Inquietações sobre a guerra às drogas
Diante do aumento de espaços diversos de debate e
problematização referente à política de drogas no país circunscreve-se
uma problemática de grande relevância à reflexão da categoria quanto
aos seus posicionamentos e os efeitos desses em nossas práticas.
Temos de um lado a emergência de projetos de lei de descriminalização e
regulamentação. De outro, propostas de endurecimento das penas e
consequências às pessoas que fazem uso ou produzem e comercializam
substâncias ilícitas. Tal problemática é pauta da Comissão de Políticas
Públicas (CPP) e o presente texto constitui algumas das inquietações e
reflexões oriundas das discussões realizadas na CPP acerca das políticas
sobre drogas, das lógicas proibicionistas, de combate e eliminação das
drogas e seus efeitos na sociedade.
Para início de conversa, é preciso deixar claro que a questão das
drogas é controversa. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
droga é qualquer substância que, não sendo produzida pelo organismo, tem a
propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo
alterações em seu funcionamento (WHO, 1981). Então, corroborados a partir
de uma perspectiva trazida a luz por Vargas (2008), abordamos a droga
significando que ela pode ser considerada tanto “substâncias que produzem
algum tipo de alteração psíquica ou corporal e cujo uso, em sociedades como a
nossa, é objeto de controle e repressão por parte do Estado” (p. 41-42), quanto
substâncias como o café, açúcar, chás e etc (consideradas alimentos), além
das que ordinariamente chamamos de medicamentos e fármacos.
A droga, enquanto um fenômeno social complexo, implica
múltiplos campos da esfera psicológica e social em que um determinado
sujeito está imerso. O historiador Henrique Carneiro (2014) aponta que, de
um ponto de vista antropológico, o uso de drogas/substâncias é um dos pilares
mais antigos da sociedade. É preciso lembrar que a droga sempre teve um
lugar social, desde as mais remotas tribos primitivas, sendo usada em
ritos de passagem, em cerimônias religiosas, e continua sendo usada
para estes e outros fins até hoje. Entretanto, os princípios que orientam as
leis do Estado brasileiro, ainda são os mesmos da International Narcotics
Control Board, selado na convenção da ONU de 1971. Neste documento é
desconsiderado o conhecimento e as tradições culturais de nações latinoamericanos, não reconhecendo especificidades culturais de povos indígenas e
afro-descendentes em seus usos ritualísticos de substâncias (Gil e Ferreira,
2008).
O psicólogo e membro da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai,
Augusto Vitale (2014), refere que as drogas são como qualquer outro objeto e
depende da forma como nos relacionamos com ela. No entanto, essa relação
vem sendo modificada ao longo dos anos, passando a fazer parte da
nossa cultura a busca do prazer no efeito de narcose que as drogas
proporcionam. Vitale também chama a atenção de que não existe uso de
substâncias (lícitas ou não) sem riscos. Mas, estes podem ser reduzidos
quando o usuário está consciente das consequências e possui informações
fidedignas sobre o que está fazendo. Podendo colocar-se em um papel de
responsabilidade sobre si, seus atos e decisões enquanto adulto.
Em o Mal-Estar na Civilização, Freud reconhece o lugar das
“substâncias embriagadoras” no social, como uma espécie de dispositivo na
busca por satisfação e felicidade, em que “indivíduos e mesmo povos inteiros
lhes assinalaram uma posição fixa em sua economia libidinal.” Com isso, Freud
confere às drogas, um lugar social, cujos efeitos, desde que devidamente
controlados, podem trazer até mesmo benefícios ao sujeito, como alívio e
refúgio das pressões da realidade.
Alguns saberes e discursos têm-se disseminado no senso comum,
a respeito do uso de drogas e a forma de lidar com estas. Domiciano
Siqueira (2010) aborda três possibilidades de interpretação, com
consequentes intervenções ao sujeito que faz uso de drogas. Na visão da
tradição religiosa, o uso de drogas se traduz como pecado, frente o qual a
expiação/conversão se oferece como resposta. A saúde, em uma visão
biomédica, vê o sujeito que faz uso de drogas como um doente, portador
da chamada Dependência Química, frente a qual a solução seria a Clínica
Psiquiátrica, visando à abstinência a partir da internação/isolamento do
sujeito. Por fim, na visão apresentada pela Justiça, a pessoa que usa
drogas é considerada alguém que cometeu um delito e, por isso, passível
de punição, inclusive anos de reclusão na cadeia. Esses três pontos de
vista (ainda muito presentes em nossa sociedade) indicariam os três
espaços/lugares para onde as pessoas que usam drogas são destinadas:
cadeia, igreja (comunidades terapêuticas) e hospitais psiquiátricos
(internações compulsórias, involuntárias etc).
Estes discursos têm em comum o fato de fomentar uma
generalização, sem diferenciação dos tipos de usos que se faz da droga,
ou seja, todos os usuários são tidos como “doentes”, “pecadores”,
“possuídos” ou “criminosos”. Contudo, todos nós, em algum momento
de nossa vida, fazemos uso de drogas. Desde o álcool que usamos em
ocasiões festivas, até as drogas receitadas no atendimento médico (as
quais, muitas vezes, são tão viciantes quanto substâncias consideradas
ilícitas).
Além disso, tais discursos trazem em seu bojo, visões moralizantes,
objetivantes e generalizantes tanto a cerca das drogas, principalmente as
ilícitas, quanto dos usuários destas, corroborando para uma visão reducionista
e preconceituosa, que além de não contribuir para a busca de alternativas ao
problema da dependência, acaba contribuindo com as rupturas subjetivas
provocadas pela exclusão, impedindo sua inserção no laço social.
Essa forma de ver a questão tem nos levado a um custo social muito
elevado. Como refere Corso (2012): “Abundam livros e reportagens sobre
drogas, mas raros convidam ao pensamento. As discussões costumeiras (...)
não ultrapassam o campo moral: nos posicionamos frente a ela como o
fazemos às diferentes formas de obter prazer”. Aliás, “as diferentes formas de
se obter prazer”, têm muito a ver com nossa relação com as drogas e, talvez
por isso mesmo, o preconceito seja tão grande.
Alguns autores (Ronzani, et. al., 2014) defendem que, não só há
diferentes tipos de usuários, como a forma que se estabelece o uso
problemático, também não obedece à mesma dinâmica. Neste caso, como
determinar uma única forma de lidar com estas singularidades?
Com isso, não estamos negando que alguns sujeitos têm problemas
com o uso que fazem de uma ou mais substâncias. A perspectiva psicanalítica,
por exemplo, entende que o uso problemático é um sintoma, que aponta para a
forma como o sujeito enfrenta seus conflitos psíquicos. Portanto, para além da
substância, o que deve prevalecer é a escuta ao sujeito, sua história e a forma
como se posiciona nas suas relações com o outro, seu semelhante, e o meio
social em que vive.
No texto de Freud, citado anteriormente, este reconhece que a busca de
refúgio nas substâncias, como uma das saídas para a pressão da realidade,
pode ser eficaz, mas também oferece riscos. Um destes riscos é o de que,
quando as relações com o outro desembocam em frustrações, por não suportálas, o sujeito acabe por “abolir” o outro, passando a relacionar-se
exclusivamente com a(s) substância(s), já que estas lhe trazem, ao menos
inicialmente, prazer, imediato e incondicional.
Quando se estabelece uma relação de exclusividade com uma ou mais
substâncias, podemos dizer que há uma relação de “dependência” em curso,
em que o sujeito entra numa dualidade tóxica, pois ao mesmo tempo em que
há uma satisfação das suas necessidades, ele se vê apartado de seu desejo,
uma vez que para além da substância, não consegue se realizar de forma
autônoma.
Ao apostar no ideal da abstinência, como única saída para o usuário
problemático, coloca-se a droga no centro das atenções, relançando-o na
mesma dualidade, uma vez que é sua dimensão subjetiva, sua posição de
sujeito, que fica eliminada, sendo tratado como objeto à mercê da vontade
alheia. Produz-se assim, uma identificação com o sintoma, entra-se na lógica
da dualidade entre dependência/independência idealizadas, criadas pela nossa
própria sociedade e em que o usuário dependente se vê preso.
Não se pretende, com isso, dizer que, em algumas situações, a
abstinência não possa fazer parte do projeto terapêutico. No entanto, nunca é
demais lembrar que, do ponto de vista ético, precisamos construir junto com a
pessoa, na relação terapêutica, as estratégias para o seu cuidado.
O uso abusivo/problemático de álcool e outras drogas vem
colocando em questão saberes constituídos e a forma como se organiza a
sociedade atual, sob um sistema capitalista globalizado. Tal sistema
contribui para a proliferação de discursos que se pretendem
hegemônicos e que produzem processos de subjetivação que criam
sujeitos dependentes, acima de tudo, do consumo e do imperativo do
prazer. As propagandas e a publicidade corroboram incentivando
compulsivamente os itens de consumo.
Se pretendemos enfrentar com seriedade a questão do uso
abusivo/problemático de drogas, não podemos deixar de levar em
consideração que vivemos num mundo que é intermediado não só por
substâncias lícitas ou ilícitas, mas por tecnologias e objetos de consumo.
É preciso questionar as políticas sobre drogas que visam à sua
eliminação do convívio social, pois como refere Corso (2012), “(...) uma
sociedade livre de drogas é, neste momento, nesse mundo competitivo e
ansioso, uma utopia ingênua. Vivemos numa sociedade fortemente
toxicômana e não nos reconhecemos como tal. O pai não dorme sem o
uísque e o Rivotril, a mãe toma antidepressivos há anos, o caçula não
estuda sem a Ritalina, mas o único errado é o filho que fuma maconha.
Temos remédios para dormir, para ficar acordado, para ficar mais focado,
para viabilizar a ereção, para calar a angústia, para driblar a depressão,
para não oscilar o humor, enfim, a lista é grande”. Isto significa
reconhecer que criamos uma sociedade em que o desafio é não
necessitar de nenhum tipo de substância ou objeto de consumo, para
lidar com a realidade!
É preciso manifestar que a lógica posta na “Guerra às Drogas”, ou a
guerra contra qualquer coisa, pressupõe a existência de um inimigo (algo ou
alguém “do mal”) que precisa ser combatido e eliminado. O que geralmente
vemos nestes processos é apenas o derramamento de sangue de milhares de
pessoas e pouquíssimos resultados eficazes ou transformações benéficas para
a humanidade. A guerra às drogas afeta toda a sociedade, usuários ou não. A
cada dia, mais pessoas são mortas ou encarceradas.
A legislação sobre drogas no Brasil é confusa e contraditória, abrindo
brechas que possibilitam a violação de direitos dos usuários. No debate “O que
a regulamentação da maconha muda na minha vida?”, promovido pelo CRPRS
no dia 14 de maio do presente ano, Salo de Carvalho apontou as contradições
existentes na lei nº 11.343/06 (que dispõe sobre o sistema nacional de políticas
públicas sobre drogas) quanto aos artigos 28 e 33. Penas que variam de
advertência a serviço comunitário contrastam com as penalidades mais
severas como respostas a ações muito semelhantes. Salo refere que a lei
11.343 ao enrijecer com relação ao tráfico e flexibilizar com relação ao porte
pessoal, iniciou um processo de descarcerização, o qual seria um processo
intermediário ao da descriminalização. Contudo, a lei não define critério
objetivo quanto ao que considera tráfico, problema também existente no Novo
código penal. O enquadramento em “tráfico” ou “porte pessoal” acaba
dependendo de interpretações subjetivas. Salo apontou ainda dados do estudo
(Jesus, 2011) realizado pelo núcleo de violências da USP, o qual constatou:
“Houve um grande aumento do número de presos por tráfico de drogas após 2006. Em
2009, um estudo com base em pesquisa de decisões judiciais, datadas de outubro de
2006 a maio de 2008, apontou que mais de 90% dos indiciados por tráfico de drogas
estavam na prisão enquanto seus casos eram julgados pelo Superior Tribunal de
Justiça. Destes, quase 67% não tinham antecedentes criminais (BOITEUX, 2009). O
estudo concluiu que a nova legislação não era eficaz para acessar os grandes
traficantes de drogas, já que a seletividade do sistema de justiça criminal recaía
apenas sobre os pequenos traficantes de droga, o mesmo que Raupp (2005) já havia
identificado quando estava em vigor a legislação anterior. Ou seja, a mudança
legislativa não impactou de forma significativa o combate ao grande tráfico de drogas,
permanecendo focado nos segmentos mais vulneráveis do comércio de drogas
ilícitas.” (Jesus, 2011)
A falta de clareza nas leis vigentes tem produzido encarceramento
massivo de milhares de pessoas que sequer tem algum papel fundamental no
sistema do mercado de drogas. Essas pessoas que usam drogas ao serem
condenadas e presas agregam mais estigmas, oriundos da passagem pelo
sistema penitenciário, com todas as suas consequências.
Continuando com relação a “Guerra as Drogas”, tomando para a
reflexão especificamente a maconha, a batalha é declarada contra um inimigo
que parece ser uma planta (ao menos no discurso), ou melhor, diferentes
espécies de plantas. A quem interessa banir/proibir o uso dessa planta?
Haveria interesses econômicos e ideológicos em jogo, como em toda guerra? E
se considerarmos que com relação à saúde, vem sendo descobertas novas
aplicações para o uso da maconha medicinal?
A lista de doenças que podem ser combatidas ou terem os tratamentos
complementados pela cannábis medicinal é extensa. O doutor Dráuzio Varella,
em sua coluna no jornal “Folha de São Paulo” do dia 12/07/14, aponta que a
maconha pode ser benéfica nos seguintes casos: glaucoma, náuseas
(causadas por tratamento de quimioterapia), anorexia e caquexia associada à
AIDS, dores crônicas, inflamações, esclerose múltipla e epilepsia. Os
pesquisadores Hazekamp e Grotenhermen (2010) endossam que os
canabinóides apresentam importante potencial terapêutico principalmente
como analgésico em dores crônicas neuropáticas, estimulante de apetite em
doenças desabilitadoras (como o câncer e AIDS), e em tratamentos para
fibromialgia. Joy, Watson e Benson (1999), também já haviam concluído que
existem indicações sobre o potencial terapêutico dos canabinóides para o alívio
de dores, controle de náuseas e vômito e estimulante de apetite. Entretanto, as
vias de administração mais adequadas da maconha medicinal ainda não estão
claras e se faz necessário aprofundar as pesquisas neste campo. Por último,
remetemos a dados levantados em nome da WHO (World Health Organization)
que sustentam que para os padrões de uso de drogas na sociedade Ocidental,
a cannabis representa um problema bem menos sério para a saúde pública do
que o tabaco e o álcool (Hall, Room, Bondy, 1995). Contudo, vale lembrar que
hoje com a atual lei sobre Drogas no país nem pesquisas sobre o tema são
autorizadas.
Por fim, a proibição das drogas tem sido o argumento principal para a
criminalização da pobreza e os consequentes extermínio e encarceramento
massivo da juventude pobre e negra. Os efeitos nocivos da lógica proibicionista
são visíveis. Criminalizadas, as pessoas ficam cerceadas da possibilidade de
refletir a relação que estão a estabelecer com a substância. Propostas de
regulamentação das drogas emergem como possibilidade de enfrentamento
dessa lógica.
No último Congresso Nacional da Psicologia1, a categoria afirmou o
compromisso de contribuir para a superação da lógica do proibicionismo e da
guerra às drogas. Em várias das teses deliberadas no CNP, a categoria
reafirma compromisso com a defesa dos princípios da Reforma Psiquiátrica e
da Redução de Danos e reivindica do Sistema Conselhos a mobilização frente
a política nacional de drogas pontuando a preocupação com as violações dos
Direitos Humanos realizadas sob a justificativa da segurança e da saúde
pública.
A Psicologia possui fundamental importância na constituição de um
debate que nos leve a pensar nos modos de relação que a sociedade
estabelece com as substâncias. Somos responsáveis por viabilizar espaços de
reflexão que propiciem esta discussão. Trata-se de uma pauta em permanente
problematização e reflexão. As questões abordadas demandam uma
mobilização contínua para a elaboração de ações estratégicas que visem à
defesa e implementação de uma política de álcool e outras drogas que respeite
os Direitos Humanos, à responsabilidade pública no cuidado com os usuários e
suas famílias e à realização de práticas norteadas pelo respeito à cidadania.
Tal mobilização é compromisso de cada profissional implicado com a
construção e qualificação das políticas públicas nos mais diversos espaços nos
quais atua. A CPP se propõe a ser apenas um desses muitos espaços
possíveis de articulação e intervenção.
Comissão de Políticas Públicas do CRPRS
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Download

Leia na íntegra o artigo "Inquietações sobre a guerra às drogas"