Colectânea de Jurisprudência
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JURISPRUDÊNCIA E PARECERES
Tribunal da Relação de Évora, Acórdão 8 Fevereiro 2001 (Ref.
8358/2001)
Relator: Ana Geraldes
Processo: 1787/00
Jurisdição: Cível
Colectânea de Juriprudência, Tomo I/2001 2001
Sumário
PROCEDIMENTO CAUTELAR NÃO ESPECIFICADO. Prejuízo superior aos danos que se pretendem
evitar. Conflito de direitos de espécie diferente. Direitos de natureza económica e direitos de
personalidade.
I - Para que uma providência cautelar possa ser recusada pelo tribunal não basta atentar no estabelecido
no art. 387º-2 do CPC, é necessário averiguar se a situação de conflito emerge de direitos iguais ou da
mesma espécie ou se, ao invés, esses direitos são desiguais ou de espécie diferente, caso em que a colisão
de direitos tem de ser resolvida à luz dos princípios gerais do direito substantivo onde rege o estabelecido
no art. 335º do CC.
II - A definição da superioridade dum direito em relação a outro deve ser feita em concreto, pela
ponderação dos interesses que cada titular visa atingir.
III - Havendo colisão entre um direito de personalidade, como o direito ao repouso, descanso e
transquilidade e um direito de natureza económica como o direito de propriedade e do trabalho, o primeiro
deve prevalecer.
J. N. A. V.
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I - Relatório:
1. José S. e mulher Rosália S., intentaram o presente procedimento cautelar não especificado contra: Virgílio
M. e mulher.
Alegando, em resumo que: Os Requerentes são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano,
composto por vários compartimentos e logradouro, sito em Relvas, freguesia de Pêra, concelho de Silves, onde,
embora aí não residam, passam, com muita frequência, alguns fins de semana ou os períodos das suas férias,
umas vezes sozinhos, outras vezes na companhia de familiares e amigos.
No decurso da época balnear também costumam dispensar o referido prédio, durante os dias da semana, a
pessoas amigas que nessa região do Algarve gostam de passar as suas férias.
Tal prédio urbano confina com um prédio rústico, propriedade dos Requeridos, onde estes têm plantada uma
vinha.
Acontece, porém, que desde o momento em que os frutos aí existentes das parreiras - uvas - começam a
amadurecer, sensivelmente desde a segunda quinzena do mês de Junho, até ao momento da sua recolha, em
finais do mês de Agosto, inícios do mês de Setembro, o Requerido marido põe a trabalhar, diariamente, nesse
local, uma máquina destinada a afastar os pássaros que habitualmente se alimentam desse fruto, durante todo
aquele período de tempo.
Máquina essa que começa a trabalhar, todos os dias, sem excepção, logo ao nascer do sol (6,30/7 horas),
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até ao momento do pôr do sol (20,30/21 horas). E que foi instalada a cerca de 200 metros da casa dos
Requerentes.
Tal máquina produz um barulho ensurdecedor, semelhante aos tiros de uma arma de caça. E dispara os
referidos tiros quase de minuto-a-minuto, tornando impossível a permanência no interior do prédio,
propriedade dos Requerentes.
Ruído que impede que se possa dormir na parte da manhã, descansar ou gozar de algumas horas de repouso
nos períodos das férias e de lazer, durante qualquer hora do dia, quer para os Requerentes quer para qualquer
das suas visitas. Somente durante o período nocturno (21 horas, até cerca das 6 horas da manhã) é que aquela
máquina se encontra desligada.
Situação que já se arrasta desde o Verão do ano de 1996, não obstante as diligências encetadas pelo
Requerente no sentido de pôr termo a esse barulho ensurdecedor, quer junto do Director Regional do Ambiente
e dos Recursos Naturais, quer junto dos próprios Requeridos.
No entanto, nem aquela entidade, nem estes, puseram termo à situação, mantendo-se a referida máquina a
trabalhar durante todo o dia, naquele horário; ou seja: desde as 6,30/7 horas da manhã até cerca das 21
horas, incomodando permanentemente todos os que ali se encontram.
Situação que atinge, de forma grave e reiterada, o direito que os Requerentes têm de não ser incomodados,
na sua própria residência, com barulhos ensurdecedores, com manifesto prejuízo para si próprios, prejuízos que
dificilmente poderão ser reparados.
Concluem pedindo o deferimento da presente providência cautelar e, consequentemente, que sejam os
Requeridos intimados a colocar imediatamente fora de serviço a mencionada máquina de disparos, deixando,
desta forma, de incomodar os Requerentes e todos aqueles que habitam o prédio urbano conjuntamente com
estes.
2. A presente providência cautelar foi indeferida in limine pelo Tribunal a quo, por este ter entendido que não
se verificava o requisito do periculum in mora indispensável para o decretamento de uma providência cautelar.
Interposto recurso para este Tribunal da Relação foi revogado tal despacho e determinado que o Tribunal de
1ª instância recebesse a p.i. Decisão que o Supremo Tribunal de Justiça confirmou no seu Acórdão proferido em
19.10.99.
3. Baixados os autos à 1ª instância, aí prosseguiram com a produção de prova, tendo o tribunal a quo
proferido nova decisão, julgando improcedente a providência cautelar requerida e absolvendo os Requeridos.
............................................
II
- Os Factos:
Mostram-se provados nos autos os seguintes factos:
1. Os requerentes são donos e legítimos proprietários de um prédio sito em Relvas, freguesia de Pêra,
concelho de Silves.
2. Este prédio é constituído por uma casa de habitação e jardim.
3. Os requeridos são donos e legítimos proprietários de um prédio rústico que confina com o prédio dos
requerentes e é composto por vinha.
4. Neste prédio os requeridos cultivam duas espécies de uva: uma denominada "cardinal", tratando-se de
uva de mesa e outra destinada a vinho.
5. Na dita vinha os requeridos há pelo menos 7 anos colocaram uma máquina que emite um som
semelhante ao de um tiro de caçadeira.
6. O objectivo desse aparelho é o de enxotar os pardais e impedir que comam as uvas.
7. Esta máquina é posta em funcionamento pelos requeridos no início do Verão e até finais de Agosto, pois
é neste período que a uva se encontra madura.
8. O período de funcionamento diário situa-se entre as 8,30 horas da manhã e o pôr do Sol (8,321,00
horas da tarde).
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9. A cadência do "disparo" da referida máquina é de aproximadamente 1 a 2 minutos.
10. A máquina encontra-se colocada no meio da vinha dos requeridos, a distância não inferior a 100
metros da casa dos requerentes e com o tubo de disparo voltado em sentido oposto ao da mesma casa.
11. O barulho que a máquina emite é bem audível no prédio dos requerentes, quer estes se encontrem
dentro ou fora da sua casa, incomodando quem ali se encontra.
12. Os requerentes não residem na referida casa, apenas ali passando alguns fins de semana e períodos de
férias, cedendo por vezes a respectiva utilização por curtos períodos de tempo a amigos seus.
13. Quando os requerentes edificaram a sua casa já os requeridos se dedicavam à cultura da vinha, sendo
aliás toda a zona envolvente composta predominantemente por tal tipo de cultura.
14. A actividade que os requeridos desenvolvem no seu terreno, juntamente com outra pequena vinha que
possuem representa a sua principal fonte de rendimento.
15. A máquina atrás referida é o único meio eficaz para evitar que os pardais ataquem as uvas.
16. Apenas a variedade da uva "cardinal" está sujeita ao ataque daqueles pássaros, sendo aquele método
comumente usado em outras zonas do Algarve onde se cultiva aquele tipo de uva.
III - O Direito:
Da análise dos autos constatamos que não está em discussão, em sede de recurso, o preenchimento dos
pressupostos jurídicos estabelecidos no art. 381º do CPC, e que determinam o âmbito de aplicação das
providências cautelares não especificadas, como forma de assegurar a efectividade do direito ameaçado e que
se pretende acautelar.
A questão fulcral centra-se em saber se, no caso sub judice, se podem dar por verificados os requisitos
legais previstos no art. 387º, nº. 2 do CPC, que obstam ao deferimento da providência cautelar.
Isto é: se é possível concluir, como o fez a sentença recorrida, no sentido de que, a ser decretada a
presente providência, tal acarretaria para os Requeridos um prejuízo consideravelmente superior aos danos que
os Requerentes pretendem evitar através da mesma, conclusão que justificou, no entendimento do Tribunal a
quo
a improcedência da providência cautelar.
A dilucidação do art. 387º, nº. 2 do CPC, envolve, no caso em apreço, a aferição de quais os direitos em
causa e a sua protecção e, na eventualidade de um conflito de direitos, exige ainda que se averigue, em sede
de direito substantivo, como se dirime a respectiva colisão, face ao preceituado no art. 335º do CC.
Vejamos, então, qual a solução, em concreto, para o problema equacionado.
1. É acolhido uniformemente, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que para ser decretada uma
providência cautelar não especificada necessário se torna que se mostrem preenchidos os seguintes
pressupostos legais:
- a existência provável de um direito;
- o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito;
- que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a
assegurar a efectividade do direito ameaçado;
- e que não seja aplicável ao caso nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC
(1)
.
Basta, pois, que "sumariamente se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado
(fumus boni juris) e pelo justificado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio cause prejuizo
reparável ou de difícil reparação (periculum in mora)".
O que reclama, no momento da decisão, a conjugação e a interferência dos factores de ponderação, de
bom senso e equilíbrio na busca da justa medida que permita esclarecer a melhor composição dos interesses
Cfr. Os Acs. da RE de 16.5.91, in CJ 3, 287 a 289 e de 28.5.98, in CJ 3, 262 a 265 e o Ac. da RL de 18.11.93, in CJ
5, 127.
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conflituantes
(2)
.
É neste contexto que deve também ser encarada a regra estatuída no art. 387º, nº. 2 do CPC e que
contempla "a consagração da proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam
acautelar" e onde a lei exige que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se
pretende evitar, sob pena de ser recusada pelo Tribunal.
Ou seja: é a ponderação da "balance of interests" entre as partes do processo, a exigirem do Juiz, por
excelência, que este se oriente por padrões de razoabilidade (3).
Em que a formulação de um juízo de valor por parte do Tribunal assente no princípio da proporcionalidade
entre a resposta jurisdicional e os interesses concretamente afectados e em conflito.
2. Quer isto dizer que, para que uma providência cautelar possa ser recusada pelo Tribunal, não basta
atentar tão só no estabelecido no art. 387º, nº. 2 do CPC; é necessário averiguar se a situação de conflito
emerge de direitos iguais ou da mesma espécie ou se, ao invés, esses direitos são desiguais e de espécie
diferente.
Caso em que a colisão de direitos tem de ser resolvida à luz dos princípios gerais do direito substantivo,
onde rege o estabelecido no art. 335º do CC.
3. A colisão de direitos prevista no citado art. 335º, pode ter lugar em duas situações:
a) - relativamente a direitos iguais ou da mesma espécie - caso em que, segundo o seu nº. 1, devem os
titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes.
O que exige, para a emanação de uma decisão, que se atente na natureza dos interesses juridicamente
tutelados e em conflito.
Há, assim, que proceder a uma criteriosa identificação e ponderação, "quer dos bens juridicamente
tutelados pelas normas jurídicas estruturantes dos direitos colidentes, quer dos conteúdos dos poderes jurídicos
resultantes destes direitos, quer ainda, das modalidades de actividade material concretamente exercitadas
pelas partes, e os interesses efectivamente prosseguidos por estas (4).
Ponderação que igualmente depende, segundo Hubmann, (5) não só de uma comparação abstracta de bens
e valores jurídicos tutelados, mas também da própria situação concreta.
Destarte, a definição da superioridade de um direito em relação a outro terá necessariamente de ser feita
em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir.
Entendimento que tem suporte na doutrina e jurisprudência
(6)
.
Será, pois, em função dos factos reais apurados, das actividades desenvolvidas e dos comportamentos
conflituantes - aferidos em concreto - que se apurará qual o direito que releva juridicamente e que, nessa
medida, deve ser tutelado.
Procedendo-se à hierarquização legal desses valores para, a final, se determinar para que lado pendem os
pratos da balança jurídica de tais valorações.
4. Reportando-nos ao caso concreto dos autos, constatamos que têm razão os Recorrentes quando
defendem que os Recorridos, com o seu comportamento reiterado, violam os seus direitos de personalidade,
maxime, os seus direitos de repouso, de sossego e de tranquilidade.
Neste sentido veja-se António Abrantes Geraldes in "Temas do Reforma do Processo Civil - Procedimento Cautelar
Comum" III volume, pág. 218, 2ªed.
(2)
(3)
ibidem... pág. 220 e segs.
(4)
Neste sentido veja-se Rabindranath Capelo de Sousa in "O Direito Geral de Personalidade", pág. 553 e segs.
(5)
Autor alemão citado por Rabindranath, ibidem...
Veja-se Pessoa Jorge in "Pressupostos da Responsabilidade Civil", pág. 201, citado por Abílio Neto, in CC Anot. e
decisão transcrita na CJ, ano 1989, 1, 276.
(6)
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Não se suscitando dúvidas sobre a natureza jurídica dos direitos violados pelos Requeridos, apenas se
poderá questionar se os interesses económicos destes, na recolha de proventos da vinha que cultivam, bem
como os direitos à fruição da propriedade e ao trabalho, devem ou não ceder relativamente aos referidos
direitos de sossego, de bem-estar, de paz e de lazer, dos Requerentes.
Noutras palavras: tratando-se de direitos desiguais e de espécies diferentes - por um lado, os direitos de
personalidade dos Requerentes e por outro, os interesses e direitos de carácter económico dos Requeridos -,
quais os direitos que, in casu, devem ser prevalecentes, em face do estatuído no nº. 2 do art. 335º do CC?
5. Da matéria de facto provada resulta que:
Os Requerentes adquiriram a propriedade aqui em causa - casa de habitação e jardim - para aí passarem
os períodos de férias e alguns fins de semana, cedendo por vezes a utilização a amigos seus.
No prédio rústico que confina com aquele, os Requeridos possuem uma vinha, e instalaram uma máquina
que emite um som semelhante ao de um tiro de caçadeira, para enxotar os pardais e impedir que estes comam
as uvas.
Tal máquina funciona desde o início do Verão até finais de Agosto, desde as 8,30 horas até às 21.00 horas,
sendo a cadência do disparo de aproximadamente 1 a 2 minutos, e está colocada a uma distância não inferior a
100 metros da casa dos Requerentes.
O barulho que a máquina emite é bem audível no prédio dos Requerentes quer estes se encontrem dentro,
quer fora da sua casa, incomodando quem ali se encontra.
Ora, os factos descritos são bastante elucidativos sobre a situação em concreto vivida pelos Requerentes, e
revelam bem os incómodos a que estes têm sido sujeitos durante os períodos em que procuram o sossego e o
conforto da sua casa, em busca de momentos de descanso e de lazer nas suas férias, para retempero das
energias despendidas e para suportarem melhor o ritmo de vida, no corropio em que se transformou hoje o
dia-a-dia de todos os cidadãos.
Nada há de mais perturbador do que ser submetido diariamente a um desgaste dessa natureza, quer pela
intensidade do ruído sentido, quer pela frequência e cadência com que este ocorre.
E a sua manutenção no tempo - mais de 12 horas diárias seguidas - são mais do que perturbadoras: são
doentias. Possui potencialidades para causar reflexos profundos também a nível psicológico, de mal estar, de
irritação, de "stress" e de agressão à integridade não só física, mas moral, de todo aquele que está sujeito a
um ruído com estas características (7).
Barulho que se vem mantendo de ano para ano, pese embora os protestos dos Requerentes.
A tudo isto acresce o facto de que a propriedade se situa numa zona de férias - no Algarve -, local onde se
busca, por excelência, o descanso, o sossego e o lazer em períodos de férias e fins de semana.
E será legítimo que os Requerentes suportem esse barulho e que os Requeridos o imponham?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente.
Ainda que no caso concreto se estivesse, relativamente a ambas as partes, perante direitos que pudessem
ser qualificados como de igual natureza, a verdade é que sempre se imporia aos seus titulares que cedessem,
na medida do necessário, para que todos os direitos produzissem igualmente o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes, em observância do disposto no nº. 1 do art. 335º do CC.
Assim, à luz deste princípio legal, nada permite que os Requeridos sobreponham os seus interesses
económicos, valorizando-os em detrimento e à custa dos direitos dos Requerentes, violando os direitos de
personalidade destes (8).
Mas tratando-se, no caso sub judice, de direitos desiguais e de espécie diferente, e situando-se os direitos
Conclusão similar foi extraída no Ac. da RL de 24.11.94, in CJ 5, 112, onde se analisou uma situação de ruído
relacionada com o barulho provocado por tiros.
(7)
Seria até caso para nos interrogarmos sobre o alcance e natureza da figura jurídica do abuso de direito - cfr. CC in
Abuso de Direito.
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de personalidade num plano superior ao dos direitos de natureza económica, direito de propriedade e do
trabalho, havendo colisão de direitos, os direitos de personalidade prevalecem, por força do preceituado no nº.
2 do art. 335º do CC.
E em caso de conflito essa prevalência deve ser reconhecida pelo Tribunal.
Tem sido este, aliás, o entendimento jurisprudencial dominante, sendo pacífica a jurisprudência que
reconhece essa prevalência ao direito ao repouso, descanso e tranquilidade, enquanto direito de personalidade,
em caso de conflito entre estes e os de natureza económica, incluindo os direitos ligados à exploração
industrial, aos transportes, etc. (9)
E, consequentemente, não tem aqui aplicação o nº. 2 do art. 387º do CPC.
6. Na sentença recorrida, apesar do tribunal a quo admitir que os Requeridos, com a sua conduta,
ofendem, de forma grave, profunda e irreparável os direitos de personalidade dos Requerentes.
E reconhecer que "toda a pessoa tem direito a ter momentos de descanso, devendo os demais respeitar tal
direito", que "tal lesão não será facilmente reparável", que "é cada vez mais imprescindível nos nossos tempos
a existência de momentos de sossego e repouso", que são "mesmo imprescindíveis a uma certa estabilidade
emocional e bem estar físico" (cfr. págs. 171 e 172).
Não extraiu de tais conclusões as correspondentes consequências.
Numa época em que tanto se fala da necessidade de protecção dos valores essenciais à vida, ao sono, à
segurança, ao ambiente, o Tribunal a quo, ainda que sensível a estes aspectos, sobrevalorizou os factores
económicos em detrimento daqueles direitos.
Ao arrepio, dir-se-á, dos novos ventos que sopram noutros sentidos, e insistentemente, pelo menos desde
a última década do final do séc. XX e que perdurarão, decerto, e com maior incidência, nos tempos que
integram este novo milénio.
7. A evolução da vida social nos tempos hodiernos em que todos os interesses convergem em torno do ser
humano, enquanto pessoa individualmente considerada e cidadão integrado numa comunidade, com direitos
pessoais e sociais que devem ser tutelados, tem determinado o reconhecimento por parte dos diversos
sistemas políticos institucionalizados de que o cidadão de hoje deve ser protegido, a par do meio ambiente em
que vive.
Assiste-se, nessa medida, a iniciativas visando a promoção de um ambiente mais sadio, salvaguardando as
pessoas, em particular, e as populações, em geral, das agressões ao meio ambiente, preservando a sua saúde
e o seu bem-estar, como forma de evitar não só a degradação do meio ambiente mas também da sua
qualidade de vida.
Protecção que se estende para além dos interesses meramente individualizados, para abranger interesses
sociais e colectivos. Ambos com assento Constitucional e tutela geral garantida, sendo, ainda, de salientar, em
sede dos direitos de personalidade, o art. 70º do CC.
Preocupação que encontra eco em diversas iniciativas legislativas, onde assume papel de relevo, na área
do ruído, o Regulamento Geral sobre o Ruído aprovado pelo DL nº. 251/87, de 24.6, recentemente alterado
pelo DL nº. 292/2000, de 14.11.
Igualmente a doutrina e a jurisprudência espelham essa preocupação, sendo inúmeros os arestos que
defendem que o exercício de uma actividade ruidosa deve ceder, em regra, perante a perturbação grave
causada ao sossego ou bem-estar do Requerente de uma providência cautelar não especificada (10).
Basta que, para tal, "ocorram significativas ameaças ilícitas dos direitos de personalidade, quer na sua
globalidade, quer nos diversos e particulares bens que a integram" (11).
Neste sentido cf. Ac. do STJ de 28.4.77, in BMJ 266-165, Ac. da RP de 25.5.82, in CJ 3, 213 e o Ac. da RL de
3.11.83, in CJ 5, 103.
(9)
Neste sentido vejam-se os Acs. do STJ de 24.10.95, BMJ 450-401 e de 14.12.95, BMJ 452-400, os Acs. da RL de
19.2.87 CJ 1, 141 e de 27.4.95, CJ 2, 130 e o Ac. da RP de 11.12.95, CJ 5, 222.
(10)
(11)
Cf. Rabindranath, ibidem, pág. 475 e segs. No mesmo sentido A. Geraldes, ibidem, pág. 78 e segs.
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8. Reconhecem-se e protegem-se, por esta via, não só os direitos à vida e à integridade física, mas
também os direitos à saúde, ao repouso e ao bem estar, enquanto direitos de personalidade essenciais à
existência do ser humano e imprescindíveis à manutenção da saúde orgânica e psicológica de qualquer cidadão.
Sendo pacífica a jurisprudência que defende que nada é mais grave e de difícil reparação do que a violação
de um direito dessa natureza (12).
Destarte, e sem necessidade de mais considerações, a conclusão que se impõe é a de que não se pode
manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo por contrária aos princípios referidos, e por violação ao disposto
no nº. 2 do art. 335º do CC.
E assim, procedem, na íntegra, as conclusões formuladas pelos Recorrentes no presente Agravo.
IV - Decisão:
Termos em que se acorda em dar provimento ao Agravo, e consequentemente:
1. Revoga-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo;
2. Julga-se procedente a presente providência cautelar, condenando-se os Requeridos a colocarem
imediatamente fora de serviço a referida máquina de dar tiros, deixando, assim, de incomodar os Requerentes
e todos quantos habitam o prédio urbano propriedade destes.
Custas pelos Requeridos.
Évora, 8 de Fevereiro de 2001
Ana Geraldes
Maria João Romba
Acácio Neves
(12)
Vejam-se, por exemplo, os Acs. do STJ de 13.3.86, BMJ 355-336 e o Ac. da RL de 19.2.87, CJ 1, 142.
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7. pressupostos - proporcionalidade - RE 8.2.2001