conversando Reis Paula Viver a Vida com Paixão Por Sofia Sá da Bandeira Fotos Francisco Sá da Bandeira E ncontramo-nos com Paula em casa. Pergunta-nos se preferimos fazer a entrevista na sala ou no exterior, no parque que se vê do outro lado da janela. Tem andado atarefada com as limpezas de verão e o tempo lá fora está bonito. Seguimos a sugestão do jardim. Paula pede-nos que vamos andando, vem ter connosco num minuto. Movimenta-se com à-vontade na sua cadeira de rodas, o sorriso é encantador, as palavras eloquentes, a conversa inspiradora. Vem de uma família de mulheres fortes, a começar pela sua avó. É uma referência para si? Absolutamente. A minha avó era uma senhora que vivia no Brasil. Tinha praticamente quem fizesse tudo por ela. De um momento para o outro, perdeu o marido e toda a sua vida mudou. Vem para Trás-os-Montes com os 3 filhos pequeninos, trabalha, redescobre em si potenciais que desconhecia, cria os filhos, consegue que cada um deles acabe um curso superior. Tudo isto, há mais de 50 anos, num contexto em que era muito difícil para uma mulher sobreviver sozinha. Nunca foi uma pessoa que desistisse, viveu até aos 106 anos. Foi uma resistente. Era uma figura que criava união na família e que nos deixou a todos muitas saudades. 38 perfumes&co.87 Um pouco como aconteceu com a sua avó, também a sua vida mudou radicalmente depois do acidente que sofreu há quase duas décadas. Eu tinha 29 anos, uma profissão que adorava, era hospedeira, sentia que tinha a vida toda pela frente. Uma manhã, antes de partir em viagem para Toronto, sofri uma queda de um oitavo andar. Acordei no hospital. Nos hospitais fala-se muito e por vezes não se apercebem que o doente está acordado. Comecei por perceber que tinha um problema na espinal medula. Perguntei a uma enfermeira se iria voltar a andar, a enfermeira pediu-me que tivesse calma, que desse tempo ao tempo, mas, eu tinha a certeza, por instinto, que não voltaria a andar. O que mudou em si em termos psicológicos? Tudo. Aos poucos, fui-me apercebendo que tinha uma força que não imaginara ter. Viver numa cadeira de rodas não é a coisa mais fácil do mundo, porque não é só o não andar, engloba um monte de coisas, a alteração do nosso corpo físico, por exemplo, é muito complicado. Foi como ter de passar por uma segunda adolescência. Foram momentos muito duros, momentos em que fui encontrando um ânimo que acabou por me dar a serenidade para me aceitar como sou e reaprender a gostar de mim. Aprendi a desafiar os obstáculos, as limitações e isso fez-me ser mais e mais, sempre. O que mudou na relação com os outros? A minha maneira de ver o outro. Não julgo com a mesma facilidade com que julgava. Não rotulo, não tiro conclusões precipitadas sobre os outros, ponho-me mais no lugar do outro. A minha empatia, a minha capacidade de compreensão em relação aos “GOSTO DE TIRAR PARTIDO DE CADA MOMENTO. SINTO SEMPRE O SOL POR DETRÁS DAS NUVENS.” outros aumentou. Interrogo-me com outra profundidade sobre as circunstâncias, os contextos, que fazem com que as pessoas funcionem desta ou daquela maneira. Tem sido uma lutadora. Há quem na mesma situação se acomode, quem prefira ficar dependente... Teria sido o caminho mais fácil. Podia ter-me acomodado, ter adotado uma postura de vítima. Teria a família a apoiar-me, o meu grupo de amigos que sempre foi consistente. Mas, nunca gostei do marasmo. Gosto de desafios. Gosto de tirar partido de cada momento. Sinto sempre o sol por detrás das nuvens. Passei todos os passos do luto. Vivi plenamente os momentos de revolta, de tristeza, de negação. Passar todo o processo do luto é fundamental. Acho que só por isso consegui ir em frente. Acredito que a dor não é a minha vida, faz parte de mim, mas não é a minha vida, foi um momento. Sempre senti que iria continuar a ser ativa, não sabia o que iria fazer, mas ficar quieta nunca me passou pela cabeça, sempre gostei de dar, de me dar, nunca poderia ficar parada. Entretanto, voltou a casar. Como conheceu o seu marido? Conheci o meu marido através de um grupo de amigos. Sempre gostei de cozinhar, de receber, de ter a casa cheia. Um dos meus melhores amigos fazia anos e eu ofereci-me para lhe organizar a festa. Foi nesse dia que o conheci. Contou-me que o que primeiro o marcou em relação a mim foram as minhas gargalhadas. Ao princípio não lhe dei muito troco, mas ele lutou. Coitado, odiava chá e fartou-se de ir a minha casa beber chá. Uma noite, num jantar, pediu-me namoro, falei-lhe da cadeira de rodas e ele respondeu-me que isso estava mais do que integrado nele, que fazia parte de mim. Pouco tempo depois casámos. Quando estava grávida do seu filho resolveu tirar a carta de condução. Porquê nessa altura? Foi um grande desafio…. É nos momentos em que sou desafiada que me sinto mais calma e tranquila. Onde quer que fosse, estava dependente da boleia de alguém. Comecei a pensar que depois de ter o bebé as coisas seriam ainda mais complicadas, estava grávida de 7 meses quando resolvi tirar a carta. Tive um instrutor muito simpático, muito divertido, disse-me que eu ia ser uma condutora coerente e sensata... Tem dedicado muito tempo ao voluntariado. Tem feito voluntariado com crianças, dá aulas de inglês e francês, ensina artes manuais, trabalhou no departamento de relações públicas em Alcoitão, dá formação aos voluntários, é voluntária na associação Salvador, faz parte de um grupo de danças, dá palestras em escolas e associações, é voluntária na ajuda de mãe, participa nas campanhas da luta contra o cancro, lidera um clube de leitura na livraria Bulhosa… Qual a importância do voluntariado para si? Não o faço por necessidade, mas por uma espécie de instinto básico, por qualquer coisa que sempre foi inata em mim. É uma espécie de partilha da alma, de um tempo que me é precioso e que ofereço aos outros com todo o prazer do mundo. Gosto de me sentir disponível para os outros, OUTUBRO/novemBRO2013 39 conversando não de invadir mas de estar presente, estar disponível para colaborar e ajudar a transformar. Ao longo de todo este tempo passou por muitos hospitais. Acha que, por vezes, as pessoas não são tratadas como mereciam em situações em que estão mais fragilizadas? Há situações muito cruéis, por vezes, que nos marcam profundamente. Quando, numa segunda gravidez, perdi a minha filha, ao chegar ao hospital houve uma enfermeira que me agrediu verbalmente, disse coisas que magoam e não se esquecem. Em compensação houve uma outra, com mais sensibilidade, que me apoiou e me encorajou. Há de tudo, pessoas extraordinárias com vocação e amor e pessoas mais insensíveis e cruéis. A verdade é que os pacientes estão fragilizados, muitas vezes, sozinhos e assustados. É fundamental, sobretudo na área da saúde, que haja uma postura humana, de olhar o outro com mais amor. 40 perfumes&co.87 Que qualidades aprecia num ser humano? O respeito, a verdade, a franqueza, a sensibilidade, a solidariedade, a empatia. absolutamente fundamental para o equilíbrio do ser humano. Todas a pessoas têm esse direito. É um projeto que me dá imenso prazer e no qual estou muito empenhada. Acredita no ser humano? Acredito que o ser humano é bom. Apesar dos horrores, das guerras, de tudo o que há de mau, acredito no Ser humano. Acho que, de um modo geral, as pessoas batalham por uma sociedade melhor e mais justa. As pessoas lidam mal com a diferença? Há todo o género de pessoas. Hoje em dia, estamos muito mais habituados a ver pessoas novas em cadeiras de rodas, vítimas de acidentes. Há pessoas que não ajudam, que não se interessam, porque têm medo, ou vergonha. Mas, de um modo geral as pessoas querem ajudar, são atenciosas e solidárias. Quais são neste momento as prioridades na sua vida? O meu filho Henrique, a quem eu chamo Meu Índio Gentil. Porque ele é um índio, no sentido lúdico da palavra, não engana ninguém, mas é também gentil, afetivo, um miúdo que não tem vergonha de se sentar ao meu colo e ser visto pelos outros. Ele é a minha prioridade. Depois é, também, continuar a trabalhar, a fazer coisas que me deem prazer e sentido para a vida. O que é mais importante para si nesta viagem pela vida? Viver a vida com paixão. Temos que viver o sofrimento, claro, mas não nos devemos fundir com ele, nem alimentá-lo através da vitimização. É preciso ir dando a volta às coisas e aprender a viver a vida com paixão. Achamos que somos eternos aqui, mas a verdade é que a vida é muito rápida. “ACREDITO QUE O SER HUMANO É BOM. APESAR DOS HORRORES DAS GUERRAS, DE TUDO O QUE HÁ DE MAU, ACREDITO NO SER HUMANO.” Para além do voluntariado, em que projeto profissional está envolvida neste momento? Depois de um momento profissional difícil em que eu e um colega ficámos quase de um momento para o outro sem trabalho, resolvemos fundar uma cooperativa de turismo acessível, chama-se Mil Acessos e tem como objetivo proporcionar momentos de lazer a pessoas com mobilidade reduzida. Pode ser um passeio, uma viagem, um jantar, uma animação turística... O lazer é É preciso agarrá-la fazendo erros e aprendendo até ao último momento. Poderia dizer-se que a vida é uma aprendizagem? A vida é uma aprendizagem. Aprendemos a andar, aprendemos a cair, aprendemos a falar, a nadar, a ler, a tirar a carta de condução, aprendemos a ser mãe, a ser pai, a ser mais gentis, a ser mais solidários. Aprendemos sobretudo para podermos fazer mais, para podermos ser mais.