Goretti Pina
No Dia de São Lourenço
Na Diá Son Leenço
O Encanto do Auto de Floripes
Romance
Edições Colibri
Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação
PINA, Goretti
No dia de São Lourenço : o encanto do auto de Floripes
= Na diá Son Leenço. – (Tribuna livre)
ISBN 978-989-689-335-4
CDU 821.134.3-31”20”
Título: No Dia de São Lourenço. Na Diá Son Leenço.
O Encanto do Auto de Floripes
Autora: Goretti Pina
Editor: Fernando Mão de Ferro
Fotografia da capa: Lourenço da Silva
Capa: Sérgio Neves
Depósito legal n.º 361 971/13
Lisboa, 10 de Agosto de 2013
Agradecimentos
Ao Centro Nacional de Cultura e à Direcção-Geral do Livro e
Bibliotecas, pela bolsa de investigação literária que me atribuíram através
do concurso Criar Lusofonia. Sem ela, com toda a certeza, este projecto
seria por mais tempo adiado. Agradeço igualmente a atenção da
Sr.ª Dr.ª Alexandra Prista.
Ao Centro Cultural Português no Príncipe e ao Governo Regional do
Príncipe, pela colaboração que gentilmente me prestaram durante o
período em que lá estive a trabalhar neste projecto. De modo particular,
ao Sr. Presidente José Cassandra pela prontidão.
Agradeço ainda ao Governo Regional do Príncipe e ao BISTP –
Banco Internacional de São Tomé e Príncipe pelo importante apoio para a
edição.
Ao senhor Marcelo Andrade, presidente da Comissão do Auto de
Floripes no Príncipe, que generosamente me facultou as informações que
lhe solicitei, tendo-se mostrado sempre disponível.
À Filomena Pina e ao Felisberto dos Santos, por terem sido incansáveis!
Aos que me apoiaram neste processo e a todos a quem perguntei
algo que, directa ou indirectamente, contribuiu para esta narrativa. Lembro-me de Mata, Missi e o marido Mário Laires, António Ananias (Carvalhito), Jorge Prazeres, Mestre Jujú, Tonecas Prazeres, Ana Luiza Lima,
Nicolau Lavres, Silvestre Umbelina, Mário Máximo, D.ª Isolda, Francisco Lopes de Andrade, Sr. Salomé, Ayres Wagner, Pedro Andrade, Severiano Menezes, Lasset Costa, Roberto Carlos Gomes, João dos Santos
Moreira, Dr. Pina Gil, Maria Alves Barbosa, Edgar Barros, Carlos Sequeira, Gilberto Umbelina, Bebiano Will, Gil Costa, Maria das Dores U. Lopes,
Helena Gil e Danilo Salvaterra.
À minha prima Sabina X. P., pelo envolvimento, que significou para
mim grande incentivo. Pelo tempo que me dispensou, muitas vezes a altas
horas.
À minha família, às minhas amigas e aos meus amigos, especialmente ao Sr. Padre Valentim, pelo inestimável apoio.
Aos familiares de Valdemar L. T. de Apresentação, em especial ao
seu pai, Sr. Vidigal, por autorizar que neste livro eu lhe faça uma pequena
homenagem.
Ao meu estimado Professor José Pedro Simões, por ser quase tão
responsável como são os meus pais por esta minha paixão. Tenho
saudades das suas aulas, Professor!
Especialmente à minha mãe, que desde muito cedo me incutiu a
necessidade de leitura e incentivou o meu gosto pela escrita. Agradeço-lhe também por pacientemente ouvir os meus textos e me dar a sua
valiosa opinião, mesmo à distância.
Dedicatória
Para os santomenses, especialmente os filhos do Príncipe.
Para todos os que estimam a ilha do Príncipe, os que acreditam
no seu futuro e os que, de alguma maneira, contribuem ou tencionam
contribuir para que a ilha seja um lugar melhor.
Para a Assistência Médica Internacional e para a Força Aérea
Portuguesa, com gratidão.
Para a enfermeira Manuela Lopes de Almeida,
com todo o carinho, admiração e respeito.
Para a Maria dos Santos Pedronho (Sr.ª Quéia).
À memória de Valdemar L. T. de Apresentação.
À memória de Deolésio da Mata (hómi de xinc’óvo).
À memória de Maria Umbelina e à de Manuela Margarido.
Para o Osvaldo Metzger, onde quer que esteja.
Para as damas Jessica, Tia e Analice.
Para os meus sobrinhos.
Para a Meninha, Gininha, Gilá, Cadé, Cagildo e Carlita,
meus irmãos.
À memória do meu irmão e à do meu pai Protásio Pina.
Para a minha mãe Maria Alice Pina, com amor.
Sobre a obra
A ideia para esta narrativa surgiu no início da década de 90,
quando me apercebi, com mais clareza, da importância e do impacto do Auto de Floripes na ilha do Príncipe. Faz parte da nossa vida.
Embora nos tenha sido trazido pelos portugueses (e isto ser tão ou
mais óbvio!...) gera um sentimento de posse, de pertença. Poderá
dizer-se que se trata de uma «incrustação» de um acontecimento
medieval europeu num contexto africano.
E, pela sua riqueza, pus-me a pensar em tudo o que se pode
construir à volta. Não um apontamento que se esgote na acção, mas
manifestação literária ou artística, capaz de funcionar como instrumento e veículo de divulgação cultural.
Nessa perspectiva, funcionou como principal motivo de inspiração. Comecei, então, a escrever frases, a registar nomes e situações que me iam surgindo como interessantes para as personagens.
Em 2004, baseei-me no seu figurino para criar uma colecção
de coordenados que, com o apoio da Embaixada de São Tomé e
Príncipe em Portugal, apresentei numa passagem de modelos, no
Museu da Água, em Lisboa.
Continuei a pensar no livro cada vez mais, até surgir oportunidade de fazer a investigação necessária para o desenvolver, através
do concurso do Centro Nacional de Cultura em 2010.
No Dia de São Lourenço conta uma história e, em simultâneo,
reconta de forma sucinta o Auto de Floripes. Com a personagem
principal dentro de outra personagem, quer ser um espaço de en-
contro, como se fizessem parte de um mesmo contexto, de forma
anacrónica, em que o meu universo imaginário converge com o
Auto de Floripes e com diversos aspectos da cultura santomense, a
fim de gerar conteúdo capaz de contribuir para o conhecimento e
valorização da identidade na qual me revejo.
É uma obra de ficção. E também uma oportunidade para préstar homenagem, de modo especial, a três pessoas:
À Manuela, uma enfermeira excepcional, como profissional e
como ser humano.
Ao Valdemar L. T. de Apresentação, um jovem que faleceu no
mês mais festivo no Príncipe (Agosto, mês da Cultura na ilha do
Príncipe), em que o Auto de Floripes é representado.
À senhora Quéia, conhecedora de práticas e métodos tradicionais de fertilização.
Encontrei uma maneira de os retratar com a maior fidelidade
de que fui capaz: articulando com personagens e situações fictícias,
circunstâncias em que podiam surgir, convertendo-os em personagens como quaisquer outras presentes na narrativa.
Infelizmente, a morte e o funeral de Valdemar L. T. de Apresentação nada têm de inventado.
Os tratamentos da senhora Quéia e a presença da enfermeira
Manuela no Hospital do Príncipe são, para a alegria de muitos, uma
realidade.
Goretti Pina
Bôgôdô pô nengu’ícu
mági ninguê nhó sá zetá «NA DIÁ SON LEENÇO» fa.
António Ananias (Carvalhito)
(a partir do provérbio do Príncipe: Bôgôdô pô nengu’ícu).
Memória e presente, teia de enigmas, o auto é cultura
antiga, raiz líquida e funda. Festa grande que o povo
guarda e cumpre todos os anos, como um destino. Um
destino que lhe trouxe o mar. Uma velha sina que
transfigura a mais pequena cidade do globo, Santo
António do Príncipe, no palco maior do mundo.
Floripes Negra, Augusto Baptista
Capítulo Um
I
SMA veio num embalo tal, como se suspensa. O coração, num
ritmo irregular, era a única coisa de que tinha plena consciência, dada a força com que parecia querer saltar-lhe do peito. Tudo o
resto era uma grande embrulhada que parecia irreal. As explicações
que lhe foram dadas não seriam aceites por ninguém. Em lado
nenhum. De tudo o que lhe disseram, nada fazia sentido.
O calor daquela tarde de Agosto trazia sol. Tão especial porque
vencia a chuva fina que, incómoda, caía por toda a cidade de St.º
António desde as primeiras horas do dia. Devia trazer-lhe ao rosto
um sorriso, como trazia a Ma Gaane, que agradecia por, desse modo, poder trabalhar ao ar livre. Mas não. Para ela, naquele momento, era indiferente o tempo que fazia, choros ou risos à volta, as
horas que marcavam o relógio. Os seus pés, de tamanho trinta e
sete, que calçavam umas velhas sandálias rasas, não sentiam nos
passos o asfalto que pisavam. Atravessou o quintal como uma flecha, ao chegar finalmente a casa. Estava possessa. Lavada em lágrimas. Encaixou com brusquidão, atrás das orelhas encarnadas,
alguns fios rebeldes do seu cabelo, que, molhados, agarrou pela
raiz. Ardia de calor e de raiva. Tinha todas as razões e mais algumas para nunca mais querer saber daquilo. Foi direita ao pilão que
estava da parte de fora, ao pé da porta de entrada. Tirou de dentro o
pesado pau que encostou à parede de tábuas. Sem reparar que ainda
restava qualquer coisa como meia xícara de milho moído para
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camoca*, agarrou o pilão, virou-o ao contrário tendo feito voar o
milho, e sentou-se nele. Antes de ganhar fôlego para começar a
contar à mãe o que se tinha passado, Bibas, o seu animal de estimação, saltou-lhe para o colo. Trazia o focinho sujo de leite de coco e
as patas em estado idêntico por ter andado por todo o lado.
Era um macaco pequeno, magro, de pêlos de um castanho-avelã com nuances douradas. Um Cercopithecus mono. Tinha cerca de
dois anos, cabeça redonda, e pesava aproximadamente dois quilos.
Fora-lhe oferecido, ainda bebé, por um primo que, tendo aprendido
todos os truques necessários com o famoso caçador Zé Cabaço,
fazia dessa actividade modo de vida. Um certo dia como tantos
outros, ao raiar do sol, altura em que a espécie se movimenta à procura de alimento, encontrou-o. Após ter acertado na mãe, facilmente o capturou. Bibas estava agarrado a ela quando, vencida, caiu do
coqueiro e se estatelou no chão arenoso de uma praia quase deserta,
entre rochas. Determinado a negociar a carne, o jovem não se
comoveu o suficiente para se deter, ao aperceber-se de que o seu
alvo tinha uma cria tão nova! Nem quando a macaca, encurralada,
na tentativa de escapar com vida, usou o filho como escudo, o que
poderia servir de elemento dissuasor, pois mostrou-lho até ao derradeiro instante.
– Bibas! Deixa-me, hem! – gritou, pondo bruscamente no chão
o pobre animal, que noutras circunstâncias costumava mimar.
Surpreendida, Ma Gaane preocupou-se ao vê-la naquele estado. Olhou para a Zinha, que sentada num mocho à sua direita separava em embrulhos de papel pardo cominho e pimenta para vender.
Nesse olhar partilhou com ela a apreensão. Zinha largou dentro do
saco o embrulho que tinha nas mãos e pôs os ouvidos em sentido.
– Isma, minha filha, é o quê? Conta à tua mãe o que é que xtá a
passar, por amor de Deus! – exigiu Ma Gaane que para lhe prestar
toda a atenção, abandonou automaticamente o ferro com que passava e fez a volta à mesa muito depressa, tendo entornado sem querer sobre Bibas a caneca de água com que humedecia as roupas.
*
Camoca – Guloseima constante na gastronomia de Cabo Verde, feita com
milho torrado, moído e com açúcar.
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Desorientado, com a água a escorrer-lhe pelos pêlos, o macaco
saltou para cima da cadeira onde estavam os lençóis brancos, passados com todo o cuidado que exige um antigo ferro a carvão.
Escusado será dizer que deixou a roupa em mau estado.
Já de costas e unicamente focada no drama de Isma, Ma Gaane
nem deu pelo incidente. Mas Zinha, embora atenta à conversa entre
as duas, viu. Sem ter podido evitar, levou as mãos à cabeça cerando
e arreganhando os dentes. Sabia que o mais aborrecido que podia
acontecer a Ma Gaane por aqueles dias de tempo incerto, seria ter
de lavar e secar a roupa novamente.
– Meses e meses a decorar aquela porcaria daquele caderno só
de graça? Culpa é deles? Eles que viram uma Floripes como deve
ser!... Quem fica a perder são eles! Eles é que deviam chorar! – Ma
Gaane rasgou a garganta numa revolta legítima. – Você pediu
algum deles para sair Floripes? Eles é que te escolheram!! Eles é
que vieram até aqui falar comigo e te dar o texto pra estudar!...
Filhos da mãe! – dava para se lhe sentir a incendiária temperatura
na voz.
– Calma, Ma Gaane! Calma. Em vez de você consolar tua
filha, você ainda fala assim? – fez-lhe reparo a amiga Zinha, que,
tendo passado para a frente da cadeira, de momento, a impediu de
ver o estrago feito por Bibas, que entretanto fugiu dali.
Depois de ouvir as palavras da mãe, Isma chorava com muito
mais peito, e depressa tinha catarro para limpar, do nariz agora
vermelho.
– Fala, sim senhor! Deixa ela falar! E é para falar em alto e
bom som para toda gente ouvir! – intrometeu-se o senhor Ligeiro
Andrade, que passava, solidário. – É preciso acabar com essa pouca
vergonha! Há bocado, uma certa pessoa informou-me de que a sua
linda filha ficou excluída, que escolheram uma outra moça. Eu
fiquei de parvo com essa revelação. Nem queria acreditar numa
coisa dessas! Isto é coisa que se faça alguma vez? É preciso acabar
com essa pouca vergonha! Miúdas que já deram todo tipo de
cambalhotas, só porque não puseram filho no chão pra gente ver,
saem Floripes! Sua filha, uma miúda em condições pra se
aproveitar, com todos os predicados que convém a uma Floripes,
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eles rejeitam só para beneficiar gentes deles… Isto é uma bandalha!
E não pode continuar assim! Aonde é que iremos parar?? Antigamente havia rigor! Havia respeito – levantou o indicador direito em
riste, emocionado, e prosseguiu sobre o silêncio atento de Zinha e
de Ma Gaane: – Até na escolha de pares! Até na escolha de pares! –
iterou. – Porque estamos a falar de uma grande peça de teatro! Auto
de Floripes é uma grande peça de teatro! E quem não sabe fica a
saber que não é só aqui nesta nossa pequena ilha que é represemtado… – olhou à sua volta e prosseguiu, imprimindo um tom de
secretismo nas palavras: – Portugal, México, Belize, Honduras,
Espanha, Índia, Brasil, são igualmente palcos desta manifestação
cultural. Isto é baseado na história dos Doze Pares de França! Até
já ouvi dizer, assim por alto, que têm sido levadas a cabo
diligências de Portugal em conjunto com o nosso país, junto da
UNESCO, para elevar esta nossa festa a Património Imaterial da
Humanidade – de olhos muito abertos, disse, anuindo com a cabeça.
– Não haja a menor dúvida que o nosso São Lourenço tem uma
importância incalculável! Não é coisa para qualquer um que não
sabe nada de arte!... Que come e bebe só e quer sair São Lourenço!...
Naaaão! Não, não! É preciso ter talento! E concomitantemente saber
bem o texto! E saber bem a história! Para estar em condições de dar
explicações a qualquer estrangeiro que perguntar pormenores de
mouro ou de cristão. E até de bobo, se for preciso!
Ligeiro Andrade, além de deixar Isma, a mãe e a amiga desta
caladas a escutá-lo, atraiu para aquela breve reunião outras pessoas
que passavam. Terem parado para ouvir interessadamente o que
tinha a dizer fez dele o orador ideal, uma vez que havia muito de
construtivo nas farpas que lançava, além de que passava alguma
informação importante, passível de ser difundida para melhor
conhecimento do que ao Auto respeita. Sentiu-se compreendido e
apoiado na observação que fazia, tendo ganho mais força na indignação que trazia há imenso tempo.
– Lá fora, há quem ganha a vida só através da arte de representar! E ganham importantes prémios e tudo! Porque a arte de representar, quando é bem desempenhada, é de valor! Mas muitos palermas que andam no São Lourenço não sabem disso. Não têm humil18
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dade para aprender e nem admitem conselhos de ninguém – criticou, triste. – Quando um par morre, morreu! Ponto final. É para
ficar quieto no chão. Se está morto, está morto. Tem de saber fingir
convenientemente. Não é para ficar a virar cabeça para outro lado,
chamar o amigo que está a passar, e outras façanhas mais sem
cabimento nenhum – explicou. – Antigamente era assim, tudo nos
eixos! E quem não se mostrasse capaz de fazer as cenas como deve
ser, era posto de lado. Agora não! Agora está tudo desvirtuado!... É
tudo ao molho e fé em Deus.
De repente, o ruído de uma moto Honda abafou as palavras
seguintes de Ligeiro Andrade. Era Vado, com toda a boa energia
que lhe era característica. Em poucos segundos, encostou o transporte e tirou, de uma argola de arame pendurada no guiador, o peixe fresco que trazia para Ma Gaane. Uma das três corvinas vermelhas de tamanho médio a que, persistente, havia conseguido cravar
o arpão. Tinha na pesca submarina uma das suas paixões. Quando
corria um pouco melhor, lembrava-se da amiga.
Vado tinha a pele dourada pelo sol, tanta era a vida ao ar livre.
A mostrar nuns calções pelo joelho as musculadas e longas pernas
ligeiramente arqueadas, aproximou-se do grupo, que, naturalmente,
transferiu para ele a atenção. Do cumprimento que proferiu ao chegar, ouviu em coro a resposta. Eram vozes que, por contágio, se
animaram com a sua agradável presença.
Ma Gaane recebia-lhe o peixe das mãos, quando sobre o
ombro Vado já tinha Bibas, que lhe fazia festas na cabeça, enquanto ele falava com Isma, de quem estranhou as pálpebras inchadas.
– É, meu rapaz, é de chorar! Ela chegou-me aqui nesse estado.
Mas eu já disse a Isma que muito pouca coisa nessa vida merece
nossa lágrima!... – começou Ma Gaane por elucidá-lo, afastando-se
entretanto com a corvina para a cozinha.
As últimas palavras de Ma Gaane tinham o selo da mais pura
verdade. Vado concordava. Também era de opinião de que uma
larga maioria de coisas e de situações têm a importância que lhes
atribuímos. Não mais. Cabe-nos, então, dosear esse valor da maneira mais sensata que pudermos, para não nos deixarmos dominar e
consumir. A responsabilidade é nossa. Tal como é a nós que compete a compreensão e gestão das nossas emoções.
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Isma puxou a blusa pelo decote e limpou o pescoço por onde
as lágrimas lhe tinham corrido até ao peito, antes de satisfazer a
preocupação expressa no rosto do amigo, que não precisava de
recorrer a palavras para lhe perguntar o que se tinha passado.
– É, Vado, tanta preparação pra nada servir!... Eu já não serei
Floripes. É assim que eles decidiram agora em cima da hora. Agora que só faltam três dias é que eles acharam por bem despejar-me
esse balde de água fria em cima da cabeça! – de cara levantada para
a dele, inclinada, contou-lhe ela, um pouco mais calma. – Quando eu
ouvi tua moto, eu pensei que você já tinha ouvido qualquer coisa na
rua…
Vado ergueu as sobrancelhas sobre uns olhos grandes e inquietos como todo ele. Arregalou-os e entreabriu os lábios. O leve sorriso que trazia e que começou a perder com as palavras de Ma
Gaane deu lugar a uma expressão de desagradável surpresa. Teve
pena. Acompanhara de perto todo o seu empenho no estudo do
caderno, tal como os ensaios em conjunto com os outros actores,
que algumas vezes espreitou. Esse contacto fazia dele testemunha
da sua dedicação durante o longo processo de preparação. Era natural que se mostrasse solidário. Mas Isma que não contasse com ele
para ajudá-la a fazer daquilo um drama. Nem de longe. Um abraço
reconfortante teve. Mais não podia esperar.
– Não. Por acaso não. Estou mesmo a chegar da pesca. Hoje
fomos até Boné de Jóquei. Ainda não falei com ninguém. Só passei
rapidamente por casa e vim trazer-vos esse peixe. Que tem de ser
consertado depressa! Já sabes como corvina é: não aguenta muito
tempo – respondeu-lhe.
Uma semana depois, continuava o falatório a respeito da fraca
figura e péssimo desempenho da rapariga por quem Isma tinha sido
preterida. Pelo facto, já todos os elementos da comissão imploravam a Ma Gaane que a deixasse representar no segundo domingo.
O baixinho do grupo, de calça subida até ao estômago, robusto e
bem-falante, que supostamente teria maior capacidade de dissuasão, empenhou-se, tendo escolhido cuidadosamente as palavras.
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