As flores também ficam instáveis e podem ferir
A obra de Ana Miguel não é um desdobramento contemporâneo das conquistas do
modernismo. Sua pertinência estética passa deliberadamente ao largo da predominância
formal e plástica sobre o tema, anunciada no impressionismo, perseguida pelo fauvismo
e cubismo, mas conquistada, de modo pleno, pela arte abstrata.
Assim como muitos artistas da atualidade, Ana produz objetos que ultrapassam o
âmbito da forma pura, pois tratam de conteúdos éticos indispensáveis para a formulação
de uma estética contemporânea. Há, portanto, em seu trabalho, a retomada em novas
bases de uma dimensão semântica que fôra essencial à arte do passado e que, perdida
no mundo modernista, torna-se, outra vez, a cada dia, mais premente.
Na passagem da década de 50 para a de 60, a hegemonia da forma criada (sujeito) foi
substituída, no campo da produção artística, pela apropriação das imagens da mídia
ou da indústria (pop) e pelo uso de materiais, formas e métodos industriais (minimal).
Reconhecidas do ponto de vista autoral apenas pelo estrito mundo do design, mas
socialmente anônimas, essas imagens e formas, associadas ao sentido descartável do
consumismo, situam-se num lugar simbólico efêmero e, por isso mesmo, oposto à
perenidade aspirada pelas obras de arte.
Entretanto, autorizados desde Duchamp a ingressar no campo da arte, os readymade
e os demais objetos que se agregaram à história das conquistas estéticas recentes,
jamais foram apropriados devido às suas qualidades cromáticas, plásticas e formais
estritas. Ao contrário, quando os artistas deslocam para o campo da arte, objetos
estranhos à sua lógica, eles assim o fazem para reintroduzir, neste campo, um sentido
crítico- verbal. Por isso diminuem, na criação de seus trabalhos, o peso da esfera formal
pura, exclusivamente retiniana (Duchamp), a que vinha sendo reduzida a produção e
a fruição visuais. A simples integração da forma utilitária na arte, termina por trazer
para a obra, não só sua significação funcional prévia, isto é, ideológica, como assinala,
já que se afastou da invenção formal tomada como um fim em si mesmo, uma nova
atitude do sujeito-artista.
Ana Miguel produz objetos que, em sua maioria, parecem brinquedos. Tanto as técnicas
usadas para confeccioná-los (à exceção da gravura, eventualmente usada pela artista
de modo não convencional), os materiais de que são feitos e seu funcionamento,
parecem estranhos ao universo da arte. No entanto, mesmo assim, eles nos são
familiares porque evocam o cotidiano e não vivências estéticas. Essa significação
deslocada está na origem do sentido contemporâneo da poética de Ana.
Tecidos em croché ou cortados em tecidos de cores e texturas variadas, mas sempre
atraentes, os trabalhos dessa artista são costurados para receberem um enchimento
que lhes empresta volume e maciez. Em seguida, se pensados enquanto animais ou
vegetais, adquirirem olhos, dentes ou folhagem. Finalmente alguns deles adquirem
traços animais: movimentam-se (a pilhas) e comunicam-se pela emissão de palavras
e sons eletrônicos. Outros, imóveis, evocam um discreto repouso ou a imobilidade
eterna, de tipo vegetal.
Nas últimas três ou quatro décadas os sentidos ético e estético evocados pela finalidade
e pela aparência visual de quaisquer objetos, mudou radicalmente. Se considerarmos
o caso dos brinquedos e personagens infantis, surgidos desde então, veremos que os
animais humanizados das fábulas e filmes, deram lugar a um tipo muito particular
de ficção científica, quase delirante. Novos monstros, animais, planetas e culturas,
totalmente inventados, sem origem, receberam a humanidade anteriormente
destinada por Esopo, La Fontaine, Andersen, Lewis Caroll e Walt Disney aos animais,
plantas, heróis e deuses de longa carreira simbólica e imaginária.
Tomados a partir de sua configuração material, os seres de Ana Miguel pertencem,
sem sombra de dúvida, ao repertório projetado para o consumo infantil pela indústria
cultural. Entretanto ao se apropriar das aparências desse imaginário recente, desprovido
de raízes culturais profundas, a partir das narrativas tradicionais entranhadas, há
séculos, no universo simbólico ocidental, Miguel diferencia seus trabalhos, de modo
definitivo, das expectativas meramente infantis e, por isso mesmo, distingue-os dos
brinquedos contemporâneos.
O sentido feminino do trabalho dessa artista freqüentemente explicado pela evocação
ao universo da criança e pelo meios técnicos de que lança mão ( costura, croché,
etc.), não constitui o sentido último de sua obra. Entretanto esse ar infanto-feminino
é, sobretudo, uma passagem para questões muito mais abrangentes e essenciais da
poética de Ana.
Mas a articulação dos objetos a um imaginário ancestral, distante das operações do
consumo característico do mundo moderno e contemporâneo, é reconhecível somente
no conjunto da produção da artista. O funcionamento autônomo das peças em
relação à totalidade do trabalho supõe a introdução de elementos que as diferenciem
dos brinquedos dos quais, taticamente, extraem suas aparências. Sedutores à primeira
vista, esses objetos macios e delicados não foram confeccionados com objetivo lúdico.
Esses quase seres possuem uma agressividade latente, embora discreta, que contrasta
com sua frágil configuração. Indicada pelo uso de elementos como dentes, alfinetes
e olhos de boneca, a violência exalada dos trabalhos impede que muitos percebam a
delicadeza neles contida e reduzam-nos ao âmbito da perversão.
Para a artista, porém, a face violenta de suas obras não possui um caráter ontológico.
Ao contrário, ela pretende mostrar-nos que a separação entre bem e mal, norma e
perversão tem uma existência apenas discursiva e que a vida escorre entre possibilidades
que não coincidem com a ordem e a pureza transmitidas por uma ética e uma estética
normativas.
Vistas sob esse ângulo as peças de Ana Miguel trazem à tona um nível não consciente
(mas não necessariamente inconsciente) e corpóreo da realidade, que se posta
silenciosamente em todos os nossos atos. Algo próximo ao que Merleau-Ponty chamou
de lençol de sentido bruto (O Olho e o Espírito) pois antecede a toda separação, divisão
ou redução definida pela linguagem natural, filosófica e científica.
As Flores Também Ficam Instáveis e Podem Ferir pertencem ao jardim no qual crescemos
(os homens contemporâneos). Nele cada flor agrada e fere sem qualquer inocência
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