CÉZANNE E A ARTE COMO RESPOSTA À EXISTÊNCIA
UM ESTUDO DE A DÚVIDA DE CÉZANNE DE M. MERLEAU-PONTY
Wanderley C. Oliveira
Departamento das Ciências da Educação - UFSJ
“A vida não explica a obra, mas foi preciso
esta vida para dar origem a esta obra” (Merle au-Ponty)
1. Introdução
M
inha contribuição para este Encontro de PETs de Ciências Humanas, em torno do
tema: Existência e Arte, é um estudo do ensaio de Maurice Merleau -Ponty dedicado a Paul Cézanne. Merleau-Ponty nasceu em 1908, numa cidade ao sul da Fra nça chamada Rochefort. Mo rreu subitamente em sua mesa de trabalho em 1961 em Paris, cidade na qual viveu e se tornou
conhecido como filósofo. Paul Cézanne também nasceu no sul da França, em 1839, numa cid ade vizinha à de Merleau -Ponty, chamada Aix-en-Provence. Em Aix, o pintor passou quase toda
sua vida. Morreu em 1906. O texto de Merleau -Ponty do qual nos ocupamos é: “A dúvida de C ézanne”. Primeiro artigo do filósofo dedicado especificamente à pintura. Redigido em 1942 (B o1
nan, 1997, p. 81), publicado pela primeira vez em 1945 e depois retomado na coletânea de
artigos, Sens et non-sens de 1948, este ensaio inaug ura o diálogo de Merleau -Ponty com a pintura e, em especial, com a pintura de Paul Cézanne. Daí por diante, este artista torna -se referência constante na obra do filósofo, que aprofunda seu diál ogo com ele em O olho e o espírito,
último ensaio que publicou em vida, e não deixa de mencioná -lo nas notas de trabalho do livro
que preparava quando morreu: O visível e o invisível.
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Cézanne foi um artista qu e viveu para a pintura e qu eria morrer pintando. A pintura foi
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“seu mundo e sua mane ira de existir” (SNS: 13) . Desde muito jovem, já a percebia como sua
verdadeira vocação e, no entanto, não lhe foi nada fácil segui -la; não apenas por empecilhos
externos, por exemplo, seu pai que o queria como advogado, mas sobretudo, como veremos, por
obstáculos internos à própria realização da pintura, tal como a concebia. Para pintar uma natur eza morta, chegou a precisar de cem sessões e nada menos que cento e cinqüen ta para um retrato. Pintar, para Cézanne, era um tr abalho extremamente lento, laborioso e tateante, repleto de
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Contudo, Tymieniecka (1988, p. 195) faz referência a uma primeira publicação de A dúvida... em 1942, mas não cita a fonte. É na bibliografia de Merleau-Ponty preparada por Alexandre Métraux no livro de Tilliette (1970, p. 174) que encontramos a referência exata da primeira
publicação em 1945, na Fontaine, n. 8, p. 80-100.
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Na carta de 21 de setembro de 1906, ele escreve ao jovem amigo Émile Bernard: “estou velho e doente, e jurei-me de morrer pintando”
(Cézanne, 1978, p. 327).
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Neste sentido, em suas “Souvenirs sur Paul Cézanne”, E. Bernard (apud Doran, 1978) dá-nos este belo depoimento: “Pode-se dizer –
escreve Bernard – que Cézanne era a pintura viva, pois não havia um segundo em que ele não se considerasse com o pincel à mão. À
mesa, ele se interrompia à cada instante para estudar nossos rostos segundo o efeito da luz ou da sombra, toda vasilha, todo prato, todo
fruto, todo copo, todo objeto que estava perto dele tornava-se tema de seus comentários e de sua reflexão” (p. 65).
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idas e vindas à tela e, por vezes, de abandono da mesma, quando não conseguia ser fiel à e xpressão do que via.
Estudando sempre, o artista progr edia muito lentamente na luta para encontrar os cam inhos que diminuiriam a distâ ncia entre a natureza e suas telas, que ele tampouco gostava de
expor. Fez pouquíssimas exposições e o que é sua obra, para nós, o artista a considerava ap enas como “a tentativa e a abordagem de sua pintura” (SNS: 13). Mesmo no final da vida, quando
já era reconhecidamente um me stre, poucos dias antes de morrer, ainda indagava numa carta a
Bernard se chegaria “ao fim tão procurado e por tanto tempo pers eguido”5 (Cézanne apud SNS:
13). Mas que fim era este, que durante toda sua vida, afastado da convivência com os outros,
isolado e sem alunos, “sem admiração por parte da fam ília, sem incentivo por parte dos júris”
(SNS: 13), Cézanne tanto perseguiu? O que procurava este artista co m sua pintura? A que fim
visava com sua arte que o mobilizava tanto, afastando -o de todos? São estas as questões que,
com Merleau-Ponty, queremos refletir nesta comunic ação.
2. Como compreender a obra de Cézanne?
Para tentar responder às questões acima, Merleau-Ponty aponta-nos, primeiramente, dois
caminhos: um, a tentativa de compreender a obra pela vida, outro, o de dec ifrá-la através da
história da arte.
Zola, amigo de infância de Cézanne e, provavelmente, quem melhor o conheceu, optou p ela primeira alternativa: compreender a obra pela vida. Mas como ver o pintor, de insistência e
paciência incansáveis, sob o homem inst ável e colérico que Zola tão bem conhecia? E, talvez,
justamente por conhecer tão bem o homem, Zola foi incapaz de ver, em C ézanne, o artista. Erro
de perspectiva? Por se concentrar demais no caráter de Cézanne, Zola não perc ebeu o sentido
de sua pintura; por fixar-se demais à vida, não percebeu a obra; olhando em demasia o rosto do
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amigo, não viu as telas do pintor. O rompimento entre Céz anne e Zola era inevitável . Zola nunca
conheceu tão bem Cézanne, o pintor, por isso, acreditava no fracasso do artista e via sua obra
como manifestação doentia de seu caráter esquizóide. Não havia outro modo, da perspectiva
sob a qual via o artista, o objetivo de Cézanne de criar “uma pi ntura ‘direto da natureza’”, assim
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Para referências aos textos de Merleau-Ponty usamos as siglas: OE (L’oeil et l’esprit), PhP (Phénoménologie de la perception), S (Signes),
SNS (Sens et non-sens). Citação completa em Referências bibliográficas.
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Cézanne morreu no dia 23 de outubro de 1906, a carta em questão é do dia 21 de setembro do mesmo ano. Cf. Cézanne (1978, p. 326327).
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O que se deu em 1886, devido à publicação do romance de Zola, intitulado: L’Oeuvre. Zola, como sempre fazia, enviou ao amigo um volume do livro que publicara. Cézanne se reconheceu no personagem de Claude Lantier, pintor fracassado que protagoniza o romance. Numa
pequena carta de agradecimento ao escritor, o pintor pôs fim à sua mais antiga amizade. Desde então os dois homens nunca mais se reencontraram.(Cf. a este respeito: Cézanne, 1978, p. 225 e Hoog, 1989, p. 79).
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como “o caráter inumano de sua pintura” surgiam para Zola apenas como “fuga do mundo h u7
mano, a alienação de sua humanidade”, enfim, “fenômeno de decadência” (SNS: 15).
Ao procurar compre ender a obra unicamente pela psicologia do artista, Zola não fez mais
que desconhecê-la, negá-la em seu sentido positivo, tirando toda sua signific ação própria, para
reduzi-la ao nível de sintoma, de descarga ou efeito de um psiquismo doentio. Sob a pena d e
incorrer em equívocos semelhante ao de Zola, a determinação do sentido da obra de Cézanne
unicamente por sua vida é uma perspe ctiva que Merleau -Ponty evitará. Para o filósofo, a obra
não é mero efeito da vida. Tudo aquilo que foi dado a viver ao pi ntor, seus problemas pessoais,
seu destino corporal, os aco ntecimentos históricos, para Merleau -Ponty, se nos instalamos no
pintor para assistir a este momento decisivo no qual tudo isto se “cristaliza sobre ‘o motivo’, rec onheceremos que sua obra, que jamais é um efeito, é sempre uma resposta a estes dados” (S:
80-81. Itálicos nossos).
Mas apreenderíamos melhor o sentido da obra de Cézanne recorrendo à história da arte?
E, deste ponto de vista, explicaríamos sua obra transformando -a em objeto de uma ampla pe squisa científica, na qual procuraríamos compree ndê-la por suas influências, os procedimentos
técnicos do artista e, mesmo, pelo que ele disse de sua própria pintura? Recorrer às suas infl uências e tentar compreender sua obra por aquela de Delacroix, Courbet e a influência do impre ssionismo, sobretudo, de Pissaro, mais uma vez, seria ignorá -la, procurando compreendê -la pelo
que nela é dos outros, ao invés de vê -la por ela mesma. Decompor a obra nos procedimentos
técnicos que a tornaram possível, dispersá -la em m inuciosas descrições técnicas, números e
medidas também é torná -la ausente, perdê-la ou fazê-la desaparecer entre cifras, cálculos e
fórmulas. Resta ainda o recurso ao próprio testemunho do artista sobre sua obra. Afinal, supo stamente, quem estaria mais autorizado para falar de uma obra que seu pr óprio autor?
No final da vida, Cézanne empenha -se cada vez mais em compreender sua obra. A “sede
de exegese” de sua pintura era tanta que, na velhice, “o cuidado com a teoria” passa a ser pr esença constante em suas cartas e sua conversação (Gowing, 1992, p. 12). Será, então, que
compreenderíamos melhor a obra de Cézanne considerando suas próprias palavras? Mais uma
vez, para Merleau-Ponty, estaríamos ignorando a obra, pois esta perspectiva implica em conc ebê-la como “tradução de um pensamento já claro” (SNS: 24), e xpressão de um conteúdo interior
do qual o artista tivesse, como mestre absoluto, pleno domínio e uma visão transparente. Neste
caso, a obra seria apenas a encarnação constitutiva de um sentido concreto; tornaria-se supérflua ou secundária, não mais que a ilustração de uma idéia clara, capaz de se expor e justificar 7
Mas mesmo que Zola, através da vida do artista, tivesse compreendido a originalidade da obra de Cézanne, para
Merleau -Ponty, como ele mesmo dirá numa conferência de 1951 (retomada sob o título “L’homme et l’adversité” em
Signes, p. 284-308) o equívoco de toda explicação extríns eca à obra está em “sempre ceder à ilusão retrospectiva, (...)
sempre realizar de antemão o válido – (...) sempre desconhecer o m omento humano por excelência, em que uma vida
tecida de acasos se volta sobre si mesma, retoma -se e se exprime” (S: 305).
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se a si mesma, tornando a obra desnecessária. Mas este não é em absoluto o caso em Céza nne. O pintor jamais teve clarividência de sua obra. Po r isso, nunca parou de trabalhar e ao inte rrogar os quadros que nasciam sob suas mãos, ao espreitar “os olhares dos outros sobre sua
tela” (SNS: 33), o que esperava dos outros, do assentimento que poderiam lhe dar, era a prova
de seu valor, que ele mesmo d esconhecia. Se tentava se explicar, mais que em teoria, era diante
da natureza, pincel à mão, que queria ter razão. 8 Se jamais rejeitou o pensamento, a reflexão
vinha-lhe sempre atrelada à visão.
Mais que o falar de Cézanne, o melhor caminho para compreen dê-lo talvez esteja em considerar seu pintar. Portanto, para Merleau-Ponty, não é pela psicologia do artista ou pela história
da arte que desvelaremos o sentido da obra de Cézanne. Na esteira do pensamento de Heide g9
ger, Me rleau-Ponty, a fim de compreender o sentido da obra de Cézanne, ou melhor, como ele
especifica em O olho e o espírito, a filosofia que “anima o pintor, não quando exprime opiniões
sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pe nsa com a pintura’ ” (OE: 60), não vai centrar -se, única e exclusivamente, na história da arte ou
na do indivíduo, dois modos artificiais de se ignorar uma obra, mas no gesto de pintar, no próprio
ato de pintar e no pintor em presença do mundo para, a partir daí, ver como a pintura, em Cézanne, transformando a percepção num gesto, redobra-a na obra pictural.
3. Cézanne e os impressionistas.
Cézanne é, sem dúvida, devedor dos impressionistas. Antes de encontrá -los, sua pintura
era apenas a “encarnação de cenas imaginadas, a projeção de sonhos no exter ior” (SNS: 16).
Foi graças aos impressionista e, dentre t odos, Pissaro 10, que o pintor concebeu a pintura não
como um trabalho de ateliê, mas como um “estudo preciso das aparênc ias” a partir do “trabalho
na natureza” (SNS: 16). Trata-se de esquecer “todo o resto”, perspectiva, ciência, tradição e vo ltar-se para esta “obra perfeita”, a natureza, da qual tudo nos provém e pela qual existimos, afi rmava Cézanne (apud SNS: 17).
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Em carta a Louis Aurenche, provavelmente em outubro de 1901, o pintor admite: “Sou apenas um pobre pintor e o pincel seria sem dúvida
sobretudo o meio de expressão que o céu pôs em minhas mãos. Portanto, ter idéias e desenvolvê-las não é meu negócio” (Cézanne, 1978, p.
276). E para Émile Bernard no dia 24 de maio de 1904 reafirma: “o pintor deve se consagrar inteiramente ao estudo da natureza (...). As
discussões sobre arte são quase inúteis” (p. 302). Para o mesmo Bernard, em carta de 25 de julho deste mesmo ano, o artista assevera:
“Não quero ter razão teoricamente, mais diante da natureza” (p. 304).
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Como lembra Waelhens (1951), Heidegger, “no início de uma conferência sobre a origem da obra de arte, que constitui o primeiro estudo
de Holzwege, mostra que nenhum problema de estética pode se resolver pela referência à psicologia do artista ou (...) à história da arte” (p.
366);
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Cézanne (com sua mulher, Hortense e o filho, Paul) reuniu-se a Pissaro na cidade de Pontoise, vizinha a Paris, em 1873. Após o período
de angústia e de busca pelo qual passou na juventude, vivendo entre Pontoise, Paris e Auvers-sur-Oise, Cézanne desfrutou uma dezena de
anos de serenidade, rodeado pelos impressionistas (Cf. a este respeito Hoog, 1989, p. 43).
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Como sugere Rey (1978): “Cézanne opera (...) concretamente em sua pintura uma espécie de colocar entre parênteses de todos os conhecimentos adquiridos e toda linguagem já instituída para, assim, tentar chegar à natureza em seu aparecer originário” (p. 159).
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Contudo, embora partilhassem do mandamento c omum de pintar na natureza, o fim a que
Cézanne visava com sua pintura não era o mesmo dos impressionistas. Contrastando o “pintar”
de Cézanne com o dos impressionistas poderemos ver mais facilmente a diferença entre eles.
Os impressionistas abordando os objetos num estado de inteira disponibilidade visual e
abstendo-se de todos “os refinamentos imitativos da tradição” (Gowing, 1992, p. 95), pretendiam
pintá-los, em termos de sua aparência atmosférica, tal como nos são dados na percepção insta ntânea. Para eles, é “o instante receptor da impressão da natureza” (Klee, 1985, p. 9) que cont ava. Como explica Merleau -Ponty, eles pretendiam “restituir na pintura a própria mane ira pela qual
os objetos atingem nossa visão e atacam nossos sentidos”(SNS: 16). Deste modo, no pint ar impressionista, os objetos se dispersam ou dissolvem -se nos quadros, sendo apresentados “na
atmosfera (...) sem contornos absolutos, ligados entre si pela luz e pelo ar” (SNS: 16). Subme rsos neste “invólucro luminoso”, os objetos perdem toda sua densida de. Por sua vez, Cézanne
almejava com sua pintura dar uma forma de tal modo tangível aos objetos, que eles fossem an álogos às coisas em sua existência real. Tratava -se de devolver à pintura aquilo que os impre ssionistas, segundo ele, haviam tirado dela: o peso, a estrutura e a sol idez da matéria.
Mas, se Cézanne se afasta dos impressionistas ao querer reencontrar os objetos “atrás da
atmosfera” (SNS: 16) pintada por eles; é preciso reconhecer que ele não abandona a estética
impressionista no que ela “toma o modelo na natureza” (SNS:17). Em sua busca de uma pintura
direto da natureza, Cézanne só admitia como guia a própria natureza na impressão imediata que
temos dela. Neste sentido, desconsiderava todos os procedimentos clássicos da pintura: delim itação das cores pelos contornos, o ponto fixo da perspectiva, a composição da tela e distribuição
da luz. Bernard via nisto o suicídio de Cézanne: visava a real idade, mas recusava os meios para
alcançá-la. O único meio admitido para encontrar o objeto era a própria impressão. Um paradoxo?
12
Nem Courbet, nem Monet, nem a co isa dos realistas, nem a sensação dos impressionistas,
mas uma terceira via entre eles: “procurar a realidade sem abandonar as sensações” (SNS: 17).
Projeto insano? A razão estaria novamente com Émil e Bernard, para quem Cézanne, ao se e ntregar às sensações, teria dissipado “a pi ntura na ignorância e seu espírito nas trevas”? (apud
SNS: 18). Ou o que se vê é um pintor que, “dócil ao sentido pr óprio de sua pintura” (SNS: 18),
não se persuade de ter que optar entre as alternativas prontas e dicotômicas que a tr adição lhe
propõe?
4. Cézanne: um novo caminho?
12
Este pretenso paradoxo na pintura de Cézanne não é senão o retorno à experiência perceptiva, tal como ela é vivida e descrita na Fenomenologia da Percepção (1945) de Merleau-Ponty.
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Mais que diante de um insensato, talvez Bernard não tivesse percebido de imediato que
estava diante de um artista que procurava instaurar uma nova v isão de mundo, desbravar um
caminho até então não trilhado. Caminho que, para o pr óprio Cézanne, longe de se apresentar
na clareza de uma alameda ensolarada, aparecia-lhe como uma vereda incerta a ser aberta no
emaranhado das sensações, sem nenhuma garanti a prévia de sucesso. Ser a rtista significa em
Cézanne aquilo mesmo que Van Gogh (1997) afirma de Mauve: “procurar sempre, sem jamais
encontrar a perfeição. Justamente o contrário de ‘eu já sei, já encontrei’ ” (p. 61). Entre a natur eza e a tela, a atividade expressiva do artista, que se guia apenas pelas sensações, não é uma
atividade harmônica, mas agôn ica. O trabalho do artista não é a celebração da suposta “perfeita
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continuidade” entre a percepção e a pintura , a vida e a obra, é um combate pela expressã o.
14
“É – na comparação oportuna de Van Gogh (1997) – a ação de se abrir uma pa ssagem através
de um muro de ferro invisível, que parece se enco ntrar entre o que se sente e o que se pode” (p.
78), o que se vive e a possibilidade de exprimir, pela obra, o sen tido deste vivido. Deste ponto de
vista, o cuidado cada vez maior do velho Cézanne com a explicação de sua pintura (que o pr óprio Bernard 15 foi quem melhor testemunhou) não provinha da arrogância de uma inteligência
clarividente na plena posse do que fazia, mas do esforço de compreender a si mesmo ao tentar
explicar-se para o outro. Assim, ao invés de acatarmos o juízo de Bernard sobre a pintura de
Cézanne, melhor é abrirmos os olhos à própria obra do pintor e ao modo como ele a concebia.
Avesso às dicotomia s entre o pintor que vê e aquele que pensa, entre sensação e intel igência, Cézanne não se persuadia de ter que optar entre elas como entre o caos e o cosmos.
Pelo contrário, procura uni-las: “uma inteligência que organiza possantemente é a colaboração
mais preciosa da sensibilidade na realização da obra de arte”, afirma o artista 16. Se ao olho cabe
ver o mundo, ao cérebro resta a tarefa de organizar os dados da visão, descobrindo os me ios de
exprimi-la na obra. Sensação e reflexão são, para Cézanne, dois mom entos inseparáveis e essenciais para toda realização em arte. O genioso artista de Aix estava longe de ser um bruto,
entre a comunhão com a natureza através dos sentidos e a ação do pincel na tela, um longo e,
freqüentemente, penoso trabalho de refinamento intelectual das sensações se interpunha. Nada
mais longe de Cézanne que a pintura como resu ltado de uma ação-reflexo onde o olho guia a
mão sem que a reflexão intervenha.
13
Haar (1992, p. 106-107) aponta esta “perfeita continuidade” em Merleau-Ponty, quando basta A dúvida de Cézanne, para vermos a dificuldade que comporta o trânsito entre experiência e expressão, longe do “espontaneismo” que Haar (p. 109) insiste em ver. O próprio Merleau-Ponty, no congresso sobre Husserl em Royaumont, afirma que a tarefa da fenomenologia, de “conduzir a experiência ainda muda a exprimir seu próprio sentido” é uma “tarefa difícil, quase impossível”; pois entre uma e outra, o que temos “não é uma espécie de acordo ou de
harmonia preestabelecida, é uma dificuldade e uma tensão” (cf. Merleau-Ponty apud Waldenfels, 1998, p. 334).
14
Na carta a seu filho de 8 de setembro de 1906, o pintor escreve: “comigo, a realização de minhas sensações é sempre muito difícil. Não
consigo chegar à intensidade que se desenvolve em meus sentidos, não tenho esta magnífica riqueza de coloração que anima a natureza.”
(Cézanne, 1978, p. 324).
15
Bernard visitou Cézanne pela primeira vez em 1904, depois disso eles se corresponderam até o ano da morte do velho mestre em 1906.
Bernard é o principal destinatário dos ensinamentos teóricos de Cézanne. Nas cartas para o jovem amigo, mais do que em quaisquer outras,
Cézanne fala de sua pintura e de suas teorias artísticas. Cf. Doran (1978, p. 23-80).
16
Cf. Doran (1978, p. 15), segundo notas recolhidas pelo filho de Cézanne e publicadas por Léo Larguier.
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Alheio às querelas teóricas sobre sua pintura, longe do público e das críticas, trab alhando
“em silêncio”, como ele mesmo gostava de dizer, Cézanne prosseguia com t enacidade suas
pesquisas plásticas, constante em seu proj eto de pintar a “natureza à sua origem”(SNS, 18), mas
recusando as facilidades que a tradição e a ciência pudessem lhe oferecer. Cézanne queria, no
próprio contato com a natureza, desve ndar o caminho para expressá -la.
A pesquisa sobre “o motivo” (como chamavam a nat ureza) era uma constante em sua vida.
E foi justamente por esta fidelidade ao olhar sem preconceitos para nat ureza que Cézanne descobriu, sobre a perspectiva, aquilo que só mais tarde a psicologia viria formular, ou seja, que “a
perspectiva vivida, aquela de nossa percepção”, é diferente da “perspectiva geométrica ou fot ográfica” (SNS: 19). Por isso, por exe mplo, no retrato da Senhora Cézanne, “o friso da tapeçaria,
de uma parte a outra do corpo, não faz uma linha reta”, porque, tal como na perspectiva vivida,
“sabe-se que se uma linha passa sob uma larga tira de papel, as duas seções visíveis aparecem
deslocadas” (SNS: 19), o mesmo não acontecendo na fotografia.
Do mesmo modo, Cézanne percebeu que “os contornos dos objetos, concebidos como
uma linha que os delimita”, é uma traição do pintor perante a natureza e ao seu próprio olhar,
visto que, tais contornos não p ertencem à ordem espontânea das coisas percebidas, mas à o rdem humana das idéias e das ciências. O contorno, para C ézanne, jamais existiu como prisão
das formas; mas tão somente como fronteira entre elas, o lugar onde uma acaba e outra com eça. Por isso, para restituir a coisa tal como ela originariamente é dada na sensação, Cézanne
recusa aprisionar as formas da natureza às suas figuras mais simples e isoláveis, tais como o
cone, a esfera e o cilindro, que são abstrações sobre o objeto e não ele mesmo, tal como se dá
a ver aos olhos depurados de toda idéia prévia, ou seja, tal como aparecem na perspectiva viv ida. Se as formas da natureza, de fato, tendem para tais figuras, trata -se de verificá-las no contato com natureza, a partir da “geometria da visão” (Go wing, 1992, p. 20) e não de reduzir a nat ureza a tais abstrações. Para Cézanne, a figura não preexiste ao seu conteúdo e é da existência
deste que depende a inteira construção figurada. É a natureza – uma paisagem, um rosto ou
uma natureza morta – que, na riqueza de sua presença, deve suscitar a estrutura que lhe conf erirá identidade. Tal estrutura não deve ser um dado prévio presidindo a recriação fig urada da
coisa.
Assim, ao pintar uma maçã, diante das alternativas entre (1) marcar com um traço a figura
arredondada da fruta, traindo a perspectiva vivida e sacrificando a profundid ade, no entanto,
fazendo dela uma coisa a partir do “limite ideal”, ou (2) “não marcar contorno algum, que seria
tirar dos objetos sua identidade”, Cézanne “seguirá numa mod ulação colorida a intumescência
do objeto” e onde deveria haver um contorno delimitando a forma da maçã, o artista opta por
marcar “em traços azuis vários contornos” (SNS: 20). O olhar, oscilando entre eles, capta “um
contorno nascendo (...), como acontece na pe rcepção” (SNS: 20). A maçã, deste modo, ao invés
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de surgir imóvel e aprisionada nos limites rígidos do desenho circular que detém a cor; ela ap arece vibrando em suas bordas, pulsando em sua forma, que vai ganhando volume e profundid ade diante do olhar, como uma maçã concreta e individual, tal como ela aparece na experiência
primordial, em que nos é dada “plena de reservas e como uma realidade inesgotável” (SNS: 20).
Para Merleau-Ponty, “não há nada menos arbitrário” (SNS: 20) na pintura de Cézanne do
que estas famosas deformações perspectivas. 17 Elas têm o mérito de nos mo strar não apenas
que as figuras geométricas que acreditamos ver nas coisas não provêm delas, mas são proj eções da ordem da ciência e do ideal que fazemos sobre o percebido ou viv ido; como também,
evidenciam que aquilo que o artista pinta é seu encontro com o mundo, são as coisas, não como
seriam nelas mesmas, mas como ele as vê, ou melhor, como as sente, como elas se fazem co isas para ele ou como se manifestam à sua visão ou se fazem present es em sua experiê ncia. O
filósofo esclarece ainda que o gênio do pintor está em fazer com que tais deformações, “pela
disposição de conjunto do quadro, deixem de ser visíveis por si mesmas quando o olhamos gl obalmente, contribuindo somente, como o fazem na visão natural, para dar a impressão de uma
ordem nascente, de um objeto apar ecendo, aglomerando -se sob nossos olhos” (SNS: 19-20). As
deformações de Cézanne surgem assim, mais que impe rfeições de quem não sabia desenhar,
como o resultado de um profundo re finamento das sensações obtido – como afirma Rivière –
“através de uma ciência enorme” (apud H oog, 1989, p. 51) e grande atenção às sensações.
Para o artista, o mundo “é um organismo de cores” (SNS: 20), o que faz com que as rel ações entre elas surjam como verdadeiras conjunções entre as partes de um me smo corpo. Como
explica Gowing (1992), estava fora de questão para Cézanne observar outra coisa que as rel ações entre as cores, equivalentes, “aos seus olhos, (...) às seqüências de formas que ele podia
desenhar no museu” e, sem dúvida, comparáveis “em seu espírito (...) às articul ações do corpo”
(p. 115-116). Daí o rigoroso sentido de sua resposta a V ollard, quando este lhe chama a atenção
para dois pequenos pontos em branco sobre a mão do retrato para o qua l posava. Cézanne re sponde-lhe: “Se minha sessão desta tarde no Louvre for boa (...) talvez amanhã e ncontre o tom
certo para fechar esses brancos (...), se ponho aí qualquer coisa, ao acaso, serei forçado a r etomar todo meu quadro partindo deste lugar!” (V ollard apud Doran, 1978, p. 8). Assim, para rest ituir o mundo em toda sua espessura, repleto de reservas e inesgotável, e não simplesmente c omo algo plano e estirado diante de nós, o pintor acreditava que o desenho devia resultar da ha rmonização das cores, isto é, das correspondências entre elas e da passagem de umas às o utras. A figura, para Cézanne, é tributária da cor e só ganha consistência através dela. Deste po nto de vista, ele não vê distinção entre desenho e cor, tudo na natureza sendo colorido, é n o fluxo
das cores, à medida que se pinta, que as coisas vão ganha ndo suas formas distintas, vão sendo
17
Schnerb e Rivière (apud Cahn, 1995) contam que o próprio Cézanne “era consciente (...) das deformações em suas composições. Contudo, ele se recusava a corrigi-las, querendo preservar as impressões que havia sentido diante do motivo” (p. 88-89).
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desenhadas. Daí o ditame maior de sua técnica: quanto “mais a cor se harmoniza, mais o des enho se precisa; quando a cor está em sua riqu eza, a forma está em sua plenitude”
18
(Cézanne
apud SNS: 20).
Quanto ao próprio desenho, que se pode arbitrariamente separar da cor, o “desenho de
exatidão automática ensinado na Escola de Belas Artes”, Cézanne tinha verd adeiro horror dele. 19
Na contrapartida da tradição lin ear das escolas clássicas vigentes (Realismo, Romantismo, Ne oclassicismo), para as quais o desenho era imprescindível, Cézanne acreditava que somente a
cor, bem modulada, bastaria para tudo exprimir: “a profundidade, o aveludado, a maciez, a dur eza dos objetos – Cézanne dizia inclusive: seu odor”
20
(SNS: 20). Para tanto, para fazer da pintura
não apenas uma “alusão às coisas” (SNS: 21) ou uma superfície colorida endereçada somente à
visão, mas apresentação das coisas mesmas, atacando -nos por todos os lados, tal como originariamente aparecem, isto é, “em sua unidade imperiosa” e fazendo apelo a todos os sentidos c omo esta presença plena “que é para t odos nós a definição do real” 21 (SNS: 20), cada toque dado
pelo pintor em sua tela (e, às vezes, ele levava horas para fazê-lo) deveria satisfazer a uma inf inidade de condições, a fim de ser a solução exata para a expressão desta visão orig inária das
coisas. Vemos mais facilmente, agora, por que a pintura era para o artista uma atividade extr emamente laboriosa e lent a. Sem separar visão e pensamento, os progressos a fazer eram, para
Cézanne, incessantes, uma vez que a t arefa do pintor: “A expressão do que existe” delineava-se
para ele como “tar efa infinita” (SNS: 21).
5. Pintar e reaprender a ver o mundo.
Olhando como apenas o homem é capaz de olhar, 22 Cézanne recusa o olhar ordinário que,
contaminado pelas necessidades práticas, habituou -se a só enxergar nas co isas o genérico e o
18
Para Cézanne, “o desenho puro é uma abstração (...), à medida que se pinta, se desenha” (SNS: 20). Neste sentido, bem que poderiam
ser suas as palavras de Frenhofer, herói do romance Chef-d’oeuvre inconnu de Balzac (1994), que pretendia exprimir a vida pelas cores: “A
linha – diz o personagem – é um meio pelo qual o homem se dá conta do efeito da luz sobre os objetos; mas não existe linha na natureza,
onde tudo é pleno: é modelando que se desenha” (p. 51-52). São palavras que cabem perfeitamente na maneira de pensar de Cézanne que
via neste herói romanesco um retrato dele próprio.
19
Cf. “O ateliê de Cézanne” de RP.Rivière e JF.Schnerb (apud Doran, 1978, p. 87)
20
Para Merleau-Ponty , com isto, Cézanne “queria dizer que o arranjo das cores sobre a coisa (e na obra de arte se ela retoma totalmente a
coisa) significa, por si mesmo, todas as respostas que ela daria à interrogação dos outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se ela
não tivesse também esta forma, estas propriedades táteis, esta sonoridade, este odor, e que a coisa é a plenitude absoluta que projeta diante
de si mesma minha existência indivisa” (PhP: 368). Por outras palavras, a percepção não é a soma dos dados fornecidos pelos sentidos,
que acrescentados uns aos outros, daria-nos a coisa; percebemos de “maneira indivisa” com nosso “ser total”; a pintura de Cézanne pretende mostrar a coisa tal como ela nos aparece na experiência natural, isto é, como “uma estrutura única (...), uma única maneira de existir” que
se dirige ao mesmo tempo a todos os nossos sentidos (SNS: 63).
21
“Quando olho o verde brilhante de um vaso de Cézanne, - afirma Merleau-Ponty - ele não me faz pensar na cer âmica, ele a apresenta a mim, ela está ali, com sua crosta fina e lisa e seu interior poroso, na maneira part icular pela
qual o verde se modula” (PhP: 380).
22
Segundo Merleau-Ponty, ordinariamente, nosso olhar é viciado, ele “se põe sobre as coisas apenas o suficiente para reencontrar sua
presença familiar, e não o suficiente para redescobrir aquilo que elas encerram de inumano. Mas a coisa - continua ele – ignora-nos, ela
repousa em si. Nós o veremos se colocarmos em suspenso nossas ocupações e dirigirmos a ela uma atenção metafísica e desinteressada”
(PhP: 372). Tal é o olhar cezanniano.
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previsível ou o que lhe é útil às ações do cot idiano. O olhar de Cézanne pretende ver o mundo lá
onde ele originariamente aparece, o mundo que está abaixo do mundo das preocupações pra gmáticas da vida cotidiana, em que não vemos realmente as coisas, mas as v emos tão somente
como pontos de aplicação de nossas ações, ou seja, as vemos para agir e não para simplesmente vê-las. O olhar de Cézanne se coloca fora desta vida. Pretende ir às raízes inumanas do mu ndo, o mundo aquém da humanidade constituída (SNS: 22); quer ver “o fundo de natureza inum ana sobre o qual o homem se instala” (SNS: 22). É p or isso que em suas pinturas, progressiv amente, descobrimos não uma transcendência da expressão que nos conduziria ao realismo, mas
23
a expressão como expressão de uma transcendência . Em seus quadros, as coisas aparecem
fora da familiaridade na qual habitua lmente as vemos, no contexto de nossas ocupações, se mpre como “ponto de aplicações” (SNS: 22) de nossas poss íveis ações. Sua pintura é “um mundo
sem familiaridade, onde não se está bem” (SNS: 22), seus personagens são estranhos, as pa isagens sem vento, a água sem movimento, “os objetos transidos hesitando como na origem da
terra” (SNS: 22). E nisto está, para Merleau -Ponty, o mérito de Cézanne: relembrar-nos desta
inumanidade, pintar desde este lugar em que o real se faz real, retornando às origens, às font es
do real.
Sem negar a ciência ou a tradição, Cézanne estudava horas a fio no Louvre, que consid erava “um bom livro para se consultar” (Cahn, 1995, p. 79), e julgava o estudo ge ométrico dos
planos e das formas útil à pintura, chegando até mesmo a se infor mar sobre “a estrutura geológica das paisagens” (SNS: 22); contudo, todas essas informações, ele as tomava como secund árias, sem jamais se deixar orientar primeira e exclusivamente por elas. Para o artista, o motivo
primeiro que sustenta cada gesto do pint or jamais poderia ser “unicamente a perspectiva ou a
geometria ou as leis de composição das cores ou qualquer conhecimento que seja”; mas, tão
somente, como único “motivo”, “a pa isagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta”
(SNS: 22). Não se trata porém de negar tudo e recomeçar a pintura, datando -a a partir de si
(complexo de Adão), mas de descongestionar a visão de todas as lembranças de museus, exp osições e teorias que a sobrecarr egam, como condição para se poder ver a natureza sob um novo
olhar.
Paralela à atitude de Monet, que declarava ter querido nascer cego e recuperado, de r epente, a visão; Cézanne também gostava de dizer que seu desejo era “ver como aquele que
acaba de nascer” (Cahn, 1995, p. 88). Mas, mais uma vez é que, para ele, era pre ciso abster-se
dos recursos à ciência e à tradição, aplicando -se em simplesmente ver, pôr-se diante da natureza com o propósito de tudo esquecer, justamente, para redescobri -la. Cézanne não era um prim itivista, a descoberta de um novo caminho pressupõe o c onhecimento daqueles já trilhados, seja
para evitá-los ou para se saber a partir deles até onde já se foi. A descoberta do novo e desc o23
“O que tento vos traduzir é mais misterioso, entrelaça-se às próprias raízes do ser, à fonte impalpável das sensações”, dirá Cézanne numa
carta a J. Gasquet (apud OE: 1).
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nhecido pressupõe a mediação do velho e conhecido, do contrário, a novidade pode ser apenas
repetição ou pastiche. Cézann e, portanto, não recusava a tradição, só não admitia partir dela ou
limitar-se a repeti-la. Fazê-lo seria fechar os olhos para a infinita n ovidade da natureza, recusar a
admiração. Deste modo, se o artista considera o Louvre “um bom livro”, “onde aprend emos a ler”,
acrescenta em seguida, “mas ele deve ser apenas um intermediário”, “não devemos nos conte ntar em reter as belas fórmulas de nossos ilustres antecedentes. Sa iamos dele para estudar a
bela natureza”. 24
A natureza em sua prodigiosa fecundidade estava sempre em primeiro lugar diante do olhar admirado do artista. Diante dela, imóvel, olhos dilatados, o pintor a contemplava, “germin ava” com ela, esquecendo toda ciência e toda trad ição, olhando como quem olha pela primeira
vez, a fim de constituí-la “como organismo nascente” (SNS: 23), como o mundo em sua origem.
Entre a paisagem e o quadro, está o artista, “nem servidor submisso, nem mestre absoluto,
mas simplesmente intermediário” (Klee, 1985, p. 17), que se deixa inspirar pelo mu ndo através
da sensação para, em seguida, expirá-lo transfigurado, através do trabalho, em obra. A arte não
é nem a representação exata de uma realidade entendida como substrato em si perante o olhar
do artista, nem a tr adução fiel de uma idéia que do interior o assedia. Para al ém da pintura como
“imitação” do mundo, transposição de uma visão objetiva para a tela equivalente do “real”; ou da
pintura como tradução de um pensamento já claro, um conteúdo interior; ela é sempre “uma op eração de expressão” (SNS: 23), a partir deste e ncontro originário do corpo e do mundo no solo
originário das sensações.
Semelhante à palavra que “não se assemelha ao que designa”, assim também, “a pintura
não é uma cópia” (SNS: 23). Mesmo na pintura clássica, quando os artistas, com os olhos fixos
no mundo, acreditavam ter dele o segredo de uma representação fiel, ainda assim, sem sab erem, transfigurava-o na pintura. Ao olhar o mundo, pensavam soletrá -lo, quando na verdade o
recriavam pela pintura. Parafras eando Van Gogh (1997, p. 183), mesmo que pudésse mos fixar
com todas as cores e traços o reflexo da realidade num espelho, o resultado não seria de modo
algum um quadro. Toda esta riqueza de cores atuando umas sobre as outras na natureza, ela é
perdida se a pintura limita -se a ser uma cópia literal da na tureza; ao contrário, ela é resg atada
se, na pintura, procura-se recriá-la através de uma gama de cores paralelas que não tem que ser
fatalmente idêntica à da natureza, mas que se harmoniza tão bem na tela quanto é harmônica na
natureza. Trata-se, portanto, de buscar uma identidade da pintura consigo mesma e não entre a
pintura e a natureza. Pintar não é copiar servi lmente as coisas da natureza, pois tal submissão
faria da arte uma mera imit ação sempre inferior ao original.
24
Cf. para as citações acima: cartas a Émile Bernard de12 de maio de 1904 e de 1905 (sem referência ao mês) em Cézanne,1978, p. 303,
313-314.
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6. Considerações finais
Chegando ao fim desta comunicação, podemos co ncluir que pintar, para Cézanne, é, sem
separar o pensamento da visão, interpretar a natureza, aquilo que se vive, que se vê. O que para
o artista significa, a partir da natur eza, “apreender uma harmonia entre numerosa s relações (...)
desenvolvendo-as seguindo uma lógica nova e orig inal”,
25
tornando real ou realizando o quadro,
não como cópia, mas como “uma harm onia paralela à natureza”, que é a própria definição de
arte para Cézanne. 26 Ele vai, portanto, ao encontro da c lássica concepção da arte como “o h omem acrescentado à natureza” (SNS: 22); da qual, entretanto, ele depreende uma signific ação
ou uma concepção que traz sua marca, que se expressa na sua obra como algo que ele trouxe à
luz, que sem ele não existiria. Em t ais termos, podemos afirmar com Klee (1985) que, “a arte não
reproduz o visível; ela torna visível” (p. 34); ela não imita a coisa, mas apreende, segundo a lóg ica e os recursos que lhe são próprios, o modo como a coisa se manifesta como coisa e se inst ala num mundo particular. É assim que vemos, em Cézanne, o artista procurando “restituir o e ncontro do olhar com as coisas que o solicitam” (S: 71), retomando -as tal como se dão a ver, or iginariamente, a cada consciência, isto é, como “vibração de aparências” (SNS: 23), para convertê-las, através da pintura, em objeto visível e acess ível a todos, liberando-as da vida secreta e
privada de cada consciência solitária, na qual, antes da pintura e sem ela, elas permaneceriam
encerradas.
Portanto, para um pintor como Cézanne, que quer pintar as coisas desde o berço das se nsações em que surgem, como afirma Merleau -Ponty: “uma única emoção é possível: o sentime nto de estranheza, um único lirismo: o da existência sempre recomeçada” (SNS: 23). A mesma
admiração, que está na base do filosofar, aparece igua lmente fundamentando a atividade do
artista. Nos dois casos, a admiração se traduz, igualmente, como sentimento de estranheza p erante a existência que, visada fora do ci rcuito familiar da visão cotidiana, aparece originar iamente
sempre como a mesma; mas, posto que, visada desde a fonte em que se manifesta (o berço das
sensações), não cessa de mostrar -se também sempre como nova e estr anha. Por isso, talvez,
Cézanne repetisse sempre: “A vida é espantosa”. No entanto, era des te espanto que na scia sua
pintura. A pintura como sua resposta ao espanto.
Referências bibliográficas
BALZAC, Honoré de.
Le Chef-d’oeuvre inconnu et autres nove lles.
Paris: Gallimard, 1994.
(Fólio/Classique).
25
26
Cf. Larguier apud Doran (1978, p. 17).
Carta de 26 de setembro para J. Gasquet (Cézanne, 1978, p. 262).
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