Postal do Algarve
ID: 56913457
28-11-2014 | Cultura.Sul
Tiragem: 8595
Pág: 13
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Mensal
Área: 19,50 x 27,00 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 1 de 2
Artes Visuais
Qual a importância do título numa obra artística?
fotos: d.r.
Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático
da Universidade do Algarve;
Pós-doutorado em Artes Visuais
pela Universidade de Évora
Em 1917, Duchamp apresentou o trabalho “A fonte”, um
urinol branco de porcelana,
assinado com o pseudónimo
R. Mutt, para uma Exposição
da Sociedade para Artistas Independentes de Nova Iorque.
No entanto, o presidente da
direção da sociedade afirmou
à imprensa que essa “não era
uma obra de arte, sob qualquer
definição”, embora sendo uma
exposição aberta a todos os que
quisessem participar, desde
que pagassem seis dólares, o
que Duchamp fez.
Em defesa de Duchamp, na
altura o artista Beatrice Wood
escreveu um artigo de jornal,
The Blind Man, salientando que
pouco importava que Mr. Mutt
tivesse feito “A Fonte” com as
suas próprias mãos, pois o importante é que ele escolheu
esse objeto (“He chose it”). Ele
usou um objeto do dia-a-dia,
tendo-o retirado do seu lugar
habitual, fazendo com que o
seu sentido inicial e utilidade
desaparecessem e fosse criado
um novo pensamento sobre
esse objeto com base no novo
título e situação em que se encontrava. Assim, embora não
tenha tido uma intervenção
manual no sentido de produzir
um novo objeto, Duchamp selecionou um objeto já existente
e criou um novo pensamento
sobre este, podendo ser observado não como um vulgar
urinol, mas como uma “fonte”,
de acordo com o título dado a
esta “obra”. Neste caso o título é essencial, pois direciona a
percepção do observador para
compreender a mensagem e o
sentido do objeto apresentado pelo artista. Confome referiu Duchamp, “for me the title
was very important. I wanted
to put painting once again at
the service of the mind (…) We
think in words and images,
not in paint” (Godfrey, 1998).
No mesmo sentido, posicionam-se diversos autores contemporâneos, em particular
Kosuth (1996), ao considerar
que na base da arte concetual
A célebre ‘Fonte’ de Marcel Duchamp, que assinou a obra em 1917 sob o pseudónimo R. Mutt
está o fato do artista trabalhar
com significados e não com
formas, cores ou materiais, ou
Cauquelin (2010), ao defender
‘Néctar’, Joana Vasconcelos, 2006
que “expor um objeto é dar-lhe
um título, o título é uma cor”.
Duchamp realizou vários
readymade, como por exemplo expor um chaveiro na forma de garrafa (“Bottle rack”,
1914), o qual foi recreado por
Maureen Connor em 1989 e
também serviu de inspiração
para o trabalho de Joana Vasconcelos colocado à entrada no
CCB, em Lisboa. Assim sendo,
“A fonte” de Duchamp não surge como um trabalho isolado,
mas antes como um trabalho
inserido numa originalidade e
identidade que, de forma persistente, Duchamp desenvolveu, o que lhe permitiu fazer
história, sendo, atualmente, a
sua obra considerada uma das
mais importantes na história
de arte do século XX, pois influenciou vários movimentos
de arte moderna e pós-moderna, em particular a arte conceptual, segundo a qual a ideia
ou o conceito que se pretende
transmitir é o mais importante na arte. Nesta perspetiva, a
arte pode ser entendida como
uma forma de comunicação,
não tendo as obras de arte que
ser o produto das mãos do artista, ou esteticamente belas, ou
emocionalmente profundas.
Talvez não tenha muito sentido falar em readymade na atualidade, podendo objeto instalatório ser mais adequado. Em
todo o caso, continuam a ser
realizadas apresentações em
que alguns objetos do quotidiano são levados para dentro de museus. Por exemplo,
no trabalho “La visite guidée”
(1994), Sophie Calle colocou
um balde vermelho numa vítrine ao lado de peças arqueológicas, numa clara indicação
de que os objetos que agora fazem parte do nosso dia-a-dia,
um dia estarão ultrapassados
e serão peças de museu. No
entanto, não é o facto de estar
dentro de um museu o critério
que permita distinguir o que é
arte daquilo que não é, porque
senão como enquadraríamos o
Movimento “Land Art”, surgido
nos anos 60, caracterizado por
intervenções no exterior que se
tornam a própria obra de arte?
Parece-nos que foi o facto de
Duchamp ter sido persistente
na sua originalidade e identi-
dade, desenvolvendo um percurso coerente, que permitiu
aos seus trabalhos ganharem
sentido na história de arte.
Talvez o júri, do qual ele curiosamente fazia parte, tivesse razão quando não considerou “A
fonte” como objeto de arte, no
momento em que ela foi apresentada, mas é óbvio que atualmente qualquer crítico de arte
pode afirmar com segurança
que foi uma importante obra
de arte, porque Duchamp foi
persistente e coerente, criando
contexto histórico para a apreciação da sua obra.
É totalmente diferente de alguém se lembrar de apresentar
um trabalho deste tipo numa
exposição, nunca tendo feito
nada antes, nem indo fazer a
seguir. Por isso, tem pouco sentido o comentário de algumas
pessoas quando olham para
uma obra de arte: “eu também fazia isto”. A arte deve
ser apreciada, não só olhando,
mas procurando compreender
o sentido e o contexto da sua
realização. Assim, a consistência da produção original marca a identidade de um artista e
faz com que os seus trabalhos
possam ser considerados obras
de arte.
É a história ou o percurso de
cada artista, a persistência e a
consistência do seu trabalho,
que pode permitir inferir a dimensão artística do mesmo. Tal
como na ciência, o caso único
diz pouco, sendo necessário
realizar investigação junto de
uma amostra de sujeitos para
se poderem tirar conclusões generalizáveis. Também na arte
parecem ser necessários vários
trabalhos realizados pelo mesmo artista para poder ser avaliado o sentido da sua obra.
Após analisar várias teorias
de arte apresentadas durante o
século XX, Warburton, no seu
livro “O que é a arte?” (2007),
considera que “todas as tentativas filosóficas recentes para
definir arte têm sido até certo
ponto inadequadas. Ninguém
conseguiu ainda apresentar
uma teoria convincente sobre
o que é a arte. Assim sendo,
Warburton específica a sua
hipótese da seguinte forma: “é
melhor restringir o papel da
teorização acerca da definição
de arte a casos particulares”. E
termina o seu livro, concluindo
que “a questão da arte faz sentido porque é formulada por
pessoas interessadas em obras
de arte e não apenas na ideia de
arte. Em última análise, temos
de regressar às próprias obras”.
Postal do Algarve
ID: 56913457
28-11-2014 | Cultura.Sul
Tiragem: 8595
Pág: 1
País: Portugal
Cores: Preto e Branco
Period.: Mensal
Área: 19,50 x 10,39 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 2 de 2
d.r.
A importância
do título numa obra p. 13
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