1 Deleuze Internacional A MARAVILHA DE VÁRIAS ENTRADAS Entrevista com Roberto Machado1 por Wolfgang Pannek DI: O que o levou a fazer pós-doutorado sob a supervisão de Deleuze, e em que consistia seu foco de trabalho naquele período? Como percebia Deleuze pessoalmente e como supervisor de seu trabalho? Roberto Machado: Fiz um pós-doutorado sob a supervisão de Deleuze, entre 1985 e 1986, porque queria escrever um livro sobre ele, e em Paris podia me dedicar integralmente a esse trabalho, longe das tarefas acadêmicas. Não estava, propriamente, buscando sua orientação. Deleuze sempre foi muito delicado e atencioso comigo, quando o procurei. Mas o mais importante para mim naquele momento era poder me dedicar a ler seus livros e a aprofundar o conteúdo de suas aulas. Segui grande parte de seus cursos de 1973 a 1980, época em que ele preparava, com Guattari, Mille Plateaux. Eram cursos extraordinários, com gente de todas as áreas: filósofos, psicanalistas, romancistas, gente de televisão, atores, cineastas... Deleuze era 1 Roberto Machado é Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e professor títular aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele é o autor, entre outros, de Zaratustra, tragédia nietzschiana (1997), Nietzsche e a verdade (1999), Foucault, a filosofia e a literatura (2000), O nascimento da tragédia: de Schiller a Nietzsche (2006), Foucault, a ciência e o conhecimento (2006) Deleuze, a arte e a filosofia (2009). Machado traduziu Diferença e Repetição (com Luiz Orlandi, Graal, Rio de Janeiro, 1988) e Proust e os signos (Forense Universitário, Rio de Janeiro, 2003) por Gilles Deleuze, e Microfísica do Poder de Michel Foucault (Graal, Rio de Janeiro, 1999), entre outros. 2 um grande professor. Alguém que trazia um esquema de aula manuscrito, fruto de longa preparação, e o desenvolvia com calma, descontração e muitos exemplos, tudo feito com humor e consideração pelos alunos, muitos dos quais nunca haviam estudado filosofia. Seus cursos tinham a intensidade de um show de música. E encantavam pelas sugestões que davam, possibilitando que muita gente se apropriasse de suas ideias para alimentar seu próprio pensamento, pensar suas próprias questões em diversas áreas. Mas o que desejei fazer foi algo diferente. Escrevi sobre Deleuze porque, apesar da importância que suas ideias e suas atitudes tiveram para mim, e para muitos outros, seu pensamento é extremamente difícil e ainda profundamente enigmático. Sentia que estávamos maravilhados com o que ele dizia, mas compreendíamos superficialmente sua filosofia. Procurei então investigar em que consiste sua filosofia de um modo geral, o que é o sistema deleuziano de pensamento, e sobretudo qual é o procedimento que lhe permite criar seus conceitos, o que talvez pouca gente – até mesmo hoje, e até mesmo quem gosta dele – saiba. Trata-se, assim, de um livro voltado para o exercício de seu pensamento, que pretende explicitar como ele cria os conceitos de sua filosofia da diferença utilizando um modo bastante original – porque está sempre criando a diferença – de se apropriar do pensamento de filósofos, artistas e literatos privilegiados por ele como bons instrumentos para realizar esse objetivo. E, a esse respeito, o curso que ele deu naquele ano – sobre Foucault – foi decisivo, porque, sendo Foucault um filósofo que eu tinha estudado bastante e com quem tinha convivido por muitos anos, esse conhecimento permitiu que eu compreendesse não só como Deleuze construía sua interpretação do pensamento dele, mas também como sua maneira de interpretar Foucault era semelhante ao modo como ele lia outros pensadores, filósofos ou não. DI: Seus estudos com Foucault e Deleuze ocorreram durante o período do regime militar brasileiro. Qual foi o impacto do pensamento desses autores (sobre o poder, estado, liberdade e criação) para sua percepção de uma possível transformação política no Brasil? RM: Quando comecei a estudar Foucault e Deleuze, no inicio dos anos 1970, já tinha uma posição crítica e militante contra a ditadura militar brasileira, que se instaurou em 1964. Ao mesmo tempo, me interessava por Marx e pela crítica marxista do capitalismo, e gostava das ideias de Althusser, filósofo marxista admirado por Foucault e Deleuze, embora bem diferente deles. Nesse contexto, fui profundamente marcado pela relação intrínseca que há entre os pensamentos deles e a política, que me pareceu mais eficaz do que a estabelecida por Althusser. Sempre gostei da maneira como Foucault e Deleuze estavam vinculados a lutas concretas que ultrapassavam os muros da universidade, não apenas pensando revolucionariamente a sociedade em que vivemos, mas também tomando parte em movimentos visando transformá-la. Menos ou mais discretamente, Foucault e Deleuze eram dois grandes militantes intelectuais. Deleuze, que pode parecer alguém menos 3 engajado politicamente do que Foucault, era bastante comprometido com as questões que o mundo vive atualmente e às quais dava respostas originais e muito sugestivas. Fui tocado pela maneira como pensou o socialismo e o capitalismo, a questão palestina, a importância do chamado terceiro mundo, o movimento de maio de 68, as minorias, as drogas etc. Foucault me possibilitou pensar os mecanismos de controle, os micropoderes, a disciplina, a governamentalidade etc. Pois foi inspirado nas ideias de Foucault da década de 70 que, depois de ler sua História da loucura e seguir seu curso sobre o poder psiquiátrico, escrevi, com mais três amigos, um livro chamado Danação da Norma, que relacionava as teorias e as práticas da medicina social e da psiquiatria, desde o seu nascimento no século XIX, com a questão do poder no Brasil. E foi uma alegria notar que essa pesquisa não só inspirou várias teses universitárias, mas também funcionou como instrumento em muitas lutas anti-institucionais. Mas não acredito que os pensamentos de Deleuze e de Foucault tenham sido utilizados especificamente contra a repressão brasileira. E em todos os contatos que tive com Foucault, durante suas vindas ao Brasil no período da repressão, jamais o ouvi, por mais que tivesse sido interpelado, utilizar suas análises teóricas para dizer o que deveria ser feito contra a ditadura. A esse respeito, ele repetia invariavelmente: “Isso só vocês podem saber!” Mas não tenho dúvida de que ele era viceralmente contra as ditaduras. E, entre todas as qualidades que possuía a generosidade, a inteligência, a lucidez etc., a que eu talvez mais admire é o destemor: a coragem de usar o corpo e a fama para denunciar os poderes estabelecidos. Como no caso do assassinato do jornalista Wladimir Herzog pelo governo brasileiro em outubro de 1975, que o Serviço Nacional de Informações (SNI) dizia que tinha sido suicídio. Nessa ocasião, Foucault, que dava um curso sobre a história da sexualidade na Universidade de São Paulo, interrompeu suas aulas e, solidarizando-se com as manifestações contra o regime militar que esse fato suscitou, deu uma declaração pública de que não ensinava em países onde jornalistas eram torturados e mortos nas prisões, na esperança de ser expulso do Brasil e dar uma dimensão internacional ao acontecimento. DI: Em sua extensa produção filosófica percebe-se a recorrência do triangulo Nietzsche-Foucault-Deleuze. A seu ver (e caso que sim em que sentido), esses autores possibilitam uma alternativa ao pensamento político crítico de maior tradição no Brasil, p.ex. às correntes de orientação socialista e marxista? RM: Se fui, por exemplo, tocado pela crítica do capitalismo de Marx, pela teoria do niilismo de Nietzsche, pela noção de poder em Foucault, ou pelo conceito de diferença em Deleuze, foi pela possibilidade que isso trazia de criticar o mundo em que vivemos e pensar formas alternativas de vida. E se você observar os livros que escrevi verá que todos eles pretendem salientar como os filósofos que estudei podem contribuir para que se pense uma alternativa às formas de poder existentes nas sociedades modernas. As filosofias de Nietzsche, Foucault e Deleuze – três autores relativamente marginais nos 4 cursos de filosofia no Brasil – foram certamente as que mais me marcaram e, por isso, aquelas a que mais me dediquei. Com relação a Foucault, fiquei deslumbrado com aquele pensador que estava sempre disposto a pensar diferente do que pensara, quando novas evidências o levavam a seguir em nova direção. Foucault foi o filósofo mais livre que conheci. Depois descobri que essa qualidade lhe vinha de Nietzsche, filósofo que mal escrevia um livro já se perguntava se não haveria uma maneira mais radical de falar sobre os mesmos temas. Acho que fui profundamente marcado por esse desejo, que também é o de Deleuze, de escapar dos modelos de identidade, elaborando um pensamento que privilegie a diferença. Gosto do diagnóstico de Nietzsche a respeito do niilismo moderno e sua explicação como vontade negativa de potência. Gosto da análise crítica feita por Foucault dos saberes sobre o homem na modernidade e dos mecanismos do poder político. Gosto da maneira como Deleuze valoriza no pensamento, filosófico ou não, o privilégio da diferença sobre a identidade. Mas não me considero nietzschiano, foucaultiano ou deleuziano, porque, se eles são filósofos da singularidade – como Nietzsche, o principal inspirador deles –, não tem sentido transformar seus pensamentos em método ou doutrina universal e querer pensar como eles. Vejo-os mais como instrumentos ou óculos que podem ser usados ou não para o que me interessa ver ou fazer. E, a meu ver, os pensamentos de Foucault e Deleuze são alternativas não propriamente ao marxismo, ou ao socialismo, mas à falta de perspectiva de muita gente depois do fim do socialismo real. No Brasil são pessoas de esquerda, ou que se consideram revolucionárias que se interessam por Foucault e Deleuze e utilizam seu pensamento. DI: Como enxerga a evolução da recepção de Deleuze no meio cultural brasileiro? RM: Há alguns anos havia desinteresse, ou desprezo, por um filósofo como Deleuze nos meios acadêmicos brasileiros. Mas isso é bastante explicável. Ele provém, em parte, de se pensar que só é possível filosofar em alemão, ou em inglês, o que leva a um menosprezo pela filosofia francesa. Ele também provém de o estilo de Deleuze ser bastante marcado pela literatura, a ponto de não considerar incompatível o rigor conceitual de seus livros com a beleza do texto, o que faz com que, sendo bastante difíceis de ler, alguns se desinteressem deles e outros os repitam sem saber exatamente o que eles estão dizendo. Ele provém ainda de que, utilizando a história da filosofia para pensar filosoficamente, mas também articulando o discurso filosófico com a literatura, as artes, as ciências, a política, Deleuze ousa pensar por si mesmo, criando novos conceitos. E ele provém, talvez antes de tudo, de que Deleuze é profundamente marcado pela suspeita que Nietzsche ousou formular a respeito de temas importantes da modernidade, temas que até hoje são aprofundados na Universidade através da dialética, do neopositivismo, da fenomenologia, da filosofia analítica... Mas em grande parte isso já é coisa do passado. Basta pensar no número de teses que são orientadas sobre ele nas 5 universidades, na grande tiragem de seus livros, no sucesso dos congressos organizados sobre ele. É que cada vez mais se compreende que a Universidade deve ser o lugar por excelência do pluralismo, e que a maravilha da filosofia é que ela tem várias entradas. E não é pelo fato de se ter escolhido uma que se deve fechar todas as outras. DI: Pensando na relação entre as produções filosóficas de Nietzsche e Deleuze, em que sentido pode-se dizer que Deleuze levou Nietzsche a uma nova dimensão? RM: Se Deleuze é um grande intérprete de Nietzsche, é porque pensa sua filosofia como uma ontologia da diferença. A ideia central, e bastante original, de sua interpretação é a seguinte: a vontade de potência é um princípio diferencial, ou um diferenciador da diferença, uma sensibilidade diferencial das forças, e o eterno retorno é o pensamento capaz de criar a vontade de potência como positividade, como forma superior, porque torna possível pensar diferencialmente a diferença. Isso leva Deleuze a caracterizar a filosofia de Nietzsche como uma ontologia em que a questão do ser e do devir é pensada pela relação entre o eterno retorno e a vontade de potência. Deste modo, o eterno retorno é o ser unívoco que se diz do devir ativo das forças ou da vontade de potência, é o revir, o retorno produzido pelo limiar de intensidade ou pelo estado de excesso da diferença. Ora, na base da interpretação deleuziana da vontade de potência está a distinção entre vontade e força que, a meu ver, é uma “torção” feita por Deleuze para ajustar o pensamento de Nietzsche a seu próprio projeto de pensar a diferença. Uma torção, como existem tantas não só em sua leitura de Nietzsche, mas em todas as leituras que realizou de filósofos, artista e literatos, e que é um aspecto essencial de seu procedimento de colagem, ou de seu teatro filosófico. O que mostra que Deleuze não é propriamente um historiador da filosofia, mas um filósofo que repete o texto de outro pensador não para buscar sua identidade, mas para afirmar sua diferença ou falar em seu próprio nome usando o nome de outro, integrando-o à sua própria construção filosófica. Neste caso, se a leitura que Deleuze faz de Nietzsche é singular, original, ou produz a diferença é porque ela se harmoniza perfeitamente com um dos princípios que orientam tanto suas leituras dos pensadores em geral quanto sua própria teoria sistemática do exercício do pensamento: a distinção entre o empírico e o transcendental, que lhe possibilita conceber a ideia de gênese, e, no caso específico de Nietzsche, a força como sendo empírica e a vontade como transcendental, isto é, como princípio diferencial e genético das forças. O que também significa que, numa inspiração profundamente kantiana, Deleuze explicita a relação nietzschiana entre vontade de potência e eterno retorno nos termos da relação entre sensibilidade e pensamento, considerando a vontade de potência como o devir sensível ou a sensibilidade diferencial das forças e o eterno retorno como o pensamento mais elevado ou mais abissal. Ora, se isso é o essencial de sua interpretação, levar Nietzsche a uma nova dimensão, como você diz, significa, para Deleuze, tomá-lo como um personagem de seu teatro filosófico, 6 torná-lo um filósofo deleuziano. O que Deleuze sempre faz. E é o diferencial de seu pensamento.