As práticas testamentárias paulistanas da primeira metade do século XIX
Maria Lucília Viveiros AraújoI
Resumo: Os testamentos da primeira metade do Oitocentos apresentavam os
comportamentos em processo de transformação. Alguns utilizavam-no para favorecer
os parentes preferidos, outros para regularizar uniões informais, outros ainda para
saldar dívidas morais ou para a salvação da alma. No entanto, os legados aqui
estudados beneficiaram principalmente o parentesco consangüíneo, o que nos indicou
a necessidade de refletir sobre as práticas da partilha no Brasil e, também, sobre as
questões de gênero, haja vista que as mulheres tenderam a proteger notadamente as
filhas.
Palavras-chave: história da família, história das mulheres, história cultural, história do
Direito, história do Oitocentos.
The will practices in São Paulo in the first half of the XIX century
Abstract: The will of the first half of the 1800s presented behaviors undergoing
transformation. Some used them to favor their favorite relatives, other to regularize
informal unions, and others to settle moral debts or even to save their souls.
Nevertheless, the legacies studied here mainly benefited the consanguineous kinship,
which indicated the need to reflect on the partition of assets in Brazil and, also, on the
gender issues, since women notedly tended to protect their daughters.
Key words: family history, women history, cultural history, Law history, 1800 history.
Nosso artigo tem por objetivo refletir sobre as práticas testamentárias dos
paulistanos numa época de grandes transformações. Muitos testadores serviam-se
ainda dos testamentos para seus pedidos espirituais, entretanto, a maior parte das
terças foi reservada para o cumprimento dos pedidos temporais, principalmente para
aqueles relacionados à partilha do espólio. Por isso propomos investigar de que forma
1
esses legados interferiram no sistema de partilha igualitária entre os irmãos e em que
condições os filhos ilegítimos herdaram. Desenvolvemos a idéia que, ainda que a
sociedade paulista mantivesse muitas das tradições religiosas do período colonial na
primeira metade do século XIX, a capital era palco de importantes mudanças
econômicas e políticas que aceleraram a adoção de formas testamentárias mais
profanas desde a primeira metade do Oitocentos. Nossos dados demonstraram que,
apesar da maioria dos testadores manter ainda os pedidos espirituais, as disposições
testamentárias a favor do grupo familiar carreavam, em geral, 53,63% do valor total
delas.
Para esta investigação utilizamos os testamentos transcritos nos inventários
post-mortem do 1º Ofício da Família da Capital, datados de 1800 a 1850, num total de
68 testamentosII. Todos os testadores residiam na região central da cidade.
Transformações econômicas e culturais
Nas últimas décadas do século XVIII, a economia paulista, tradicionalmente
ligada ao abastecimento, voltou-se para o mercado externo. Muitas cidades do
planalto paulista passaram a produzir açúcar para a exportação. Possibilitando assim
à elite paulista, em poucas décadas, ampliar suas posses e seus membrosIII.
Na primeira década do século XIX, a corte portuguesa foi transferida para o Rio
de Janeiro, incrementando ainda mais o comércio de abastecimento paulista. Seguiuse a liberação do comércio, das informações, das investigações científicas, a
independência política e, por fim, a criação da faculdade de direito de São Paulo.
A Ordem Terceira de São Francisco e a do Carmo tiveram seu apogeu nessa
época. Elas se aproveitaram do crescimento econômico para reconstruir suas igrejas à
altura da capital em expansãoIV.
Os testamentos também nos indicam a expansão dessas associações leigas,
pois a maioria dos testadores era de irmãos terceiros. Além das jóias e anuidades,
essas
irmandades
eram
mantidas
pelos
2
legados
dos
irmãos
falecidos
e,
principalmente, pelas cerimônias fúnebres. As demais confrarias deviam possuir sedes
mais modestas, já que as Irmandades do Santíssimo Sacramento, da Ordem de
Cristo, de Santa Efigênia, de Santo Antônio, das Almas, de São Benedito, foram pouco
lembradas pelos testadores. Entretanto, essas confrarias não tenderam a se expandir
no século XIX, ao contrário, elas foram perdendo suas festas, sua pompa e seus
adeptos. As procissões da capital foram desativadas antes do final do século. A
tradicional procissão das cinzas — organizada pela Ordem Terceira de São Francisco
na quarta-feira de cinzas — deixou de ser realizada em 1882V.
Em síntese, a religiosidade organizada pelos irmãos leigos perdia seus adeptos
para dar lugar à religião institucional, privada, circunscrita ao interior da igreja secular
romanaVI. Em meados do século XIX, foi criado o cemitério municipal e banido os
enterros nas igrejas, mas não se tem notícia de movimento de oposição contra essa
medida. Para adaptar-se aos novos tempos, as principais irmandades da cidade
partilharam partes do terreno do cemitério da Consolação para os enterros de seus
associados. Isto é, a religiosidade e o imaginário da morte estavam se modificando.
Philippe Ariès identificou essas transformações ocorrendo na França a partir de
meados do século XVIIIVII. Esse historiador pesquisou a variação da atitude do homem
ocidental frente à morte da Idade Média até nossos dias, alertando que a morte
passou da esfera pública, acompanhada de grande cerimonial, para o ambiente
restrito da família e, no século XX, acabou banida do grupo familiar, transferida para
as instituições hospitalares. A tese de João José Reis retomou essa temática no
espaço brasileiro. A morte é uma festa recorda a revolta da população contra a
proibição do governo de enterros nas igrejas de Salvador em 1836, o movimento
chamado Cemiterada. Esse autor discorre sobre as mudanças culturais defendidas
pelos iluministas, alterando a idéia sobre a morte e os enterros na Europa setecentista.
Esses princípios tiveram seus adeptos no Brasil recém-independente, no entanto, a
maioria dos baianos seguia com seus ritos e crenças indiferentes aos interesses da
razão ou da ciência, resultando assim no conflitoVIII.
3
Da mesma forma, os testamentos — outrora instrumento para a preparação do
cerimonial da morte e da salvação da alma — foram transformando-se em
documentos legais de instruções pessoais sobre a transferência de bens. Cremos que
o número de testamentos por inventário tenha decrescido na segunda metade do
Oitocentos, contudo não conhecemos pesquisa que tenha testado essa hipótese.
Tradição dos testamentos, legislação e sua historiografia
A legislação testamentária do mundo Português baseou-se na tradição jurídica
romana. Esses princípios foram incorporados nas Ordenações Afonsinas após a
dinastia de Avis. Os testamentos portugueses modernos visavam a preparação do
funeral e a salvação da alma principalmente. Após a Reforma Católica, o clero
empenhou-se em convencer os fiéis da necessidade do planejamento dos ritos
funerários, conseqüentemente os testamentos se generalizaram.
No
século
XVIII,
a
estrutura
dos
testamentos
atingiu
sua
máxima
complexidade. Surgiram diversas confrarias especializadas nos cerimoniais da morte.
Mas, a partir do século XVIII, o Estado português passou a se preocupar com os
excessos possibilitados pelos testamentos. No período pombalino, várias leis foram
criadas para cercear as disposições testamentárias. Essa legislação pretendia
defender os direitos dos herdeiros legítimos contra a interferência do clero sobre o
testador no leito de morte e o uso imoderado de legados pios. Entretanto, muitas
dessas leis foram derrubadas no governo de D. Maria I, e retomadas para discussão
somente no século seguinteIX.
As Ordenações Filipinas ou do Reino foram editadas em 1603X. Elas
orientaram a vida familiar e os direitos de sucessão da maior parte da história do
Brasil. Com algumas alterações, essa legislação se manteve até a aprovação do
primeiro Código Civil Brasileiro em 1916XI.
Elas garantiam aos indivíduos deliberar livremente sobre a distribuição dos
seus bens, assim como a distribuição igualitária dos bens entre os filhos dos plebeus,
4
conseqüentemente, os testadores com herdeiros ascendentes e descendentes podiam
legar apenas 1/3 de seus bens, os outros 2/3 constituíam a parte mínima dos
herdeiros forçados. Os cônjuges herdavam de acordo com o contrato de casamento
adotado. Geralmente casava-se pelo regime de comunhão de bens chamado “carta de
ametade”, de forma que o cônjuge sobrevivente ficava com a meia do espólio. A outra
metade ficava com os descendentes (filhos, netos ou bisnetos) ou para os
ascendentes (pais, avós ou bisavós), a seguir, vinham os parentes colaterais até o 10º
grau. Como o cônjuge sobrevivente não era herdeiro dessa parte, eles eram
beneficiados apenas com os legados. Os filhos naturais dos plebeus, caso fossem
reconhecidos por escritura pública, podiam herdar, contudo, os filhos dos nobres
necessitavam de reconhecimento real. Os testamentos podiam ser alterados pelos
codicilhos.
No século XIX, os testamentos foram perdendo sua finalidade espiritual, as
versões mais recentes desses documentos abordam exclusivamente os bens
materiais. O período desta pesquisa capta o momento em que está ocorrendo essa
transformação na sociedade brasileira.
As reflexões sobre o uso e os métodos de pesquisa historiográfica com
testamentos avançaram muito após os anos 1980. O trabalho de Kátia M. de Queirós
Mattoso, sobre os testamentos dos libertos baianos dos séculos XVIII e XIX, divulgou
a análise quantitativa dos testamentos no meio acadêmico nacional. Essa historiadora
utilizou duas séries temporais de testamentos — 1790-1826 e 1863-1890 — a fim de
melhor apreender as transformações das práticas testamentárias dos libertos nesses
séculos. Maria Inês de Oliveira reaproveitou essa documentação para discorrer sobre
a liberdade conquistada pelo forro baiano no OitocentosXII.
Destacamos ainda a contribuição da historiadora francesa Adeline Daumard,
que publicou os textos do curso ministrado na Universidade Federal do Paraná,
incluindo modelos de fichas para a documentação cartorial, paroquial e censitária do
BrasilXIII. Esses trabalhos pioneiros possibilitaram que os historiadores das gerações
5
subseqüentes alargassem ainda mais o leque de temas e abordagens historiográficas
possibilitados pelos testamentos.
Com enfoque em São Paulo, a tese de Eni de Samara Mesquita visou
caracterizar a família das seis primeiras décadas do século XIXXIV. Ela utilizou
documentação muito variada nesse estudo: os testamentos do 3º Ofício da Família, o
recenseamento de 1836, o rol de família da igreja, os processo de divórcio e nulidade
principalmente. Sob sua orientação, surgiram outros trabalhos com essa abordagem e
temática. Ida Lewkowicz pesquisou a família de Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX
e, nos anos 1990, Eliane Cristina Lopes reavaliou a situação dos filhos ilegítimos em
São Paulo do século XVIIIXV.
Maria Beatriz Nizza da Silva dedicou também grande parte de suas pesquisas
para a compreensão da organização das famílias e suas heranças na América
portuguesa. Em 1982, publicou População e casamento na capitania de São Paulo;
em 1984, O sistema de casamento no Brasil colonial. Nos anos 1990, centrou sua
atenção no complexo sistema que regulava a transmissão dos bens familiares.
Herança no Brasil colonial: os bens vinculados deve ser o único estudo do legado de
capelas e morgados no período colonial, talvez, por serem disposições testamentárias
da elite, não haviam despertado o interesse dos historiadores. Tratou, a seguir, da
morte, das heranças, do concubinato e dos filhos ilegítimos na Vida privada e
quotidiano na época de D. Maria I e D. João VI, temas aprofundados por Eliana Maria
Rea Gosdschmidt, em Convivendo com o pecado: na sociedade colonial paulista
(1719-1822)XVI.
Todas as análises das relações familiares dos paulistas dos séculos XVIII e XIX
utilizaram os dados demográficos das listas nominativas da capital — de 1776, 1798 e
1836 principalmente — coletados por Maria Luiza Marcílio nos anos 1960XVII. Essa
historiadora havia identificado grande número de fogos chefiados por mulheres na
capital, número expressivo de filhos ilegítimos, grupos familiares pequenos, a maioria
deles sem escravos. Essas informações contradiziam muitos relatos de cronistas e
6
historiadores da antiga família brasileira. Em outro trabalho, ela ressaltou a
importância dos testamentos para o estudo da espiritualidade do paulista do século
XVIII. Além disso, orientou várias pesquisas sobre as estratégias familiares e sobre os
expostosXVIII. Resumindo, as análises da demografia histórica propiciaram as
condições para os estudos de revisão da história da família, do gênero e da infância
nos últimos anos do século passado, inclusive para as brasilianistas que trataremos a
seguir.
Apresentamos até aqui a historiografia que, a partir da análise de testamentos
e demais fontes primárias, acrescentou novos enfoques ao estudo das relações
familiares luso-brasileiras até o século XIX. Hoje a bibliografia sobre casamentos,
concubinatos e uniões informais, filhos ilegítimos ou bastardia, expostos, família
escrava e forros do Brasil Colônia e Império é extensa, sua abordagem não caberia no
limite de um artigo. Por isso concentraremos nossa atenção nas formas de
transmissão dos bens pelo testamento para os filhos legítimos, ilegítimos, e para os
cônjuges.
Nossa amostra de testamentos compreende apenas os moradores da parte
central da capital de São Paulo (Freguesia da Sé e Santa Efigênia) de 1800 a 1850,
que foram transcritos nos inventários post-mortem do 1º Ofício da Família. Essa série
de testamentos é inédita, além disso, é temporalmente e geograficamente
homogênea. As pesquisas sobre as práticas testamentárias de São Paulo dessa
época têm utilizado a série arquivada no 3º Ofício da Família, que agrupou os
testamentos dos subúrbios e das vilas vizinhas da segunda metade do século XIX
principalmente. Além disso, os pedidos dos diferentes testadores eram executados
conforme o parecer do juiz de órfãos, essas sentenças eram transcritas nos processos
de inventários, a leitura do processo possibilita ao historiador identificar de fato as
práticas de transmissão de bens executadas na região no momento do falecimento.
7
Filhos ilegítimos
Há muito Maria L. Marcílio reconheceu a importância dos legítimos e ilegítimos
na formação brasileira. “De qualquer modo, ao lado da família legítima, outras famílias
eram a fonte de uma legião de bastardos. Estes contribuíram fortemente para o
povoamento de São Paulo, como de todo o resto do Brasil”XIX. Suas observações
favoreceram o aparecimento dos estudos sobre famílias e filhos ilegítimos.
Nos anos 1990, Maria Beatriz N. da Silva afirmava que a historiografia
brasileira voltava-se para o estudo dos filhos ilegítimos em vista das altas taxas de
concubinato observadas no Brasil colonial, mas “(...) ainda não se analisou de que
modo os filhos concebidos fora do legítimo matrimónio recebiam ou não um quinhão
de herança paterna ou materna, ou de ambas igualmente”.XX.
Recentemente Sonia M. Troitiño Rodrigues apresentou os dados sobre
herdeiros ilegítimos coletados na série de testamentos do 3º Ofício da Família da
capital de 1800 a 1878. Dos 614 testamentos da série, somente 17% apresentou
participação de herdeiros ilegítimos, mais homens (71%) que mulheres (29%)
declararam filhos ilegítimos. Os solteiros (46%) declararam mais ilegítimos que os
casados (18%). A maioria dos testadores (73%) deixou legítima para os legitimados
por falta de herdeiros, 82% desses filhos recebeu legítima, 11% terça e somente 1%
dos testadores deixou de amparar seus bastardos. Alguns desses dados são opostos
aos encontrados por Eliane C. Lopes em São Paulo do século XVIII, por exemplo,
mais mulheres (55%) que homens (32%) confessaram filhos ilegítimos nos
testamentos do SetecentosXXI.
Dada a característica qualitativa de nosso banco de dados, propomos refletir
basicamente sobre as formas de analisar e conceder os pedidos dos testadores,
retomamos a questão de M. B. N. da Silva, os filhos ilegítimos realmente herdavam?
A perfilhação ou legitimação pelos pais dos filhos ilegítimos era regulamentada
pelas Ordenações Filipinas e dependia do tipo de transgressão dos pais, os filhos
naturais, isto é, filhos de uniões informais de pais solteiros necessitavam de escritura
8
pública ou testamento para isso, no entanto, os filhos espúrios (de uniões fortuitas ou
com meretrizes), adulterinos (um dos pais era casado), incestuosos (uniões carnais
entre parentes) ou sacrílegos (uniões com religiosos) não conseguiam legitimação, os
filhos naturais dos nobres precisavam da autorização real, mas essas regras
vigoraram realmente até a Independência como veremos a seguirXXII.
Muitos testadores no leito de morte confessaram suas fraquezas e incluíram os
filhos ilegítimos na partilha dos bens. Vinte e seis deles utilizaram os testamentos com
esse propósito, além desses havia ainda uma dezena de pais com filhos naturais.
Vários inventariados já haviam regularizado esses filhos nos cartórios, alguns
preferiram deixar legados para os “afilhados”, e outros não tiveram tempo de testar.
O arrependimento dos testadores, tanto dos homens quanto das mulheres, foi
redigido da mesma forma por muitos anos. Todos declararam que “por fragilidade
humana tenho uma filha (…) Temendo as contas que tenho de dar a Deos (...)”. Mas a
forma como cada um tentou reparar essa “falta” foi muito pessoal.
As mulheres foram mais igualitárias.
Maria Fausta Miquelina de Araújo
Azambuja deixou legítima para os dois filhos naturais e legou para os netos grande
parte da terça para compensá-los.
A viúva, Antonia Benedita da Mota faleceu em 1831 sem testamento. A filha
mais velha declarou a irmã ilegítima. O genro inventariante protestou, alegava que a
filha sacrílega, Francisca de Paula Mota, não poderia herdar. Coube ao juiz de órfãos
decidir o impasse:
“Essa opinião é ligada à outra de que os filhos espurios in genere não podiam herdar
dos paes, ainda que instituidos fossem em testamentos, mas essa opinião já não
pode sustentar-se à vista do decreto de 11 de agosto de 1831 e o ser admitida neste
inventario a dita herdeira é a melhor prova disso.” (Inventário nº 749, de 1834).
É uma sentença incomum porque a menina não fora instituída em testamento.
Além disso, era filha de frei franciscano, isto é, sacrílega. O Brasil Império manteve
muitas tradições jurídico-religiosas portuguesas, de forma que o pecado confundia-se
com o crime. Ainda assim esse juiz tratou exclusivamente dos direitos da órfã. Esse
mesmo parecer foi proferido a favor de Maria da Glória de Sousa Camargo, filha
9
sacrílega do reverendo cônego Antônio Pais de Camargo, mas o falecido a havia
reconhecido no testamento de 1834.
Em 1836, o reverendo Antônio Joaquim de Abreu Pereira, irmão do bispo,
faleceu com carta de segredo onde deixava seus bens para as três filhas. Nesse
inventário foi transcrito também o testamento do bispo de São Paulo D. Mateus de
Abreu Pereira, falecido em 1824, legando seus bens para essas três sobrinhas
(Inventário nº 514, de 1836). Essas sentenças demonstram a tendência à ampliação
dos direitos dos ilegítimos, inclusive sacrílegos, após a Independência.
A atitude dos homens em relação a seus filhos naturais variou muito. Os
solteiros já os haviam regularizado muito antes do falecimento.
Manoel da Luz Tralhão, Antônio Rodrigues Salgado, Antônio Álvares dos Reis
e Francisco Pinto de Rego Freitas, todos solteiros, moravam com seus filhos naturais.
Manoel da Luz Tralhão era natural de Cuiabá, seus filhos de Cuiabá tinham mães
diferentes, outro filho fora exposto em Porto Feliz, São Paulo. Seu negócio de
fazendas secas devia exigir-lhe viagens constantes e relacionamentos inconstantes.
Antônio A. Reis residia na travessa da Rua São Bento com os agregados Manoel
Álvares de 13 anos e Maria Cunha de 15, declarou quatro filhos naturais em
testamento, ou seja, os agregados do recenseamento de 1802 eram, na verdade, seus
filhos. Sabemos também que o filho de Rego Freitas fora exposto na casa de Maria
Clara de Sousa, coincidentemente sua maior credora, seria ela mãe ou avó do garoto?
Inventários e testamentos raramente indicavam os nomes das mães ou pais dos filhos
ilegítimos ou legitimados.
José Maria de Sousa Queirós morreu solteiro, mas com uma filha natural. A
avó, Ana Maria de Sousa Queirós regularizou a situação de Elvira Isabel, tornando-a
herdeira universal. Este é outro exemplo de legitimação de filho para efeito de herança
sem a escritura de legitimação ou testamento.
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Os testadores casados ou viúvos sem filhos tornavam os ilegítimos seus
herdeiros universais. Foi o caso do negociante Manoel de Oliveira Cardoso, de
Antônio Pereira Mendes e de Jesuíno de Cássia Lustosa.
Muitos distribuíram as legítimas entre todos os filhos e outros preferiram deixar
apenas os legados para os ilegítimos. O inglês Francisco Compton D´Elboux e
Francisco Leandro Leme de Moraes deram apenas os dotes para os filhos naturais.
Este último declarou que os filhos naturais dos homens nobres não herdavam
conforme as Ordenações do Reino.
“(...) e tendo de catorze annos por diante fui fasendo casar e dando lhes a cada hum
sua Escrava e mais o que foi pressiso para viverem com honra na observância da
divina Lei e estão todos de quarenta annos para sima e já com alguns nettos e
porque em todos aqueles tempos por Lei, todos os filhos naturais dos homens
nobres sempre forão isentos de herdarem com os filhos Legítimos, como aconteceu
a hum filho natural de meu Pai falescido, que por ser de conhecida nobresa ficou
excluído da herança, e so aquilo que meu Pai lhe quis dar (...)” (Inventário º 285, de
1837).
Podemos observar que enquanto os 104 testamentos da amostra de Troitiño
Rodrigues indicou apenas um pai que não deixou legado para o filho ilegítimo, com
uma amostra menor, localizamos dois desses casos, um deles alegava que era nobre
e o outro era nascido na Inglaterra, onde não se considerava o bastardo merecedor de
herança.XXIII Essa diversidade deve-se à delimitação geográfica de nossa amostra em
contraste com a grande abrangência da outra.
Por outro lado, Francisco Antônio Baruel deixou testamento e codicilho para
garantir que os filhos naturais recebessem a legítima paterna, ou a terça, caso o juiz
deliberasse contra esses filhos. O alferes tivera cinco filhos com a esposa Ana Maria
da Conceição, falecida havia 24 anos. No estado de viuvez, teve quatro filhos.
Esclarece, no testamento, que Manoel e Josefa eram filhos da mesma mulher, os dois
restantes, Simão e Joana Nepomucena, eram filhos de outras mães. A mãe de Manoel
e Josefa era escrava, pois ele havia dado a liberdade aos filhos. Solicita ainda aos
seus herdeiros para avaliar o mulato Vicente, o mais baixo possíve,l no caso dele
casar com Josefa a fim de possibilitar à filha comprar a alforria do noivo.
11
Fora essas questões domésticas, Francisco Antônio Baruel estava preocupado
com as possíveis interpretações do juiz de órfãos em relação à validade das suas
disposições testamentárias, por isso havia deixado um testamento legando o
remanescente da terça para os quatro filhos naturais, caso o juiz viesse considerá-lo
nobre, pois ele havia exercido cargo de juiz almotacel da cidade. Porém, como ele se
considerava plebeu, ganhara a vida com trabalhos mecânicos, o juiz deveria declarar o
direito dos filhos legitimados herdarem também, nesse caso, o codicilho estabelecia
que os 2/3 da herança seriam divididos entre os nove filhos, ficando os filhos do seu
casamento também com o remanescente da sua terça. O juiz de órfãs decidiu pela
partilha entre todos, os quatro filhos legitimados receberam 1: 758 contos de réis cada
e 3:096 contos de réis coube a cada um dos filhos legítimos.
Esse processo de partilha de bens é muito significativo, pois aborda a diferença
de tratamento para as partilhas de bens dos plebeus e dos nobres prevista nas
Ordenações Filipinas, remete-nos também para a questão dos filhos naturais entre
senhores e escravos e para as uniões informais entre homens e mulheres, gerando
filhos naturais com diferentes mães, além de exemplificar uma forma de ascensão
social do escravo, já que Vicente deveria casar-se com uma das herdeiras.
“Faço isto para desencargo de minha consciencia, e para não privar os ditos meus
filhos naturais do direito que as leis lhes conferem a minha herança; porquanto eu
sou, e sempre fui homem peão, e mecanico: nunca possui nobreza herdada, nem
adquirida: não tive em tempo algum patente militar, e nem servi cargo publico a que
estivesse anexa nobreza, sempre trabalhei com minhas proprias mãos e com suor do
meu rosto adquiri esses poucos bens que Deus me deu. Meus herdeiros naturias
Manoel e Josefa, declaro que fica sem efeito a doação causa mortis da quantia de
400$000 que lhes tinha feito na escritura, pela qual lhes dei a liberdade (...) Tendome nascido Josefa e Joana depois que exerci no ano 1825 o cargo de Juiz almotacel
nesta cidade, se a pretexto desse cargo, quiserem lançar fora da herança, fiquem a
duas ditas minhas filhas com todo remanescente de minha terça, dividir em 3 partes,
Josefa ficara com uma e Joana com duas, e a filha Joana fica com casas da rua da
Quitanda. Caso contrario, o remanescente de minha terça sera dividido em partes
iguais por meus 5 filhos legítimos”. (Inventário nº 860, 1842).
Os inventários contam-nos também a história familiar dos testadores. Francisco
Antônio Baruel era filho ilegítimo do capitão Antônio Francisco Baruel. O pai havia
falecido em 1796 ab intestato e sem deixar filhos do casamento. Seu inventariante, o
irmão Antônio Vaz Pinto Ribeiro, tentou convencer o juiz de órfãs de que o capitão
12
havia declarado, no leito de morte, intenção de reconhecer os filhos ilegítimos e
ampará-los, mas o juiz não aceitou analisar esse precedente. Os herdeiros, irmãos do
falecido, declararam que Antônio Vaz podia dividir sua parte com os sobrinhos
ilegítimos para sentir-se melhor. Logo, Francisco A. Baruel decidira legitimar seus
filhos porque conhecia bem as dificuldades enfrentadas pelos excluídos.
Os negociantes de grosso trato consideravam-se fundadores de uma nova
casa nobre e, como os filhos naturais dos nobres não herdavam, foram discretos em
relação a esses descendentes. O brigadeiro Luís Antônio de Sousa, por exemplo,
havia dotado a “afilhada”, mas não a declarou no testamento. Margarida Maria da
Conceição e a filha Gabriela receberam 600$000 de lembrança do “padrinho”, e o
“afilhado” Antônio José de Sousa recebeu 1:600 contos de réis para seu sustento nas
tropas do sul. Esses legados eram insignificantes comparados à legítima de
aproximadamente 80 contos de réis de cada filho.
Por outro lado, o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão atestou que havia
legalizado seu filho natural, deixando-lhe um dote como usufruto, porém, a seguir
estabeleceu uma longa lista de exigências para esse filho manter os referidos bens,
bem como para os possíveis descendentes dele.
Segunda, nunca o doado poderá vender, doar, hipotecar, quaisquer dos ditos bens,
podendo somente gravar usofruto dos referidos (...) Para passarem em semelhante
condição a seus filhos legítimos se os tiver, casamento com aprovação do doador
expressa por escrito, com pessoa igual, caso seja doador falecido (...) (Inventário nº
229, de 1828).
Esse paulistano havia casado com contrato de arras, cabendo à viúva apenas
6 contos de réis. Não ficamos sabemos o valor do dote do filho legitimado, mas parece
ter sido bem menor que os 34:389 contos de réis recebidos por cada filho legítimo.
Enfim, os filhos ilegítimos foram declarados por homens e mulheres de
diferentes condições sociais, inclusive por padres. Porém, os homens mais ricos com
herdeiros legítimos foram menos generosos com eles. Percebe-se uma tendência a
incorporar esses filhos na partilha de bens da maioria. As Ordenações Filipinas
13
previam que os filhos naturais dos plebeus podiam herdar quando legitimados, mas
cremos que, após a Independência, os juízes puderam reavaliar outros casos, e
proferir sentenças mais liberais.
Linda
LewinXXIV
tratou
dessa
característica
jurídica
luso-brasileira,
reconhecendo nela uma visão particular de mundo, visto que outros sistemas jurídicos
europeus marginalizavam o bastardo. A tese da brasilianista é composta por dois
volumes. O segundo, aqui citado, trata da legislação do ilegítimo e dos direitos de
herança no Brasil Imperial, enquanto o volume primeiro desenvolve o mesmo tema
nos três primeiros séculos da História do Brasil. Essa obra de síntese da história dos
costumes e procedimentos jurídicos luso-brasileiros merecia ser traduzida para o
português.
Os legados da família
Tabela 1. Disposições testamentárias 1800-1850XXV
Legados
Valor
23.295.804
1.293.440
53.116.959
81.986.794
43.081.675
40.678.425
18.251.434
15.318.750
2.977.960
76.986.253
9.268.294
366.255.788
alforrias
esmolas
legados cônjuge
legados filhas
legados filhos
legados outros
legados parentes
legados pios
missas
não informados
outros
Total Global
Fonte: 68 Inventários AJESP
% Total
6,36%
0,35%
14,50%
22,39%
11,76%
11,11%
4,98%
4,18%
0,81%
21,02%
2,53%
100,00%
A tabela 1 computou as disposições testamentárias somente dos inventários
com testamentos transcritos (68), localizamos uma dezena de inventários com terça,
mas sem testamento, esses não foram incluídos. Em nossa tese, havíamos previsto
verificar o destino das terças para os filhos ou para outros fins, pois pretendíamos
testar se a riqueza continuava concentrada ou tendia a ser distribuída pelos legados,
concluímos que a maior parte das terças continuou no grupo familiar, isto é, a partilha
14
não dispersou a riqueza como nos inventários de Campos de Goitacazes, por
exemploXXVI.
A seguir, decidimos reexaminar se as disposições testamentárias favoreciam
mais aos filhos, às filhas ou aos cônjuges, agrupamos então esses dados na tabela 1,
que somou os valores em mil réis das terças que foram distribuídas, perfazendo
aproximadamente 366 contos de réis. Esse valor foi dividido pelos diferentes pedidos.
Verificamos então que os legados das filhas, filhos e dos cônjuges perfaziam 48,5% do
total das disposições testamentárias. O item “legados dos ilegítimos” não fora previsto
na coleta de dados, logo os ilegítimos ou legitimados que receberam legados foram
incluídos em “não informados” ou “outros”, os demais legitimados herdaram legítimas
ou não herdaram, coincidindo com as conclusões de Troitiño Rodrigues de que
maioria desses filhos recebeu legítimaXXVII.
As terças raramente eram empregadas integralmente nas disposições
testamentárias, parte significativa da terça retornava para o monte partível para ser
redistribuída entre os herdeiros. Não computamos o valor dos resíduos das terças. No
caso dos perdulários que testaram mais do que seu espólio permitia, o juiz estabelecia
algumas regras, a saber: não gastar a terça antes do pagamento total das despesas
do enterro, conceder todas as alforrias, por fim, a terça era distribuída conforme as
porcentagens dos valores dos diferentes legados.
O gráfico 1 apresenta o número de testadores que solicitou as diferentes
disposições testamentárias, 40% ofereceu legados pios, porém, eles representavam
apenas 4% do valor delas, 35% solicitou missas, mas elas consumiram menos de 1%
do valor das disposições, 20% ofereceu esmolas para os pobres, contudo,
corresponderam a apenas 0,35% delas. Em síntese, esses dados confirmaram que as
obrigações espirituais ainda motivavam a maioria dos testadores, mas os valores
reservados para elas tornavam-se insignificantes frente aos pedidos profanos. Para
efeito comparativo, sugerimos que os trabalhos sobre disposições testamentárias ou
15
legados do século XVIII verifiquem o valor consumido nos inventários para esses
pedidos.
Gráfico 1. Distribuição dos legados na cidade de São Paulo, 1800-1850
Distribuição dos legados
Legados filhos
Legados conjuge
Esmolas
Legados filhas
Legados parentes
Missas
Legados pios
Alforrias
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
Fonte: 68 testamentos transcritos nos inventários do 1º Ofício da capital de São Paulo, 1800-1850.
A tabela 1 mostra que aproximadamente 16 (23%) falecidos deixaram legados
para as filhas. Esses legados representavam 22% do valor total das disposições
testamentárias. Ou seja, as filhas recebiam mais atenção dos pais do que os filhos. Os
falecidos preocuparam-se também com os cônjuges, 12 (18%) deixaram legados para
o companheiro sobrevivente, representando 14% do valor total das disposições. Os
filhos inspiravam menor cuidado, somente 9 (13%) testadores deixaram legados para
eles, representando 11% do valor total das disposições, netos e demais parentes
receberam 4,98%. Os amigos e agregados ficavam com 11% e as alforrias dos
escravos 6%, isto é, 53,63 % do valor das disposições testamentárias ficavam com o
grupo familiar, sendo que no mínimo 71% delas serviam aos pedidos temporais.
Enfim, nossos dados vêm corroborar as teses de diversos historiadores sobre o
costume dos pais paulistas protegerem preferencialmente as filhas.
16
Alida MetcalfXXVIII pesquisou as famílias de Santana do Parnaíba, da Capitania
de São Paulo, dos primeiros séculos e concluiu que a maioria dos pais oferecia os
melhores dotes e suas terras para as filhas, dessa forma os genros acabavam
sucedendo aos sogros.
Muriel NazzariXXIX discorreu sobre a transformação do dote em São Paulo,
chegando às mesmas conclusões: os paulistas pioneiros favoreciam suas filhas com
dotes maiores do que as legítimas. Após o declínio do dote, as partilhas tornaram-se
igualitárias no século XIX.
Carlos de Almeida Prado BacellarXXX abordou a questão sobre outro ângulo. Os
filhos que migraram para as novas fronteiras agrícolas acabaram beneficiados porque
as terras do Oeste Paulista eram mais produtivas.
Dora Isabel Paiva da CostaXXXI tratou do crescimento das legítimas em
Campinas (São Paulo) oitocentista. Ela verificou as estratégias de transmissão de
bens dos agricultores do Oeste Paulista, concluindo que a segunda geração de filhos
foi favorecida com importantes antecipações, dessa forma os filhos acabaram
herdando mais terras do que os genros.
Parece-nos que nossos resultados foram coerentes com a amostra da
população. Selecionamos apenas os testadores residentes na região central da
capital, isto é, da parte urbana. Conseqüentemente, a maioria dos falecidos não era de
agricultores e as terras nem sempre eram os principais bens dessas famílias. De
forma que os casamentos das filhas foram os investimentos mais importantes para
esse grupo.
Os genros ilustres da capital certamente favoreciam a família da noiva. A viúva
Antônia Eufrosina de Cerqueira Câmara ofereceu o maior dote para a filha casar com
o Dr. Nicolau Pereira de C. Vergueiro. Escolástica Maria de Matos favoreceu o genro,
o brigadeiro José Vaz de Carvalho, oferecendo-lhe a casa como usufruto. Manoel
Alves Alvim casou a filha com o Prof. Antônio Mariano de Azevedo Marques, que
recebeu dote maior do que a legítima dos irmãos. Maria Fausta Miquelina de Araújo
17
Azambuja casou as filhas com o Brig. Francisco de Paula Macedo e o marechal Daniel
Pedro Müller, por isso elas receberam significativos dotes.
Esses casamentos trouxeram vantagens políticas e econômicas para todos.
No entanto, acreditamos que o favorecimento das filhas foi motivado principalmente
pelas escassas oportunidades de ganho para as mulheres. Os pais deixavam as
terças para suas filhas e para suas netas em vista das incertezas de um bom
casamento. Maria Beatriz Nizza da Silva emitiu a mesma opiniãoXXXII.
Este foi o caso da viúva Maria Josefa Mendes da Silva. Ela deixou a maior
parte de sua terça para a filha solteira. Contra os excessos testamentários da sogra e
da declaração de bens da inventariante, o poderoso negociante Joaquim José dos
Santos inutilmente protestou. Em resposta a inventariante argumentou:
(...)sua mãe sempre foi livre administrador de seus bens e que pela mesma razão
sabe que o herdeiro Bartolomeu Pereira Mendes era por ela encarregado de muitas
dependências das quais o mesmo lhe dava contas, não lhe consta que hajam bens
ou dinheiros pertencentes ao casal que estejam extraviados ou sonegados em mãos
de alguns dos herdeiros (…) (Inventário 1175, 1806).
O testamento de Isabel Inácia de Sousa nos revelou o motivo para o
favorecimento das filhas. Ela deixou a terça para as filhas na condição de legado
transmitido por linha materna, separado dos bens do casal: “(...) deverá continuar
entre herdeiros do sangue materno, excluídos os maridos” (Inventário 667, 1845).
Essa paulista de Santo Amaro, viúva do negociante Francisco Antônio de
Sousa, alegava que seu filho, Francisco Inácio de Sousa Queirós, fora beneficiado
pelo pai e pelo casamento, consequentemente seus descendentes estavam bem
estabelecidos. Suas filhas, ao contrário, não haviam feito bons casamentos. Ana Maria
de Sousa Queirós principalmente, abandonada pelo marido que lhe levou o dote.
Para essa viúva, o testamento servia para reparar uma injustiça, além disso,
legava para as netas uma renda individualizada, pois seus maridos jamais iriam
usufruir desses bens. É um testamento bem peculiar, salpicado de idéias dos futuros
manifestos feministas.
18
Os mais ricos negociantes de São Paulo dessa época foram os Brig. Luís
Antônio de Sousa e Manoel Rodrigues Jordão. Ambos instituíram morgados para os
filhos a fim de enobrecer e perpetuar o nome das respectivas famílias. Os morgados
eram bens vinculados exclusivos dos primogênitos das casas nobres. A instituição era
regulamentada pelas Ordenações FilipinasXXXIII.
Dessa forma, os morgados dos grandes negociantes da cidade foram os
responsáveis pelos índices de favorecimento dos varões nas partilhas de bens. Como
também os pais que deixaram legados para os filhos ingressarem na vida religiosa.
Por exemplo, no inventário do sargento-mor Francisco Bernardes da Silva, os sete
herdeiros aceitaram separar a terça para o irmão, reverendo Manoel Emídio
Bernardes, comprovar o patrimônio exigido na ordenação (Inventário nº 837, de 1822).
Surgiram poucos protestos sobre o favorecimento de alguns herdeiros pelos
pais nas partilhas. A maioria dos herdeiros reclamou da demora para a conclusão das
partilhas e das omissões de certos bens pelos inventariantes.
O genro da viúva Ana Maria Joaquina foi o único que protestou contra o
favorecimento do filho em detrimento da filha. Na verdade a viúva estava fazendo sua
parte. Ela era tutora do filho, conseqüentemente Ana Maria escolheu os bens mais
lucrativos para a legítima do menor e, pelas contas da tutoria, ela os estava
gerenciando com grande competência (Inventário 470, 1823).
Apesar do pouco preparo das mulheres e da limitação jurídica para o exercício
das atividades econômicas pelas mulheres, muitas inventariantes e tutoras
demonstravam grande desembaraço para os negócios.
O legado para os cônjuges tendia a crescer especialmente quando havia
menores ou nenhum filho. As Ordenações do Reino não considerava o cônjuge
herdeiro do companheiro, conseqüentemente muitos testadores sem filhos passaram a
legar sua parte nos bens do casal para o cônjuge sobreviventeXXXIV. Além disso, os
testadores distribuíram a terça para o companheiro sobrevivente para deixá-lo em
melhores condições para a administração dos bens dos menores. Alguns estipulavam
19
que essas doações perderiam a validade no caso de novas núpcias, outros as
concederam como usufruto, mas a maioria não incluiu exigências.
As viúvas deviam solicitar a tutoria de seus filhos menores, para isso deviam
apresentar um fiador para os bens deles. Elas perdiam a tutoria ao contrair novas
núpcias. Para contornar esse obstáculo, Gertrudes Maria da Silva Brito e Lacerda,
viúva do coronel José Pedro Galvão de Moura e Lacerda, após contrair segundas
núpcias, mudou-se para o Rio de Janeiro com os filhos, alegando não haver bons
colégios em São Paulo (Inventário 449, 1838).
Grande parte do inventário do brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão trata da
contenda entre a inventariante Gertrudes Galvão de Oliveira e Lacerda contra seu
enteado, Dr. Antônio Rodrigues de Almeida Jordão, pelo direito de tutoria dos
menores, conseqüentemente, da administração do espólio. Antes do veredicto, o juiz
analisa as contas da viúva e, observa que a inventariante estava administrando os
negócios com muita eficiência, decide devolver a tutoria para a viúva.
Enfim, pareceu-nos que a preocupação dos paulistanos com o futuro de suas
filhas e esposas talvez fosse exagerada, haja vista que muitas inventariantes e tutoras
demonstraram grande desembaraço para os negócios, confirmando assim as teses
sobre o costume das mulheres paulistas tornarem-se chefes da famíliaXXXV.
Considerações finais
A cidade de São Paulo passou por grandes transformações no século XIX.
Muitos de seus moradores tornavam-se engenheiros, exportadores de açúcar,
importadores, negociantes de escravos ou de mulas, criadores, transportadores,
administradores
de
fazendas,
cafeicultores,
advogados,
lojistas,
capitalistas,
professores. Esse dinamismo comercial facilitou a adoção de novos hábitos profanos.
Todas as procissões da cidade foram encerradas antes do fim do século, o Cemitério
da Consolação foi inaugurado, sem incidentes, em 1858.
20
Cremos que os testamentos seguiram, em linhas gerais, a mesma trajetória. De
registros para orientação da cerimônia do enterro e da salvação da alma,
transformavam-se em documentos para favorecer ou reparar uma injustiça a algum
filho. Uma das grandes injustiças do sistema de transmissão de heranças da época
era a exclusão dos filhos ilegítimos da partilha, dessa forma os testamentos dos pais
arrependidos possibilitavam sanar parte da discriminação legal e social aos bastardos.
No entanto, essa injustiça não era uma peculiaridade nacional, segundo Linda Lewin,
a legislação luso-brasileira sobre a bastardia era a mais liberal do mundo ocidental.
Em geral nossos dados indicaram que os pais pesquisados tendiam ao
igualitarismo nas partilhas entre os herdeiros, conforme exigia a lei, ou protegiam
particularmente suas filhas. Os cônjuges sobreviventes passaram a receber os
legados dos falecidos. Como também, alguns decretos foram incorporando o costume
brasileiro de adotar os filhos ilegítimos na condição de herdeiros, culminando no
primeiro Código Civil Brasileira de 1916 com a inclusão dos ilegítimos, adotados e
cônjuges entre os herdeiros.
NOTAS
I Doutora em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do NEHD Núcleo de Estudos de História Demográfica, FEA-USP. Page com os resumos e email: [email protected]
http://www.brnuede.com/pesquisadores/lucilia/index.htm
II Esse banco de dados com 146 inventários post-mortem faz parte da tese de doutorado da FFLCH-USP publicada como: ARAÚJO,
Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos da primeira metade do Oitocentos. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2006.
223 p.
III Conforme as seguintes teses: ARAÚJO, M. L. V., op. cit. COSTA, Dora Isabel Paiva da. Herança e ciclo de vida: um estudo sobre
família e população em Campinas, São Paulo 1765-1850. Niterói, RJ, 1992. Tese (Doutorado) Fac. C. Hum., Ling., Letras e Artes, Univ.
Federal Fluminense. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra - família e sistema sucessório entre os senhores de
engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado) Fac. Fil., Letras e C.Humanas, Universidade de São
Paulo. 297 p.
21
IV Verificar a relação entre a arte e a sociedade em: ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O mestre-pintor José Patrício da Silva Manso e a
pintura paulistana do Setecentos. SP, 1997. Dissertação (Mestrado) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 164
p.
V Essas mudanças na religiosidade foram detalhadas por Antônio Egydio Martins. São Paulo antigo (1554 a 1910). São Paulo:
Francisco Alves, [1911].
VI WERNET, Augustin. A igreja paulista no século XIX. SP: Ática, 1987. 217 p.
VII ARIÈS, Philippe. Essais sur l´histoire de la mort em occident: du Moyen Âge à nos jours. Paris: Seuil, 1975. 256 p. Recomendados
também a obra de VOVELLE, Michel. La mort et l´occident de 1300 à nos jours. Paris: Gallimard, 1983. 793 p.
VIII Verificar a bibliografia sobre esse tema publicada na Europa em: REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX. São Paulo: C.Letras, 1991. 357 p. Ver também O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista. In:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil — Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: C.
Letras, 1997. p.95-141.
IX A historiadora portuguesa Ana Cristina Araújo estudou os pedidos espirituais dos testamentos de Lisboa na fase de maior fervor
religioso. ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: E. Notícias, 1997.
X As Ordenações do Reino foram republicadas por: ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livros VI e V. Lisboa: F.C.Gulbenkian, 1985.
XI Sobre a legislação de sucessão de bens ler: ARAÚJO, Maria L. V. Reflexões sobre a pesquisa historiográfica dos testamentos.
Revista Justiça & História, Memorial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, vol. 5, nº 10, p. 279-295, 2005. O professor Eduardo
F. Paiva discorreu também sobre as questões legais e os objetivos dos testamentos em: PAIVA, Eduardo França. Discussão sobre
fontes de pesquisa histórica: os testamentos coloniais. LPH; Revista de História, Departamento de História, UFOP, Mariana, MG, nº 4, p.
92-106, 1993/94.
XII MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX: uma fonte para o estudo de
mentalidades. Salvador: CEB/UFBa, 1979. Esse texto e — Para uma história social seriada da cidade do Salvador no século XIX: os
testamentos como fonte de estudo da estrutura social e de mentalidades — foram republicados em MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Da
revolução dos alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador, Corrupio, 2004. OLIVEIRA, Maria
Inês Côrtes de. O liberto: o seu mundo e os outros. SP: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988.
XIII DAUMARD, Adeline. História Social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: UFP, 1984. 259 p.
XIV SAMARA, Eni de Mesquita. A família na sociedade paulista do século XIX (1800-1860). São Paulo, 1980. Tese (Doutorado) da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 357 p.
XV LEWKOWICZ, Ida. Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). São Paulo, 1992. Tese
(Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 351 p. LOPES, Eliane Cristina. O revelar
do pecado. Os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo: Annablume; Fapesp, 1998. 276 p.
XVI SILVA, Maria Beatriz Nizza da. População e casamento na capitania de São Paulo. Revista da Academia Paulista de História de
São Paulo, nº 2, p. 61-71, nov./dez. 1982. Idem. O sistema de casamento no Brasil colonial. SP: T. A. Queiroz; USP, 1984. 264p. Idem.
Família e herança no Brasil colonial. In: REUNIÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTORICA , 6, 1987, São Paulo.
Anais... São Paulo, SBPH, 1987, p.19-25. Idem. Herança no Brasil colonial: os bens vinculados. Revista de ciências históricas, Univ.
Portucalense, Porto, vol. V, p.291-319, 1990. Idem. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa:
Estampa, 1993. 359 p. GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822). São
Paulo: Annablume, 1998. 208 p.
XVII MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750 – 1850 ... Trad. da autora da tese de 1968. São
Paulo: Pioneira; EDUSP, 1974. 220 p.
22
XVIII MARCÍLIO, Maria Luiza. A morte de nossos ancestrais. In: MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade
brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1983. p. 61-75. Sobre os expostos ver: VENÂNCIO, Renato Pinto. Infância sem destino o abandono de
crianças no Rio de Janeiro do século XVII. São Paulo, 1988. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. 129 p. E seu doutorado: Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de
Janeiro e em Salvador, séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Papirus [1999]. p.190.
XIX M.L.Marcílio, op. cit., p. 32.
XX M. B. N. Silva, op. cit., p. 191.
XXI RODRIGUES, Sonia Maria Troitiño. Números da bastardia: os ilegítimos nos testamentos paulistas oitocentistas. In: ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, ABEP, 12, 2000, Caxambu. Anais eletrônicos ... Caxambu, ABEP, 2000. Disponível em:
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=122&nivel=3 Veja também, ALMEIDA, Joseph Cesar Ferreira de.
O testamento no âmbito da herança: uma análise demográfica. In:ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DA POPULAÇÃO, ABEP, 13,
2002, Ouro Preto, MG. Anais eletrônico ... Ouro Preto, ABEP, 2002. E. C. Lopes, op. cit.
XXII E. C. Lopes, op. cit.
XXIII FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias, parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Trad. M. F. Gonçalves de Azevedo.
Lisboa: Estampa, 1991. 291 p. Esse historiador francês fez um estudo comparativo da partilha dos bens entre os filhos das províncias
francesas e inglesas, denunciando que os ingleses tendiam a deixar as viúvas e seus filhos desamparados para beneficiar o
primogênito.
XXIV LEWIN, Linda. Surprise heirs. Illegitimacy, inheritance rigsts, and public power in the formation of Imperial Brasil, 1822-1889. vol. 2,
Stanford, California: Stanford University, 2003. A lei de 1847 alterou a ordem de vocação hereditária equiparando filhos legítimos e
ilegítimos dos plebeus e nobres.
XXV Tabela nº 41 da tese de M. L. V. Araújo, op. cit.
XXVI M. L. V. Araújo, op. cit. Sheila de Castro Faria. A colônia em movimento: fortuna e família no cotodiano colonial. RJ: Nova
Fronteira, 1998. 432 p. Capítulo III: Pai taverneiro, filho barão e neto mendicante, a saber, com 14% de dívidas a serem descontadas do
monte bruto, mais as despesas do funeral e dos testamentos e distribuindo o líquido entre os 4,5 filhos por casal, após duas gerações a
riqueza tendia a se fragmentar, haja vista que a “reprodução da riqueza ligava-se intrinsecamente ao comércio” p. 42.
XXVII Troitiño Rodrigues, op. cit.
XXVIII METCALF, Alida C. Family and frontier in colonial Brazil Santana de Parnaíba, 1580-1822. Berkeley; Oxford: University of
California, 1992. 280 p. Idem. Mulheres e propriedade: filhas, esposas e viúvas em Santana de Parnaíba no século XVIII. Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, São Paulo, nº 5, 19-30, 1989/90.
XXIX A. Metcalf. Op. cit. NAZZARI, Muriel. Disappearance of the dowry: women, families and social change in São Paulo, Brazil (1600 –
1990). Stanford: Stanford University Press, 1991. 245 p. e
Dotes paulistas: composição e transformações (1600-1870). Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n.17, p. 87-100, set. 1988 fev. 1989.
XXX Bacellar, op. cit. e BACELLAR, Carlos de Almeida Prado . Família, herança e poder em São Paulo: 1765-1855. São Paulo: 1991
(Estudos CEDHAL 7).
XXXI Dora Isabel Paiva da Costa, op. cit. Recomendamos a leitura da primeira parte dessa tese para o estudo da discussão
internacional sobre tipos de família e as diferentes estratégias de distribuição da heranças entre os filhos.
XXXII SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Família e herança no Brasil colonial, op. cit.
XXXIII Verificar as características desses legados em: Maria Beatriz Nizza da Silva. Herança no Brasil colonial..., op. cit.
23
XXXIV O primeiro Código Civil Brasileiro, de 1916, alterou a ordem de vocação hereditária ficando o cônjuge na 3ª classe de sucessão
ab intestato, das partilhas de bens sem filhos. Na legislação de 2002, o cônjuge passou para a 1ª classe de sucessão. KALLAJIAN,
Manuela Cibim. A ordem de vocação hereditária e seus problemas no direito brasileiro, no direito comparado e no direito internacional
privado . Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 84, 25 set. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4385>.
Acesso em: mai. 2005 .
XXXV Ver, por exemplo, a tese de Eni de Mesquita de Samara. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru, São
Paulo: EDUSC, 2003. 102 p.
24
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As práticas testamentárias paulistanas da primeira metade