Inhumas, ano 1, n. 4, mai. 2013
ISSN 2316-8102
A PALAVRA SOBRE A PALAVRA: EM VIAS DE MATERIALIZAÇÃO
Ana Cristina Joaquim
Tales Frey (Cia. Excessos), frame de Um livro de cabeceira ou meu cérebro na página doze, 2009
Muito já se falou a respeito da palavra, da palavra como sua própria referência, da
rede de palavras que se definem única e exclusivamente na relação entre si (palavras em
relação a palavras). O mundo das palavras é, por fim, decretado universo autônomo, o lugar
em que habitamos e nos (re)fazemos, nós, seres (cristãos?) fundados pela palavra: “No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio
com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele”. (João 1:1-3)
Muito já se disse acerca do papel e dos desenvolvimentos da palavra, e as teorias da
linguagem mais recentes, agora de forma laica, o atestam, seja no desenvolvimento da
ciência dos signos, na esteira de Saussure, seja no desenvolvimento da hermenêutica
moderna, na esteira de Paul Ricoeur. Na ordem do dia, são apresentados os inúmeros
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discursos que rompem com aquilo que se denomina ilusão da referencialidade, isto é,
tornou-se obsoleta a velha crença na teoria de que a necessidade da palavra se justificaria
devido a sua função de “apontar o dedo” para o mundo da matéria, das coisas tangíveis.
Sabe-se, por exemplo, que os esquimós têm um gama enorme de palavras para diferenciar
as diversas tonalidades daquela cor que, na maior parte das línguas latinas e germânicas, é
única: o branco. Tal exemplo torna evidente o fato de que uma língua (um idioma) é sempre
um recorte sobre o mundo, e este mundo, por sua vez, só pode ser lido com base nas
determinações que cada língua oferece. Ora, seguindo essa linha de raciocínio, nada
dizemos sobre o mundo de fato, mas apenas dizemos sobre o mundo que criamos – e o
criamos mediante as palavras, imersos nas palavras, que adquirem autonomia nesse
contexto teórico.
Arnaldo Antunes, assim como os demais poetas circunscritos no movimento literário
concretista, é, sem dúvida, um dos arautos desse ponto de vista, o que se torna bastante
evidente em “Momento I”, mote para Um Livro de Cabeceira ou Meu Cérebro na Página
Doze, videoarte concebida, dirigida e editada pelo artista Tales Frey, com Paulo Aureliano da
Mata e Tânia Dinis no elenco.
Dando um salto em relação ao que dissemos há pouco sobre as recentes teorias da
linguagem, com ênfase no aspecto da autonomia linguística (salto dado pela própria
concepção de Tales Frey na videoarte em questão, como mostraremos a seguir), poderíamos
pensar – levando às últimas consequências a concepção da palavra autônoma – na palavra
matéria, na palavra corpo, na palavra encarnada. É o que parece pôr em evidência a
videoarte de Tales Frey: não apenas as palavras são pronunciadas por dois corpos
visualmente expressivos (o masculino e o feminino, a portuguesa e o brasileiro – só para
citar o jogo de oposições aqui presente), como as palavras são elas mesmas corpos. Nisso
reside a inovação: pestana, cílio, colo, anca, rabo, bunda, panturrilha, nariz, joelho, testa,
língua, cotovelo, peito e por aí vai o inventário das partes desse corpo feito em palavras de
“dois idiomas portugueses” (em que pese as polêmicas a esse respeito!). Não só: também
nos é oferecido o corpo em silêncio, os corpos mudos, sem língua idiomática qualquer.
Ao fim, os corpos em silêncio resultantes da materialidade das palavras, a sugestão
da escuta na leitura dos lábios/palavras, PALAVRAS, PA-LA-VRAS, palavras encarnadas. Os
performers são o veículo das palavras nesse momento final do vídeo, são como atores que
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interpretam (encarnam) as próprias palavras e o são em silêncio, assim como a palavra que
prescinde do ruído e se encerra na sua própria corporeidade.
PARA CITAR ESTE ARTIGO
JOAQUIM, Ana Cristina. “A Palavra sobre a Palavra: Em Vias de Materialização”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 1, n. 4, mai. 2013. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2013 eRevista Performatus e a autora
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