1 RUSSO EM O PENSADOR: REPETIÇÃO E AUTORIA Priscilla Maria Silva dos Santos1 RESUMO: RESUMO: Este trabalho em como objetivo compreender como se dão os processos de produção de sentido em músicas de autores da década de 80 e de 90 da música pop brasileira, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise do Discurso (AD), e como corpus as letras das músicas “Palavras Repetidas”, de Gabriel, o Pensador, e “Pais e Filhos” e “Monte Castelo” de Renato Russo. Os resultados mostraram que a repetição, não é um mero plágio, mas sim uma maneira de resignificar, e que sem repetição não há autor. Constatamos que a autoria em Russo, reformulou dizeres, o que produziu um movimento dos sentidos. Palavras-chave: Repetição; Autoria; Análise do Discurso. ABSTRACT: This work has as study object the repetition and authorship, having as reference a letter of music of “Gabriel, o Pensador” and as objective the analysis and understanding of as if of the a repetition, the authorship and as if they give the processes of felt production of in musics, in ours in case that, of authors of the decade of 80 and of we 90. We take as referencial theoretician the Discourse Analysis, and constitute as corpus the letter “Palavras Repetidas”, of “Gabriel, o Pensador” and letters of “Renato Russo”. The results had shown that the repetition, are not a mere plagiarism, but yes a way meaning. Being that the function-author is to the repetition and without this, it does not have author. Keywords: Repetition; Authorship; Discourse Analysis. 1 [email protected] 2 INTRODUÇÃO Fazer escolhas não é algo fácil na vida; às vezes, as fazemos guiados pelo coração, outras pela razão. A escolha do tema deste trabalho, foi guiada pelo coração. A indecisão sempre esteve presente em vários momentos da minha vida. Escolher sempre foi, e creio que sempre será, muito difícil. Porém, há uma certeza que permanece e sempre permanecerá, o gosto pela música e por suas letras. Foi assim que, ouvindo a música “Palavras Repetidas” de Gabriel, o Pensador, observamos que ela continha trechos de músicas como “Pais e Filhos”, do grupo de rock, Legião Urbana, que tinha Renato Russo como vocalista e principal compositor. Em “Palavras Repetidas”, ainda é possível observar que são feitas paráfrases das letras de “Monte Castelo” e de “Quase sem querer”, também de autoria de Renato Russo. Como pensar essas repetições e paráfrases? Teríamos mero transporte de significados de uma música para a outra? Como pensar a autoria de Russo e de Gabriel? Outro fato que chamou nossa atenção, assistindo na televisão um especial sobre Renato Russo, é que no início de sua carreira, ainda sob influência do movimento Punk, o som pesado se sobressaía, e suas letras não “apareciam” tanto, ou seja, a identidade que cada cantor imprime na letra de uma música e, também, o modo como uma letra é musicada - ritmo mais lento, mais rápido ou mais “pesado” -, produz efeitos de sentido diferentes. Se uma música é tocada com uma batida mais suave, a letra se sobressai. Mais uma vez a questão da repetição, a da presença do mesmo e do diferente, a da autoria apareciam como pontos interessantes para reflexão e análise no campo da linguagem, mais especificamente no campo da Análise do Discurso. Questões essas que, também, dizem respeito à prática pedagógica, em geral, e à criatividade e à originalidade das produções textuais dos alunos, em particular. Começava a se delinear, então, um tema de pesquisa, ou seja, o tema do trabalho de conclusão de curso: a repetição e a autoria em determinadas letras de música. Como o que Renato Russo disse em suas letras há alguns anos é retomado, re-significado por Gabriel, o Pensador? Este trabalho se propõe, assim, a compreender como se dão os processos de produção de sentido em músicas de autores da década de 80 e de 90 da música pop brasileira, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise do 3 Discurso (AD), e como corpus as letras das músicas “Palavras Repetidas”, de Gabriel, o Pensador, e “Pais e Filhos” e “Monte Castelo” de Renato Russo. DISCURSO E HISTÓRIA – SUJEITO E AUTOR A Análise do Discurso busca estudar o discurso, a prática da linguagem, e trabalha com a língua considerando os sentidos produzidos a partir do que é dito. É uma teoria e um instrumento de leitura e interpretação de texto, sendo que tal interpretação visa à compreensão de uma discursividade a partir do dito, tomado como estrutura, mas também como acontecimento: encontro de uma atualidade com uma memória (PÊCHEUX, 1990). A AD atenta para os processos de produção da linguagem, analisando a relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as condições em que é produzido o dizer, evidenciando que o dizer está situado historicamente. Conforme Orlandi (2005, p.17) “o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/ para os sujeitos”. Os momentos históricos vividos por Russo e Gabriel devem ser, pois, considerados como fazendo parte da significação: uma pista para pensarmos que a repetição não significa a presença do mesmo. Podemos pensar nessas condições, lembrando também o que nos diz Foucault (1996): Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (p.8-9) Conforme Pêcheux (1990, p.77), “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse”. E um dos fatores que faz parte do funcionamento destas condições é a relação de sentidos, onde um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis. Temos aí uma outra noção para pensarmos as repetições e paráfrases como parte do funcionamento discursivo. O discurso para a AD, não é, pois, apenas uma transmissão de informações, pois neste está contido a relação sujeitos e sentido afetados pela língua e pela história. É 4 efeito de sentidos entre locutores. Como efeito, indica que ele está em curso, movimentando-se, funcionando e significando, através do sentido entre/ por/ para sujeitos. Nos anos 60, na França, Michel Pêchex tomou como bases para constituição da Análise do Discurso: a Lingüística, o Materialismo histórico e a Psicanálise. A Análise do Discurso questiona a Lingüística por abandonar a historicidade na língua; questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico na história e se separa da Psicanálise, pela forma como é trabalhada a ideologia em relação ao inconsciente. Ao reunir tais campos de conhecimento quebra barreiras e produz um novo objeto de estudo, o discurso, unindo, assim, sujeito, língua e história. A noção de sujeito é central para a AD, como forma de romper com várias teorias dominantes que trabalham com um sujeito intencional, um sujeito psicológico, que controla e domina a linguagem, que é o senhor e a fonte de seu dizer. É importante ressaltar que para a AD, ao contrário, quando falamos em sujeito, falamos em posição de fala, não em indivíduos empíricos. Assim, no caso dos autores das músicas selecionadas para análise, não pretendemos trabalhar com os indivíduos empíricos, Gabriel e Renato, mas com as posições de fala ali presentes, enquanto parte das condições de produção de determinada discursividade. Queremos compreender como a autoria se modifica – ou não - pela e na repetição, pelos deslizamentos de sentidos que se dão na repetição do significante. O sujeito, na análise de discurso, é posição entre outras, subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso. Essa projeção-material transforma a situação social (empírica) em posição-sujeito (discursiva). Vale ressaltar que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, na articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a ideologia. (ORLANDI, 2001, p. 99) Estamos, neste trabalho, interessados em pensar a subjetividade, compreendendo o funcionamento da repetição em uma textualidade que tem um autor. Do que estamos falando, discursivamente, quando falamos em autor? Foucault (1996, p.26) define o autor “como o princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações”. Sendo assim, o texto criado pelo autor está sob responsabilidade do próprio autor, mesmo que o sujeito não seja a fonte do seu dizer. Conforme Orlandi (2007, p.69), expandindo a proposta de Foucault 5 para toda e qualquer produção textual, a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim. E mais. A função de autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular, no interior do formulável, e se constituir, com seu enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se constitua pela repetição, está é parte da história e não mero exercício mnemônico. (ORLANDI, 2007, p. 69 – grifo nosso) Russo e Gabriel não foram afetados pelos mesmos contextos históricos. A particularidade do autor está no fato de que apesar de não estabelecer a discursividade, ele produz um lugar de interpretação no meio dos outros. As repetições das letras de Russo em o Pensador evidenciam que, sem repetição, não há autoria. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer. Porque assume sua posição de autor (se representa nesse lugar), ele produz assim um evento interpretativo. O que só repete (exercício mnemônico) não o faz. (ORLANDI, 2007, p. 70) Essas questões nos remetem também à prática escolar de produção de texto, ou seja, ao discurso pedagógico, o que nos interessa particularmente como futura profissional de Letras. Podemos observar que desde o início da vida escolar, o aluno sente receio quando tem que produzir uma redação, fazer um trabalho escrito. Fato este, que se pode explicar, em parte, pela pressão imposta pela Escola que instrui o aluno a escrever algo coerente e supostamente inédito e único, e mostra a repetição como algo ruim ou errado. O que pode resultar em uma obstrução do desenvolvimento do aluno. Na Escola, o texto produzido pelo aluno não deve conter histórias nem sequer parecidas com outras já ouvidas ou lidas, e citar a fala de alguém que já tenha escrito algo sobre o mesmo assunto também não é adequado. É preciso que tudo seja criado pelo aluno, como se não houvesse intertextualidade, interdiscursividade, a partir de um grau zero. Como estamos vendo, esse funcionamento que norteia, muitas vezes, as práticas pedagógicas não criam condições para que o sujeito exerça a função de autor. A inscrição do dizer no repetível histórico (interdiscurso) é que traz para a questão do autor a relação com a interpretação, pois o sentido que não se historiciza é ininteligível, ininterpretável, incompreensível. Isto nos leva a afirmar que a constituição do autor supõe a repetição. (...) Mais extensamente podemos mesmo afirmar que o dizível é o repetível, ou melhor, tem como condição a repetição. Não porque é o mesmo, mas é o que é passível de interpretação: o que é passível de ser repetido, efeito de pré-construído (já dito) na relação com o interdiscurso. (ORLANDI, 2007, p. 70-71) 6 A repetição é parte da história e nela está inserida a função autor já que é impossível que o autor evite a repetição, pois é por meio dela que o enunciado faz sentido e é interpretável. É importante ressaltar que não estamos falando de toda e qualquer repetição. Orlandi (1998), trabalhando a questão da leitura na Escola, fala em três tipos de repetição: a empírica, a formal e a histórica, aquela em que se constrói a autoria. A repetição empírica caracteriza-se pela não historicização do saber/dizer: esta é a repetição onde o aluno repete sem saber o que está repetindo. Já na repetição formal produzem-se frases que somente organizam o saber/ o dizer, como por exemplo, quando um aluno repete determinado conteúdo com outras palavras. E por fim a repetição histórica, que produz um dizer no meio dos outros, inscrevendo o que se diz na memória constitutiva, produzindo um evento interpretativo. Como se dá essa historicização nas letras das músicas selecionadas? Como se produz o diferente na e pela repetição? Como acontece a autoria em Russo e Gabriel? É PRECISO AMAR AS PESSOAS COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ... Como dissemos, nosso corpus constituiu-se das letras de três músicas: “Palavras Repetidas”, de Gabriel, o Pensador, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo”, de Renato Russo. O texto, em AD, é a unidade de análise, o material empírico a partir do qual o analista efetua um trabalho para atravessar a opacidade da linguagem e atingir os processos discursivos ali presentes. O texto, portanto, não é o discurso. Mas, é no texto que encontraremos as pistas e vestígios para compreendermos como o discurso funciona e produz sentidos. “Palavras Repetidas”, de Gabriel, o Pensador, estrutura-se em três partes, havendo um refrão entre o primeiro, segundo e terceiro blocos, que repete os dizeres da música “Pais e Filhos”, de Renato Russo: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã / porque se você parar pra pensar na verdade não há.” A primeira vista poderia parecer que a única repetição que teríamos aí seria a retomada das palavras de Russo, como nós mesmo acreditávamos inicialmente. 7 Contudo, isso se desfaz, quando observamos os títulos das duas músicas. Não temos o mesmo referente nas duas músicas. Há na música de Gabriel uma menção explícita à repetição. Que palavras repetidas serão essas? Repetidas onde? Por quem? Para quê? Que pessoas serão essas a serem amadas em um caso e no outro? Como se constroem os sentidos? Como se historicizam? O primeiro bloco de “Palavras Repetidas” diz: A Terra tá soterrada de violência de guerra, de sofrimento, de desespero a gente tá vendo tudo, tá vendo a gente tá vendo, no nosso espelho, na nossa frente tá vendo, na nossa frente, aberração tá vendo, tá sendo visto, querendo ou não tá vendo, no fim do túnel, escuridão tá vendo no fim do túnel escuridão tá vendo a nossa morte anunciada tá vendo a nossa vida valendo nada tô vendo, chovendo sangue no meu jardim tá lindo o sol caindo, que nem granada tá vindo um carro-bomba na contramão tá vindo um carro-bomba na contramão tá vindo um carro-bomba na contramão tá rindo o suicida na direção “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã porque se você parar pra pensar na verdade não há.” O primeiro verso nos situa em relação ao tema: a violência, a guerra, o sofrimento, o desespero no planeta Terra. Há, pois, uma topicalização centrada no universal, em questões que têm uma escala planetária. E a Terra “está soterrada”, ou seja, “coberta de terra”, como diz o Dicionário do Aurélio (1975). Uma Terra coberta de violência, de guerra, de sofrimento, de desespero. O dito nos coloca em relação a um não dito. Ou seja, se temos a presença de uma indeterminação com a palavra “Terra”, temos a determinação presente na sua contraparte “terra”. Até que ponto podemos dizer que a violência, a guerra, o sofrimento, o desespero é o mesmo em todos os lugares do planeta? Em seguida, podemos observar como o autor vai construindo seu texto pela repetição, pelo deslizamento de sentidos em torno do verbo “ver”, a partir do sujeito “a gente” – nós –, que será em certo instante substituído por “eu” em: “tô vendo, chovendo sangue no meu jardim”. Além disso, o verbo “ver” e “vir” estão no gerúndio, indicando uma ação continuada, que não se extingue. Essa estruturação dos versos vai acompanhando o movimento e jogo da língua, que se constrói pela língua, evidenciando 8 a produção de sentidos e de sujeitos sempre em movimento provocado pela violência, pela guerra, pelo sofrimento, pelo desespero. Processos de individualização do sujeito que se produzem neste final de século. Conforme Costa (1999), nos anos 70, assaltos brutais, tráfico de drogas, extermínios, homicídios e chacinas, multiplicaram-se. A década de 80, apesar do fim do governo militar e a restauração do processo democrático, apenas aprofundou essa tendência. O autor diz: “a gente tá vendo tudo/ tá vendo a gente”. Qual seria o sujeito de “tá vendo a gente”? A gente? Teríamos, então, a gente tá vendo a gente. Ou seria ”tudo? Nesse desdobramento de um sujeito, temos também que “tá sendo visto, querendo ou não”. Há, pois, um olho em toda parte sobre o sujeito, mas também deste para com as coisas e com o outro. Uma vigilância constante como disciplinador da subjetividade. O grande “big brother” da sociedade moderna. E a este ver se contrapõe um vir. Ouvindo a música é possível notar que ao iniciar “tá vindo” e “tá rindo”, há uma alteração sonora na batida: ela fica mais intensa, pesada e acelerada. Gabriel, também, ao cantar, modifica a intensidade em sua voz nesses versos. A rapidez sonora nestes trechos é interrompida pelo refrão, e então o ritmo mais suave é retomado. tá lindo o sol caindo, que nem granada tá vindo um carro-bomba na contramão tá vindo um carro-bomba na contramão tá vindo um carro-bomba na contramão tá rindo o suicida na direção Na segunda parte da letra, a repetição já se dá de forma diferente. O que se repete? Não mais os verbos, mas certos substantivos, principalmente “erro”, . Vemos que a violência não é algo comum a algum tipo de classe, todos são englobados como participantes da violência, ou como espectadores ou como provocadores dela. Mostra que não somos somente vítimas da violência, mas também que somos causadores dela. Os erros são de todos e não de apenas uma pessoa, ou grupo específico, erros estes que são atribuídos, inclusive, a Deus. De acordo com Wellausen (2002), o terrorismo é fruto de novas relações de poder no mundo atual, do confronto entre poderes dominantes contra dominados. É difícil erradicar o terrorismo, pois ele habita o interior da própria sociedade. Na letra da música, no entanto, as relações de poder são apagadas e 9 transformadas erros pessoais, e temos Bin Laden e Carro-bomba como as personificações do terrorismo. A bomba tá explodindo na nossa mão o medo tá estampado na nossa cara o erro tá confirmado, tá tudo errado o jogo dos sete erros, que nunca pára 7, 8, 9, 10… cem erros meus, erros seus e de Deus também estupidez, um erro simplório a bola da vez, enterro, velório perda total, por todos os lados do banco do ônibus ao carro importado teu filho morreu? meu filho também morreu assaltando, morreu assaltado tristeza, saudade, por todos os lados tortura covarde, humilha e destrói eu vejo um Bin Laden em cada favela herói da miséria, vilão exemplar tortura covarde, por todos os lados tristeza, saudade, humilha e destrói as balas invadem a minha janela eu tava dormindo, tentando sonhar Na parte seguinte da música, vemos que é feita uma junção de letras de Renato Russo. Gabriel afirma que é um “grão de areia” assim como temos em “Pais e Filhos”, porém, em “Palavras Repetidas” Gabriel é um “grão de areia” no olho do furacão. Nos dois últimos versos deste bloco, ocorre o mesmo que no bloco anterior, há uma alteração na batida, uma aceleração e ela fica mais intensa, assim como a voz de Gabriel. Sou um grão de areia no olho do furacão em meio a milhões de grãos cada um na sua busca, cada bússola num coração cada um lê de uma forma o mesmo ponto de interrogação nem sempre se pode ter fé quando o chão desaparece embaixo do seu pé acreditando na chance de ser feliz eterna cicatriz eterno aprendiz das escolhas que fiz sem amor, eu nada seria ainda que eu falasse a língua de todas as etnias de todas as falanges, e facções ainda que eu gritasse o grito de todas as Legiões palavras repetidas mas quais são as palavras que eu mais quero repetir na vida? Felicidade, Paz, e… Felicidade, Paz, Sorte nem sempre se pode ter Fé, mas nem sempre 10 a fraqueza que se sente quer dizer que a gente não é forte. Nesta parte final da letra, vemos também que é feita uma modificação na pergunta, também usada na letra de “Quase sem querer”. Em “palavras repetidas”, ele menciona que as palavras utilizadas são repetidas e questiona: “mas quais são as palavras que eu mais quero repetir na vida?” Logo após ele responde: “Felicidade, Paz, Sorte”. “Em quase sem querer” Russo também admite usar palavras repetidas e faz a seguinte pergunta, sem respondê-la: “mas quais são as palavras que nunca são ditas?”. Analisemos, portanto essas duas perguntas. Ao deixar em aberto a questão “mas quais são as palavras que nunca são ditas?”, Russo deixa o leitor/ouvinte responder como achar melhor, ou não, a questão proposta. O leitor/ouvinte pode responder, como, quando e se quiser responder. Já Gabriel, responde à questão “mas quais são as palavras que eu mais quero repetir na vida?”. Com isso, ele delimitou, determinou ao leitor/ouvinte o que deve ser respondido. Analisando as questões vemos outra diferença entre elas. Renato Russo pergunta pelas palavras que “nunca são ditas”, e o Pensador pelas palavras que mais “quer repetir”. Assim, em “Palavras Repetidas” vimos a presença tanto da repetição de Russo em o Pensador, quanto a repetição na própria textualidade de Gabriel. Em “Pais e Filhos”,outra música do corpus, Renato Russo mostra os conflitos da relação entre pais e seus filhos e vice-versa, ou melhor, o desamparo do sujeito moderno. Observamos, ainda, que não se trata de situar esse sujeito numa generalidade abstrata como em Gabriel. E novamente podemos observar a presença da dúvida, da não resposta, da ambigüidade, da falha, do não-fechamento, que deixam as questões em aberto e produzem um outro efeito-leitor/ouvinte. Estátuas e cofres E paredes pintadas Ninguém sabe o que aconteceu Ela se jogou da janela do quinto andar Nada é fácil de entender. Dorme agora: É só o vento lá fora. Quero colo Vou fugir de casa Posso dormir aqui com vocês? Estou com medo Tive um pesadelo Só vou voltar depois das três. 11 Meu filho vai ter nome de santo Quero o nome mais bonito. É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã Porque se você parar para pensar, na verdade não há. Me diz porque o céu é azul Me explica a grande fúria do mundo São meus filhos que tomam conta de mim Eu moro com a minha mãe mas meu pai vem me visitar Eu moro na rua, não tenho ninguém Eu moro em qualquer lugar Já morei em tanta casa que nem me lembro mais Eu moro com os meus pais. É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã Porque se você parar para pensar, na verdade não há. Sou uma gota d'água Sou um grão de areia Você me diz que seus pais não entendem Mas você não entende seus pais. Você culpa seus pais por tudo E isso é absurdo. São crianças como você. O que você vai ser Quando você crescer? Esse efeito-leitor de que falamos é correspondente à função-autor em relação ao sujeito. A maneira como o autor textualiza, formula seu texto irá produzir possibilidades de sentido para o sujeito leitor. Assim, se o autor faz uma pergunta e deixa a resposta em aberto, por exemplo, há maiores possibilidades de movimentação dos sentidos. Nessa movimentação, é que o sentido pode ser outro, é que pode haver rupturas. Nessa movimentação é que podemos falar da incompletude da linguagem, como o lugar do possível. Podemos dizer, então, que o efeito-leitor da repetição em um e outro autor é diferente. Embora o refrão seja o mesmo não produz, pois, os mesmos sentidos, pois as condições de produção são outras; as formações discursivas em que se inscreve os textos são distintas. A década de 80, em que Renato passou sua juventude, foi tida como a “década perdida” devido à estagnação econômica e social. Época em que houve um enfraquecimento estudantil e um desaparecimento da juventude da cena política e, ao mesmo tempo, estávamos recém saídos da ditadura de 20 anos, vivendo o gosto de poder dizer. Por outro lado, a globalização, o consumismo, o individualismo ainda não 12 tinham avançado tanto, não era tão acentuados como será no final de século, época da geração de Gabriel. O ataque às torres dos Estados Unidos, com um sentido para terrorismo, daí advindo, irá marcar também essa geração do final do século, bem como a violência urbana acirrada pelo aumento dos desequilíbrios e desigualdades econômicas e sociais, internas e externas. Essas condições de produção, contudo, não explicam tudo, principalmente em se tratando de condições de produção imediatas, pois a diferença entre esses dois autores, em termos temporais é pequena, e nem sempre é possível delimitar bem as transformações na estrutura econômica e social, principalmente em um país desigual como o Brasil. Assim, é importante pensar que essas condições de produção imediatas estão marcadas por uma memória, pelo que chamamos de interdiscurso, ou seja, daquilo que já faz sentido em nós. Assim, como diz Orlandi (1998, p. 15), “o que funciona no jogo entre o mesmo e o diferente é o imaginário na constituição dos sentidos, é a historicidade na formação da memória”. O diferente estaria, então, que dadas as mesmas condições de produção (locutores e situação), haveria um deslocamento, um deslizamento de sentido Aí, estaria, parece, uma diferença na autoria de Russo e Gabriel. Conforme Orlandi (2005), é difícil traçar limites estritos entre o mesmo e o diferente. Sendo assim considera-se que todo funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e processos polissêmicos. Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação”. (ORLANDI, 2005, P. 36) Pensando nesses processos e na diferença de autoria, é que podemos observar o modo como Renato Russo produz um processo de retomada de outros textos. Em “Monte Castelo”, trechos de “I Coríntios 13” e do “Soneto 11” de Camões são parafraseados e unidos, construindo, por deslocamentos, o tema do amor. Na primeira parte da letra de “Monte Castelo”, vemos que há um trecho produzido a partir dos versículos 1, 2, 4, 5 e 6 de “I Coríntios 13”. Vejamos. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e a dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como o sino ruidoso ou como o címbalo estridente. 13 Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência; ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu não seria nada. O amor é paciente, o amor é prestativo; não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. (Versículos 1, 2, 4, 5, 6) Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria. É só o amor, é só amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece. (Monte Castelo) Nos últimos trechos desta letra, temos também. Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. (Versículo 12) Agora vejo em parte Mas então veremos face a face. (Monte Castelo) O soneto de Camões, diferentemente de como ocorre com “Coríntios”, é usado por inteiro. Mas se observarmos, o amor exposto por Camões não é o mesmo amor mostrado pela Bíblia. Para ele, o amor é sofrimento, inquietante e instável. Na Bíblia, o amor é paciente e suporta tudo, traz paz. Sendo assim, ao unir esse dois tipos de amor, Russo mostra as duas faces desse sentimento.Assim, “Monte Castelo” uniu e formou um texto sobre um outro referente, sobre um amor que não é nem o da Bíblia, nem o de Camões. Há, nesse caso, a transferência de sentidos, re-significação como trabalho da memória. É desse modo que, na análise do discurso, distinguimos o que é criatividade do que é a produtividade. A “criação” em sua dimensão técnica é produtividade, reinteração de processos já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade do mesmo.(...) Já a criatividade implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e com a língua. Interrompem assim sentidos diferentes. (ORLANDI, 2005, p. 37) 14 Russo recorreu a trechos de outras fontes, outros textos, como por exemplo, à Bíblia. E quem sabe, muitos, e muitos outros que nem possamos saber ao certo de onde são. Russo gostava de escrever cartas e fazer anotações. Em uma de suas falas no livro “Renato Russo de A a Z, encontramos a seguinte declaração: Faço anotações. Não sou original. Leio uma revista e anoto uma idéia que tem a ver com meu universo. Às vezes, também uso frases de filmes, como “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.(...) Escrevo todos os dias, e recorro às minhas anotações quando vou escrever uma letra. (Apud ASSAD,2000) Foucault (1996) argumenta que existem procedimentos de controle do discurso. E nos procedimentos internos temos o comentário. Para ele há um desnivelamento entre os discursos, pois alguns discursos repetem e comentam e outros são criadores. E em muitos textos os comentários tomam o primeiro lugar. Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente um comentário, o desnível entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são solitários. Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos (...) mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente. (FOUCAULT, 1996, p.2425) Assim podemos considerar que o texto primeiro onde o refrão de “Pais e Filhos”, está contido, é, ou não, a fala de um filme. E que por meio do texto segundo, a música “Pais e Filhos”, o comentário do texto primeiro no texto segundo tomou o lugar do texto primeiro, a fala do filme. E assim, se repete. Gabriel usa o refrão usado por Russo que, por sua vez, havia sido de um filme. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho permitiu que compreendêssemos um pouco mais sobre o nosso objeto de estudo - a repetição e a autoria -, e fôssemos exercitando, enquanto sujeito, a função de autor. Buscamos mostrar que o que é repetido, não é algo pejorativo, nem 15 significa falta de criatividade, mas é, sim, uma forma de reformular e re-significar o que dizer, produzindo um lugar forte, como o de Russo, de autoria. Com relação à repetição na escola, vimos que, é fundamental que o professor leve em consideração que a intertextualidade, interdiscursividade, existe e não trabalhe a produção textual como se o aluno devesse partir do zero. É preciso, portanto, alterar as condições de produção para que se criem possibilidades para o sujeito-aluno historicizar o seu dizer em meio a outros dizeres; trabalhando textos que tratem do assunto a ser desenvolvido na produção textual, trabalhando diferentes vozes no texto que irá produzir. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSAD, Simone. Renato Russo de A a Z: as idéias do líder da Legião Urbana. Campo Grande, MS: Letra livre, 2000. COSTA, M. R. da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? IN: São Paulo em Perspectiva. Vol.13, no. 4; São Paulo Oct./Dec. 1999. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001. ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2005. ORLANDI, E. P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes,2007. ORLANDI, E. P. Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites do simbólico. IN: Rua, nº 4. Campinas, SP: UNICAMP/ NUDECRI, março 1998, 9-19. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). IN: GADET, Françoise e HAK, Tony (orgs). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani...[et al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. WELLAUSEN, S. da S. Terrorismo e os atentados de 11 de setembro. IN: Tempo Social. 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