de Charlus, tinham perdido sua
inviolabilidade, como todas as coisas se modificam neste mundo, pela
ação de um princípio interno em que ninguém pensara: no Sr. de Charlus,
o amor de Charlie que o tornara escravo dos Verdurin e, depois, a
caduquice; na Sra. de Guermantes, a mania da novidade e da arte; no Sr.
de Guermantes, um amor exclusivo, como já o tivera muitos na vida, mas
que a fraqueza da idade tornava mais tirânico e a cujos desmandos a
severidade da duquesa, onde o duque não mais aparecia e que aliás já não
funcionava, não mais opunha seu desmentido, seu resgate mundano.
Assim muda o aspecto das coisas neste mundo; assim o centro dos
impérios, o cadastro das fortunas e a carta dos privilegiados, tudo o que
parecia definitivo é perpetuamente remanejado, e aos olhos de um
homem vivido podem contemplar a mais completa mudança justo onde
lhe parecia mais impossível.91
Nessa ‘mais completa mudança justo onde lhe parecia mais impossível’, revela-se
não só o caráter mimético do desejo, mas também do seu traço metafísico. Quando o
narrador diz que os personagens do faubourg Saint-Germain ‘perderam sua
inviolabilidade, como todas as coisas (...) pela ação de um principio interno em que
ninguém pensara’, podemos traduzir essa perda como uma das metamorfoses do
90
91
PROUST, 1988, p153 e 154.
PROUST, O tempo recuperado, 2004, p.774.
64
sagrado. Trocam-se os mediadores; mudam-se os deuses, e, consequentemente, ‘muda
o aspecto das coisas neste mundo; assim o centro dos impérios, o cadastro das fortunas
e a carta dos privilegiados, tudo o que parecia definitivo é perpetuamente remanejado’.
A partir desse reconhecimento, já previsto pelas insurreições da memória involuntária,
Marcel entende a mecânica do desejo. Compreende que
as impressões nos conferem, fora do tempo, a essência comum às
sensações do passado e do presente, as quais, mais preciosas, são todavia
muito raras para só delas compor-se a obra de arte. Prontas para serem
aproveitadas, eu sentia aglomeradamente em torno de mim inúmeras
verdades relativas às paixões, aos caracteres, aos costumes (...) A arte de
viver consiste em nos servir de quem nos atormenta como de degraus de
acesso à sua forma divina, povoando de deuses a nossa vida. Satisfaziame verificar essas verdades (...) vislumbrar na obra de arte o único meio
de reaver o Tempo perdido, nova luz se fez em mim (...) sem nunca
imaginar que minha vida devesse entrar em contado com os livros que
sonhara escrever e cujo assunto, quando outrora me sentava à mesa de
trabalho buscara em vão. Assim a minha existência até este dia e não
poderia resumir-se neste título: uma vocação.92
Reaver o tempo perdido, nesse sentido, equivale a recuperar as primeiras
impressões; é retornar à primeira subjetividade que necessita da mirada alheia para se
definir; é reconhecer que se copia a fim de parecer original a si e aos outro; é abolir o
orgulho; é, portanto, sair da mentira romântica para entrar na verdade romanesca. Sob
essa nova luz, o narrador, ao repensar as impressões e a sua vida passada, percebe que a
matéria do seu livro não poderia ser outra senão a sua própria vida. Seu trabalho, desse
momento em diante, destina-se à tarefa de salvaguardar no livro uma vida já soterrada
pelo tempo e pelos vícios miméticos. Mas, haveria tempo? Em contraste, com a
degradação física e moral dos convidados do salão Guermantes, o narrador percebe-se
também corroído pelo tempo e passa a temer a morte, não por si, mas pelo livro:
Compreendi que morrer não me seria novidade, que, ao contrario, já
morrera muitas vezes desde a infância. Para reportar-me ao período mais
próximo, não prezara Albertine mais do que a própria vida? Poderia então
ter-me concedido a mim mesmo sem o amor que lhe dedicava? Ora, já
92
Id.ibid, p.174 e 175.
65
não a amava; não era mais o ente que a amara, porém outro muito
diverso; cessara de amá-la quando me transformara. E não sofria por ter
me tornado esse outro, por não amar Albertine; certo, deixar um dia de
possuir meu corpo não podia de modo algum parecer tão triste como
outrora me parecera deixar de amar Albertine. E, no entanto, quão pouco
me importava agora não amá-la mais! Essas mortes sucessivas, tão
terríveis ao ser que hão de aniquilar, tão inócuas, tão suaves uma vez
realizadas, quando já não existia quem as receara, me haviam feito
entender quão pouco sensato era o medo da morte. Ora, após haver
aprendido a considerá-la com sobranceria, punha-me agora de novo a
temê-la, por motivos diferentes, é verdade, não mais por mim, porém pelo
livro (...) Victor Hugo disse: ‘Il faut que l´herbe pousse et les enfants
meurent’ E, eu afirmo que a lei mais cruel da arte exige que os seres
pereçam, que nós mesmos morramos padecendo todos os tormentos, a
fim de que cresça a relva, não do olvido, mas da vida eterna, a dura relva
das obras fecundas, sobre a qual as gerações futuras virão alegremente,
sem cogitar dos que sob ela dormem, fazer piqueniques. 93
A essas sucessivas mortes, soma-se a morte de mais uma ilusão, a crença em uma
autossuficiência engendrada pelo desejo mimético. Para testemunhar sobre essa jornada
dos desatinos da mediação interna até o reconhecimento do mimetismo, chamamos
Dom Quixote que em seu leito de morte conta que
as misericórdias sobrinha – respondeu Dom Quixote – são as que neste
momento Deus teve comigo, sem as impedirem os meus pecados. Tenho
o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que
o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de
cavalaria. Já conheço os meus disparates e os seus embelecos e só me
pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para
me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. (...)
- Daí-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou Dom Quixote de La
Mancha, mas sim Alonso Quijano, que adquiri pelos meus costumes o
apelido de ‘Bom’. (...) já conheço a minha necedade. – Senhores – acudiu
Dom Quixote-, deixemo-nos dessas coisas; o que foi já não é: fui louco e
estou em meu juízo; fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como
disse, Alonso Quijano, o Bom; possam o meu arrependimento e a minha
verdade restituir-me a estima em que Vossas Mercês me tinham.94
Compartilhando esse sentimento de arrependimento com Alonso Quijano, o
narrador empreende um projeto de redenção, um projeto literário em que se possa
recuperar o tempo perdido nos escândalos e nas frustrações. Podemos ler essa
93
94
PROUST, 1988, p. 283-284.
CERVANTES, 2002, p.675-676.
66
transformação, esse novo empreendimento, a partir da sonata de Vinteuil. Em Um amor
de Swann, a pequena frase da sonata representa a relação amorosa de Swann e Odette.
Swann a subverte em ‘hino nacional do seu amor’, ou seja, transmuta o signo artístico
em signo amoroso, romanticamente. Porém, em A prisioneira, o narrador descobre a
pequena frase em um septeto, como mostramos abaixo:
Seria esta a felicidade sugerida pela frase da Sonata a Swann que errou
assimilando-a ao prazer amoroso, e não soube encontrar na criação
artística, a felicidade que, ainda mais do que a frase da sonata, me fez
pressentir supraterrestre o apelo rubro e misterioso do septeto que Swann
não chegou a conhecer, tendo morrido, como tantos outros, antes de ser
revelada a verdade para ele feita? Aliás, de nada lhe valeria a frase, já que
podia simbolizar um apelo, mas não suscitar forças e transformá-lo no
escritor que não era.
Essa felicidade, análoga à alegria proveniente da memória involuntária, não
conhecida por Swann, o narrador encontra no trabalho literário a ser feito. Música
romanesca cujo canto refaz a história de uma peregrinação, na esperança de recuperar
um frescor perdido, de reencontrar vida que um dia habitou nas flores secas guardadas
dentro de um livro. O septeto, assim, pode representar o percurso do narrador pela
vocação literária. Os sete livros de Em busca do tempo perdido, reensaiam a pequena
frase, apresentando-a límpida de todo desejo, como Fernando Pessoa em
Pobre e velha música
Não sei por que agrado,
enche-se de lágrimas
meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te
não sei se te ouvi
nesta minha infância
que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
quero aquele outro.
E eu era feliz. Não sei
Fui-o outrora agora.
67
Assim, como o som do septeto, Em busca do tempo perdido embala ‘uma epopéia
da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce, cheio de
um sofrimento que também liberta e tranqüiliza; esse nunca cessa e sempre flui, que
sempre nos oprime e sempre nos impele’95
3.5 PEQUENAS ILUMINURAS
UM ESTUDO SOBRE A COMPOSIÇÃO DO ROMANCE
Um galo sozinho não tece a manhã
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
(...)
E o lance a outro; e de outros galos
Que com muitos outros galos se cruzem
Os fios de sol de seus gritos de galo,
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
Se vá tecendo, entre todos os galos.
(...)
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão
João Cabral de Melo Neto,
Tecendo a manhã.
Nenhum romancista pode esperar de imediato tanta atenção de seus leitores. Por
esse motivo, é preciso que as suas perspectivas sejam introduzidas logo de início.
Proust, diante dessa exigência, extrai um fragmento da conclusão e o implanta no
começo do romance – a cena da madeleine96 – com o cuidado de não afetar a ordem
cronológica da narrativa. ‘Esta cena, no momento em que a vemos pela primeira vez,
parece cair do céu e a ele retornar, pois não tem nenhuma consequência imediata para a
experiência do narrador’97. Atuando como se fornecesse uma realidade por vir, a cena
91 ‘Marcel Proust. O romance do tempo perdido’ In: Auerbach, 2007, p.340.
96
Cf. anexo 1.
97
GIRARD, 1962, p. 10-11.
68
oferece ao leitor uma promessa; ao narrador uma anunciação do tempo recuperado.
Desse modo, Proust abre a narrativa para o leitor no primeiro volume e, apenas, no
último, para o narrador onde este, pela revelação romanesca, escreverá o romance que
acabamos de ler. Dessa forma, como o evangelho do Apocalipse, a madeleine representa
um começo e um fim, uma nova criação do mundo, uma nova literatura.
Semelhantemente a uma catedral, que se edifica sobre um dogma, o romance faz da
madeleine a sua pedra angular. Contudo, não é sob a forma de uma catedral que o
narrador pretende escrever sua obra (assim ele diz) mas, como um vestido em que se
costura aqui e ali fragmentos de um mundo despedaçado, estilhaços de ilusão,
recompondo-os em arte. Nessa malha rapsódica, o narrador faz do como se, da lanterna
mágica, sua ferramenta de trabalho. Como a narrativa é contada pelo ponto de vista de
Marcel, as personagens, como as demais circunstâncias em que estão envolvidas, são
vistas, não pela ótica de um narrador onisciente que tudo sabe; mas por janelas que lhes
são abertas, por diferentes ângulos de uma percepção. Entretanto, nem sempre esse
recurso é suficiente para captar determinadas situações. Para esses casos, o narrador
recorre aos depoimentos de outros personagens, de modo à sempre relativizar a
veracidade de cada relato. Adjetivos como ‘imutáveis’, ‘absolutos’, são pontos que essa
costura não pode figurar, pois, como vimos nos capítulos anteriores, é o desejo
mimético que ensaia essa trama. Assim, como os vitrais de uma igreja cujo desenho é
transformado pela refração da luz, os lugares e os acontecimentos descritos Em busca
do tempo perdido são redescobertos a cada projeção da lanterna mágica. Uma projeção,
vale dizer, sempre transversal que reúne, sem totalizar, sem unificar, fragmentos dessas
iluminuras.
Sobre esse modo de ver / contar, Proust dialoga, através da citação, com diversos
artistas, como Giotto, Carpaccio ou Vermeer, além, é claro, do pintor imaginário Elstir.
69
Essas referências nos levam a perceber certa fusão entre o modo como esses pintores e o
narrador versam sobre a realidade. Giotto98, por exemplo, ao romper com as proporções
das figuras, confere uma nova dimensão sobre a aparência das coisas na natureza,
mostrando-as, agora, de acordo como sua importância no pensamento humano. A esses
diferentes modos de ver, o narrador denomina estilo. Sobre esse modo de ver e a sua
relação com o fazer artístico, nos diz que:
A grandeza da verdadeira arte (...) consiste em captar, fixar, revelar-nos
cada vez mais à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade
das noções convencionais que se lhe subsistem, essa realidade que
corremos o risco de morrer sem conhecer, e é apenas a nossa vida, a
verdadeira vida, por conseguinte, realmente vivida, essa vida que, em
certo sentido, está sempre nos homens e nos artistas. Mas não vêem,
porque não a tentam desvendar (...) Captar a nossa vida; e também a dos
outros; pois o estilo para o escritor como para o pintor não é um problema
de técnica,mas de visão. É a revelação, impossível por meios diretos e
conscientes, da diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual
encaramos o mundo, a diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo
de cada um de nós. Só pela arte podemos sair de nós mesmos, sem saber
o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos
seriam tão estranhas como as porventura existentes na Lua. Graças à arte,
em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e
dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais
diversos entre si do que os que rolam no infinito, e que, muitos séculos
após a extinção do núcleo de onde emanam, chama-se Rembrant ou
Vermeer, ainda nos enviam seus raios.99
Ainda pensando sobre a importância do estilo, Proust faz do pastiche uma
iniciação literária, pois, segundo o autor, o estudo do pastiche permitiria um
reconhecimento de estruturas, de ritmos, de uma musicalidade gramatical capaz de
remodelar a percepção.100 Partindo dessa premissa, Proust inclui um pastiche dos diários dos
98
Cf. anexo 6
PROUST, 1988, p. 172.
100
Sobre esse assunto Proust diz que ‘The best advice I can give to my fellow-writers is that they would
be well-advised to indulge in the cleansing, exorcisng, pastime of parody, when we come to the end of a
book, we find that not only do we want to go on living with its characters, with Madame de Beauséant,
with Frédéric Moreau, etc., but that our inner voice, which hás grown accustomed, through the long hours
of perusal, to follow the Balzacian or Flaubertian rhythm, insists on talking Just like those authors. The
one means of escape from the toils lies in letting the influence have its way for a while, in keeping one´s
foot on the pedal and permitting the resonance to contineu: in other words, in embarking upon a
deliberate act of parody, with the object once we have got the stuff out o four system, of becoming
99
70
Goncourt, além de um pastiche si mesmo no romance.
campanários de Martinville
101
O texto do narrador sobre os
, antes de se apresentar Em busca do tempo perdido, veio ao
público em novembro de 1907 no Figaro, com o título de Impreessions de route en
automobile. Essa reapropriação de um mesmo texto, submetido aqui e ali a reformas, já
demonstra aquilo que viria marcar toda a trajetória literária de Proust: uma constante
releitura de si. No outono de 1908, com o artigo, Contre Sainte-Beuve, o autor delineia
sua área de trabalho - as fronteiras entre realidade e ficção; o hiato entre o sono e a
vigília. Após a publicação, o artigo é transformando em um longo ensaio, e,
posteriormente, na série de Em busca do tempo perdido. Esta, por sua vez, continua a
obedecer aos comandos de uma incessante revisão. A série, originalmente alocada em
três volumes (No caminho de Swann, No caminho de Guermantes e O tempo
recuperado) se estende para mais quatro (À sombra das raparigas em flor, Sodoma e
Gomorra, A prisioneira e A fugitiva). Esse crescimento é fruto de uma constante revisão
que acontece tanto na macro-narrativa dos romances, como na micro-narrativa das
frases. Por meio de um compasso em largo, as frases crescem por dentro, incham-se,
conferindo à obra uma estrutura orgânica. Como podemos notar, desde a origem do
romance, não há diferenciação entre teoria e prática, pois, para Proust, reflexão sobre a
escrita já é a própria escrita. Nesse sentido, a obra de Proust adquire um caráter híbrido
que guarda em si os limites entre realidade e ficção; entre literatura e teoria literária.
Com a cautela de não reduzir a obra a estanques dicotomias, poderíamos dizer que se
trata de um ensaio ficcional – um discurso anfíbio, híbrido, por excelência.
ourselves again, instead of spending the rest of our working lives producing unconscious parodies. But
deliberate parody must be spontaneous. When I set producing my, parody of Flaubert, I did not stop to
ask myself whether the ‘tune’ ringing in my ears owed its peculiar quality to a recurrent series of
imperfects oro f present participles. If I had bothered about that, I should never have got the thing on a
paper at all.’( W. Strauss. Criticism and Creative. In: GIRARD, 1962, p. 65)
101
Cf. anexo 2.
71
A partir de uma prosa ensaística, Proust, assim como Baudelaire ao analisar a
pintura de Camille Corot, conclui que uma obra feita não é acabada e uma obra
completamente acabada não é totalmente feita. Em outras palavras, a obra seria um
constante fazer que se impõe. Assim como o ensaio que denuncia, enquanto forma e
ficção, as marcas de um movimento feito sobre as leituras; a obra de Proust também
guarda as digitais desse mesmo fazer. Semelhantemente a Samuel Beckett ou a Bertolt
Brecht que ‘rasgam a cortina’ e conversam com a platéia sobre as concepções do teatro
moderno, Proust, durante a narração de Em busca do tempo perdido, dialoga conosco,
através das falas dos personagens, sobre o processo de confecção da obra literária. Além
dessas fronteiras entre a teoria e o texto ficcional, Proust insere, pela metáfora, sua obra
em um não-lugar, em um amálgama de diferentes sistemas artísticos onde os limites
espaço-temporal são apagados, conduzindo a obra no tempo, como a música, e a
estendendo em imagens, como a pintura.
Ancorado nesse espaço do entre, do intervalo, Proust critica métodos de análise
literária em que as filigranas biográficas são colocadas acima do estilo, como faz SainteBeuve. Proust discorda desses critérios analíticos porque tende a tornar tudo aleatório na
obra, quando, em sua construção, tudo decorre de uma necessidade estética. Quando, no
romance, o autor escreve a provável autobiografia do narrador-herói, apresentando certa
substancia biográfica parecida com a sua, podemos ler essa escrita como uma resposta
ao ‘biografismo’ em voga da época. A desconstrução dessa premissa parte de um
desdobramento da coincidência autor/narrador em dois níveis de atuação, mostrando
que os dois discursos são homólogos, mas não análogos. ‘O narrador vai escrever e este
futuro faz com que ele se mantenha numa ordem de existência e não da palavra; está a
72
braços com um psicólogo e não com a técnica. Marcel Proust, pelo contrário, escreve;
luta com as categorias da linguagem, e não com as do comportamento’. 102
Na nossa leitura, procuramos aproximar Proust do narrador não naquilo que diz
respeito às biografias em um sentido restrito, mas a partir de uma metamorfose literária.
Recuperando o pressuposto de que o desejo é mimético, podemos observar que tanto o
narrador como Proust passaram por uma experiência de conversão. Para ambos foi
revelada a natureza imitativa do desejo. Ao narrador, pelas ocasiões de memória
involuntária e pela matinée na casa dos Guermantes, em O tempo recuperado, como
falamos no capítulo anterior. A Proust, pelo itinerário de Jean Santeuil e outros contos
até Em busca do tempo perdido. Se em Jean Santeuil, Proust pinta uma superioridade
do eu sobre o mundo, um narcisismo que projeta indiferença sobre os demais; No
romance Em busca do tempo perdido, esse eu é consolado de suas desilusões. Através
das estratégias do desejo amoroso e mundano, Proust revela as mentiras do desejo
mimético, o vazio de um eu romântico que se pensa divino, que se quer divino. Esse é o
ponto de encontro entre Proust e o narrador. A partir da revelação da cegueira em
relação ao seu próprio desejo mimético, os dois romancistas constroem uma literatura,
ao menos o narrador nos deixa essa promessa, de desmistificação da imagem
consagrada de um eu como fonte de riqueza poética e espiritual dominante no início do
século XX, com a estética romântica e simbolista. Nesse sentido, a descoberta do link
entre duas sensações, oferecido pela memória involuntária, é repassada pelo romancista
de forma a permitir que seus leitores se tornem ‘leitores de si mesmos, não passando [a
obra] de uma espécie de vidro de aumento (...) graças ao qual [o romancista] lhes
forneceria meios de se lerem.’103Assim, ao revelar o jogo dos duplos, da eterna
102
103
R. BARTHES, 1974, p. 60.
PROUST, 1988, p. 280.
73
mediação, Proust e Marcel empregam uma corrida em busca do tempo, fotografando,
em todo instante, simetrias veladas, para as revelar em iluminuras, em literatura, em
releituras, mostrando que o eu e o outro - a verdade e a ficção – autor e leitor, não estão
tão distantes uns dos outros como pode parecer. Basta mudar o foco, ajustar a lente,
para ver que tudo isso se resume a uma questão de mera percepção...
74
4. INTERMEZZO: REARRUMANDO A BIBLIOTECA
O verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida
Carlo Guinzburg, O fio e os rastros. Verdadeiro, falso e fictício
Aristóteles, para realizar seu projeto de tentar entender a natureza, partiu daquilo
que lhe era conhecido, das vivências comuns, cotidianas. Refazendo a mesma trajetória,
o narrador de Em busca do tempo perdido recupera, através da memória, conhecimentos
partilhados, as ideias comuns que compõem um patrimônio do pensamento humano a
respeito de tudo, escrevendo-os sob a forma de um saber. Um reconhecimento da sua
própria humanidade que se traduz na aprendizagem da escrita. Durante a realização
dessa tradução, Proust, por meio das leituras do narrador-menino, oferece um acervo de
concepções literárias vigentes na época e edita, se assim podemos dizer, um romance da
história literária não oficial. Um romance de caráter não pedagógico, mas que questiona
a prática da leitura em face da escrita. Nesse sentido, as leituras do narrador-menino
constituem alavancas de um pensar crítico, não de prescrições literárias, e sim de uma
autoria, uma infância da escrita. Dessa forma, o romance versa não apenas sobre uma
redescoberta do eu e do outro, mas também sobre a criação de uma crítica-artística a
partir de uma releitura da tradição literária. Assim, a essa tensão da leitura/escrita,
impõem-se algumas reflexões sobre a obra proustiana e o cânone da literatura.
Em Journées de lecture, o narrador depara-se com uma força imperativa inerente
a toda leitura: a citação. Citare, do latim, significa por em movimento. Pois, ‘suspende o
contexto presente, deixa-o de lado para se inserir em um novo contexto. (...) A citação
estabelece uma relação entre o agora (...) e o que já foi; (...) porta, em grau máximo, o
75
selo do momento crítico, do momento de perigo que é fundamento de toda leitura.’104
Em outras palavras, um perigo de desleitura. Um momento em que predileções autorais,
memórias e enciclopédias são realinhadas sob outra configuração. Examinando essas
construções históricas da citação, Proust prenuncia o caráter intertextual dos estudos
polifônicos de Bakhtin; fazendo do diálogo a superfície onde ‘homens e ideias,
separados por séculos, se chocam’105. Da mesma forma que Borges, Proust descobre na
citação diferentes genealogias literárias, abrindo, assim, possíveis mesas redondas para
o leitor, autor e potenciais precursores. Desse modo, a citação torna-se uma prática
constante na poética de Proust, transformando sua obra literária em uma grande
biblioteca, uma biblioteca móvel, a ser situada de acordo com o cânone escolhido. Para
demonstrar a maleabilidade desta, recuperamos alguns eixos canônicos apontados pelas
leituras do narrador-menino, como pelas leituras de outros personagens, além da
referência a outras obras.
No romance Em busca do tempo perdido, através da citação de Mme. Sevigné,
presente da avó para o narrador-menino, Proust situa a biblioteca sob a perspectiva do
final do século XVII e seus estertores. Porém, com a personagem do barão Charlus, o
ideário decadentista de Des Esseintes transporta a biblioteca para o século XIX. Já com
o escritor Bergotte, Anatole France e a contemporaneidade de Proust entram em cena.
Pelas leituras de Saint-Loup, o universo nietzsheano e a dicção finissecular. Com A
menina dos olhos de ouro e outros romances da Comédia Humana, Balzac. Com
Swann, o esteticismo de Ruskin; além de outras referências como o livro d´As mil e uma
noites, a Fedra de Racine, as Contemplations de V. Hugo, os diários dos Goncourt, os
livros do Gênesis, Êxodo, Esther e Jó. Há também segundo a pesquisa de Marie
104
OEHLER, D. Ciência e poesia da citação no Trabalho das passagens. In: Terrenos vulcânicos. São
Paulo: Cosac Naif, 2004, p. 242-243.
76
Miguet-Ollagnier, em La mythologie de Marcel Proust, cerca de duzentos mitos citados.
No campo das artes, participam Vermeer106, Giotto, Rembrant, Botticelli, Pieter de
Hooch, Delacroix, Wagner, Beethoven entre outros. Já com os ensaios Sur la lecture e
Contre Sainte-Beuve, Proust resgata Nerval, Flaubert, Baudelaire e o espírito de
modernidade.
A partir desse catálogo, Proust realiza um duplo diálogo com a tradição, com a
história e com as memórias, reescrevendo-as ao escrever-se nelas. Se por um lado o
cânone faz a escrita, ao oferecer-lhe material para isto; por outro, a escrita refaz o
cânone, realocando-o na biblioteca. A essa dupla tarefa, o narrador-adulto de Em busca
do tempo perdido soma uma terceira: a busca pela biblioteca ideal. Para encontrá-la, o
narrador visita a tradição não como quem busca fazer teoria literária ou algum estudo
histórico-científico, mas, como quem tenta reaver algo da atmosfera, da ambiência, do
entorno das coisas na época em que lia, na esperança de recuperar, pela memória, algo
que ficou para trás. Como se a volta aos livros da infância pudesse trazer novamente a
própria infância. Como o passado só volta enquanto irrealidade, o narrador conclui que
a única maneira de reavê-lo é pela criação107. Inventando um povo que falta, o narrador
encontra, na zona entre o vivido e o vivível, um momento de ressurreição. Vida e
memória renascidas em imagem, renascidas em devir. Através desse contrato com a
instância imaginária, o narrador faz das leituras da infância uma espécie de biografema
que o conduz para a escritura, para um saber sobre si mesmo e sobre os outros. Para um
faz de conta capaz de lançar a vida, as memórias e até mesmo a tradição para fora dos
limites do tempo, para a biblioteca ideal, para um saber enciclopédico de alguém que
106
107
Cf. anexo 3,4,5.
Cf. anexo 1.
77
tomou consciência de si, do tempo, e que olha em volta com espanto de estar no
mundo...
78
5. CONCLUSÃO: TERCEIRO MOVIMENTO: PARTITURAS LITERÁRIAS
Depois de te perder,
te encontro, com certeza,
talvez num tempo da delicadeza
Chico Buarque e Cristovão Bastos,
Todo o sentimento
‘De tudo fica um pouco’, já dizia Drummond em Resíduo. Acho que é dessa
matéria que se constitui esse trabalho – resíduos, sobras, ruínas... Vestígios de um
tempo que passou, mas que continua. Será isso literatura? Após a leitura de Proust, que
corre em busca do tempo perdido, e de Girard, que nos apresenta o desejo em busca de
uma identidade que falta, resta-nos fazer o balanço do que nos fica. Desconfio que seja
uma aprendizagem de contabilidade. Um estudo de cálculos, razões e proporções
daquilo que passou pela vida, deixando, aqui e ali, rastros da nossa humanidade. Nesse
sentido, aproximo a literatura dos provérbios, restos de antigas narrativas, cuja moral
nos sugere um modo de recontar, ou melhor, de continuar contando a vida, e, assim, de
alguma forma, nos ajuda a deixar, no tempo, fragmentos da nossa existência. Porque,
embora o não haja coincidência entre a pessoa civil (do autor e do leitor) com a pessoa
literária (do narrador e dos personagens), todos são um só. Simplesmente pessoas. Vidas
que se contam, que se mesclam, que se identificam; que não se deixam enganar pelo o
que é superficial, pois sabem que nas profundezas tudo se torna lei. Por esta razão,
Flaubert pode dizer, ‘Madame Bovary, c´est moi’; podemos entender o esnobismo dos
salões do final do século XIX mesmo esses não existindo mais; podemos compreender
porque apesar da gama de diferentes culturas que há no mundo, todas se fundam sobre
um mesmo princípio, o mecanismo vitimário; podemos perceber o jogo de espelho entre
79
o eu e o outro. Para partilhar dessas associações, uma experiência se faz necessária: a
experiência de morte. Talvez, a isso se pudesse resumir a literatura – uma iniciação,
uma educação para a morte. Morte do eu romântico que se diviniza ante os seus olhos;
morte das paixões; morte da juventude; morte do próprio corpo; morte de sonhos e de
fases da vida. A partir dessas mortes, a literatura surge como registro da presença da
ausência.
À luz de Proust, especialmente em O tempo recuperado, essas mortes podem ser
lidas pelo signo da ressurreição. Por meio de uma revolução estética em diálogo com
uma revolução espiritual e moral, Proust refaz, através do narrador Marcel, a saga que
cabe a todo homem: uma aprendizagem de si e dos outros. Através do reconhecimento
do mimetismo do desejo, o narrador reconhece a mentira do orgulho. Entende que
imitamos os outros a fim de nos parecermos originais aos outros e a nós mesmos.
Retorna a uma primeira subjetividade escondida sob a falsa idéia de autonomia e de
espontaneidade. Mostra que quando conseguimos nos reconhecer no outro ‘mau’ que
sempre acusamos e deixamos de crer na imagem de autossuficiência por nós mesmos
projetada, quando cessamos de confirmar nossa justiça nas rivalidades miméticas;
conseguimos perceber o tempo perdido em vazias querelas. Isso implica em uma
experiência de morte. Apenas quando se reconhece a queda, a falha, torna-se possível
uma redenção, um novo começo, um modo de recuperar o tempo. Por essa razão, Em
busca do tempo perdido termina no exato momento em que se propõe começar.
Narrando uma história de conversão, de uma mudança de perspectiva, o romancista
tenta reaver na arte aquilo que de alguma forma foi perdido na vida. Trata-se da busca
por uma segunda chance. Essa metamorfose Girard chama de experiência romanesca em
que a morte do herói permite o nascimento do romancista. Este, ao transformar seus
desenganos em matéria literária, faz do texto uma luta corpo a corpo contra o próprio
80
tempo, contra o esquecimento, vale dizer, contra a morte. Assim como Sherazade que
conta histórias para não morrer, o narrador de Em busca do tempo perdido faz da
história de si tantas mil e uma noites quanto forem necessárias. Um testemunho, um
saber que se encerra para além da ordem do tempo. Uma longa recordação que ‘faz-nos
respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado’108
Pergunto, então, se a literatura seria um retorno? Uma volta ao momento passado?
Proust diz que não, mas ‘alguma coisa que comum ao passado e ao presente, é mais
essencial do que ambos.’109 Uma promessa de eternidade, quem sabe. Uma possível
reconciliação. Penso que, para falar sobre esse assunto, a pessoa mais indicada é Pórcia
de O mercador de Veneza. Para com ela conversarmos, um breve retorno ao enredo da
peça faz-se necessário.
Pórcia é uma rica dama italiana à procura de um marido. Seu pai, no leito de
morte, decreta a seguinte condição para a escolha do esposo: Dentre três porta-jóias (um
do ouro, um de prata e um de chumbo) apenas um contém a foto de Pórcia, aquele que a
encontrar receberá permissão para desposá-la. Bassânio, um dos seus pretendentes, para
conseguir encontrá-la, recorre ao amigo Antônio, um comerciante ultramarinho de
Veneza, a soma de três mil ducados. Este, por ter investido seu dinheiro em um navio,
pede um empréstimo ao judeu Shylock que o faz assinar uma promissória onde acordam
o pagamento dentro de três meses, caso contrário, Antônio deverá pagar a dívida com
uma libra de sua carne. Decorrido o tempo previsto para o pagamento, Antônio não
consegue pagar a dívida devido ao naufrágio dos seus navios. Diante de tal situação,
cria-se um tribunal onde o judeu reclama o pagamento da libra de carne. Dentro desse
contexto, Shakespeare desenha, através da imagem do usurário judeu do imaginário
108
109
PROUST,1988, p.152.
Id. Ibid, p.153
81
antissemita do fim da Idade Média ( e da época moderna) e da figura idealizada de uma
Veneza cristã, a trama dos duplos na qual todos somos envolvidos. Durante a cena do
tribunal, Shyloc argumenta da seguinte forma:
Se nos fizeres cócegas, não rimos? Se nos deres veneno, não morremos?
E se nos ofenderes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos
iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu
ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão
ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o
exemplo cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me
ensinaste, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a
encomenda.110
Essa simetria é ao longo da peça afirmada das mais diferentes maneiras.
Shakespeare descreve Shyloc e Antônio como rivais de longa data. ‘Com freqüência
dizemos que essas pessoas possuem suas diferenças, mas esta expressão seria enganosa.
‘O conflito trágico (e cômico) se resume a uma dissolução das diferenças que é
paradoxal porque procede da intenção oposta’111. Todos querem ressaltar suas
diferenças. Por trás da esquisitice do pedido de Shyloc pela ‘libra de carne’, podemos
ler a crise de indiferenciação mimética em que dinheiro e pessoas, orgulho e humildade,
ganância e generosidade se confundem em uma Veneza onde judeus e cristão se
esforçam ao máximo para se diferenciar. Essa obsessão mimética se torna ainda mais
clara na cena em que Pórcia pergunta, ao entrar no tribunal: ‘onde está o mercador? qual
o judeu?’. Dentro dessa lógica, Shyloc é transformado, pelos demais venezianos que se
encontram no tribunal, em bode expiatório. A violência apresentada por este, ao cobrar
a libra de carne de Antônio, reflete a violência de um mundo, de uma Veneza, em que
seres humanos e dinheiro são trocados indistintamente. Uma violência comum que
precisa ser controlada, portanto, expiada. Shakespeare sabe que para esta expiação ser
110
111
SHAKESPEARE, 2007, p.73.
GIARAD, 2010, p. 458.
82
eficaz, ela deve ser unânime, por esta razão, nenhuma voz se levanta a favor de Shyloc
durante o julgamento. Como a criação do bode expiatório afeta cada vez mais as
pessoas, o contágio mimético torna-se avassalador, atingindo também a platéia e os
leitores da peça que não conseguem deixar de ver, na derrota de Shyloc, um pouco da
sua própria vitória também. É um curto-circuito mimético. Ancorada nos jogos dos
duplos miméticos e na violência a eles inerente, a peça aponta o caráter circular da
lógica da vingança própria desses conflitos. Como alternativa para sair desses círculos
miméticos, Pórcia, na cena do tribunal, nos apresenta o seguinte discurso:
A misericórdia é uma virtude que não se pode passar à força por uma
peneira, mas pinga como a chuva mansa cai dos céus na terra. É
duplamente abençoada: abençoa quem tem compaixão para dar e quem a
recebe. Poderosa nos poderosos, harmoniza-se com o monarca ao trono
melhor que a coroa. O cetro denota força do poder temporal, o atributo
real que inspira o respeito à majestade, fonte do temor e da reverência aos
reis. Mas a misericórdia está acima de qualquer movimento de cetro. Ela
tem seu trono no coração dos reis, é um atributo de Deus e um tributo a
Deus, é um poder mundano que se mostra divino... quando a misericórdia
vem temperar a justiça. 112
Na contramão da lógica da justiça, da lógica da recompensa, a misericórdia insere
o sujeito em outra ordem, purga-o de sua violência contida (sem precisar recorrer ao
expediente do bode expiatório), proporcionando uma espécie de metamorfose. Uma
transformação muito similar àquela proporcionada pela música. Um rompimento com a
ordem necessária da retribuição. Um rompimento com a ordem necessária do tempo.
Para receber a música como para receber a misericórdia, é preciso ter humildade; é
preciso respeitar o curso das coisas sem querer ser dele detentor. Transformação
semelhante a da experiência romanesca que, ao abolir o orgulho, nos pauta o eu e o
outro em contínua relação; afina e desvia, esteticamente, nossa percepção para o tempo
112
SHAKESPEARE, 2007, p. 104
83
e para as nossas contingências cotidianas, nos escrevendo em partituras um pouquinho
daquilo que chamamos de humanidade...
84
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94
7. ANEXOS:
ANEXO 1:
Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo o que não fosse o teatro e o drama
do meu deitar não existia mais para mim,quando num dia de inverno,chegando eu casa,
minha mãe, vendo-me com frio, propôs que eu tomasse, contra meus hábitos, um pouco
de chá. A princípio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando (...) E logo,
maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva do dia seguinte
igualmente sombrio, levei a boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um
pedaço de madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os
farelos de biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento, isolado, sem a noção de sua
causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida,
inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o
amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em
mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter
vindo essa alegria poderosa? (...) Bebi um segundo gole no qual não achei nada além
do primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de
parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está
nela, mas em mim. (...) Deponho a xícara e me dirijo ao meu espírito. Cabe a ele
encontrar a verdade. Mas de que modo? (...) Procurar? Não apenas: criar. Está diante
de algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua
luz.
E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não
apresentava nenhuma prova lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua
realidade, ante a qual as outras se desvaneciam (...) Peço ao meu espírito mais um
95
esforço, que me traga ainda a sensação que me escapa. (...) não sei o que é, mas aquilo
sobe devagar; experimento a resistência e ouço o rumor de distâncias atravessadas (...)
e de súbito a lembrança me apareceu (...). E logo que reconheci o gosto do pedaço da
madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia Leonie (embora não soubesse
ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança
me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o
quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava
para o jardim (...) e com a casa, a cidade, da manha à noite e em todos os tempos, a
praça para onde se passeava quando fazia bom tempo (...) e a boa gente da aldeia e
suas pequenas residências, e a igreja, e toda a Combray e suas redondezas, tudo isso
que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.113
ANEXO 2:
Sozinhas, elevando-se do nível da planície e como que perdidas em campo raso,
subiam para o céu as duas torres de Martinville. Em breve, observamos três: vindo
colocar-se à frente delas, numa volta ousada, uma torre retardatária, a de Vieuxvicq, a
elas se reunia. Os minutos passavam, andávamos depressa e, no entanto, as três torres
estavam sempre ao longe diante de nós, como três passarinhos pousados na planície,
imóveis, e que se distinguirem ao sol. Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, tomou
distância, e as torres de Martinville ficaram sós, iluminadas pela luz do poente que
mesmo a essa distância eu via brincar e sorrir em suas telhas. Tínhamos levado tanto
tempo a nos aproximar delas, de repente, tendo o carro dado uma volta, depositou-nos
a seus pés; e de modo tão áspero haviam elas se lançado contra o carro que mal
tivemos tempo de parar a fim de não nos chocarmos contra o pórtio. Prosseguindo o
113
PROUST, No caminho de Swann, 2004, p.51-53.
96
caminho, já tínhamos deixado Martinville há pouco, e a aldeia desaparecera depois de
nos ter acompanhado por alguns segundos e suas torres e a de Vieuxvicq ainda
agitavam, em sinal de despedida, os seus cumes ensolarados. Às vezes, uma delas se
apagava para que as outras duas pudessem nos ver um instante ainda; mas a estrada
mudou de direção, elas viraram na luz como três pivôs de ouro e desapareceram aos
meus olhos. Mas, um pouco depois, como já estivéssemos perto de Combray, já tendo o
sol se posto, avistei-as pela última vez, de muito longe, e não passavam de três flores
pintadas no céu acima da linha baixa dos campos. Faziam-me pensar também nas três
moças de uma lenda abandonadas numa solidão onde já caía a treva; e enquanto nos
distanciávamos a galope, vi-as procurando o caminho com timidez e, após algumas
oscilações hesitantes de suas nobres silhuetas, apertarem umas contra as outras, e
formarem no céu ainda róseo apenas um só vulto negro, charmoso e resignado, e se
apagarem na noite.114
ANEXO 3:
[Bergotte] morrreu nas seguintes circunstâncias. Por causa de uma crise de
uremia bem leve fora motivo para que lhe prescrevessem repouso. Mas, tendo um
crítico escrito que na Vista de Delf, de Vermeer (emprestada pelo museu de Haia para
uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e julgava conhecer muito bem,
havia um pequeno lanço de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado
era, se lhe fixassem o olhar, como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza
que se bastava em si mesma - Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e foi à
exposição. Logo aos primeiros degraus que teve de subir, sentiu umas tonteiras. Passou
diante de vários quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão
114
Id. ibid. p.152.
97
artificial, e que não valia as correntes de ar e os raios de sol de um palácio de Veneza,
ou de uma simples casa à beira-mar. Por fim chegou diante do Vermeer que ele
recordava ser mais cintilante, mais diverso de tudo o que conhecia, mas onde, graças
ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez em pequenos personagens em azul, e
que a areia era rósea, e, afinal, a preciosa matéria do pedacinho bem pequeno de muro
amarelo. Suas tonteiras aumentavam; não tirava os olhos do precioso pedacinho de
muro, como procede a criança com a borboleta amarela a que quer agarrar. - Assim é
que devia ter escrito - dizia. - Meus últimos livros são muito secos, seria preciso
passar-lhes diversas camadas de cor, tornar a minha frase precisa em si mesma, como
este pedacinho de muro amarelo. - Entretanto, a gravidade de suas tonteiras não lhe
escapava. Numa celeste balança lhe parecia, depositada num dos pratos, sua vida, ao
passo que no outro, continha o pedacinho de muro tão bem pintado em amarelo. Sentia
Bergotte haver dado imprudentemente o primeiro pelo segundo. – No entanto não
gostaria – disse consigo – de ser para os jornais vespertinos a nota sensacional da
exposição. – Repetia para si mesmo: ‘Pedacinho de muro amarelo com uma varanda,
pedacinho de muro amarelo.’ Nisso deixou-se cair num canapé circular; e subitamente
parou de pensar que a vida estava em jogo e,voltando ao otimismo, disse consigo: ‘É
uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não é nada.’Uma
nova crise o derrubou, fazendo-o rolar do canapé para o chão; acorreram todos os
visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá afirmar?
Certo, as experiências espíritas, não mais que os dogmas religiosos, não provam que a
alma subsiste. (...) Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrines
iluminadas, seus livros, dispostos de três em três, velavam como os anjos de asas
98
abertas e apareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo de sua
ressurreição.115
115
PROUST, A Prisioneira. 2004, p. 141-142.
99
ANEXO 4:
Jan Vermeer, Vista de Delf. Museu Mauritshuis, Haia
100
ANEXO 5:
Jan Vermeer, Vista de Delf (detalhe) Museu Mauritshuis, Haia
101
ANEXO 6:
Giotto, O juízo final, Capela dos Scrovengi, Pádua, Itália
102
ANEXO 7:
Sandro Botticelli, As filhas de Jetro (detalhe de As provações de Moisés), Capela
Sistina, Vaticano.
103
ANEXO 8:
A mãe. Pieter de Hooch. Berlin. Staatliche Museen. Preussischer Kulturbeisitz
104
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