1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA GRADUAÇÃO EM DIREITO O DIREITO SUCESSÓRIO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS Aluna: Maria Cristina de Moura Orientadora: Karla Neves Faiad Moura BRASÍLIA 2007 2 MARIA CRISTINA DE MOURA O DIREITO SUCESSÓRIO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS Monografia apresentada à Banca examinadora da Universidade Católica de Brasília, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharelado em Direito sob a orientação da Prof.ª Karla Neves Faiad Moura. Brasília 2007 3 MARIA CRISTINA DE MOURA O DIREITO SUCESSÓRIO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS Monografia apresentada à Universidade Católica de Brasília como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Karla Neves Faiad Moura. Aprovada pelos membros da banca examinadora em ___/___/___, com menção ___________ (_________________________________________________). Banca Examinadora: ____________________________ Presidente: Profª. Karla Neves Faiad Moura Universidade Católica de Brasília ____________________________ Integrante: Prof. Ângelo aurélio g. Paris Universidade Católica de Brasília ____________________________ Integrante: Profª. Carolina Petrarca Universidade Católica de Brasília 4 Dedico este trabalho a minha família, especialmente a meus queridos pais, que são meu alicerce, meu norte. 5 Agradeço à minha querida professora Karla pelo apoio e paciência, à minha irmã, Cynthia, pela preciosa companhia nas noites de trabalho, ao meu irmão Rodrigo e minha cunhada Nairla por todos os momentos de apoio e por último, mas não menos importante, a Deus, por me proporcionar pessoas tão especiais ao meu convívio. 6 “ÉPOCA TRISTE É A NOSSA QUE É MAIS DIFÍCIL QUEBRAR UM PRECONCEITO DO QUE UM ÁTOMO”. – Albert Eistein. 7 RESUMO MOURA, Maria Cristina de. O Direito Sucessório nas Relações Homoafetivas. Trabalho de conclusão de curso de graduação. Faculdade de Direito. Universidade Católica de Brasília. Local da defesa: Campos de Taguatinga, ano 2007. A presente pesquisa visa estudar a possibilidade de equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis, no tocante ao Direito Sucessório. Busca-se uma solução para o impasse travado na jurisprudência, sobre quais direitos deverão ser assegurados, em virtude da omissão legal.Trata-se de um tema polêmico, pois vivemos em uma sociedade ainda bastante preconceituosa, que acredita que concordar com a união homoafetiva é incentivar e fazer com que elas se multipliquem.A doutrina posiciona-se no sentido de não reconhecer o instituto, embora uma parte minoritária seja totalmente a favor do reconhecimento. Este trabalho busca fazer uma correlação entre a evolução do concubinato até o reconhecimento da relação como União Estável, hoje amparada pela legislação, e a Relação Homoafativa, que vem percorrendo o mesmo caminho na busca pelo reconhecimento e amparo legais. A homossexualidade é tão antiga quanto o concubinato e impertinente o preconceito nesse momento de nossa história. O Estado não pode invadir a vida privada, ou melhor dizendo, a vida íntima das pessoas para dizer que tipo de afeto é legal, permitido. A Carta Magna acolhe a pessoa na plenitude de sua dignidade em consonância com a proteção aos direitos fundamentais da personalidade, invocados no artigo 5º e no Capítulo VII, que regulamenta a família, apesar de não explícita em relação aos homossexuais. Este trabalho visa, tão somente, trazer mais uma vez a discussão sobre o direito à diferença. Sobre Princípios Constitucionais, que são a base do nosso ordenamento jurídico que muitas vezes deixam de ser observados pelas pessoas que mantêm relações homoafativas e que merecem respeito como todo e qualquer cidadão. Palavras-chave: União Homoafetiva – Direito Sucessório – União estável – Família. 8 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Abreviaturas Art. – Artigo Arts – Artigos C/C – Combinado Com N.° - Número Siglas CF – Constituição Federal CC – Código Civil LICC – Lei de Introdução ao Código Civil Resp – Recurso Especial STJ – Superior Tribunal de Justiça STF – Supremo Tribunal Federal TSE – Tribunal superior Eleitoral 9 LISTA DE SÍMBOLOS % - sinal de percentual matemático § - parágrafo 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ________________________________________________13 Capítulo 1- ESTADOS DE FAMÍLIA _______________________________16 1.1Princípios Constitucionais e Relações Familiares ___________________________ 1.2. A Repersonalização das Relações Familiares _____________________________ 1.3 O Atrigo 226 da Constituição Federal de 1988 ____________________________ 1.4. O Casamento ______________________________________________________ 17 21 23 28 1.4.1 Características, Finalidade e Pressupostos __________________________________ 29 1.5 União Estável ______________________________________________________ 31 1.5.1 Natureza Jurídica da União Estável. Elementos Constitutivos ___________________ 32 Capítulo 2- UNIÃO HOMOAFETIVA – POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO___________________________________________ 37 2.1 O Não Reconhecimento ______________________________________________ 2.2 O Reconhecimento __________________________________________________ 2.3. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana _______________________________ 2.4 Princípio da Igualdade _______________________________________________ 37 39 47 49 Capítulo 3- O DIREITO DAS SUCESSÕES __________________________51 3.1 Disposições Gerais __________________________________________________ 51 3.2. A Sucessão dos Companheiros no Código Civil Brasileiro de 2002 ___________ 56 Capítulo 4- O DIREITO SUCESSÓRIO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS______________________________________________ 61 4.1 O Direito Sucessório Homoafetivo _____________________________________ 4.2 União Estável e sua Comparação com a União Homoafetiva _________________ 4.3 Competência para Julgamento _________________________________________ 4.4 Projetos de Lei em Tramitação _________________________________________ 61 63 65 69 CONCLUSÃO__________________________________________________70 REFERÊNCIAS ________________________________________________73 13 INTRODUÇÃO A presente pesquisa visa estudar a possibilidade de equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis, no tocante ao Direito Sucessório. Busca-se uma solução para o impasse travado na jurisprudência, sobre quais direitos deverão ser assegurados, em virtude da omissão legal. Será, portanto, analisada a união homoafetiva como um todo, desde sua origem histórica até a atualidade, demonstrando a evolução e o crescimento do instituto. Trata-se de um tema polêmico, pois vivemos em uma sociedade ainda bastante preconceituosa, que acredita que concordar com a união homoafetiva é incentivar e fazer com que elas se multipliquem. A doutrina posiciona-se no sentido de não reconhecer o instituto, embora uma parte minoritária seja totalmente a favor do reconhecimento. Muito importante será a pesquisa na jurisprudência, que ainda não foi consolidada, pois em virtude da falta de amparo legal, os Tribunais tiveram que se posicionar, tendo em vista que a sociedade não poderia ficar desamparada. Afinal, “estar à margem da lei não significa ser desprovido de proteção nem impede a busca da tutela jurídica” 1. O presente trabalho tem por objetivo fazer uma analogia entre relações homoafetivas e União Estável Heterossexual, demonstrando ter os homossexuais os mesmos direitos que os heteros. ______________ 1 BORGES, Camila Oliveira. Os direitos da parceria civil homossexual. In Temas polêmicos de direito de família, Coordenadores Cleyson de Moraes Mello e Thelma Araújo Esteves Fraga. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 113 14 A Carta Magna acolhe a pessoa na plenitude de sua dignidade em consonância com a proteção aos direitos fundamentais da personalidade, invocados no artigo 5º e no Capítulo VII, que regulamenta a família, apesar de não explícita em relação aos homossexuais. O novo Código Civil não tratou especificamente sobre o tema, e, na falta de regulamentação legal, o julgador lança mão dos princípios constitucionais para julgar as ações referentes aos direitos das relações homoafetivas. O trabalho foi estruturado em 4 (quatro) capítulos, distribuídos de forma a alcançar o tema abordado. Não se tem aqui a pretensão de esgotar o tema, em absoluto. O objetivo é abordar o tema relações homoafetivas e demonstrar a necessidade do reconhecimento destas uniões. No primeiro capítulo, será dado um enfoque sobre a família, analisando a sua origem e os conceitos. A evolução da noção de entidade familiar, bem como as novas famílias que surgiram nos tempos atuais, analisando o enfoque a ela dado ao artigo 226 e parágrafos, bem como a possibilidade de uma interpretação extensiva do mesmo. Neste capítulo, também será abordado o casamento e a união estável, com interesse maior a este último instituto por estar intrinsecamente ligado ao tema central. Essas observações, por sua vez, possibilitarão uma melhor compreensão de que nem sempre o relacionamento entre pessoas não unidas pelo vínculo do matrimônio foi aceito e enquadrado como uma forma de família legítima e que a necessidade de mudança é eminente. O segundo capítulo aborda o tema homoafetividade. Nesse capítulo, apresenta-se o entendimento sobre as uniões homoafetivas no Código Civil e na Constituição Federal de 1988 e a necessidade de seu reconhecimento e os princípios que deixam de ser observados com a falta de legislação para disciplinar o tema. Comenta os direitos que são suprimidos com a omissão legal e as controvérsias acerca da natureza jurídica da união homoafetiva, que esses possam ser reconhecidos juridicamente como entidade familiar. 15 O terceiro capítulo traz noções gerais acerca de Sucessões. Na presente exposição, analisaremos os direitos sucessórios dos companheiros, ou seja, das pessoas que vivem em união estável, à luz do atual Código Civil. Por fim, no quarto e último capítulo, o Direito Sucessório nas relações homoafetivas, com os progressos obtidos no âmbito do Judiciário no que concerne a capacidade sucessória de parceiros homoafetivos, bem como os projetos em tramitação acerca do assunto em comento. Este trabalho visa, tão somente, trazer mais uma vez a discussão sobre o direito à diferença. Sobre Princípios Constitucionais, que são a base do nosso ordenamento jurídico que muitas vezes deixam de ser observados pelas pessoas que mantêm relações homoafativas e que merecem respeito como todo e qualquer cidadão. 16 Capítulo 1 ESTADO DE FAMÍLIA Sílvio de Salvo Venosa trata de conceituar estado de família e os vínculos jurídicos familiares. Estado de família é a posição e a qualidade que a pessoa ocupa na entidade familiar. No direito civil, portanto, o Estado considera a pessoa em si mesma e com relação à família. Disso decorre a definição do maior capaz, menor incapaz, casado, solteiro, etc 2. O estado de família é um dos atributos da personalidade das pessoas naturais. É atributo personalíssimo. É conferido pelo vínculo que une uma pessoa às outras: casado, solteiro. Também pode ser considerado sob o aspecto negativo: ausência de vínculo conjugal, familiar, filho de pais desconhecidos 3. Esses vínculos jurídicos familiares podem ser o vínculo conjugal, o da união estável e de vínculo de parentesco. O vínculo conjugal une as pessoas que contraem matrimônio, já o “vínculo de parentesco une a pessoa com as pessoas de quem descendem (parentesco em linha reta), como os que descendem de um ancestral comum (parentes colaterais), com os parentes do outro cônjuge (parentes por afinidade), além dos parentes do adotivo” 4. Direitos e deveres decorrem do estado de família. Ainda, Venosa apresenta características distintas do estado de família, quais sejam5 ______________ 2 VENOSA, Silvio de Salvo.Direito de família. 2007. pág. 37 Idem, p. 35. 4 Ibidem. 5 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. 2007. pág. 36 3 17 Intransmissibilidade: esse status não se transfere por ato jurídico, nem entre vivos nem por causa da morte. É personalíssimo, porque depende da situação subjetiva da pessoa com relação à outra. Irrenunciabilidade: ninguém pode despojar-se por vontade própria de seu estado. O estado de filho ou de pai depende exclusivamente da posição familiar.; imprescritibilidade: o estado de família, por sua natureza, é imprescritível, como decorrência de seu caráter personalíssimo. Universalidade: é universal porque compreende todas as relações jurídico-familiares; indivisibilidade: o estado de família é indivisível, de modo que será sempre o mesmo perante a família e a sociedade. Não se admite, portanto, que uma pessoa seja considerada casada para determinadas relações e solteira para outras; correlatividade: o estado de família é recíproco, porque se integra por vínculos entre pessoas que se relacionam. Definir estado de família é importante principalmente para estabelecer capacidade e vícios do casamento. Prova-se o estado de família com o título do registro público. Pode ser provado também por outros meios, na falta do título, prova-se também por ação judicial. A união estável é uma situação de fato e admite provas por todos os meios em direito permitidos6. 1.1Princípios Constitucionais e Relações Familiares Diante da nova forma de se conceber a família entidade familiar dissociada do pensamento jurídico antigo que só considerava família originada no casamento, muitos são os propagadores do apocalipse familiar7. A esse respeito, Caio Mário da Silva Pereira afirma que8 ______________ 6 idem 7 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 31 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 19. v. 5. 18 Entretanto, olhando para a família contemporânea e buscando apoio nos elementos que formam nossa realidade cultural, histórica e sociológica, não excluindo a econômica, pode-se constatar que na verdade o núcleo familiar se modificou sensivelmente e, em sentido amplo, deslocou se centro de constituição do princípio da autoridade para o princípio da compreensão e do amor, que, nos moldes da Constituição brasileira, reflete e preenche o princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro que é o atendimento à promoção da dignidade da pessoa humana. Depois da Constituição de 1988 não é mais possível pensar na organização familiar, como apenas aquela originada no casamento civil e religioso. Novas estruturas familiares se formaram e a constituição acolheu vários desses novos modelos. Na família codificada de feitio impessoal, a identificação se referia mais à entidade familiar do que ao contexto próprio de cada indivíduo. O sexo tinha a finalidade da procriação, e o reconhecimento da prole estava restrito ao espaço conjugal, pois ligava descendência à transmissão do patrimônio. O comportamento social do homem se modificou. A busca da realização e da felicidade pessoal passou a ser a tônica das relações de convivência familiar e social, e essas se tornaram não só mais complexas, como também, pluriais 9. A Constituição de 1988 deu acolhimento legal aos fatos sociais há muito demonstravam: que existem outras formas de família. A partir do artigo 226 e parágrafos, e do artigo 227, a Constituição Federal inundou o cenário jurídico das relações familiares de um sentido amplo de democracia e de respeito às diferenças. Permitindo o reconhecimento legal da união estável e das famílias monoparentais, ______________ 9 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 32 19 culminou por elastecer o leque das relações familiares legitimadas, as quais passaram a ser reconhecidas e tuteladas pelo Estado10. As mudanças de comportamento social, como a emancipação feminina, o reconhecimento de que os filhos também são sujeitos no seio familiar, tudo isso aliado aos avanços da genética, extinguiram a idéia patriarcal de família, “pois se o casamento já não é perpétuo, e a família não é um fim em si mesma, o sexo não se destina mais unicamente à procriação, sendo esta possível em aquele” 11. Entretanto, a família está longe de deixar de ser a celular mater da sociedade, na medida em que é e, acredita-se, sempre será o ponto de partida para o estabelecimento do sujeito e do desenvolvimento de múltiplas outras relações sociais que vão se estabelecendo ao longo de suas trajetórias existenciais 12. Esse também foi o sentido do texto constitucional ao estabelecer no artigo 226 da Constituição Federal que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Assim dito por Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “A Constituição ainda vê na família a base da sociedade. No direito anterior, esta família era constituída pelo casamento, e, até a Emenda n° 9/77, de vínculo indissolúvel”. No direito vigente, não só se apegou à indissolubilidade do vínculo como se equiparou a ela a “união estável entre o homem e a mulher” e “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”13. Poder-se-ia afirmar que a Constituição adotou um “sistema aberto”, pois, ainda que tenha abarcado novas formas de famílias, não o fez de forma a incluir todas as uniões afetivas possíveis e já constadas no cenário social. Especificamente no capítulo destinado à família, ______________ 10 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 32. 11 Idem. 12 Ibidem 13 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 314. 20 deixou de considerar expressamente as uniões formadas por pares homossexuais14, como também não declarou uma tutela típica para outros arranjos familiares, tais como os constituídos por avós e netos, irmãos entre si, tios e sobrinhos, demonstrando que persistem situações não envolvidas pelo direito positivado15, deixando para a jurisprudência e legislação infraconstitucional a incumbência de obstruí-lo pela concretização dos princípios constitucionais e da aplicação dos fundamentais. A Constituição reconhece a pluralidade de famílias dando a elas proteção do Estado, mas, para a doutrina e a jurisprudência há possibilidade hermenêutica de se expandir esse conceito de família, como grupos de parentes próximos, afilhado e filhos de criação. E ainda, considerada a perspectiva sociológica dos fatos e a comunidade comum de vidas na solidariedade pessoal e material, como exemplos, as famílias somente de irmãos, avós e netos e dos pares homossexuais. Quanto a este aspecto, é relevante destacar a importância da lição de Luiz Edson Fachin ao referir-se à transformação da família. Segundo ele: “(...) ancorados nos princípios constitucionais, o Direito de Família, ‘constitucionalizado’ não deve ter como horizonte final o texto constitucional expresso. Os princípios desbordam das regras e neles a hermenêutica familiar do século XXI poderá encontrar abrigo e luz”16. Esse movimento reflete a ambiência de um conteúdo marcado pela personalização das relações familiares no sentido de a família servir de espaço para formação e ampla realização do ser 17. ______________ 14 FACHIN, Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 155. GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 32. 16 FACHIN, Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 297. 17 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 32. 15 21 1.2. A Repersonalização das Relações Familiares A busca pela atualização do direito no sentido de aprender a realidade social já motivava os juristas atentos a lentidão e ao atraso do direito diante dos demais fenômenos sociais entre eles Orlando Gomes18 O atraso do Direito em relação aos fatos nos quais encontra a matéria-prima que espiritualiza não é, contudo, um acontecimento atual. Não é hoje, com efeito, que se vem acentuando. Parece que o ritmo acelerado como que se desenvolvem os fatos na base material da sociedade tem concorrido, há um século, para aprofundar a dissonância entre os fenômenos sociais. A ação e reação recíproca desses fatos quase nunca se produzem ao compasso de um metrômeto. O processo histórico não flui num só ritmo. Na sua trajetória, repontam coexistência incongruentes, já que os fenômenos sociais rarissimamente marcham com a mesma cadência. Buscando alcançar a dinâmica dos fatos, o direito civil, como um todo, vem sendo obrigado a renovar-se, abandonando valores de cunho estritamente patrimonialista erigidos pela codificação burguesa, próprios da ótica individualista dos seus primórdios que buscavam liberdade e igualdade para fazer circular bens e riquezas, preocupação fundamental da sociedade da época que não se conforma com a realidade contemporânea, que avança no sentido de assegurar proteção à família tendo como horizonte, além das questões e efeitos patrimoniais a tais inerentes, a consecução dos valores pessoais, assegurando a toda e qualquer pessoa o direito de buscar em sentido pessoal para sua existência19. Percebe-se, portanto, a falência dos conteúdos eminentemente patrimonialistas da normativa civil, que irradiada por valores e princípios constitucionais processa um movimento ______________ 18 GOMES, Orlando. A revisão do direito civil. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1955. p. 18. 19 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto. A possibilidade Jurídica de adoção por homossexuais. p. 42. 22 de personalização do direito, buscando conferir ao homem autonomia para determinar-se como sujeito da própria história, movimento fortemente sentido e percebido na órbita das organizações familiares20. Quanto a esse aspecto no direito de família, Ana Carla Harmatiuk Mattos assim se refere21: A repersonalização das relações familiares significaria sair daquela idéia de patrimônio como orientador da família, onde essa se forma pela atividade e não mais exclusivamente pelo vínculo jurídico –formal que une as pessoas. Deve o Direito Civil, cumpri seu verdadeiro papel: regular as relações relevantes da pessoa humana – colocar o homem no centro das relações civilísticas. [...] Uma das conseqüências práticas da repersonalização vem a ser a nova concepção de família, espelhando a idéia básica da família, espelhando a idéia básica da família eudemonista, ou seja, da família, direcionando à realização dos indivíduos que a compõem. Segundo Luiz Neto Lobo Paulo, “o desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em toda sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo medida da propriedade, que passa a ter função complementar”22. Orlando de Carvalho julga oportuna a repersonalização de todo o direito civil – seja qual for o invólucro em que esse direito se contenha – isto é, a acentuação de sua raiz antropocêntrica, de sua ligação visceral com a pessoa e seus direitos. É essa valorização do poder jurisgênico do homem comum, é essa centralização em torno do homem e dos interesses imediatos que faz o direito civil o foysr da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples 23. ______________ 20 Idem. Ibidem. 22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. 23 Apud COIMBRA, Centelha. A teoria geral da relação jurídica, 1981. p.90. 21 23 A restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da realização da efetividade e de sua dignidade, é a condição primeira de adequação do direito à realidade. Essa mudança de rumos é inevitável. Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher e entre filhos. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e sub-sujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas. O princípio da igualdade de gêneros foi igualmente elevado ao status de direito fundamental oponível aos poderes políticos e privados (art. 5º, I, da Constituição)24. A repersonalização das relações jurídicas de família traz novo valor a dignidade humana, tendo a pessoa como centro da tutela jurídica. É a afirmação da finalidade mais relevante da família: “(...) a realização da dignidade de seus membros como pessoas humanas concretas, em suma, do humanismo que só se constrói na solidariedade, com o outro” 25. 1.3 O Atrigo 226 da Constituição Federal de 1988 A Constituição é a norma fundamental que dá unidade e coerência à ordem jurídica, necessitando ela ter as mesmas características, superando contradições e protegendo os ______________ 24 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações familiares. Texto extraído do jusnavigandi [Online]. Disponível em <http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2823>. Acesso em 03 de março de 2007. 25 Idem. 24 cidadãos de todo tipo de discriminação. “Daí que a interpretação constitucional deve garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica” 26. Isso significa que a constituição deve ser interpretada evitando contradições entre suas normas, cabendo ao intérprete procurar entre preceitos e princípios até se chegar a uma coerência entre as idéias. Afirma Celso Ribeiro Bastos que27 Como conseqüência deste princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente imbricadas, não se podendo jamais tomar determinada regra isoladamente, pois a Constituição é o documento supremo de uma nação, estando as normas em igualdade de condições, nenhuma podendo se sobrepor à outra, para afastar seu cumprimento, onde cada norma subsume-se e complementa-se com princípios constitucionais, neles procurando encontrar seu perfil último. No mesmo sentido, Gilmar Mendes aponta que, “o princípio da unidade da ordem jurídica considera a Constituição como o contexto superior das demais normas, devendo as leis e normas secundárias ser interpretadas em consonância com ela, configurando a perspectiva uma subdivisão da chamada interpretação sistemática” 28. Para o estudo do artigo 226 essas perspectivas de interpelação devem ser consideradas. O jurista Paulo Luiz Netto Lobo em análise do citado artigo, diz que, o pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes inovações da Constituição brasileira, relativamente ao direito de família, encontra-se, ainda, cercada de perplexidades quanto a dois pontos centrais: se há hierarquização axiológica entre elas e, se constituem elas numerus clausus. ______________ 26 MAGALHÃES FIHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos editora, 2001. p.79. 27 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos editor, 1999. p.104. 28 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. p.223. 25 Proponho-me a enfrentar preferencialmente a segunda questão, gizando-a ao plano da Constituição Brasileira, ou seja, extraindo sentido das normas nela positivadas, utilizando critérios reconhecidos de interpretação constitucional. Várias áreas do conhecimento, que têm a família ou as relações familiares como objeto de estudo e investigação, identificam uma linha tendencial de expansão do que se considera entidade ou unidade familiar. Na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da antropologia, dentre outros saberes, a família não se resumia à constituída pelo casamento, ainda antes da Constituição, porque, não estavam delimitados pelo modelo legal, entendido como um entre outros 29. Estabelece a Constituição três preceitos, de cuja interpretação chega-se à inclusão das entidades familiares não referidas explicitamente. São eles, chamando-se atenção para os termos em destaque: Art. 226 da CF/88, prevê em seu caput que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Art. 226, § 4º, da CF/88, ao entender, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Art. 226, § 8º, da Cf/88, pois, prevê que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por ______________ 29 LÔBO, Luiz Paulo Neto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além dos numerus cluasus. Texto extraído do jusnavigandi [Online]. Disponível em: < http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2823>. Acesso em 06 de abril de 2007. 26 qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos30. O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias “ilícitas”, desse modo, consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único (casamento), em torno do qual o direito de família se organizou. “A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial” 31 . O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. A regra do § 4º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem o sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da ______________ 30 LÔBO, Luiz Paulo Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além dos numerus cluasus. Texto extraído do jusnavigandi [Online]. Disponível em: < http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2823>. Acesso em 06 de abril de 2007. 31 Op. Cit. 27 dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto32 . Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade33. Ainda na visão de Luiz Paulo Lôbo34: A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família. Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude dos requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e ______________ 32 LÔBO, Luiz Paulo Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além dos numerus cluasus. Texto extraído do jusnavigandi [Online]. Disponível em: < http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2823>. Acesso em 06 de abril de 2007. 33 Op.cit 34 LÔBO, Luiz Paulo Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além dos numerus cluasus. Texto extraído do jusnavigandi [Online]. Disponível em: < http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2823>. Acesso em 06 de abril de 2007. 28 princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades35 . 1.4. O Casamento Silvio Venosa faz menção a diversas definições de casamento. Como, Guilermo Borba (1993, p.45) definiu casamento de forma lapidar: “é a união do homem e da mulher para o estabelecimento de uma plena comunidade de vida”. Outros preferem definição mais descritiva. Washington de Barros Monteiro (1996, p.12) conceitua o matrimônio como sendo “a união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos”. Silvio Rodrigues (1999, p.18), declarando já sua preferência pela natureza jurídica do fenômeno jurídica do fenômeno, com base na lei e na palavra de Modestino, define: “Casamento é o contrato de direito de família que tem por finalidade a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência” 36. O Casamento é o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de conclusão até os efeitos do negócio que deságuam nas relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação e a assistência material e espiritual recíproca e da prole, etc 37 . ______________ 35 Idem. VENOSA, Silvio Salvo. Direito de família. 2007. p. 35 37 VENOSA, Silvio Salvo. Direito de família. 2007. p. 35 36 29 A natureza jurídica, como sua definição também traz diferentes opiniões doutrinárias. Trata-se, pois, de negócio complexo, com características de negócio jurídico e de instituição. Simples conceituação como contrato reduz por demais sua compreensão. Eduardo dos Santos, citando Cimbali, anota que o matrimônio é um “contrato sui generis de caráter pessoal e social: sendo embora um contrato, o casamento é uma instituição ético-social, que realiza a reprodução e a educação da espécie humana”38 (in Venosa, 2007). O que confere a um ato a natureza contratual não é a determinação de seu conteúdo pelas partes, mas sua formação por manifestação de vontade livre e espontânea. Orlando Gomes conclui que o casamento é, porém, um contrato com feição especial, “a que não se aplicam as disposições legais dos negócios de direito patrimonial que dizem respeito: a) à capacidade dos contraentes; (b) aos vícios de consentimento; (c) aos efeitos”39 . Assim, pode-se afirmar que o casamento-ato é um negócio jurídico; o casamentoestado é uma instituição. 1.4.1 Características, Finalidade e Pressupostos O casamento, negócio jurídico que dá margem à família legítima, é ato pessoal e solene. É pessoal, pois cabe unicamente aos nubentes manifestar sua vontade, embora se admita casamento por procuração. Tratando-se igualmente de negócio puro e simples, não admite termo ou condição40 . ______________ 38 SANTOS, Eduardo. In VENOSA, Direito de família, 2007. GOMES, Orlando, in VENOSA. Direito de família, 2007. 40 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. 2007.p.52. 39 30 A lei o reveste de uma série de formalidades perante autoridade do Estado que são de sua própria essência para garantir a publicidade, outorgando com isso garantia de validade ao ato. Sob o prisma do direito, o casamento estabelece um vínculo jurídico entre o homem e a mulher, objetivando uma convivência de auxílio e de integração físico-psíquica, além da criação e amparo da prole. Há um sentido ético e moral no casamento, quando não metafísico, que extrapola posições que vêem nele, de forma piegas, mera regularização de ralações sexuais. Outra sua característica fundamental é a diversidade de sexos. Não há casamento senão na união de duas pessoas de sexo oposto. Cuida-se de elemento natural do matrimônio41. Durante muito tempo, o vínculo do casamento foi indissolúvel por princípio constitucional em nosso sistema, até que a legislação admitisse o divórcio. A Emenda Constitucional nº 9, de 28-06-1977, aboliu o princípio da indissolubilidade do matrimônio ensejando a promulgação da Lei nº 6.515, de 26-12-1977, que regulamentou o divórcio. Na atualidade, no mundo ocidental, poucos países são antidivorcistas 42 . Quanto às múltiplas finalidades do matrimônio, situam-se mais no plano sociológico do que no jurídico. Conforme estabelecido tradicionalmente pelo Direito Canônico, o casamento tem por finalidade a procriação e educação da prole, bem como a mutua assistência e satisfação sexual, tudo se resumindo na comunhão de vida e de interesses43 . Para que exista casamento válido e eficaz é necessário que se reúnam pressupostos de fundo e de forma. ______________ 41 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. 2007.p.52 Idem, p.55. 43 Ibidem. 42 31 Para Venosa as relações homoafetivas nunca adentrarão o direito de família44: (...) não se faltam tentativas para regulamentar a união entre pessoas do mesmo sexo. Há projeto nesse sentido, que se refere à parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo. Há também exemplos na legislação internacional. Existe jurisprudência inovadora entre nós a esse respeito, outorgando amplos efeitos às uniões duradouras entre pessoas do mesmo sexo. Não cabe aqui adentrarmos em divagações sociológicas ou biológicas sobre o tema. De qualquer modo, encarado como fato social, qualquer que seja o sentido dessas relações de lege ferenda, ou seja, seu valor axiológico, seu nível jurídico nunca poderá ser o de matrimônio, ainda que alguns de seus efeitos secundários sejam conferidos, como, por exemplo, o direito à herança, a benefícios previdenciários, a planos de saúde, devendo a relação ficar acentuadamente no plano do direito das obrigações, fora do sublime e histórico conceito de família e casamento. 1.5 União Estável A família é um fenômeno social anterior ao casamento. Em um determinado momento na história instituiu o casamento como regra de conduta. E como conseqüência, a problemática da união conjugal forma do casamento. Assim como para o casamento, o conceito de união livre ou concubinato também, por sua própria terminologia, não se confunde com a mera união de fato, relação fugaz e passageira. Na união estável existe a convivência do homem e da mulher sob o mesmo teto ou não, mas more uxório, isto é, convívio como se marido e esposa fossem. Há, portanto, um sentido amplo de união de fato, desde aparência ou posse de estado de casado, a notoriedade social. Nesse sentido, a união estável é um fato jurídico, qual seja um fato social que gera efeitos jurídicos. Para fugir à conotação depreciativa que o concubinato teve no passado, com ______________ 44 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família., 2007. p.55. 32 freqüência, a lei, a doutrina e a jurisprudência já não se referiam a concubinos, mas a companheiros45. Como vimos, essa opção é a vencedora na lei e na doutrina e assim deveremos tratar da problemática doravante. 1.5.1 Natureza Jurídica da União Estável. Elementos Constitutivos A união estável é fato social e jurídico. “O casamento é um fato social e um negócio jurídico” 46. A união estável é um fato do homem que, gerando efeitos jurídicos torna-se um fato jurídico. O artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, confere proteção do Estado à união estável entre homem e mulher como entidade familiar. O preconceito contra as uniões de fato, formadas sem o alicerce dos laços matrimoniais, foi celebremente rompido pela Constituição de 1988 que, em seu artigo 226, mais precisamente no § 3º, amparou as uniões de fato havidas entre um homem e uma mulher, dando-lhes o status de “entidade familiar”. Para entender como se chegou a tal reconhecimento, mister se faz compreender o que seria um “primeiro estágio”, ou um “primeiro momento” das uniões de fato reconhecidas como entidade familiar. Não que o concubinato possa ser visto como uma forma não evoluída da união estável, ou como seu precursor ou antecessor, mas inegável é o fato de que, ao voltar-se o foco para ele (o concubinato), a sociedade e a comunidade jurídica abriram seus olhos para o tema, haja vista que, nos dizeres de Sílvio Rodrigues, “a despeito da indiferença ______________ 45 46 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. 2007.p.60. Idem. 33 do legislador no passado, a família constituída fora do casamento de há muito constituía uma realidade inescondível”. A união estável representa uma das grandes inovações da Constituição de 1988 e leis que a regulam, mas é, ainda, um instituto carente de sedimentação legal: Artigo 226, § 3º. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do estado. (...) § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Na esteira do dispositivo transcrito vem o artigo 1.723 do Código Civil de 2002: Art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou juridicamente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”. Desta maneira, pode-se conceituar a união estável como “aquela união entre o homem e a mulher que pode converter-se em casamento”. Tanto é assim que a sua conversão em casamento é aceita e até incentivada na forma dos artigos 226, § 3º da Constituição e 1.726 do Código Civil. Todavia, há quem discorde deste conceito, separando-o da idéia de casamento. Claudia Grieco Tabosa Pessoa prefere conceituar união estável como sendo a “convivência duradoura, 34 pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição família” 47 . O que se observa no conceito proposto por Venosa é que não se poderia concluir, de forma absoluta, que apenas existirá união estável entre pessoas desimpedidas de casar. Isso porque, até a Lei nº 8.971/94, tratando da questão dos alimentos e da sucessão dos companheiros, trata como tais aqueles que constituem união estando separados judicialmente, hipótese em que não poderia contrair matrimônio. A Lei nº 9.278/96, que regula o artigo 226, § 3º da Constituição, não condiciona o desimpedimento para o casa mento ao definir o que é entidade familiar na forma do citado dispositivo constitucional. O novo código expressamente afirma, no §1º de seu artigo 1.723, ser possível a constituição de união estável até mesmo se a uma pessoa estiver apenas separada de fato. Não estaria, portanto, apta a contrair novas núpcias, mas pode perfeitamente estabelecer uma união estável. Quando a Constituição estatui que deverá a lei facilitar a conversão da união estável em casamento, apenas está abrindo uma faculdade aos companheiros, que poderá ou não ser efetivada, o que não quer dizer que aqueles devem estar necessariamente aptos a contrair matrimônio. Ademais, por ser bastante usual que as uniões estáveis sejam constituídas por pessoas separadas de fato ou judicialmente, não se poderia admitir que fossem excluídas da tutela legal, por representarem importante segmento da sociedade atual48. Para que se configure uma união estável, devem se fazer presentes certos elementos caracterizadores. Tomando-se por base as disposições constitucionais, bem como as disposições legais que regem o tema, inclusive os ditames do Novo Estatuto Civilista. Tais elementos são a estabilidade, publicidade, o conteúdo mínimo da relação e a dualidade de sexos. Estes elementos são tidos como essenciais pela doutrina. (Várias são as características ______________ 47 PESSOA, Cláudia Grieco Tobosa. Efeitos patrimoniais do concubinato. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 25. 48 CZAJKOWSKI, Rainer. União livre à luz da Leit 8.971/94 e da Lei nº 9.278/96. Curitiba: Juruá, 2001. p. 65. 35 atribuídas pelos doutrinadores que seriam necessárias à configuração da união estável. Se os chamados elementos essenciais estão previstos na legislação reguladora do tem, os secundários se apresentam como elementos capazes de ressaltar a condição dos companheiros, cuja validade caberá ao magistrado analisar, in casu). O primeiro elemento a ser tratado é a dualidade de sexos. Os doutrinadores são claros quando mencionam que reconhecida é a união, dentro das condições específicas, entre o homem e a mulher. Analisando os elementos legais, se há a determinação de facilitação de conversão em casamento, sendo a única espécie de matrimônio aceita no Brasil a que une um homem a uma mulher; com a união estável não poderia ser diferente. O relacionamento homossexual, ainda que estável, duradouro, contínuo, e até mesmo com animus de constituição de “família” (embora o seja impossível, nos termos legais atualmente vigentes) não goza de amparo legal, nem tampouco constitucional. Muito embora jurisprudencialmente tenha-se reconhecido certos direitos de cunho patrimonial e até mesmo previdenciário aos que se acham em relacionamento homossexuais estáveis, o legislador pátrio não os admite como família ou entidade familiar. (Venosa afirma que qualquer que seja o sentido dessas relações seu nível jurídico nunca chagará ao nível do matrimônio). Outro requisito, que inclusive é um dos fatores de distinção entre a união estável e o concubinato, é a publicidade, que apenas é trazida no artigo 1.723, CC. Os companheiros devem ser vistos, pela sociedade ou pela comunidade na qual se encontram inseridos, como se casados fossem, devem tratar-se como marido e mulher, sob todas as circunstâncias. Caso não haja tal publicidade, e o relacionamento não seja de conhecimento do meio social, é considerado concubinato (as distinções entre os dois institutos serão conhecidos mais adiante)49. ______________ 49 AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Inventários e partilhas – Direito das sucessões. São Paulo: Leud, 2003, p. 125. 36 Outro elemento é o conteúdo mínimo da relação. Trata-se daquilo que deverá estar presente na vinculação entre um homem e uma mulher de modo a caracterizar a união estável, posto que não é toda e qualquer união que pode ser tomada por união estável. Este é um elemento cuja determinação nem sempre é simples, porque engloba alguns fatores – inclusive subjetivos – que dificultam sua percepção. Subjetivamente, estariam presentes neste elemento a consideração e o respeito mútuos, a assistência moral e material e a convivência. Seria, em síntese, e em linguagem simplista, o fato de os dois poderem contar um com o outro, no que concerne a apoio psicológico, moral, de forma presencial e material50. Outro ponto que deve estar inserido no contexto do elemento ora tratado é o objetivo de constituir família ainda dentro deste contexto mínimo da relação, está a assistência material, que se constitui um direito e dever recíproco entre os companheiros como retrata o Código Civil. ______________ 50 AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Inventário e partilhas – Direito das sucessões. São Paulo: Leud, 2003, p. 122. 37 Capítulo 2 UNIÃO HOMOAFETIVA – POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO 2.1 O Não Reconhecimento A lei é o principal argumento daqueles que advogam em favor da impossibilidade do reconhecimento da união estável homossexual, isto porque a Constituição Federal, em seu artigo 226, §3º, consagra como característica basilar da união estável a dualidade de sexos, deixando de lado as uniões homoafetivas. O principal fato é que, no Congresso Nacional Brasileiro, órgão competente para fazer esta alteração, ainda há muito preconceito. Os legisladores se mantêm bastante conservadores, defendendo que não há possibilidade de o direito de família tratar de união estável homossexual, por essa não ser considerada entidade familiar no conceito disposto no novo Código Civil51, portanto, mesmo que a relação seja estável, tal união não pode ser considerada como família52. Rainer Czajkowski defende que por mais estável que seja a união sexual entre pessoas do mesmo sexo, que morem juntas ou não, jamais se caracterizará como entidade familiar53. ______________ 51 BRASIL, Lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Organizado por Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 2005. Seu art. 1.723, estabelece que: È reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 52 CAZJKOWSKI, Rainer. União Livre à luz da lei 9.971/94 e da lei 9.278/96. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2001, p. 217 53 Apud BRITO, Fernanda de Almeida. União Afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos. São Paulo: LTR, 2000. p. 27. 38 Para Orlando Gomes, esse casamento é inconcebível, devido á falta de diversidade de sexo, uma condição natural para essa união. Guilherme Calmom Nogueira também conjuga com este entendimento, defendendo que não há efeitos jurídicos distintos para união homossexual uma vez que não se preenchem os requisitos para que se configure a união54. A Constituição Federal se calou sobre a união homossexual, e o mesmo ocorreu com as Leis 8.971/94 e 9.278/96, posteriores a esta, que tratam da união estável e seus direitos, sendo que nenhuma abordou o tema. Houve ainda o projeto de Lei nº 1.151/95, com o objetivo de aprovar a troca do nome de união civil para parceria registrada, em que não seria possível se confundir com casamento, já que seu propósito não é dar aos parceiros homossexuais o status igual ao do casamento, e sim conceder amparo às pessoas que firmam, priorizando a garantia dos direitos de cidadania55. O posicionamento tem se mantido, uma vez que ainda não foi aprovado o projeto da ex-Deputada Marta Suplicy, e nem deve ser, mesmo porque se encontra desatualizado, bem como outros projetos que também não saíram do papel. Este preconceito ficou com a edição do Código Civil, que depois de tramitar por vinte e sete anos, foi aprovado e entrou em vigor em 2003, sem ao menos comentar sobre a união homossexual. Ato que foi muito criticado, por estar desatualizado no sentido de aceitação e inclusão dos homossexuais56. Miguel Reale, relator do projeto do Código Civil rebateu as críticas da omissão, justificando que a matéria não é de direito civil, e sim de direito constitucional, pois foi esta ______________ 54 BRITO, Fernanda de Almeida. União Afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos. São Paulo: LTR, 2000. p. 35. 55 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 107. 56 Idem. p. 118. 39 quem criou a união estável entre um homem e uma mulher, sustentando, portanto, que é necessário mudar primeiro a Constituição para depois se mexer no Código Civil57. 2.2 O Reconhecimento Para o reconhecimento da união homoafetiva como união estável e, conseqüentemente, garantir os direitos já adquiridos por esta, esbarra-se no preconceito da sociedade que é imenso e insistente em não enxergar a realidade58 . Einstein ressalta que nossa época é triste, pois é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo. Talavera acrescenta que Einsten tinha razão, pois os átomos são facilmente quebráveis, já os preconceitos, muitos deles permanecem inquebrantáveis para sempre59. Nos dias atuais, o preconceito faz com que a sociedade não tenha coragem de admitir entre a união de duas pessoas do mesmo sexo, com convivência pública e duradoura, com o objetivo de constituição de família, não seja contrária às normas públicas e aos bons costumes. Não há como se falar em reconhecimento da união homossexual sem se esbarrar em inúmeras barreiras colocadas pela sociedade e, primeiro pelas religiões.60 ______________ 57 Ibidem. DIAS, Maria Bernice. Fazendo valer os direitos. Disponível em < www.mariabernicedias>. Acesso em 10/02/2007. 59 TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 45. 60 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 68. 58 40 E não seria possível dar ao legislador ou ao juiz o direito de indicar um único caminho na busca pela felicidade, como é feito hoje em dia, e uma vez que, por não aceitarem os homossexuais, em suas leis e costumes 61. Porém, a maior dificuldade encontra-se com o legislador, o único que pode regulamentar essa situação e não faz por não ser de aceitação plena e para não desagradar o eleitorado, preferindo manter-se omisso. O que é cruel, pois a sociedade conservadora não quer ver, ou melhor, insiste em não ver e, rejeita a opção de ser diferente, tentando manter ignorada uma minoria, que é diverso, do que a sociedade prevê ser normal 62 . O silêncio da lei e o receio de enfrentar uma lide no Judiciário os tornam marginalizados, oprimidos e desvalido, pela simples escolha por viver relações não aceitas como certas e legítimas 63. Se a lei não acompanhar a evolução da sociedade, será muito complicado mudar a mentalidade e o conceito de moralidade. Nem mesmo os magistrados aplicadores do Direito poderão combater esta postura preconceituosa e discriminatória de haver grandes injustiças. É importante salientar que as questões morais e religiosas não devem ser confundidas com as questões jurídicas 64. Ressalte-se que vivemos em uma sociedade que estigmatiza e ridiculariza as pessoas que têm uma opção sexual diferente, acreditando que, ignorando o problema vamos resolvê-lo e que, negando direitos à união homossexual, desaparecerá o homossexualismo65. ______________ 61 Idem. DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 68. 63 Idem. 64 IBIAS, Delma Silveira. Aspectos jurídicos da homossexualidade. In Homossexualidade – discussões jurídicas e psicológicas, Coordenação Instituto interdisciplinar de direito de família – IDEF. Curitiba: Juará, 2002. p. 102. 65 Idem. 62 41 Os fundamentos dessas uniões são semelhantes aos do casamento ou da união estável. O vínculo que os une, bem como demais casais, é o afeto, e isso gera efeitos jurídicos 66. É importante comentar que a família não se define apenas em razão de seu vínculo entre homem e mulher, da convivência de ascendente com descendente. Até pessoas do mesmo sexo, ou de sexos diferentes ligadas por laços afetivos, merecem o reconhecimento de entidade familiar. Ou seja, a capacidade de procriação não é fato relevante, nem essencial, para a convivência de duas pessoas que tenham a proteção legal, descabendo deixar a união homoafetiva fora do conceito de família, desde que presentes os requisitos de vida comum, quais sejam, coabitação, assistência mútua etc, concedendo os mesmos direitos e impondo obrigações a todos que tenham essas características67. A jurisprudência começa, timidamente, a reconhecer os direitos da união homossexual, iniciando a superação do conservadorismo. O primeiro grande exemplo divulgado ocorreu em 10 de fevereiro de 1998, quando o Superior Tribunal de Justiça – STJ – reconheceu o direito de partilha de bens de um homossexual de Minas Gerais sobre um apartamento que foi adquirido com seu parceiro em 1989, morto em conseqüência de AIDS. Os dois viviam essa relação durante sete anos. Foi a primeira vez que o STJ julgou um caso de partilha de bens na constância de convivência entre homossexuais, e, mesmo sem admitir a validade jurídica dessa união, o STJ decidiu que o autor teria direito à metade do apartamento em questão, e a família do falecido ficaria com a outra metade. Os quatro Ministros que julgaram o caso, na Quarta Turma, reconheceram o direito unânime, sem examinar a validade jurídica da relação, levando-se em consideração o fato de os dois terem conta conjunta na Caixa Econômica Federal e serem sócios em outras três empresas. O autor obteve vitória na primeira instância, mas foi derrotado no Tribunal de ______________ 66 Ibidem. FREITAS, Tiago Batista. União homoafetiva <www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em 14/12/2006. 67 e regimes de bens. Disponível em 42 Alçada, que alegou que a convivência sob o mesmo teto de pessoas do mesmo sexo só caracteriza amizade. Mas o relator no STJ do Recurso Especial nº 148.897 MG, contra a sentença do Tribunal de Alçada, o Ministro Ruy Rosado Aguiar baseou seu voto na súmula 38068 do Supremo Tribunal Federal, onde se reconhece a partilha de bens adquiridos em conjunto quando comprovada a existência da sociedade de fato69 . Outro caso na jurisprudência que teve grande divulgação foi a decisão da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em Acórdão Unânime nº 47.965, que teve como relator o Desembargador Narciso Pinto que, apesar de não reconhecer expressamente a união homossexual, decidiu pela partilha de bens do pintor Jorge Guinle, dando a seu companheiro 25% da parte que lhe cabia pela administração dos bens, não sendo dado, qualquer tipo de importância ou apreciação na natureza da relação que os unia, não cabendo assim qualquer tipo de discussão se existia ou não algum tipo de relacionamento, nem qualquer tipo de consideração amorosa ou sexual feitas pelo réu, ora apelante70. Atualmente, há uma grande tendência em vislumbrar as uniões homossexuais nos moldes da união estável (Lei 9.278/96), já que a semelhança é evidente, uma vez que as duas relações se baseiam em afeto e não em formalidades71. Em face do silêncio do Código Civil, os tribunais têm se mostrado à frente do Legislativo, pois, na prática, estão adotando e criando jurisprudência sobre o assunto72. A Constituição se condiz que o vinculo entre dois homens ou duas mulheres não seja entidade familiar. Só deixa mais difícil a conversão dessas uniões em casamento. ______________ 68 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Súmula nº 380: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum). 69 TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004.p.42. 70 Idem. 71 DROPA, Romualdo Flávio. Direito fundamental, homossexualidade e uniões homoafetivas. Disponível em <www.jusnavigandi.com.br> . Acesso em 31/12/2006. 72 Idem. 43 Infelizmente, este fato só demonstra mais uma vez o preconceito e a omissão que, para ser corrigida, será necessário um projeto de lei retificativo.73 A Constituição se contradiz, pois ao passo em que defende a existência de um Estado Democrático de Direito, quando não reconhece a existência dos direitos dos homossexuais, fere os princípios da liberdade e da igualdade que estão dispostos em seu artigo 5º, caput74. E, ainda, traz em seu artigo 3º, inciso IV, a proibição de qualquer forma de discriminação, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Sendo assim, deveria reprimir qualquer discriminação, principalmente, discrimina em relação à orientação sexual, até porque é obrigação do Estado a promoção do bem de todos. Sem contar que essa discriminação fere o artigo 5º da Carta Magna, quais sejam: os direitos a liberdade e igualdade75 . E por não estar explicitado na lei maior e nos princípios, não há respeito à livre orientação sexual. Por isso, seria necessária uma nova luta, para que fosse inserida na letra da lei a expressão orientação sexual. Mesmo não havendo previsão legal de um fato específico, não significa dizer que não ocorre a ausência de direito. Nem a omissão da lei quer dizer inexistência dos direitos. Esta omissão também não impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação. A falta de previsão não pode ser justificativa para negação de prestação jurisdicional ou motivo de se reconhecer a existência do merecedor do direito de tutela. Há autores como Romualdo Dropa76 que entendem que esse silêncio do legislador deve ser suprido pelo juiz, como está devidamente previsto no artigo 4º da LICC – Lei de Introdução ao código Civil – ______________ 73 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 118. 74 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 106. 75 DROPA, Romualdo Flávio. Direito fundamental, homossexualidade e uniões homoafetivas. Disponível em< www.jusnavigandi.com.br> . Acesso em 31/12/2006. 76 Idem. 44 onde mostras que na omissão da lei o juiz decidirá de acordo com os costumes e os princípios77 . Como bem coloca Maria Berenice “a justiça não é cega nem surda, só precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e ouvir o clamor dos que esperam por ela” 78. Um grande exemplo de que essa aceitação não está distante foi o julgado do Tribunal Superior Eleitoral que aplicou, por unanimidade, à união estável homossexual a inelegibilidade consagrada no artigo 14, §7º, da Constituição Federal, na qual se proíbe os cônjuges de pleitear cargos de Presidente da República, Governadores e Prefeitos, conforme ementa citada abaixo: REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PREFEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM APREFEITA REELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE.ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE, REsp. Eleitoral 24.564- Rel. Min. Gilmar Mendes – j. 1º/10/2004). Esta decisão mostra-se convergente com o entendimento de que a união homossexual deve ser equiparada à união estável. Se o Judiciário aceita tais relações estáveis para efeito de lhes impor ônus, também lhes devem ser assegurados os bônus a que fazem jus, sendo, portanto, uma questão de justiça (de igualdade, no caso)79. Assim, por mais que o entendimento predominante hoje seja o de que os relacionamentos homoafetivos devem ser tratados como sociedade de fato, já se trata de um ______________ 77 Ibidem. DROPA, Romualdo Flávio. Direito fundamental, homossexualidade e uniões homoafetivas. Disponível em < www.jusnavigandi.com.br> . Acesso em 31/12/2006. 79 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 106. 78 45 grande avanço uma vez que, em tempos atrás, não eram conferidos aos homossexuais, que viviam juntos, nenhum tipo de direito. Já se posicionam em favor da união estável entre homossexuais alguns poucos juízes e desembargadores, visto que consideram uma injustiça negar direitos aos companheiros que se ajudaram a adquirir bens e depois ficaram sem nada, por não haver uma lei que os protegesse80 . Uma grande conquista para o reconhecimento foi a aprovação da Lei n.° 11.340 em 07/08/2006, “Lei Maria da Penha” que trata da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Seu artigo 5º é tratado como uma idéia inovadora, pois permite uma interpretação em favor do reconhecimento da união homossexual como entidade familiar81. Essa é a primeira Lei federal que permite em sua interpretação a admissão da união homoafetiva como união estável, bem como entidade familiar. Ela só veio evidenciar uma situação presente em nossa sociedade, até mesmo já retratada em novelas e discutida de uma forma geral pela sociedade82. Em seu artigo 2º, bem como no artigo 5º, parágrafo único, encontra-se bem definido o reconhecimento legal da família constituída por vontade expressa, a interpretação no sentido da aceitação da união homossexual, no caso, especificadamente entre mulheres83. Senão, vejamos: Art. 2º “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. ______________ 80 AMARAL, Sylvia Mendonça. Manual prático dos direitos de homossexuais e transexuais. São Paulo: Inteligentes, 2003. p. 35. 81 RABELO, Iglesias Fernanda de Azevedo; SARAIVA, Rodrigo Viana. A Lei Maria da Penha e o reconhecimento legal da evolução do conceito de família. Disponível em: <www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=8911>. Acesso em 18/01/2007. 82 Idem. 83 Ibidem. 46 Art. 5º “Para efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. Em relação ao reconhecimento da legalização de uniões homoafetivas femininas, a Lei institucionaliza uma situação inegável, e acaba por romper com preconceitos existentes em nossa sociedade. A família homoafetiva é um fato inegável, embora negada pelo conservadorismo de nossos legisladores com relação à evolução do conceito de entidade familiar, pelo o pessimismo de muitos em aceitar e, até mesmo questionar se essa aceitação não seria um incentivo ao fim dos padrões familiares permitidos pela sociedade. Novos modelos familiares não significam a destruição da família e conceber como único o modelo heterossexual é incompatível com a essência do conceito de família, o afeto.84 . A Lei Maria da Penha não nos deixa mais dúvidas de que é possível reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar. Além disso, afasta definitivamente a Súmula nº 380 do STF, visto que a união homoafetiva não se trata de uma sociedade de fato e sim entidade familiar, devendo ser apreciada pela Vara de Família e não pela Vara Cível85 . Por força deste conceito legal e ainda com base no que dispõe o parágrafo único do art. 5° da Lei Maria da Penha, está definitivamente reconhecida a união homoafetiva (entre ______________ 84 RABELO, Iglesias Fernanda de Azevedo; SARAIVA, Rodrigo Viana. A Lei Maria da Penha e o reconhecimento legal da evolução do conceito de família. Disponível em: www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=8911. Acesso em 18/01/2007. 85 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O reconhecimento legal do conceito moderno de família: o art. 5°, II e Parágrafo único da Lei n°11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Disponível em: <www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9138.>. Acesso em 18/01/2007. 47 mulheres e, pelo princípio constitucional da igualdade, também entre homens) como entidade familiar, o que implica na perda de interesse na aprovação de qualquer projeto de lei que venha a disciplinar esta matéria, bem como, afasta-se por completo a incidência da famigerada Súmula n° 380 do STF, pois tal união não é sociedade de fato (e sim entidade familiar), daí porque sua apreciação deve se dar sempre de Família, nunca em Vara Cível86 . 2.3. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Uma sociedade, que tem como palavra chave cidadania e inclusão dos excluídos, não pode conviver com a discriminação por orientação sexual. A Constituição Federal, em seu artigo 1º, III, prevê o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como em seu artigo 5º, inciso X, prevê a liberdade e a igualdade da vida íntima. Ressalte-se que o direito à orientação sexual é direito personalíssimo, sendo encarado também como fundamental, imprescindível para a construção de uma sociedade livre e justa87. A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação sexual deve ser direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem a sua discriminação da orientação sexual, está previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. O princípio da dignidade humana é um princípio não só de ordem jurídica, mas também, de ordem econômica, política, cultural, com grande densidade constitucional. O seu valor é supremo e acompanha o homem até sua morte, já que sua essência é de natureza humana. A dignidade não admite qualquer tipo de discriminação, mas não basta a liberdade ______________ 86 Idem. BORGES, Camilo Oliveira. Os direitos da parceria homossexual. In temas polêmicos de direitos de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003. p.88. 87 48 formal ser reconhecida, pois essa dignidade reclama condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social88. Cumpre salientar que, independente da aceitação ou não da sociedade, esta deve preservar e não discriminar uma pessoa, em virtude de ter uma opção sexual diferente dos padrões. Como nos diz Roger Raupp Rios89: (...) na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma demissão fundamental da construção da subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade. Fica claro, portanto, que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção de dignidade da pessoa humana. Essa problemática se revela notadamente em face da homossexualidade, dado o caráter heterossexista e mesmo homofônico que caracteriza a quase totalidade das complexas sociedades contemporâneas.. Esse princípio ressalta a necessidade do respeito ao ser humano, independentemente de suas opções. Negar direitos a alguns e gerar enriquecimento injustificado de outros é uma grande afronta ao princípio da dignidade, já que a palavra de ordem é cidadania e inclusão do excluídos em uma sociedade que deseja ser aberta, justa, solidária e democrática não pode conviver com tal discriminação90. ______________ 88 GIOIRGIS, Carlos Teixeira. A natureza jurídicas da relação homoerótica. Disponível em: <www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9145>. Acesso em 18/01/2007 89 Apud PINHEIRO, Fabíola Cristina de Souza. Uniões homoafetivas do preconceito ao reconhecimento como núcleo de família. Disponível em: <www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9188> 90 Apud PINHEIRO, Fabíola Cristina de Souza. Uniões homoafetivas do preconceito ao reconhecimento como núcleo de família. Disponível em: www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9188. Acesso dia 23/03/2007 49 2.4 Princípio da Igualdade O princípio da igualdade significa “verdades primeiras”. Já no sentido jurídico, é regra fundamental, na qual se encontra a verdade universal sobre questões de direito. Ele, assim como os demais princípios constitucionais, serve para limitar o Estado e o poder jurídico dos governantes, para dar competência aos poderes constituídos e aos seus titulares e estabelece os direitos do governados91 . A lei não deve ser a fonte maior de privilégios ou até mesmo das perseguições, e sim o instrumento que regula a vida social, em que se possa tratar a todos de igual forma, sendo este o conteúdo político que foi absorvido pelo princípio da isonomia e incluído nos textos constitucionais em geral 92. Celso Antonio Bandeira de Mello nos diz que, quando se viola um princípio, se comete uma falta muito grave, pois é um fato muito pior do que violar uma norma. Sendo esta a forma de inconstitucionalidade maior no escalão das violações dos princípios, porque representa a insurgência contra um sistema, a subversão dos valores fundamentais 93. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal, diz que todas as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. É o fundamento da igualdade e da democracia, tendo como finalidade o tratamento uniforme a todas as pessoas enquanto seres sociais. ______________ 91 IBIAS, Delma Silveira. Aspectos jurídicos da homossexualidade. In Homossexualidade – discussões jurídicas e psicológicas. Juruá, 2007.p.77. 92 GIOIRGIS, Carlos Teixeira. A natureza jurídicas da relação homoerótica. Disponível em: www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9145. Acesso em 18/01/2007. 93 IBIAS, Delma Silveira. Aspectos jurídicos da homossexualidade. In Homossexualidade – discussões jurídicas e psicológicas. Juruá, 2007.p.77. 50 Bobbio definiu bem isso ao afirmar que a democracia é uma forma de uma sociedade ser regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem sejam mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de convivência 94 . É importante grifar que o princípio da igualdade está ligado particularmente ao direito, e conseqüentemente à justiça, que é regra das razões de uma sociedade, em que se dá o sentido ético de respeito a todas as outras regras. É como Roger Raupp defende95 A igualdade perante a lei (igualdade formal) diz respeito à igual aplicação do direito vigente sem a distinção com base no destinatário da norma jurídica, sujeito aos efeitos jurídicos decorrentes da normatividade existente; por sua vez, a igualdade na lei, (igualdade material) exige a igualdade de tratamento dos casos iguais pelo direito vigente, bem como a diferenciação no regime normativo em face de hipótese distintas. ______________ 94 Idem Apud PINHEIRO, Fabíola Cristina de Souza. Uniões homoafetivas do preconceito aoreconhecimento como núcleo de família. Disponível em: www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9188. Acesso dia: 25/04/2007. 95 51 Capítulo 3 DO DIREITO DAS SUCESSÕES 3.1 Disposições Gerais Interessante mostra–se, inicialmente, apresentar o significado da palavra que é o elemento central do Direito das Sucessões, a palavra suceder. Para tanto, têm–se as palavras de Caio Mário da Silva Pereira sobre o assunto: “a palavra ‘suceder’ tem o sentido genérico de virem os fatos e fenômenos jurídicos ‘uns depois dos outros’ (sub + cedere). Sucessão é a respectiva seqüência” 96. Acrescenta, ainda, que “no vocabulário jurídico, toma–se a palavra na acepção própria de uma pessoa inserir-se na titularidade de uma relação jurídica que lhe advém de outra pessoa, e, por metonímia, a própria transferência de direitos, de uma a outra pessoa” 97. Ultrapassado o aspecto etimológico, parte–se para a conceituação do Direito das Sucessões. Genericamente, a transmissão de bens é a idéia sugerida pela própria idéia de sucessão, pois há um sujeito adquirente de valores que substitui o antigo titular desses mesmos valores. As palavras de Caio Mário da Silva Pereira supracitadas corroboram esta explicação, pois tem–se a inserção de um sujeito na titularidade de relação jurídica ______________ 96 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 97 Idem. 52 proveniente daquele que é sucedido havendo, conseqüentemente, a transferência de direitos deste àquele 98. Assim sendo, diz–se que o Direito das Sucessões consiste no conjunto de princípios jurídicos disciplinadores da transmissão do patrimônio daquele que faleceu, de cujus, aos seus sucessores99 . Quanto à origem e fundamento do Direito Sucessório, tem–se que, originariamente, cogitada não foi a sucessão decorrente da morte, pois entendia–se que os bens objetos da sucessão pertenciam ao grupo, não eram do indivíduo exclusivamente. Portanto, a morte desse mesmo indivíduo não modificava o seu estado jurídico100 . Posteriormente, diante do caráter familiar da propriedade, a idéia de sucessão evoluiu, pois necessário fez–se dar continuidade à administração dos bens que se achavam sob a direção do chefe pré–morto101. Acredita–se que o progresso pode ser movido por meio dos interesses pessoais. A partir do momento em que o indivíduo atua com a finalidade de obter mais riqueza individual, uma riqueza exclusiva, contribui, indiretamente, para o aumento da riqueza da sociedade, uma riqueza coletiva.102 Daí, tem–se fundamento do Direito Sucessório relacionado ao direito de propriedade, sua função social e a importância de sua transmissão. Perpetuidade é uma das características do direito de propriedade. Importante, portanto, é a possibilidade de sua transmissão decorrente da morte, consistindo esta em um incentivo àquele que deixará o seu patrimônio aos seus sucessores103 . ______________ 98 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.3. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.3 100 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 101 Idem. p. 5 102 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.5. 103 Idem. p. 5 e 6. 99 53 Silvio Rodrigues, fundamentando o Direito Sucessório, relaciona este com o direito de propriedade, são estas as suas palavras104 Parece fora de dúvida ser de interesse da sociedade conservar o direito hereditário como um corolário do direito de propriedade. Partindo do ponto de vista de que o interesse individual constitui a melhor espécie de mola para o progresso, deve o Poder Público assegurar ao indivíduo a possibilidade de transmitir seus bens a seus sucessores, pois, assim fazendo, estimula–o a produzir cada vez mais, o que coincide com o interesse da sociedade (CF. Constituição de 5–10–1988, art. 5º, XXII e XXX). Diante dessa evolução, chegou–se ao Direito das Sucessões que, atualmente, rege as relações jurídicas pertinentes à transmissão do patrimônio deixado por um indivíduo devido à sua morte. A sucessão pode ser a título universal e a título singular. A sucessão a título universal ocorre quando há a transmissão ao sucessor da totalidade ou de fração ideal do patrimônio do de cujus. Há a sub–rogação do sucessor na posição do falecido, aquele é o novo titular da totalidade ou de parte ideal do patrimônio deste. Cabe ressaltar que a titularidade é relativa ao ativo e ao passivo, o sucessor torna–se responsável por tudo o que é abrangido pelo patrimônio do falecido105 . Sobre esse aspecto, são estas as palavras de Silvio Rodrigues: “O herdeiro sucede a título universal porque a herança é uma universalidade. Pode–se mesmo imaginar que o herdeiro substitui a pessoa do defunto, tomando seu lugar na relação jurídica universal” 106. A sucessão a título singular ocorre quando estiver ligada a uma coisa ou a um direito determinado107. O sucessor, neste caso, chama–se legatário. Este tem incorporado ao seu ______________ 104 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.6. Idem. p.6. 106 Ibidem. p. 17. 107 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 105 54 patrimônio um bem destacado da herança, uma coisa certa e individuada, o chamado legado108. Não há a aquisição da totalidade ou de parte ideal do patrimônio do de cujus. Sobre a sucessão a título universal e a título singular, diz Caio Mário da Silva Pereira: “a primeira induz a sub–rogação abstrata na totalidade dos direitos ou uma fração ideal deles, ao passo que a segunda tem em vista a sub–rogação concreta do novo sujeito em determinada relação de direito” 109 . Também, a sucessão pode ser legítima ou testamentária. Observe-se o disposto nos artigos 1.786 e 1.788 do novo Código Civil que regulam essa matéria específica: Artigo 1.786. “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”. Artigo 1.788. “Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”. A sucessão legítima é aquela decorrente da lei. Não haverá, neste caso, manifestação de última vontade do falecido quando estava vivo ainda. Essa modalidade de sucessão ocorre quando alguém se conforma que seu patrimônio será transmitido aos sucessores chamados pela lei, os herdeiros legítimos; que será obedecida à ordem de vocação hereditária prevista pela lei. Houve a exclusão, portanto, da opção de se deixar um testamento. Pode–se dizer que a sucessão legítima é o testamento presumido do de cujus 110. Silvio Rodrigues esclarece que, “(...) assim, legítima é a sucessão procedida de acordo com a lei e deferida às pessoas nela definidas que, por serem ligadas ao de cujus por laços de ______________ 108 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo:Saraiva, 2002. p.18. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1 - 2. 110 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.18. 109 55 parentesco, ou matrimônio, presumivelmente seriam por ele beneficiadas, se houvesse manifestado sua última vontade” 111. A sucessão testamentária consiste naquela que deriva de disposição de última vontade do de cujus112. Em vida, este elabora um testamento, instrumento pelo qual dispõe sobre o destino de seus bens. Assim, não serão observadas as disposições legais, a vontade do falecido regerá a transmissão de seu patrimônio àqueles que instituiu, quais sejam, os herdeiros testamentários e legatários. Simultaneamente, a sucessão pode ser legítima e testamentária. Tal hipótese ocorrerá se o testamento deixado pelo falecido não abranger a totalidade de sua meação. Sendo assim, transmitem–se aos herdeiros testamentários e legatários os bens mencionados no testamento. Quanto aos demais bens, segue–se a ordem de vocação hereditária prevista pela lei para transmiti–los aos herdeiros legítimos113. Caio Mário da Silva Pereira114 relaciona as sucessões a título universal e a título singular com as sucessões legítima e testamentária, observem–se as suas palavras: A sucessão legítima sempre será a título universal (per universitatem), transmitindo-se aos herdeiros a totalidade do patrimônio do de cuius, e a cada um deles uma quota ideal desse patrimônio. Hereditas nihil aliud est, quam successio in universum ius quod defunctus habuerit. A sucessão testamentária pode ser universal, quando o testador institui herdeiro, que lhe sucede em inteira analogia com o herdeiro legítimo; ou pode ser a título singular, quando o testador deixa para alguém uma coisa ou quantia certa (legado), e, neste caso, ao legatário se transmite aquele bem ou aquele direito individuadamente (singulatim). ______________ 111 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.18. Idem. p. 16 - 17. 113 Ibidem.p. 17. 114 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1 - 2. 112 56 Diante da apresentação das noções básicas do direito das sucessões, tem-se, a partir deste momento, base para se iniciar o estudo efetivo do tema deste trabalho, a legitimidade do cônjuge sobrevivente para suceder segundo o novo Código Civil. 3.2. A Sucessão dos Companheiros no Código Civil Brasileiro de 2002 A Lei n. 8.971/94 regulamentou os direitos sucessórios das pessoas que viviam em união estável, passando, nesses termos, os companheiros sobreviventes a ocuparem o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, ocupando, nessa ótica, na sucessão de seu parceiro falecido a classe sucessível em seguida a dos descendentes e ascendentes deste. É oportuno expor que o dispositivo que trata da ordem de vocação hereditária no atual Código Civil é o artigo 1.829, a saber: Art. 1.829. “A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou na separação obrigatória de bens [...] ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais”. Observa-se que o conteúdo retro transcrito manteve, em parte, a ordem de vocação hereditária do Código Civil de 1916115, ou seja, os descendentes continuaram a ocupar o primeiro lugar na sucessão legítima e em seqüência, respectivamente, mantiveram-se em suas posições os ascendentes, o cônjuge sobrevivente e os colaterais. Há duas inovações, ______________ 115 O dispositivo que tratava da sucessão legítima do Código Civil de 1916, art. 1.603, preceituava que: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais; V- aos municípios, ao Distrito Federal e a União”. 57 entretanto, que devem ser destacadas, quais sejam: a exclusão do Estado da ordem de vocação hereditária, bem como a criação da figura da concorrência em benefício ao cônjuge. Com relação à exclusão do Estado da ordem de vocação hereditária pelo atual Código Civil, vale relembrar, inicialmente, que à época da vigência do Código Beviláqua, o Estado, ante a inexistência respectivamente de descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente e colaterais do de cujus, herdava automaticamente a herança deste, sendo considerado, portanto, também herdeiro legítimo. No atual Código Civil, o Estado não sucede mais automaticamente ante a inexistência de descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro sobrevivente e colaterais do de cujus. É mister, nesses termos, expor que para que ocorra o recolhimento da herança pelo Estado é necessário a existência de uma sentença de vacância116, ou seja, deve-se declarar judicialmente, seguindo-se os ditames do artigo 1820 do atual Código Civil, que quando inexistirem herdeiros sucessíveis do falecido ou tiverem estes renunciado a herança, deve esta passar a ser patrimônio do Estado117 . No que diz respeito à figura da concorrência dos cônjuges cabe mencionar que embora os descendentes e os ascendentes continuem a ocupar, respectivamente, o primeiro e o segundo lugar na ordem de vocação hereditária, não são mais categorias únicas em suas respectivas classes, haja vista que atualmente tais posições são co-divididas com os cônjuges. Assim, quando, por exemplo, o falecido deixa descendentes e cônjuge sobrevivente, deve este receber a mesma quota que couber àqueles, ou seja, herdará parte do patrimônio como se mais um descendente o fosse 118 . Em que pese a importância dessa menção de concorrência dos cônjuges, ora com os descendentes, ora com os ascendentes do falecido, não será tal matéria objeto do presente ______________ 116 VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil – Direito das sucessões. Atlas, 2005. p. 125. NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídico e de brocardos latinos. Rio de Janeiro: FASE, 1990. 118 AZEVEDO, Álvaro Vilassa. Código Civil comentado: direito das sucessões, sucessões em geral, sucessão legítima: art. 1.784 a 1.856. São Paulo: 2003. p. 299. 117 58 estudo. Limitar-se-á, por ora, a afirmar que, embora o atual Código Civil tenha inovado positivamente ao incluir na ordem de vocação hereditária a figura da concorrência em prol dos cônjuges, tornando estes, por conseqüência, herdeiros necessários e não mais herdeiros facultativos como eram classificados no Código Civil de 1916119, equivocou-se, por outro lado, ao não tratar dos direitos sucessórios dos companheiros juntamente com os cônjuges e demais sucessores legítimos. Nesse olhar, é a sucessão dos companheiros tratada apartadamente no atual Código Civil, em seu artigo 1.790, a seguir transcrito: Art. 1.790. “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com os parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. Observa-se, que os companheiros, apesar de terem sido tratados em dispositivo diverso ao dos cônjuges e demais parentes sucessíveis, também podem vir a fazer jus ao direito de concorrência, assim como foi concedido às pessoas casadas. Ressalve-se, contudo, que a figura da concorrência para com os companheiros limita-se tão-somente aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, que consoante Francisco José Cahali, são aqueles adquiridos por ambos os companheiros através de um negócio jurídico em que os dois “auferiram vantagens, às quais, porém, correspondem a uma contraprestação (compra e venda, permuta, etc.)” 120 . ______________ 119 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentários ao novo código civil : do direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.215. 120 CAHALI, Francisco José. Sucessões no Código Civil de 2002: acórdãos, sentenças, pareceres e normas administrativas. São Paulo, 2004. p. 353. 59 Quando o companheiro supérstite concorrer, por exemplo, com os filhos em comum que teve com seu parceiro, receberá, no que diz respeito aos bens adquiridos onerosamente, porção equivalente a que couber a esses filhos. Divide-se, nesses termos, conforme frisa Sílvio de Salvo Venosa, “a herança em partes iguais, incluindo o convivente sobrevivente” 121 . Este herda, assim, no tocante à quota de bens adquiridos onerosamente, como se mais um filho do falecido o fosse. Feitas essas menções gerais sobre o direito de concorrência dos companheiros, trataremos agora da situação prevista no artigo 1.790, inciso IV, em que o parceiro sobrevivente herda à totalidade da herança do de cujus, à luz do atual Código Civil, a saber: “A companheira ou o companheiro participará onerosamente da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes (...) IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. O atual Código Civil em vez de manter os companheiros em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, por fazer jus à totalidade de todos os bens do de cujus, os colocou, sem nenhuma justificativa plausível, em uma posição inferior a que haviam conquistado pela Lei n. 8.971/94, sendo, portanto, nesse aspecto, considerado um retrocesso quando comparado com a mencionada Lei. Nessa linha de interpretação, Sílvio de Salvo Venosa122 aponta que A Lei n. 8.971/94 [...] ao mencionar que o companheiro teria direito à totalidade da herança, na ausência de descendentes e ascendentes, colocava o convivente em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária [...]. Desse modo, os colaterais somente seriam chamados à suceder se o convivente não [...] deixasse companheira de união estável. [...]. Já pelo vigente Código, a sucessão do companheiro ou da companheira é tratada de forma estranha, antes da ordem de vocação hereditária, no art. 1790. Por esse dispositivo, o consorte concorrerá com outras classes de herdeiros, até mesmo com colaterais no tocante aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, o que representa evidente regressão e restrição de direitos com relação à lei anterior. ______________ 121 122 VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil – Direito das sucessões. Atlas: 2005. p. 121. VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil – Direito de famíla. Atlas: 2005. p. 477 a 478. 60 No mesmo sentido, é o Projeto de Lei n. 6.960/02, do Deputado Ricardo Fiúza, que busca modificar alguns dispositivos do atual Código Civil, entre os quais, há uma previsão expressa de alterar o artigo 1.790, do citado Código, voltando os companheiros, com isso, a ocuparem o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, como era na Lei n. 8.971/94. A propósito, transcreve-se a nova redação sugerida pelo projeto e uma crítica ao atual Diploma civil: “o companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: (...) III – em falta de descendentes ou ascendentes, terá direito à totalidade da herança (...). O artigo 1.790 do Código Civil (...) significa um retrocesso na sucessão dos companheiros, se comparado com a legislação até então em vigor – Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96 (...)123” . Em que pese a importância destes posicionamentos de que a colocação do companheiro em último lugar na ordem de vocação hereditária é um retrocesso quando comparada com a Lei 8.971/94, cumpre registrar que até o presente momento esse não é o entendimento adotado pelo legislador do atual Código Civil Brasileiro, visto que nos dias correntes, o companheiro sobrevivente só tem direito de herdar à totalidade da herança de seu parceiro falecido, ante a inexistência de descendentes, ascendentes, e parentes colaterais até o quarto grau. ______________ 123 FIUZA, Ricardo. Projeto de Lei n° 6.960 2002. Disponível <www.juspodivim.com.br/novodireitocivil/legislacau/pl_n_6960pdf >. Acesso dia 02/05/2007. em: 61 Capítulo 4 O DIREITO SUCESSÓRIO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS 4.1 O Direito Sucessório Homoafetivo O Poder Judiciário tem entendido que o companheiro homossexual não tem a característica de herdeiro, sendo somente cabível o direito de compartilhar aquilo que construíram juntos. Díspares são as decisões, mas é majoritária a tendência a rejeitar a demanda. Ora se nega juridicidade ao convívio, ora se deferem alguns escassos direitos, mas sistematicamente se rejeita a condição de herdeiro ao parceiro, o que o leva a ser excluído da ordem da vocação hereditária e alija-lo dos direitos decorrentes da abertura da sucessão 124. A primeira grande mudança no posicionamento do cabimento do direito sucessório se deu pela Justiça Gaúcha, quando, em 24 de fevereiro de 1999, a Juíza Juddith dos Santos Monttecy, em uma ação que julgava a declaração da existência de uma sociedade de fato entre duas pessoas do mesmo sexo, na qual a parte sobrevivente pleiteava a totalidade da herança do falecido, julgou com fundamento no inciso III do artigo 2° da Lei n° 8.971/94 que se tratava de união estável, reconhecendo-se assim ao patrimônio do companheiro125 . ______________ 124 125 2004. p.42. DIAS, Maria Berenice. União homossexual, o preconceito e a justiça. Porto Alegre, 2006. p.139. TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 62 De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o companheiro será meeiro dos bens adquiridos durante a constância da união da união, conforme explicitado abaixo: UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos as uniões homoafetivas impões que a justiça colmote a lacuna fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria. (segredo de justiça). (Embargos Infringentes N° 70003967676, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, Julgado em 09/05/2003.) Neste caso, o Estado requereu a vacância dos bens, alegando a impossibilidade da companheira requerer a herança, em virtude da não existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo. A Justiça gaúcha mais uma vez inova e dá este direito. Ressalte-se também, entendimento congruente: EMENTA: UNIÃO HOMOAFETIVA. POSSIBILIDADE JURÍDICA. Observância dos princípios da igualdade e dignidade a pessoa humana. Pela dissolução da união havida, caberá a cada convivente a meação dos bens onerosamente amealhados durante a convivência. Falecendo a companheira sem deixar ascendentes ou descendentes caberá a sobrevivente a totalidade da herança. Aplicação analógica das leis n° 8.8.278/94 e 9.278/96. POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO, VENCIDO O REVISOR. (Apelação Cível N° 70006844153, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em 18/12/2003.) O entendimento que regula estas decisões é o de que a maioria das famílias rejeita os homossexuais, porém, com seu falecimento, costuma requerer os bens. Não seria justo que 63 quem não auxiliou na aquisição dos bens tenha direito em detrimento daquele que realmente contribuiu, ou seja, o verdadeiro companheiro126 . Cumpre ressaltar que a lei veda o enriquecimento sem causa, sendo assim, é incabível discutir vacância ou em integralidade para a família, se havia de fato um companheiro efetivo. Importante salientar que em caso de morte, o companheiro possui direito real de habitação sobre o imóvel sobre o qual residiam antes do falecimento. 4.2 União Estável e sua Comparação com a União Homoafetiva A Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável, modificando o entendimento de que tal relacionamento (antigo concubinato puro) era tratado como sociedade de fato. A partir desse reconhecimento, regulamentado por diversas leis posteriores, os companheiros passaram a adquirir alguns dos direitos garantidos àqueles casados formalmente. Tal reconhecimento foi inscrito no artigo 226, § 3º da Constituição Federal, in verbis “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Após o reconhecimento constitucional da união estável, a Lei nº. 8.971, de 1994, definiu como elementos necessários ao reconhecimento da união estável aqueles previstos em seu artigo 1º, em que exigia a convivência entre homem e mulher, não impedidos de casar-se ou separados judicialmente, com no mínimo cinco anos de convivência, ou caso existissem filhos dessa relação; e enquanto não constituíssem uma nova união. ______________ 126 DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade. Porto Alegre, 2006. p.123. 64 Já a Lei nº. 9.278, de 1996, em seu artigo 1º, reconhece como familiar a união estável ou concubinária pura, de um homem e de uma mulher, desde que com o objetivo de constituição de família. A caracterização da união estável prevista na mencionada lei foi confirmada posteriormente pelo Código Civil de 2002, em seu artigo 1.723, o qual exige como requisitos para a configuração desse tipo de união a relação pública duradoura, com o objetivo de constituir família, não havendo prazo mínimo (objetivo) que deva ser cumprido para o reconhecimento, ficando tal juízo a critério do julgador127. No diploma legal de 2002, também foram detalhados direitos e deveres que os companheiros devem cumprir conforme descritos nos artigos 1.724 e 1.725, in verbis Art. 1.724. “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Art. 1.725. “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bem”. Importante a opinião da Desembargadora Maria Berenice Dias, em julgado da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Porto Alegre: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o Judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de ______________ 127 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.545. 65 lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. (SEGREDO DE JUSTIÇA). Apelação Cível Nº 70009550070, Sétima Câmara Cível, Tribunal deJustiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/11/2004. Com relação à união homoafetiva, apesar de a Constituição Federal de 1988 reconhecer a união estável, não reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo como titular de direitos subjetivos próprios de entidades familiares, embora existam projetos para sua regulamentação128. Mencione-se o Projeto de Emenda Constitucional nº. 70/2003, do Senador Sérgio Cabral, que prevê a ampliação desse artigo para abranger também os casais homossexuais. 4.3 Competência para Julgamento Um dos efeitos desse desmembramento foi o de fazer com que a união estável seja processada e julgada pelo direito de família, já que as sociedades civis, instituto de direito obrigacional, são julgadas pelo Direito Civil. Estas sociedades regulam sociedades de fato, com o fim eminentemente comercial. Contudo, ainda há grande incoerência nos tribunais, pois mesmo havendo alguns julgados, há juizes de família que ainda mantêm o entendimento de que os relacionamentos homoafetivos devem ser tratados como sociedade de fato e, não, como entidade familiar. Seria dessa forma, um tema de competência do direito de obrigações, mas que deve ser julgado no juízo de família. Mesmo sendo um grande avanço, ainda não é a solução desejável, ______________ 128 AZEVEDO, Álvaro Villaça.Etatuto da família de fato. São Paulo, 2002. p.470. 66 uma vez que sociedade de fato é a união de pessoas que visam com esta um fim lucrativo. Colocando a união homossexual neste mesmo patamar seria então necessário que se fechasse um contrato empresarial para que fosse garantido aos companheiros, numa possível dissolução, a divisão dos bens adquiridos durante a vigência dessa união, ou sociedade como a lei prefere determinar129 . Essas definições da competência especializada em julgamento das ações que envolvem uniões homossexuais fizeram com que toda a demanda de remessa de tramitação das varas cíveis fosse para a vara de família. Foi o primeiro grande marco da Justiça do Rio Grande do Sul130. Rui Geraldo Camargo Viana, admitiu que o reconhecimento dessas uniões não é novidade, uma vez que o Tribunal de Justiça de São Paulo, onde as tradições são conservadoras, já admite os direitos de herança ao companheiro do falecido, afastando assim os ascendentes e reconhecendo a existência de sociedade de fato entre dois membros da união homossexual131. Mesmo com exemplos que demonstram um grande avanço dos nossos tribunais, a grande maioria ainda trata a união homossexual como sociedade de fato, alegando que, para se ter os direitos reconhecidos, têm de estar previstos em contratos firmados entre os “companheiros”. Mesmo um grande número de juízes e desembargadores defendendo o reconhecimento de união estável entre homossexuais, por julgarem injusto e fictício tratá-los como parceiros, ou sócios, e analisar seus direitos no âmbito do direito das obrigações, ainda é muito difícil ter essa relação reconhecida no direito de família, pois é impossível criar leis ______________ 129 AMARAL, Sylvia Mendonça. Manual prático dos direitos homossexuais e transexuais. São Paulo: Inteligentes, 2003. p.33. 130 DIAS, Maria Bernice. Fazendo valer os direitos. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br/artigos. Acesso em 10/02/2007. 131 TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.43. 67 que regulamentem esta união sem a aprovação de legisladores que se mantêm tão conservadores132. Dessa forma, para se evitar um prejuízo financeiro, ou um enriquecimento ilícito de uma das partes, equiparam-na a uma sociedade de fato, ressaltando apenas a questão financeira, como se fosse feito um simples contrato, cujo único direito a ser deferido é a partilha, não sendo deferidos inúmeros outros direitos próprios de dissolução de entidades familiares, tais como alimentos, sucessório, habitação, etc. Senão, vejamos algumas decisões jurisprudenciais: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA ERESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA. 1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações. 2. A existência de filho de um das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e a responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele múnus, sem questionamento por parte dos familiares.3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados arts. 1º e 9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família. 4. Recurso especial não conhecido. (Resp 502.995, Quarta Turma, 26.04.2005.) COMPETÊNCIA. RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO, CUMULADA COM DIVISÃO DE PATRIMÔNIO. INEXISTÊNCIA DE DISCUSSÃO ACERCA DE DIREITOS ORIUNDOS DO DIREITO DE FAMÍLIA. COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL. – Tratando-se de pedido de cunho exclusivamente patrimonial e, portanto, relativo ao direito obrigacional tãosomente, a competência para processá-lo e julgá-lo é de uma das Varas Cíveis. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, Resp 323.370, 4ª Turma, j. 14.12.2004). ______________ 132 AMARAL, Sylvia Mendonça. Manual prático dos direitos homossexuais e transexuais. São Paulo: Inteligentes, 2003. p.35. 68 Brilhante o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que entende se tratar de uma relação afetiva e, portanto, de competência do Direito de Família: RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família,`a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais.Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 599075496, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Breno Moreira Mussi, julgado em 17/06/1999). As mesmas características da união estável são encontradas na união homoafetiva. Sendo assim, a jurisprudência vem equiparando estas uniões, conforme acórdão da Quarto Grupo de Câmaras Cíveis de Porto Alegre: AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOSREQUISITOS. CABIMENTO. A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (SEGREDO DEJUSTIÇA). (Embargos Infringentes Nº 70011120573, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 10/06/2005). À exceção dos tribunais do Rio Grande do Sul, não se trata ainda de posição pacificada. A grande maioria ainda acredita que há impossibilidade em pessoas do mesmo sexo, reunidas com vínculo afetivo seja equiparada a uma união estável. Assim, observa-se que a questão da aceitação da união homoafetiva como união estável é puramente legal, assim como era o reconhecimento do concubinato puro como entidade familiar merecedora de reconhecimento e de direitos próprios. 69 Nesse sentido, nota-se que, atualmente, as soluções dos casos concretos de dissoluções de uniões homoafetivas têm sido realizadas pelo Judiciário, que, como mencionado, ora reconhece tais relacionamentos como uniões estáveis ora como sociedade de fato. 4.4 Projetos de Lei em Tramitação O Projeto de Lei n° 1.151, de 1995 de autoria da ex-Deputada Marta Suplicy, busca regular à “união civil em pessoas do mesmo sexo”. O relator do projeto, Deputado Roberto Jefferson, apresentou substitutivo, alterando inclusive o nome para Parceria Civil Registrada. O parecer favorável da Comissão Especial do Congresso é de 10/12/1996. Desde esta época encontra-se em plenário, mas, foi retirado várias vezes por acordo de lideranças. Cinco Projetos de Lei voltados à população homossexual são de autoria da Deputada Iara Bernardi. O de 5.003, de 2001 propõe sanções às pessoas físicas e jurídicas que pratiquem crimes de discriminação e preconceito contra homossexuais e transgêneros. Aprovado o substitutivo do Deputado Luciano Zica pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, o Projeto encontra-se em plenário aguardando votação, entre outros nas mesmas condições. 70 CONCLUSÃO Com esta pesquisa buscou-se discutir as relações homoafetivas e, consequentemente, os direitos delas decorrentes. Tratou-se dos direitos decorrentes do reconhecimento da união estável como entidade familiar e aprofundou-se especificamente no que diz respeito aos direitos sucessórios dos companheiros. A principal barreira a ser transposta é o preconceito da sociedade que ainda não aceita, muitas vezes discrimina a pessoa em razão da opção sexual. É de grande importância o reconhecimento destas relações, para que direitos essenciais sejam reconhecidos e garantidos, em virtude de se tratar de uma entidade tipicamente familiar. As famílias evoluíram junto com as mudanças sociais e novos modelos surgiram. A uma nova forma de conceber a família de maneira mais abrangente à abarcar os novos modelos. Agora são entidades familiares. A busca da realização e da busca pessoal passou a ser a tônica das relações de convivência familiar e social, e estas tornaram-se não só mais complexas, como também plurais. A Constituição de 1988 deu acolhimento legal a estes fatos sociais. A partir do Art. 226 a Constituição inundou o cenário jurídico das relações familiares de um sentido ampliado de democracia e de respeito as diferenças. Este artigo deu reconhecimento legal a união estável, as família monoparentais e abriu possibilidades de legitimar novas relações familiares, relações estas, que passaram a ser tuteladas pelo Estado. A repersonalização das relações jurídicas de famílias traz uma nova forma de se conceber a dignidade da pessoa humana sendo o indivíduo o centro da tutela jurídica. É a afirmação da finalidade mais relevante da família: “A realização da dignidade de seus 71 membros como pessoas concretas, em suma, do humanismo que só se constrói na solidariedade com o outro.” (Paulo Luiz Netto Lobo). A cláusula de exclusão desapareceu com a supressão da locução “constituída pelo casamento” (Art. 175, Constituição 1967-69). A regra do §4° do Art. 226 intregra-se à cláusula geral de inclusão sendo esse o sentido do termo também nela contido. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão. Violam os princípios da dignidade da pessoa humana as interpretações que excluem as demais entidades familiares da tutela constitucional ou asseguram tutela dos efeitos jurídicos no âmbito do Direito das Obrigações, como se os integrantes destas entidades fossem sócios de sociedade de fato mercantil ou civil. É nesse sentido que se busca o reconhecimento das relações homoafetivas para que a omissão legal não mais possa excluir direitos de quaisquer cidadãos. Em conformidade de pensamento, Maria Berenice Dias afirma que na base de todo fato social existe um interesse de tutela, interesse, esse, que independe da orientação sexual de seus titulares. Em um Estado Democrático de Direito, todos têm direito à vida, à liberdade e à proteção, e o Estado tem o dever de garantir o respeito à dignidade, à integridade física e à propriedade de todos. Além disso, ensina que, enquanto por injustificável omissão do legislador, não forem disciplinadas as novas estruturas familiares que florescem independentemente da identificação do sexo do par, ninguém, muito menos os operadores do direito, podem fechar os olhos a essas realidades. Em nome de uma postura conservadora, deixar de atribuir efeitos jurídicos às relações que, muito mais que uma sociedade de fato, constituem uma sociedade de afetos, revela atitude preconceituosa e discriminatória, indigna de quem se fez juiz. 72 Destarte, a garantia da cidadania passa pela garantia da expressão da sexualidade e a liberdade de orientação sexual insere-se como uma afirmação dos direitos humanos em um Estado que se diz democrático de direito. Portanto, é de fundamental importância que se respeite o homem por sua essência. Enquanto perdurar o preconceito, não se alcançará a justiça. 73 REFERÊNCIAS ASSEF, Tatiana Cunha Moscheta. Direito de família e das sucessões. São Paulo: Harbra, 2004. 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