OLHARES SOBRE A OBRA DE MARCEL DUCHAMP - A MÁQUINA DE IDÉIAS, O ANTÍGENO ARTÍSTICO, O ARTÍFICE INTERTEXTO – UM PENSADOR NA ARTE Milena Guerson Licenciada em Artes-UFJF Especialista em Ensino de Artes Visuais-UFMG Mestranda em Estudos Literários/Teoria da Literatura-UFMG [email protected] Resumo: Abstract: Este trabalho consiste em um estudo básico sobre a obra de Marcel Duchamp, ressaltando sua inserção no panorama artístico da modernidade, e a herança disseminada para o pensamento contemporâneo em arte. São destacadas as obras Nu descendo uma escada n°2 (1911-1912), A noiva despida por seus celibatários, mesmo, ou Grande vidro (1915-1923) e a Caixa verde (1934), assim como há considerações sobre a realização dos Ready-made e os desdobramentos da arte conceitual. Ce travail consiste en une étude de base sur l’œuvre de Marcel Duchamp, en soulignant son insertion dans la scène artistique de la modernité, l'héritage et la diffusion de la pensée contemporaine dans l'art. Les travaux qui sont mis en évidence sont: Nu descendant un escalier n°2 (19111912), La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, ou Grand Verre (19151923) et La Boîte verte (1934), ainsi comme il y a des considérations sur l'exécution du Ready-made et les développements de l'art conceptuel. Palavras-chave: Mots-Clés: Duchamp, pintura, arte conceitual Duchamp, Peintre, l'art conceptuel Final do século XIX e início do século XX, Belle époque, apesar da confiante ambiência européia, em prol do progresso econômico-social, estão estabelecidos os patamares para uma crise no modelo capitalista. Ao considerarmos a expressão “corrida imperialista” designando o acirramento da busca de posses/territórios, devido às práticas do Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 capitalismo monopolista, percebemos também o desdobramento de inumeráveis conflitos, que convergem para o que vem a ser a Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto é que encontramos Marcel Duchamp (1887 – 1968), mais que um ser humano no sentido estrito do termo, um artista; e embora um antípoda da idéia de gênio artístico, um dos pioneiros a trabalhar com a “consciência da arte” (VENÂNCIO FILHO, 1988). A Primeira Guerra não é fator que influencia diretamente a obra de Duchamp, haja vista ser avesso à realização de arte pelo sentimento, trazendo consigo ideais calculistas. Segundo a abordagem de Venâncio Filho (1988), Duchamp não gosta e nem desgosta das coisas em geral, há indiferença, há também a negação da habilidade do fazer artesanal, e até mesmo da pesquisa plástica em pintura, apregoada pelas vanguardas. Duchamp tem participação nos domínios artísticos da modernidade, mas torna-se, de certa maneira, precursor e propulsor do pensamento artístico contemporâneo: Foi ao mesmo tempo discreto e polêmico, reservado e escandaloso, disperso e rigoroso. Talvez ele tenha realizado de maneira deliberada e calculada a cisão apontada pelo poeta T. S. Eliot entre ‘o homem que sofre e o artista que cria’. Levou essa cisão a um limite. Deixando Paris, assumindo pseudônimos, travestindo-se, inventando o ready-made, Duchamp nada mais fazia que separar-se de si mesmo. (...). Tornava-se, por assim dizer, um dispositivo artístico (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.9). Duchamp não se mostra como um artista engajado, na busca de soluções diante dos conflitos com o mundo circundante, mas nos remetemos à Europa, para percebermos o Duchamp que, nascido na Normandia e, certa feita, indo estudar em Paris, nasce também como pintor, partindo do ambiente familiar: “De família culta, tendo dois irmãos mais velhos já artistas – eram ao todo seis – ele cresceu em um ambiente apropriado e estimulante. Dos 15 aos 24 anos dedicou-se à pintura” (OSÓRIO, 2008). E deixando para trás uma trilha artística tradicional, constituída por um artista tradicional, decide, sob postura centrada, estabelecer um “código” para seu trabalho, a partir de experiências que veio a ter com a Instituição Arte. “Não se trata somente de inovar, transformar, revolucionar. Trata-se de encontrar um código, estabelecer um modo de comportamento estrito e intransponível. Mesmo que seja um anticódigo. Foi isso que Duchamp, antes de tudo, realizou” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.10). http://www.cogitationes.org 52 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 Não se trata de simplesmente ceder ao espírito da vanguarda, ou à tendência progressista e evolucionista da História da Arte; para se falar de Duchamp, não se pode ter como base as comuns concepções abordadas no campo da Arte com “A” maiúsculo, e sim, torna-se imprescindível aplicar como sustentáculo o questionamento dessas referidas concepções, gerando um campo que compactua com a própria atitude duchampiana: “Cubista sem ter conhecido Picasso ou Braque, colocou em crise o cubismo analítico com seu quadro Nu descendo uma escada. Surrealista antes do surrealismo, dadaísta antes do dadaísmo, confundido como futurista, Duchamp circulou, ora indiferente, ora atuante, nos mais importantes movimentos artísticos do século. Foi um pouco de tudo e muito dele mesmo” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.11-12). Para Compagnon (2010) a modernidade se constitui por uma tradição feita de rupturas, ou seja, cada novo começo termina, uma geração rompe com a outra, acarretando que a modernidade incorra em um paradoxo ou aporia, pois se o moderno é “negação da tradição”, é também “tradição da negação” ou “negação da ruptura.” E Compagnon (2010, p.12) propõe que, se o moderno trata de “rupturas irrecuperáveis”, e a visão da História da Arte é progressista, artistas que primeiro propuseram ideais de modernidade seriam constantemente desbancados. Defende, então, que “deveríamos fazer uma história paradoxal da tradição moderna, concebida como uma narrativa esburacada, uma crônica intermitente.” Dessa Maneira, longe de especificações sobre movimentos artísticos, pelo estudo de suas principais características, para falar de Duchamp é preciso entender uma arte que desestabiliza e estabelece a si mesma, em um ciclo dialético: “Para Duchamp, a arte, todas as artes, obedece à mesma lei: a meta ironia é inerente ao próprio espírito. É uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa” (PAZ, 2002, p.11). Temos a busca de uma arte conceitual, diante de uma postura intelectiva. Para Compagnon (2010, p.20), “nossa concepção moderna de um tempo sucessivo, irreversível e infinito tem por modelo o progresso científico ocidental, desde a Renascença, com a abolição da autoridade e o triunfo da razão.” E apregoa que “recorre-se (...) à generalização sociológica mais grosseira sobre a situação histórica do espírito moderno:(...)” http://www.cogitationes.org 53 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 (2010, p.49). A partir de uma História da Arte pautada nessa visão genético-progressista, temos que, influenciados em parte pelas idéias de Kant, os artistas da modernidade se vêem na necessidade de buscar a linguagem própria da arte – o que designa cada arte puramente, em si. Segundo a abordagem de Greemberg (In, COMPAGNON, 2010, p.55), no campo da pintura, se fazia necessário ressaltar elementos que remetessem somente a esse universo, de onde deriva a concentração das vanguardas no estudo do plano pictórico (da planeidade da tela), ressaltando o bidimensional. Em 1911, Picasso e Braque divulgavam telas que apresentavam características do cubismo analítico, com “a facetação da figura, a multiplicidade simultânea de pontos de vista, a redução do volume à superfície, a palheta reduzida” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.31). Figura 1 – Pablo Picasso, O Poeta (1911). Figura 2 – Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada n°2 (1911-1912). Figura 3 – Georges Braque, Homem com uma guitarra (1911). Tendo se enveredado pelo Movimento cubista, que se encontrava em voga na época, Duchamp tem sua tela, Nu descendo uma escada n°2 (1911-1912), recusada no Salão dos Independentes, em Paris. Essa recusa se dá sob alegação de que a obra não estava de acordo com o cubismo, devido principalmente à presença do volume e do movimento maquinal que http://www.cogitationes.org 54 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 compunham aquela imagem. Conforme Venâncio Filho (1988, p.36), Duchamp, ao realizar o Nu, associa aos processos do cubismo analítico algo de fantasia e imaginação. Por decomposição formal, através de formatos de lâminas que se repetem, e de sucessões paralelas que se correspondem, compondo o objeto em deformação, Duchamp elabora sobre o movimento. A análise do cubismo destruiu o tempo absoluto e unitário colocando na tela o tempo relativo e fragmentado através da apresentação simultânea de vários aspectos de um objeto que só podiam ser percebidos em tempos diferentes. Assim como o cubismo decompunha o tempo, Duchamp podia decompor o movimento (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.36). O Nu é um dos marcos da trajetória duchampiana, e não representa somente o momento de ruptura com o cubismo analítico, trata-se de uma ruptura com a pintura tradicional inteira. Segundo palavras do próprio artista, ao falar da ruptura em relação ao pictórico: Ela veio de muitas coisas. Primeiro, o contato cotidiano com os artistas, o fato de viver com artistas, me desagradava muito. (...). No grupo de pessoas mais avançadas da época, algumas tinham escrúpulos excessivos, manifestavam uma espécie de medo. (...), acharam que o Nu não tinha a ver com a linha que já haviam previsto. O Cubismo não tinha ainda dois ou três anos de existência, e eles já tinham uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo que deveria acontecer. Eu achei muito ingênuo. Isso me esfriou a tal ponto que, como uma reação contra tal comportamento, da parte de artistas que eu acreditava livres, arrumei um emprego. Tornei-me bibliotecário na Biblioteca Sainte-Geneviève em Paris (CABANNE, 1987, p.26-27). Conforme Venâncio Filho (1988, p.37), se a obra evidenciada foi recusada no contexto cubista, sendo considerada um “frenesi do cubismo”, ou representante de um “cubismo imaginário”, até mesmo “uma piada sobre a ortodoxia cubista”, ao ser enviada para o Armory Show, nos Estados Unidos, teve a obra uma diferente recepção. O Armory Show se tratava da primeira exposição de Arte Moderna a ser realizada na América, recebendo trabalhos dos diferentes movimentos artísticos que vigoravam. Assim, no ano de 1913, em Nova Iorque, entre obras de Matisse, Cézanne, Picasso, Braque, Kandinsky, Brancusi e outros, lá estava o Nu, de Duchamp, com sua intrínseca polêmica (VENÂNCIO FILHO, 1988, http://www.cogitationes.org 55 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 p.18). Pelo efeito do movimento a referida tela poderia nos remeter ao Futurismo, porém a intenção daquela obra não era designar algo futurista; principalmente, nela não estava contida a idéia de culto que exalta a velocidade, e sim a idéia de representar, de forma estática, o movimento; o qual é, para Duchamp, algo passível de ser estudado, parte da realidade a ser pesada e medida, artística ou cientificamente. Para os futuristas a velocidade se torna a própria realidade, numa visão onde impera a sensação. “É o espírito difuso da época que, na verdade, aproximava Duchamp e os futuristas. Eles não eram os únicos interessados no movimento. A arte respondia ao assalto das máquinas. Duchamp e os futuristas são aspectos da mesma resposta” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.42). Segundo Argan (1992, p.438-439), o Nu teria sido bem aceito no Armory Show, pois nos Estados Unidos “a passagem do ambiente natural para o ambiente tecnológico fora mais rápida e traumática que na Europa.” Nos Estados Unidos, as pessoas já se encontravam habituadas ao mundo das máquinas, e haveriam acatado com grande força essa nova influência tecnológica sobre os antigos costumes. Ainda conforme o autor: “O movimento de uma pessoa que desce uma escada é um movimento repetitivo, mecânico, semelhante ao movimento de uma máquina. Ao executá-lo, a pessoa passa do estado de organismo vivo, para o de engenho ou máquina; o funcionamento biológico se transforma em funcionamento mecânico.” Tal como seria o destino das pessoas em geral, em relação à sociedade tecnológica. Analítica, mas não cubista; abordando o movimento, mas não futurista, o Nu, antes de qualquer consideração, é uma obra que exige “apreciação intelectual” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.37); “o cubismo analítico convertido em cirurgia mental” (PAZ, 2002, p.10). Ruptura com a tradição pictórica, resposta de um Duchamp que já trazia, em si, a contestação de uma arte que, há muito, “celebrava o racionalismo” (KRAUSS, 1998). Uma pessoa nua descendo uma escada, além de sugerir uma situação imaginária, era o perfeito contraponto ao nu clássico, deitado e estático. Não é um nu que sugere contemplação, pede mais ação do que o próprio contemplar, “é o olho que incorpora movimento ao quadro” (DUCHAMP apud VENÂNCIO FILHO, 1988, p.39). Marcel Duchamp, máquina de idéias, estabelece sua ruptura http://www.cogitationes.org 56 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 com a instituição Arte e, ao comentar sobre o ato criador, afirma: Milhões de artistas criam; somente alguns poucos milhares são discutidos ou aceitos pelo público e muito menos ainda são os consagrados pela posteridade. Em última análise, o artista pode proclamar de todos os telhados que é um gênio; terá de esperar pelo veredicto do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte. (...), o papel do público é o de determinar qual o peso da obra de arte na balança estética (DUCHAMP, 1987, p.72). Se uma mesma obra poderia ser depreciada em um lugar e aclamada em outro, o que faria uma obra se tornar arte? Partindo desse questionamento, pode-se dizer que o legado duchampiano, em formação, incorpora certa imponência bélica; metodicamente, o artista consegue gerar conflito não pelo fato de lutar com afinco, mas por ser indiferente, por fazer arte baseada numa fina crítica da própria arte. Nos domínios da metalinguagem, tal como elemento nocivo, porém atenuado, Duchamp se constrói como antígeno artístico, no intuito de prover uma arte vacinada de torrentes e arrebates – uma arte alheia ao psicologismo e ao emocionalismo, enfim, ao simbolismo, propriamente dito. Em paralelo entre as Artes Visuais e a Literatura no século XX, assistimos a gradual recusa das idéias de autoria – que sugere um eu, uma marca pessoal, um subjetivo psicológico –, na direção de idéias, cuja palavra central pode-se dizer ser o conceito de “forma”, por vezes, “tautológica” (DIDI-HUBERMAN, 1998). A forma que será evidência, como o próprio nome diz, entre o Formalismo Russo e a Estilística, da decomposição cubista do espaço tridimensional até o pensamento minimalista. Conforme Compagnon (2010, p.4748), que retoma Friedrich, a poesia a partir de Baudelaire, renuncia à expressão do sentimento, e torna-se vontade formal. “Em Mallarmé, a rarefação e o hermetismo se acentuam como recusa dos limites da inteligibilidade e busca do ser em si, equivalemte ao nada, transcendência vazia do coup de Dés (Lance de Dados).” Mas Compagnon (2010, p.48) cita Friedrich para sugerir que a visão desse autor nos oferece uma explicação históricogenética, sugerindo que, tal como Rimbaud, embora de forma diferente, Mallarmé “leva sua obra até aquele ponto em que ela se destrói e anuncia o fim de toda poesia.” Para Compagnon (2010, p.50) a poesia de Mallarmé, não é “menos representativa“ que a de Baudelaire, nem mais “indeterminada ou ambígua em seu sentido”, pois não seria ideal http://www.cogitationes.org 57 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 “confundir obscuridade e modernidade, hermetismo e ausência de referência.” Paz (2002, p.52-53) associa Duchamp e Mallarmé, em seu radicalismo, “um é o poeta e o outro é o pintor da Idéia. (...). O papel que o acaso desempenha no universo de Mallarmé, assume-o o humor, a metaironia, no de Duchamp.” Além disso, afirma que “A obra Gêmea do Grande Vidro é Um coup de Dés.” Compagnon reconhece a ironia como “um dos componentes essenciais da modernidade”, também reconhece os conceitos de “desrealização” e “despersonalização” – como sendo “os dois fatores da análise dialética da tradição poética moderna” (2010, p.50). Duchamp é essencialmente irônico, desrealizador e despersonalista. Em 3 de agosto de 1914 a Alemanha declara guerra à França. Em 6 de agosto de 1915, Duchamp embarca para a América. Tudo na perfeita harmonia das forças do “acaso”. “Um francês na América faz tanto sentido quanto um nu descendo uma escada. Havia a guerra e o sucesso no Armory Show como justificativas.” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.18). Guerra se estabelecendo pelo mundo e ruptura de Duchamp com a Paris da recusa, e paradoxalmente centro mundial da arte moderna. Na América, mais precisamente em Nova Iorque, temos agora um Duchamp, de certo modo anônimo, inserido em novo ambiente, que se faz propício para a realização de outro empreendimento. Voltamo-nos para a obra conhecida como Grande Vidro, na qual Duchamp trabalha com a ruptura que faltava: a do “celibatário” com a pintura tradicional. O título do Grande Vidro é, em verdade, A noiva despida por seus celibatários, mesmo, sendo que a metade inferior da obra é denominada Máquina Celibatária. Para Duchamp, “celibatário não é o estado oposto ao de casado, nem se confunde com a condição de solteiro, celibatário é um projeto existencial, uma atitude intelectual” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p. 13), assim como a noiva não seria uma noiva comum e poderia representar a própria pintura e suas artimanhas. Após trabalhar na realização dessa obra, entre 1915 e 1923, por cerca de oito anos, o artista a abandona incompleta. Em 1926, operações de transporte da obra acarretam-lhe rachaduras; Duchamp passa a empregar a idéia de que o acaso teria, enfim, terminado a obra, cujo destino se configurou em perpetuação inacabada. A partir desse fato há o “abandono” da pintura por Duchamp, foi o próximo passo http://www.cogitationes.org 58 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 após trazer a tinta para um suporte de vidro, realização que contestou o fundo em perspectiva das pinturas tradicionais. No Grande vidro o suporte faz aparecer o ambiente em que a obra se encontra, onde podemos projetar nossas próprias perspectivas, e podemos nos ver refletidos no vidro. Segundo palavras do artista: “O vidro me interessava como suporte por sua transparência. Em seguida, a cor, pintada sobre o vidro, é visível do outro lado e não se oxida se for lacrada. A cor mantém-se intacta, tanto quanto possível, com sua pureza visual. Tudo isso constituía questões técnicas que tinham sua importância” (DUCHAMP apud VENÂNCIO FILHO, 1988, p.49). Assim como o Nu prima pela apreciação intelectual, temos, segundo Paz (2002, p.67), que o Grande Vidro “é um enigma e, como todos os enigmas, não é algo que se contempla, mas sim que se decifra.” A obra, em si, foi realizada para que os espectadores observem além... através, metafórica e literalmente. Olharmo-nos através de um vidro pode ser equiparado a interpretar um texto por nossa própria forma de pensar. Na modernidade, em geral, já não importa tanto os direcionamentos dados pelo autor de uma Figura 4 – Marcel Duchamp, A noiva despida por seus celibatários, mesmo (1915-1923). obra, mas o modo de olhar do leitor, em obras (livros, poemas, pinturas, antipinturas) que, então, subentendemos, podem perpetuar inacabadas, tal como o Grande Vidro. Ultrapassando sua transparência, a obra em questão, que corresponde a 12 anos de trabalho aproximadamente, é uma imbricada rede, tecida com austeridade, pois há metódicas relações e significados contidos na Caixa verde, elaborada e editada por Duchamp, sendo publicada em 1934, a qual se trata de uma espécie de catálogo que esmiúça todo o projeto, todo o planejamento elaborado pelo artista, para a execução do Grande vidro. Paradoxo: ninguém como ele http://www.cogitationes.org 59 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 se desligou tanto da idéia de “obra” ninguém como ele organizou tanto a própria obra (CAMPOS, 1986, p. 202). Figura 5 – Marcel Duchamp, Caixa verde (1934); livro ilustrado com noventa e quatro páginas. Duchamp ressalta a importância do fornecimento de significados para suas obras, para tal faz uso freqüente de trocadilhos e jogos de palavras, daí se desdobra uma aproximação com o literário. Em sua postura artística, prima pela utilização da linguagem referente ao verbo, e chega a afirmar que “o título é um elemento essencial da pintura, como a cor e o desenho” (PAZ, 2002, p.10). Ainda segundo Paz (2002, p.16) “A Noiva... é uma transposição, no sentido que Mallarmé dava a essa palavra, do método literário à pintura.” Na página 20, o autor retoma: “A pintura é escritura e o Grande Vidro um texto que devemos decifrar.” O fascínio de Duchamp “diante da linguagem é de ordem intelectual: é o instrumento mais perfeito para produzir significados e, também, para destruí-los” (PAZ, 2002, p.11). De onde podemos inferir que há entre a Caixa verde e o Grande vidro uma relação de anulação, pois na Caixa estão contidos projetos escritos que não são literatura – os escritos, quando considerados como entidades, vão além, mas o Grande vidro, por sua vez, não é um objeto artístico por si só, haja vista que interage com a Caixa. Nem tudo o que está contido na esquematização foi materializado no vidro, e a obra em vidro não se restringe http://www.cogitationes.org 60 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 somente ao que está escrito nos esquemas. Dessa forma, se poderia dizer que a potência entre o Grande vidro e a Caixa, está no vazio gerado pela mútua destituição que um objeto causa ante o outro; não são válidos os escritos e nem a obra construída, é considerado o caminho, o vale onde é gerada a mútua destituição, e esse vale é o conceito artístico (PAZ, 2002, p.30-31). Abordando o ato criador, Duchamp afirma: Na cadeia de reações que acompanham o ato criador falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o “coeficiente artístico” pessoal contido na sua obra de arte. Em outras palavras, o “coeficiente artístico” pessoal é como que uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente (DUCHAMP, 1987, p.71-74). Gullar (2005, p.12) nos apresenta um contraponto, pois embora reconheça que o Grande Vidro tenha sido realizado com materiais não tradicionais em pintura, ressalta que se trata de “uma obra artesanal e que exigiu do artista um enorme esforço.” Gullar considera Duchamp como uma espécie de artesão “agonizante”, o qual, se pode dizer, oscila entre o separar-se de si para criar, e o ser em si mesmo: Eu havia trabalhado anos numa coisa que, voluntariamente, desejava que fosse executada a partir de planos precisos; mas, apesar disso, não queria, e talvez por isso tenha trabalhado tanto tempo, que ela fosse a expressão de alguma espécie de vida interior. Infelizmente, com o tempo, perdi todo o entusiasmo na sua execução; não me interessava mais, não tinha mais a ver comigo. Então, me cansei, e parei, mas sem nenhum choque, sem uma decisão brusca; nem pensei nisso (DUCHAMP apud CABANNE, 1987, p.27). Como propõe Cabanne (1987, p.27), e Duchamp certifica ao entrevistador, ao falar do Grande Vidro, a obra tratou-se de “uma recusa progressiva aos meios tradicionais”. Não se pode negar, assim, que a realização do Grande Vidro caracteriza uma mudança significativa no pensamento plástico de Duchamp, pois esse abandona, de forma ainda mais veemente, o realizar pictórico, e passa a pensá-lo, chegando a tratá-la somente em nível de idéias; o que passa a valer é a atitude do projeto em arte; conforme Paz (2002, p.8-9), “tudo que fez a partir de 1913 é parte de sua tentativa de substituir a pintura-pintura pela pintura-idéia.” “Pintura retiniana” é uma expressão utilizada para designar uma pintura que se http://www.cogitationes.org 61 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 prende ao dado visual, ao olhar, ao que se vê. Duchamp quer levar a pintura para além do simples olhar da realidade, pois, conforme Paz (2002, p.9), “nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem e terminam em uma zona invisível. (...) o invisível não é obscuro nem misterioso, é transparente.” Talvez a transparência inicie no Grande Vidro, para que possamos prosseguir até o invisível. As palavras que seguem, ditas pelo artista, caracterizam seus ideais e seu “abandono da pintura”: Os últimos cem anos foram retinianos, os próprios cubistas o foram. Os surrealistas tentaram se libertar, do mesmo modo que os dadaístas, mas estes eram niilistas e suas realizações não foram suficientes para provar que, segundo suas teorias, não tinham necessidade de pintar. Eu estava tão consciente do aspecto retiniano da pintura que quis encontrar outra via de exploração. Cem anos de retinianismo é suficiente. Antes, a pintura era sempre um meio para um fim, fosse ele religioso, político, social, decorativo ou romântico. Hoje é um fim em si (DUCHAMP apud VENÂNCIO FILHO, 1988, p.50). Se Nietzsche “mata Deus” na Filosofia, Duchamp quer “matar a Pintura” e, se quer matar a Pintura, quer matar a Arte inteira, fundada que está, desde a Grécia, na idéia de mimese. Compagnon (2010, p.46-47) apregoa que, segundo a visão progressista da História da Arte – que corresponderia a uma ortodoxia surgida em fins do século XIX –, um dos pressupostos básicos da modernidade é “um afastamento cada vez mais radical em relação à representação e à referência denominada mimesis, desde Aristóteles – a fim de reatar com uma base mais autêntica da arte.” Como se quisessemos esboçar uma “história da purificação da arte, de sua redução ao essencial (...), uma tensão da arte em direção a seu limite ou, ainda, uma redução da ilusão, uma reapropriação da origem.” Duchamp, entretanto, antígeno estranho, não quer reatar autenticidade, ou ontologicamente reapropriar o originário, quer romper ironicamente, reduzir a arte às suas necessidades básicas. Entretanto, convém lembrar que um antígeno não destrói, mas se arma contra um específico “mal” maior, a partir desse próprio “mal”. Duchamp não mata a arte, não pode fazê-lo, pois está envolto por ela “até o pescoço”, por isso é essencial que mantenha a medida (seu código), para não dar cabo de si em uma forca e, se ameaça agredir a arte, é preciso armar, de imediato, o assopro. Para Ferreira Gullar (2005, p.11-12), “Duchamp se tinha, no fundo, como 'o último http://www.cogitationes.org 62 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 artista', aquele que já perdeu os seus instrumentos de expressão, mas ainda insiste em expressar-se.” Duchamp, então, é um último suspiro, um artesão rendido, fez apenas o que lhe restava fazer. Talvez um artífice intertexto, capaz de vestir a materialidade com um corpo de conceitos, alfaiate ou celibatário que, em vez de vestir, despe noivas picturais. Ainda segundo Gullar, a arte conceitual, derivada do trabalho de Duchamp, não é questão de vanguarda, e não revela nada mais do que um impasse a que chegou “a pintura e as artes artesanais.” Não passa da “remanescência de uma linguagem agonizante – no compasso de espera por uma outra arte, mais ajustada aos novos tempos.” A arte conceitual é situada como “lamento nostálgico” da “falecida arte artesanal”, que não adere a novos recursos tecnológicos, advindos da sociedade industrial, mas sim os ironiza e, por vezes, os nega. http://www.cogitationes.org 63 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 Figura. 6 – Marcel Duchamp, Roda de bicicleta (1913); readymade. Figura 7 – Marcel Duchamp, Fonte (1917); ready-made. Figura 8 – Marcel Ducham, Porta-garrafas (1964); readymade. No âmbito do Duchamp que segue rompendo com tradições temos a passagem do Grande vidro, “que precisa estar em algum lugar”, para os ready-made, que “podem estar em qualquer lugar” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.24). O Grande vidro teve seu fim no acaso, “é o resultado de um processo de desestetização. É a progressiva retirada dos procedimentos, dos materiais, da temática tradicionais, para deixar nada ou quase nada", os ready-made têm seu início a partir do acaso, tratando-se de objetos selecionados sob os olhos da indiferença, para serem lançados no mundo artístico. (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.62). Com esses feitos, Duchamp traçava formas para destituir de seu posto o que seria considerado arte, e acrescentar ao lugar destituído, coisas consideradas banais. Como estrategista, prestes a concretizar um “xeque-mate” – praticante assíduo que era do xadrez –, através dos readymade, banal e simplesmente, traz objetos que tinham utilidade no cotidiano de cada ser humano, produzidos em escala industrial, para serem inseridos na esfera não-utilitária da arte. Não temos mais telas, paletas e pincéis, não mais talentos ocultos e sagrados museus, os ready-made seriam realizados não para habitar, povoar exposições, mas para circular no pensamento entre a tradição e a modernidade em arte, chegando então a habitar a própria atmosfera da contemporaneidade. Segundo Osório (2008), “A obra de Duchamp deve ser vista não apenas nela mesma, mas na variada descendência germinada na sua http://www.cogitationes.org 64 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 atitude”. Através dos ready-made, Duchamp gera uma popularização da arte, abolindo ares de pompa, por exemplo, ao acrescentar bigode e barba em uma reprodução da consagrada Monalisa, em se tratando dos ready-made retificados, que funcionam como espécies de releituras ou citações de obras, utilizando-se de intervenções (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.6970). Quando Appolinaire afirmou que Duchamp iria “reconciliar a arte com o povo”, ele estava de alguma forma certo. Duchamp promovia indiretamente uma sensibilidade anônima, urbana, e afinal popular, para a esfera da arte. Realizava, a seu modo, a máxima de Lautréamont: “A arte deve ser feita por todos”. Todos através de Duchamp faziam arte (VENÂNCIO FILHO, 1988, p. 21-22). A realização dos ready-made caracteriza o auge do questionamento duchampiano sobre a arte, pois em comunhão com a banalidade desses objetos, está ressaltada a grandiosidade das idéias. Não são produzidos, no que diz respeito ao engenho do fazer artístico tradicional, são trabalhados em nível de contextos e conceitos. Duchamp demonstra, definitivamente, que arte não é puramente visão. Importante ressaltar que, segundo explanação do artista, se ele tivesse feito grande número de ready-made, a idéia sobre os mesmos seria inutilizada, pois surgiriam implicações com o gosto pessoal, e de forma alguma objetos visados para a realização de um ready-made eram escolhidos por “deleite estético”, em contraponto à questão do objet trouvé, termo que designa a escolha de objetos com base no gosto pessoal, aos quais também é conferido algo de sentido poético, relações com o belo, entre outras considerações (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.71). Duchamp não poderia deixar que se estabelecesse uma linguagem a partir dos ready-made, se viesse a existir, por parte dele, um “Ready-madismo”, todo um ideal seria desperdiçado. “Os ready-made (...) envolviam um estrito código ético/estético” (VENÂNCIO FILHO, 1988, p.71), e vêm a ser os mais característicos frutos do próprio código estabelecido por Duchamp, para a realização de sua crítica à arte, pela via da própria arte. Marcel Duchamp, máquina de idéias, antígeno artístico, buscava a recusa de “compromissos, da família à profissão, em nome da integridade e da coerência de sua obra e de sua vida.” (OSÓRIO, 2008). Enfim, ao acatarmos a função dos ready-made, estaríamos admitindo que tudo pode http://www.cogitationes.org 65 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 ser arte? Seriam exageros os ideais de Duchamp? Para Venâncio Filho (1988, p.72), “Quando tudo pode se tornar um ready-made não está a arte condenada ao desaparecimento? Ou ao contrário: tudo se torna arte. O ready-made aponta para uma dessas possibilidades. Ele é um limite, um limite da arte, que foi mais tarde exaustivamente explorado pelos artistas contemporâneos.” O próprio Duchamp certamente não tinha consciência da abrangência que suas obras e idéias tomariam na atualidade, a amplitude do panorama de discussão sobre as questões duchampianas foi naturalmente ressaltada pela crítica de arte ao longo dos tempos. “Sua obra transita na linha abissal e milimétrica que separa a banalidade da transcendência, o visível do invisível. Na verdade ela não está nos museus, mas sim entranhada em nossa cultura e comportamento, inspirando constantemente nossa imaginação” (OSÓRIO, 2008). Por seu caráter niilista, por sua discrição e austeridade, visto que se dizia avesso à idéia de público e de posteridade, Duchamp não se importaria muito com quaisquer críticas e considerações. Em sua época presenciou muitas delas, recusas que geraram revolução, como no caso do Nu e do famoso ready-made do mictório, o qual esteve escondido, censurado, nos bastidores de uma exposição. E a assinatura que consta no mictório é um pseudônimo “R. Mutt” ou, se quisermos, é cada um de nós. Para Gullar (2005, p.24), sobre os ready-made: “eles tiram sua significação da arte que contestam e tanto isso é verdade que, hoje, quando já não contestam nada, perderam toda força expressiva. É que sua expressividade era externa a eles, meramente sintática, conjuntural.” Enquanto isso, obras que seriam “fruto de aprofundada elaboração da linguagem pictórica, mantêm sua significação através dos anos.” Além disso, afirma que os ready-made, em vez de romper com a arte, simplesmente expressariam “inconformismo” para com a “civilização industrial, que pôs fim à arte artesanal.” Passam-se os anos, variam-se as críticas, mas não se cansa de abordar Marcel Duchamp, seja para edificá-lo, seja para “desconstruí-lo” (SANT´ANNA, 2003). Estima-se que em vez de: Por que arte? A pergunta fundamental talvez seja hoje: Por que Duchamp? E uma possível resposta é porque talvez tenha se utilizado muito da ironia, e o riso destrói o dogma, o senso comum é a favor do dogma, e a função principal da teoria e da crítica artísticoliterária é ir contra o senso comum; segundo Compagnon (2003, p.17) “o que caracteriza a http://www.cogitationes.org 66 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 teoria é (...), sua vis polemica, e os impasses aos quais isso leva a teoria, sem que ela mesma se dê conta, (...).” Portanto, a certeza que podemos ter é a de que, assim como os Estados Unidos ascendem como potência mundial no final da Primeira Guerra, o Duchamp em Nova Iorque surge como potência artística na “Guerra da arte”, na Crise da Arte, na História da Arte pós prenúncios de sua morte – Postmodern , Post mortem, ou então uma arte vacinada contra sua ameaça aterradora de fim. Contra ou a favor de seu próprio gosto – até mesmo na insossa e inodora ausência desse – talvez, contradizendo o mero acaso, tenha sido Duchamp, um pensador na arte, para sutil e meticulosamente revolucionar concepções, uma vez que o pensamento logicamente se desenvolve em acordo com a evolução do Homem: Os movimentos de vanguarda nasceram das mudanças introduzidas na sociedade pela revolução industrial e o desenvolvimento científico-tecnológico. Essas mudanças conduziram, de um lado, à substituição da produção artesanal pela industrial e, de outro, à crise da representação figurativa da realidade. A preponderância do modo de produção industrial levou à desvalorização do artesanato como base da produção artística e estimulou a adoção de novas técnicas de expressão e o uso de novos materiais. O radicalismo niilista do Dadaísmo duchampiano expressa essa desvalorização da técnica artesanal (…) (FERREIRA GULLAR, 2005, p.10). Assim como as máquinas revolucionam a sociedade industrial, desarticulando o artesão independente, Duchamp desarticula/rearticula o viés artesanal da arte. Conforme Paz (2002, p.15), em Duchamp não temos uma “filosofia da pintura”, mas “a pintura como filosofia”; o artista, acima de tudo, dissemina a necessidade de novas atitudes, pautadas em condutas metódicas e disciplinarmente contestadoras – a destruição gera a reconstrução, inclusive no que diz respeito à destruição da arte de uma velha Europa, para a incorporação de novas IDÉIAS. assim duchamp opera o trânsito pansemiótico entre verbal e o não-verbal guerrilheiro artístico duchamp pontilhou seu caminho solitário de obras-esfinges http://www.cogitationes.org Figura 9 – Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q. (1919); ready-made retificado. 67 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. II, Nº 5 Juiz de Fora, ago.-nov./2011 que nos provocam sob as mais diversas e despretensiosas camuflagens monalisticamente ambíguas como o seu autor (CAMPOS, 1986, p.208). Referências bibliográficas ARGAN, G.C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CABANNE, P. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1987. CAMPOS, A. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. COMPAGNON, A. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago, 2003. COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice Galery. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. DUCHAMP, M. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987. GULLAR, F. 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