João Paulo Dias
Paula Fernando
Teresa Maneca Lima
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Oficina do CES n.º 272
Março de 2007
João Paulo Dias, Paula Fernando e Teresa Maneca Lima
Centro de Estudos Sociais
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Resumo: O Ministério Público em Portugal, ao contrário do que é corrente afirmar-se,
alterou bastante as suas características ao longo dos tempos. Ainda que mantendo uma
matriz de defensor da legalidade, tal como antes defendia os interesses do Rei, a
diversidade de funções que foi assumindo conferiu-lhe uma importância bastante grande
na “arquitectura” do sistema judicial e como garante da legalidade e dos direitos dos
cidadãos. Apesar das dificuldades sentidas, devido ao volume processual, à crescente
complexidade dos assuntos que chegam aos tribunais e às limitações em termos de
recursos humanos, materiais e financeiros, é hoje inquestionável o seu papel no seio do
poder judicial português.
O objectivo principal deste artigo é estudar, de forma historicamente contextualizada, a
evolução do Ministério Público, procurando caracterizar e distinguir as suas principais
competências, funções, mecanismos de recrutamento, formação e avaliação. Dar uma
maior visibilidade a este actor crucial no funcionamento da justiça e, ao mesmo tempo,
detectar as tendências em termos de evolução do actual modelo, são outros objectivos
secundários que se pretendem atingir. Por fim, considera-se necessário realçar a
diversidade de competências exercidas, para além da matéria criminal, mostrando um
actor multifacetado, com um grau de responsabilidade superior à opinião que, muitas
vezes, é veiculada em termos mediáticos.
Hoje em dia, é comum referir-se que atravessamos períodos de grandes
turbulências de escalas e de intensidades variadas (Santos, 1996), em que os tradicionais
alicerces das sociedades modernas têm vindo a ser questionados e debatidos, embora as
propostas de solução ainda não sejam, por vezes, claras e, muito menos, consensuais.
Entre as discussões mais polémicas está a referente ao modelo de organização estatal e,
dentro deste, destacamos, o papel que compete ao poder judicial na aplicação do direito
ou dos direitos.1
1
A definição de direito a que nos referimos é a concebida por Santos (2000: 269), consistindo num
“corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado
grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um
discurso argumentativo, articulado com a ameaça de força”.
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
A separação tripartida de poderes do Estado, tal como a concebeu Montesquieu,
passou a ser muito mais difusa e complexa, não podendo o poder judicial ser agora
classificado, como o fez Alexander Bickel, como o “menos perigoso” dos três (in
Santos, 1999: 67). O poder judicial tanto é o “terceiro poder” como, de imediato, se
transforma no poder dominante ou, pelo menos, num poder primordial. Denis Salas
(1998) transporta-nos, em relação a França, para uma realidade jamais vista em tempos
passados, na qual o poder judicial sai da sua “tradição Republicana” de subjugação aos
restantes poderes estatais para “reencarnar” num novo papel. Este papel emergente
deve-se, quer às transformações ocorridas no interior do poder judicial, quer à
renovação da própria sociedade civil, a qual exige uma instância imparcial, capaz de
julgar os até agora considerados acima da lei, e assim reequilibrar os diversos poderes
estatais existentes no seio dos sistemas democráticos representativos.
Nas últimas décadas temos, assim, assistido a um crescente protagonismo dos
tribunais, um pouco por toda a parte, que corporiza os efeitos dos processos de
globalização. Entre os actores judiciais mais mediatizados, por força e natureza de
alguns processos judiciais mais sensíveis e importantes, temos o Ministério Público. A
sua acção, desenvolvida desde a democratização do sistema judicial português, ocorrido
no pós-25 de Abril de 1974, a par de uma magistratura relativamente renovada em
termos geracionais, consolidou um modelo organizacional e um leque de competências
que “catapultou” a sua importância para um patamar jamais visto desde a sua origem. É,
por isso, alvo de discussões actuais sobre: se deve, ou não, exercer mais, ou menos,
competências; se deve, ou não, deter um papel tão preponderante no seio do interior do
sistema judicial; se deve, ou não, ter um estatuto paralelo ao dos juízes; e/ou se deve, ou
não, ter uma autonomia legal e funcional face ao poder executivo.
Estas e outras questões são de capital importância para a reflexão sobre o modelo
de sistema judicial que se quer para o futuro (Pedroso, Trincão e Dias, 2003). Neste
artigo, procuramos contribuir para um situar, breve, da arquitectura do Ministério
Público, procurando caracterizá-lo em termos de competências e funções, ainda que
contextualizando-o historicamente. Defendemos que uma mudança nas suas
competências ou modelo organizacional deve ter em consideração, não só o seu
desempenho, mas também a sua história, o equilíbrio constitucional e jurídico com os
outros actores judiciais e com a função social que detém.
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
1. Evolução histórica do Ministério Público
As origens do Ministério Público são muitas vezes procuradas quer no direito
romano, quer no direito grego. Relativamente ao direito romano, somente no último
século da República é que “o magistério penal se edifica como verdadeira e própria
função pública, isto é, não somente como um direito mas como um dever do Estado”
(Rodrigues, 1999b: 36). Por outro lado, diversos autores vêem traços de identidade do
Ministério Público em cinco das instituições do direito romano: os censores, vigilantes
gerais da moralidade romana; os defensores das cidades, criados para denunciar ao
imperador a conduta dos funcionários; os irenarcas, oficiais de polícia; os presidentes
das questões perpétuas; e os procuradores dos césares, instituídos pelo imperador para
gerir os bens dominiais. Porém, quando analisadas uma a uma, segundo Cunha
Rodrigues (1999b), nenhuma evidencia uma instituição que reúna as características que
hoje definem o Ministério Público; contudo, todas elas têm desta instituição algum
sinal. Senão vejamos: os censores e os defensores das cidades assemelham-se, em
determinados aspectos, à parte promotora; os irenarcas bem que poderiam ser os
antecessores da Polícia Judiciária; os presidentes das questões têm poderes muito
semelhantes aos que o Ministério Público exerce em matéria de inquérito; por fim, os
procuradores dos césares correspondem às funções do Ministério Público como
advogado dos interesses privados do Estado.
Apesar destas semelhanças, alguns autores advogam que não se deverá pensar que
as origens dos Ministério Público se devem situar nas instituições e direito romano.
Embora algumas das funções que hoje reconhecemos ao Ministério Público já existirem
na Grécia, em Roma e no início da Idade Média, a verdade é que se tratava de funções
atribuídas a pessoas que não representavam uma estrutura nem usufruíam de um
estatuto semelhante ao que hoje caracteriza o Ministério Público (Rodrigues, idem: 41).
Flores Prada (1999), no que respeita às origens do Ministério Público na Península
Ibérica, e socorrendo-se de Gimeno, Casavola e Ruiz Gutiérrez, aponta, por exemplo,
para os advocatus fisci com uma função semelhante à que Cunha Rodrigues descreve
como procuradores dos Césares.
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
1.1. Contexto Histórico do Ministério Público em Portugal
As origens mais remotas do Ministério Público, em Portugal, têm sido pouco
discutidas. Existe uma certa unanimidade em afirmar que foi a organização francesa que
inspirou as reformas que muitos países introduziram nesta magistratura, a partir do final
do século XVIII. Porém, o Ministério Público aparece de uma forma já desenvolvida,
em França, no século XV, com a “necessidade de instituir, junto dos tribunais,
advogados e procuradores que mantivessem a autoridade da coroa que, nessa época,
simbolizava a autoridade da lei e o interesse da nação contra as prerrogativas dos
grandes vassalos e as pretensões do foro eclesiástico” (Rodrigues, 1999b: 42).2 Mais
tarde foi acrescentada às suas funções a acusação penal dos criminosos. Em 1789,
acontece uma reforma no sentido de converter o Ministério Público em órgão judiciário,
retirando-lhe natureza política e atribuindo-lhe as funções dominiais. Mas é somente em
1810 que o Ministério Público vê, de forma expressa, definidas as suas funções de
representação do poder executivo junto da autoridade judiciária.
O aparecimento do Ministério Público em Portugal, como organização estável e
permanente, remonta ao século XIV (Chaves e Castro, 1910). Apesar de aparecerem
referências aos procuradores e advogados do rei, aquando da fundação da monarquia,
não se tratavam de cargos permanentes, e sim de nomeações para casos específicos.
Somente no tempo de Afonso III surge o cargo de procurador do rei com características
de permanência. Contudo, a organização do Ministério Público, em termos definitivos,
acabará apenas por acontecer em 1832, através do Decreto n.º 24, de 16 de Maio. Este
diploma “é um marco fundamental na história do Ministério Público e deve-se a
Mouzinho da Silveira, então Ministro e Secretário de Estado da Repartição dos
Negócios da Justiça” (Rodrigues, 1999b: 49)
A estruturação institucional do Ministério Público feita no século XIX apresenta
alguns traços que perduraram no tempo, nomeadamente a hierarquização dos
magistrados. Em 1835 é publicado um decreto-lei onde se estabelece um conjunto de
normas de procedimento “em que se inclui o dever da unidade” (idem: 50). Com a
Novíssima Reforma Judiciária, em Maio de 1841, afirma-se a responsabilidade dos
2
Jean-Marie Carbasse aponta para o final do século XIII as origens remotas do Ministério Público francês
(Parquet), ainda que não detivesse as características que viria, de facto, a adquirir já no século XV. Neste
período, os ‘officialités’, ligados às jurisdições eclesiásticas, e os ‘procureurs du roi’, ainda como meros
representantes do Rei, são os que mais se assemelham ao que viria a dar origem, no século XIV, aos
primórdios do Parquet (2000: 11)
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
magistrados e as atribuições do Ministério Público referentes à promoção da legalidade
pela defesa da independência dos tribunais, pelo exercício da acção penal, pela
fiscalização dos funcionários da justiça e pelo exercício de funções consultivas. Deste
modo, na intervenção do Ministério Público, encontram-se abrangidos: conflitos de
jurisdição e competência; reforma de autos; justificação de heranças ultramarinas;
habilitações e justificações para a sucessão de bens da coroa; mercês em recompensa de
serviços feitos ao Estado; expropriações; confirmação de sentenças estrangeiras; custas;
acções sobre o Estado de pessoas e tutelas. Compete, ainda, ao Ministério Público
intervir relativamente a pessoas a que o Estado deva protecção e o exercício de funções
de vigilância relativamente a estabelecimentos prisionais.
1.2. O século XX e os estatutos judiciários
Decorria o ano de 1901 quando uma reorganização profunda foi feita no
Ministério Público. Entre as inovações mais importantes destacam-se o estabelecimento,
para os magistrados, de casos taxativos de demissão e suspensão e a garantia de não
serem suspensos ou demitidos sem audiência prévia do visado e do Supremo Conselho
da Magistratura do Ministério Público. Ao mesmo tempo, adoptaram-se regras de
classificação dos magistrados e mecanismos de acesso semelhantes aos já existentes
para a magistratura judicial.
Desde esta data até 1927, pouca legislação reguladora do Ministério Público foi
publicada, continuando a organização judiciária a regular-se pela Novíssima Reforma
Judiciária. Somente em 1927, com a publicação dos estatutos judiciários, se estabilizam
as atribuições do Ministério Público, principalmente em matéria consultiva, sendo
criado o Conselho Superior do Ministério Público. Atente-se, por exemplo, às palavras
de Cunha Rodrigues sobre esta matéria: “[Esta reforma] representa a primeira iniciativa
codificadora deste século relativamente a todo o sistema judicial. Agrupou no mesmo
texto as matérias relativas à organização judicial do território, ao estatuto das secretarias
e estatuto do pessoal, ao mandato judicial, incluindo a organização da Ordem dos
Advogados, ao estatuto dos solicitadores e à assistência judiciária. Trata-se de um
verdadeiro código judiciário, a cujo modelo obedeceram os Estatutos posteriores”
(1999b: 61-62).
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Podemos então afirmar que o primeiro Estatuto Judiciário desenvolve e aperfeiçoa
disposições referentes ao Ministério Público, salientando já um conjunto de garantias
para os magistrados, principalmente na relação com a magistratura judicial, para a
definição dos princípios de independência, responsabilidade e inamovibilidade. Aparece
definido o Ministério Público como “representante do Estado e da sociedade fiscal no
cumprimento da lei”. Por outro lado, estabelece que o Procurador-Geral da República
continua a prestar declarações ou compromisso de honra perante o Ministro da Justiça,
mas toma posse perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Apesar das constantes alterações a este estatuto, somente em 1944, com o
Decreto-Lei n.º 33 547, de 23 de Fevereiro, se introduzem algumas inovações
relativamente ao Ministério Público. No preâmbulo do referido decreto-lei, da autoria
do Ministro da Justiça Vaz Serra, há, desde logo, a preocupação de precisar o âmbito de
intervenção processual do Ministério Público, estabelecendo-se que, no caso de
representação de incapazes, pode sobrepor-se à do próprio representante legal e
impondo-se genericamente a intervenção, sempre que no processo estiver em causa um
interesse público, de harmonia, segundo o referido preâmbulo, “com a tendência
moderna de não deixar desenvolver-se, pelo simples jogo dos interesses privados neles
envolvidos, os litígios de que um interesse público está ao mesmo tempo dependente".
Apesar destas alterações e definições de estatuto, segundo Cunha Rodrigues
(1999b: 67), ainda não foi com esta reforma que se resolveu a questão da separação
nítida que deve existir entre as magistraturas judicial e do Ministério Público. É em
1962, com o decreto-lei n.º 44 278, de 14 de Abril, e as suas consequentes alterações,
que o Ministério Público vê as suas atribuições serem consideravelmente ampliadas,
especialmente em matéria consultiva. Mantém-se a estrutura hierarquizada, na estrita
dependência do Ministro da Justiça. Embora esta hierarquia piramidal aprofundasse a
subordinação funcional e política, a nível do exercício dos poderes disciplinar e
directivo havia uma intermediação do Conselho Superior do Ministério Público (Dias,
2004: 46; Rodrigues, 1995: 16). A nomeação para os cargos superiores do Ministério
Público estava, em regra, associada a uma subordinação manifesta ao regime político do
Estado Novo (Costa, 1998: 179; Cluny, 1992: 134). A magistratura do Ministério
Público, por outro lado, mantinha-se como vestibular da magistratura judicial, situação
que apenas terminou com a aprovação da Constituição da República de 1976.
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
1.3. Da Revolução de 1974 à Constituição da República de 1976
No período imediatamente anterior ao 25 de Abril de 1974, as polémicas
começavam a sentir-se na área da justiça, à imagem do que acontecia noutros sectores
da sociedade portuguesa. Vários acontecimentos contribuíram para o “vir ao de cima”
do descontentamento que circulava pelos meios judiciais, desde artigos publicados nos
jornais pelo magistrado Francisco Velozo e pelo advogado Magalhães Godinho, a
intervenções no Instituto de Conferências da Ordem dos Advogados, dinamizadas por
Palma Carlos, Artur Santos Silva e Salgado Zenha, até a estudos e colóquios, como o
efectuado em 1972, em Braga, os sinais eram cada vez mais sintomáticos de uma
vontade de mudança (Rodrigues, 1999b: 69-70). O projecto de Francisco Sá Carneiro
para reformular a justiça, extinguindo os Tribunais Plenários e garantindo a
independência e o auto-governo da magistratura, sintetizava uma das posições
contestatárias ao status quo vigente (Miranda, 1999: 9-10). A outra posição, mais
próxima à magistratura judicial, visava apenas a garantia das especificidades das suas
funções, nomeadamente em relação aos quadros, ao acesso à carreira e às remunerações.
As primeiras mudanças ocorreram, contudo, no contexto da revolução de 25 de
Abril de 1974. A deposição do Governo de Marcello Caetano, pelo Movimento das
Forças Armadas (MFA), originou a adopção de políticas de justiça que iam ao encontro
das expectativas democráticas da população. As primeiras medidas adoptadas pelo
MFA inspiraram-se nos princípios defendidos no Congresso da Oposição Democrática
(1973) e nas posições assumidas pela ala liberal do Governo nos últimos anos do Estado
Novo. Deste modo, os primeiros governos provisórios, liderados na pasta da Justiça por
Salgado Zenha, procuraram rapidamente implementar as medidas necessárias à
desafectação do poder judicial da tutela dos poderes executivo e legislativo, como, por
exemplo, a alteração da composição do Conselho Superior Judiciário, a abertura das
magistraturas às mulheres ou a extinção dos tribunais plenários. Neste contexto, o
sindicalismo judiciário começou a “ferver”, destacando-se, neste campo, o aparecimento
e actuação do Sindicato dos Delegados do Procurador da República.
Com Salgado Zenha como Ministro da Justiça, foi criado um conjunto de
comissões de reforma judiciária que ajudaram a lançar o debate sobre o futuro do
sistema judicial português, inventariando os problemas e propondo novos caminhos.
Numa época de “efervescência” ideológica, os debates rapidamente resvalavam para
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
soluções pouco razoáveis e, essencialmente, pouco práticas. Na opinião de Cunha
Rodrigues, os projectos apresentados pelos vários partidos políticos apresentavam
soluções distintas: “os do Partido Socialista e do Partido Comunista são
tendencialmente neutros e generalistas, os do Partido Popular Democrático e do
MDP-CDE evidenciam um considerável e inovador conjunto de sugestões, o do Centro
Democrático Social é tradicionalista, limitando-se a introduzir ao sistema anterior os
ingredientes indispensáveis à sua democratização” (1999b: 71-72).
O poder judicial saído deste período, e actualmente em vigor, incorpora princípios
que a história tem demonstrado serem difíceis de conciliar: a par de uma independência
jurisdicional e funcional relativamente aos outros poderes do Estado (executivo e
legislativo), configura os titulares dos órgãos de soberania numa organização bicéfala:
magistrados judiciais e magistrados do Ministério Público. Como órgãos de gestão e de
disciplina das magistraturas temos, pelo lado do Ministério Público, o Conselho
Superior do Ministério Público, e pelo dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura.
Após a revolução de 25 de Abril de 1974 e a instauração do regime democrático,
partiu-se para uma organização judiciária na qual a capacidade de interferência por parte
do poder político diminuiu consideravelmente, de tal forma que as sucessivas revisões
da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, do Estatuto do Ministério Público e do Estatuto
dos Magistrados Judiciais erradicaram os poderes interventivos e directivos do
Ministério da Justiça que ainda persistiam do regime anterior (mantendo-se apenas o
poder de emitir instruções em acções cíveis em que o Estado é defendido pelo
Ministério Público).
2. A Arquitectura Legal do Ministério Público
2.1. O Ministério Público na Constituição da República Portuguesa
A Constituição da República do novo regime democrático só foi aprovada quase
dois anos após o 25 de Abril de 1974, a 2 de Abril de 1976, pela então Assembleia
Constituinte. Deste modo, foi após a publicação da Constituição de 1976, que consagrou
os tribunais como órgãos de soberania, no artigo 113.º (actual artigo 110.º, após a
revisão de 1997), que se estipulou a independência do seu funcionamento como um dos
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
princípios básicos do sistema judicial português (Marques, 1999: 413) e se passaram a
definir as suas competências. De seguida, aprovaram-se, sucessivamente, a Lei
Orgânica dos Tribunais Judiciais, o Estatuto dos Magistrados Judiciais e a Lei Orgânica
do Ministério Público. Seguiu-se a lei relativa à instituição do Centro de Estudos
Judiciários como pólo de recrutamento e formação de magistrados, abolindo o anterior
sistema de nomeação.3 O Estatuto que veio enquadrar os Tribunais Administrativos e
Fiscais só foi publicado em 1984, pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (Dias,
2004: 49 e ss.).
Enquanto, anteriormente a 1976, a referência ao Ministério Público aparecia para
lhe conferir o estatuto de representante do Estado junto dos tribunais, a Constituição de
1976 veio atribuir-lhe um Capítulo do Título respeitante aos Tribunais.4 Neste, a
definição das funções, a hierarquização da magistratura e a garantia de inamovibilidade,
bem como a atribuição conferida, como órgão superior do Ministério Público, à
Procuradoria-Geral da República tem um especial destaque. Assim o Ministério Público
é definido constitucionalmente como uma das “componentes pessoais dos tribunais”
(Canotilho e Moreira, 1985). Isto porque as demais definições, competências ou
estrutura organizativa do Ministério Público são remetidas para as leis a aprovar pela
Assembleia da República.
Em relação à Constituição da República, as alterações introduzidas nas revisões de
1982, 1989, 1992 e 1997 vieram conferir uma maior especificidade às funções e
atribuições dos vários órgãos judiciais, além de atribuir relevância constitucional a
determinadas características consideradas fundamentais.5 Por exemplo, foi apenas na
revisão de 1992 que ficou estabelecido que o Ministério Público detém um estatuto
próprio e uma autonomia funcional. Tal autonomia estava, no entanto, já consagrada na
sua Lei Orgânica de 1978 (Lei n.º 39/78, de 5 de Julho) e foi mantida nas seguintes
(sendo reforçada pela Lei n.º 23/92, de 20 de Agosto). “A autonomia do Ministério
Público vale face ao Governo e também face à magistratura judicial. Na sua primeira
vertente ela significa que ele não depende hierarquicamente do Governo, o qual não lhe
3
Sobre a criação e evolução do Centro de Estudos Judiciários e o seu papel na formação dos magistrados
em Portugal, incluindo o estudo de direito comparado, ver Gomes e Pedroso (2001) e Santos, Pedroso e
Branco (2006).
4
Capítulo IV do Título VI referente aos Tribunais (arts. 224º, 225º e 226º).
5
Não abordamos as revisões da Constituição da República, ocorridas em 2001, 2004 e 2005, por estas
não terem tido qualquer interferência com os tribunais ou a sua organização.
9
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
pode dirigir ordens ou instruções nem influir no respectivo governo e administração”
(Canotilho e Moreira, 1993: 80).6
Ao contrário do estipulado para os magistrados judiciais, e dado que as carreiras
são paralelas mas separadas, não se inseriu então qualquer disposição referente aos
magistrados do Ministério Público no texto constitucional, ficando estes integrados no
Capítulo IV, referente ao Ministério Público, o qual apenas compreende duas normas
(artigos 219.º e 220.º). Mesmo assim, verificou-se uma evolução face ao disposto na
Constituição de 1976, na qual, embora houvesse três artigos consagrados ao Ministério
Público, as suas competências eram menores, algo que veio a ser alterado com a revisão
de 1992, até para se adaptar às novas competências decorrentes das revisões do Código
Penal e do Código de Processo Penal, entre outras leis entretanto aprovadas. O modelo
normativo do Ministério Público, no entendimento do Gomes Canotilho e Vital
Moreira, assenta em três princípios: da autonomia; da hierarquia; e da responsabilidade,
sendo que “a responsabilidade e a hierarquia caracterizam o Ministério Público por
contraposição aos juízes (irresponsabilidade e independência), enquanto que a
inamovibilidade aproxima os estatutos do Ministério Público e dos juízes” (1993: 830 e
ss.). Na opinião de António Cluny, com a revisão constitucional de 1989, o Ministério
Público passou, inclusive, a ser concebido e definido como órgão de iniciativa do poder
judicial (1995: 73).7
Mas o reforço da independência da administração da justiça através do
aperfeiçoamento da organização do Ministério Público não foi acompanhado de uma
percepção realista das interfaces existentes entre organização judiciária e processo
penal. No entanto, a Constituição limita-se, na definição do Estatuto do Ministério
Público, a proclamar que este “goza de estatuto próprio (…), porém não o define
explicitamente” (Fernando, 2004), tendo ficado a ideia de que o Ministério Público
corresponde a uma magistratura que estava na tradição secular do país e não tinha sido
questionado. Por outro lado, estabelece que “os agentes do Ministério Público são
magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados e não podem ser transferidos,
suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei”, atribuindo ainda
6
Sobre a questão da autonomia e, também, da hierarquia ver Cluny (1997: 88 e ss.).
A evolução do Ministério Público pode ser analisada com maior detalhe nos relatórios do Observatório
Permanente da Justiça (Pedroso et al., 2002; Santos et al., 2006), referentes à discussão sobre a
organização e geografia do sistema judicial, e no trabalho de João Paulo Dias (2004) sobre as
magistraturas e a evolução da organização judiciária.
7
10
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
à Procuradoria-Geral da República a “nomeação, colocação, transferência e promoção
dos agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar” (art. 220.º).
Podemos afirmar, então, que o novo regime constitucional forneceu apenas uma
directiva para a estruturação das duas magistraturas como carreiras separadas.
2.2. O Estatuto Orgânico do Ministério Público: retrato e evolução
O estudo da organização judiciária, em Portugal, a partir de 1974, permite-nos
identificar três períodos principais, onde se registaram as alterações legislativas mais
significativas, referentes à arquitectura do sistema judicial. O primeiro foi de 1974 a
1984, ou seja, o período de transição e de consolidação do Estado de Direito, em que se
procederam às reformas judiciárias necessárias à democratização do poder judicial e ao
corte com o modelo vigente durante o Estado Novo. O segundo período, de 1985 a
1995, acompanha a década em que o Partido Social-Democrata (PSD) foi o partido
político maioritário. O terceiro período decorre de 1996 até à actualidade, e atravessa
cinco Governos diferentes.
É nestes três períodos que a principal lei referente à organização, competências e
funções do Ministério Público é alterada, adaptando-se às exigências e desafios que se
foram colocando e afirmando-se o Ministério Público, de acordo com outras tendências
internacionais, como um actor fundamental do poder judicial.
2.2.1. Lei Orgânica do Ministério Público de 1978: a consagração legal da autonomia
O período que medeia a aprovação da Constituição da República e os primeiros
anos da década de 80 são cruciais para se compreender o desenho e a forma de
implementação da arquitectura judicial, a qual se tem mantido, com algumas alterações
mais ou menos importantes, até aos nossos dias. António Cluny (1992: 136) destaca
quatro grandes mudanças operadas neste período: 1) a autonomia das magistraturas em
relação ao poder político governamental; 2) a separação das carreiras, com o
reconhecimento da autonomia do MP face à magistratura judicial e em relação ao
Governo; 3) o acesso das mulheres à magistratura, introduzido logo a seguir ao 25 de
Abril; 4) e a formação especializada de magistrados por via da criação do Centro de
Estudos Judiciários. A estas mudanças, alguns entrevistados num trabalho anterior (Dias,
11
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
2004) juntam o facto de se ter verificado, verdadeiramente, uma maior democratização no
acesso dos cidadãos à justiça.
É no final dos anos 70 que são aprovadas, então, a Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais, o Estatuto dos Magistrados Judiciais e a Lei Orgânica do Ministério Público.
Um pouco mais tarde surgiu a Lei Orgânica do Centro de Estudos Judiciários, que
permite profissionalizar o recrutamento e ensino dos magistrados em Portugal, operando
um corte com o anterior sistema (Santos, Pedroso e Branco, 2006).
O período que vai de 1980 até 1984 já foi pouco fértil em alterações, ao contrário
do que sucedeu de 1976 a 1980, reflectindo, por um lado, uma pretendida acalmia no
sistema judicial, quer por parte dos actores políticos, quer pelos actores judiciais e, por
outro, uma fase de necessária experimentação das reformas efectuadas, além da
ocorrência de uma grave crise económico-social que centralizava a atenção dos
sucessivos governos (Santos, 1990).
Ao proceder a uma análise da legislação aprovada neste primeiro período,
detecta-se a preocupação política de operar um corte com o sistema vigente durante o
Estado Novo (Dias, 2004). Contudo, tal corte manifestou-se, como referimos, sobretudo
ao nível das prerrogativas do poder judicial – autonomia, independência,
inamovibilidade ou irresponsabilidade – e não tanto quanto à renovação dos recursos
humanos e dos recursos materiais. Se no que concerne aos recursos humanos se
verificou uma continuidade da maioria dos magistrados, ainda que com alguma entrada
de novos quadros (em particular no Ministério Público), no que toca aos recursos
materiais não houve quase nenhuma alteração, com a manutenção de um parque
judiciário obsoleto para a época.
A última das grandes leis sobre a organização judiciária a ser publicada neste
período foi, como referimos, a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n.º 39/78, de 5
de Julho). Apesar de ser a última, e de estar em conformidade com as duas anteriores,
constituiu-se como aquela que permitiu dar um toque de inovação e autenticidade ao
sistema judicial português. Antes tinha sido aprovado o Decreto-Lei n.º 917/76, de 31
de Dezembro, que veio adaptar o Ministério Público à Constituição e apressar a
remodelação da instituição, renovando o Conselho Superior do Ministério Público,
lançando um serviço de inspecções e criando o cargo de Vice-Procurador-Geral da
República (Rodrigues, 1999b: 74-75).
12
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
O modelo de Ministério Público adoptado foi, inclusive, mais longe do que os
existentes na maioria dos países que se incluem dentro do modelo da Europa do Sul,
casos da França, Espanha ou Itália. Segundo a opinião de alguns magistrados (Dias,
2004), o modelo português do Ministério Público, largamente influenciado pelo
ex-Procurador-Geral da República Cunha Rodrigues e pela acção do então Ministro da
Justiça Almeida Santos (ainda que na altura da aprovação desta lei o Ministro da Justiça
fosse Santos Pais), procurou fazer uma síntese entre as concepções francesa e italiana,
no que concerne à organização hierárquica (francesa) e autonomia (italiana), não
obstante o modelo seguido tenha também as suas origens na tradição do Ministério
Público em Portugal, em especial antes do Estado Novo (Rodrigues, 1999a e 1999b).
No entanto, logo após a sua aprovação, já no IV Governo Constitucional, liderado por
Mota Pinto, o então Ministro da Justiça Eduardo Correia tentou voltar ao modelo
anterior de controlo por parte do Executivo. Esta tentativa era secundada pelo então
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mas contou com a discordância do
Presidente da República Ramalho Eanes e a feroz oposição do Sindicato dos
Magistrados do Ministério Público (comunicado de Maio/Junho de 1979).
O facto de no art. 75.º (actual art. 80.º), relativo aos poderes do Ministro da Justiça,
se manter a possibilidade de dar instruções, ainda que de ordem genérica, ao
Procurador-Geral da República gerou interpretações distintas e tornou-se no meio que
alguns governos procuraram utilizar para se imiscuir nas acções do Ministério Público.
Este artigo era igualmente polémico por permitir que o Ministro da Justiça tomasse a
iniciativa da acção disciplinar relativamente aos magistrados, além de poder requisitar
relatórios e informações de serviço aos diversos agentes do Ministério Público. Outra das
nuances desta lei referia-se ao então art. 71.º (actual 76.º), ou seja, à obrigatoriedade de
acatamento, por parte dos magistrados de grau inferior, das directivas, ordens e instruções
provenientes dos superiores hierárquicos. O facto destas indicações não serem controladas
e de os critérios não estarem bem explícitos gerava, e gerou até à última alteração desta
lei, a possibilidade de ocorrerem abusos de autoridade e o exercício de poderes
discricionários. É de relembrar que o Procurador-Geral da República era, e mantém-se,
nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo.
As especificidades mais importantes do modelo português do Ministério Público
são a sua autonomia face ao poder executivo e o facto dos seus agentes (também eles
13
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
magistrados) desfrutarem de direitos e deveres equivalentes aos dos juízes – inclusive a
existência de um Conselho Superior específico do Ministério Público, que constitui uma
outra inovação do nosso modelo. Veio mesmo a consagrar-se o princípio do paralelismo
das magistraturas, que era uma das grandes reivindicações do Sindicato dos
Magistrados do Ministério Público como forma de revalorizar a carreira. Outra das
particularidades do nosso Ministério Público tem a ver com as competências que lhe
foram atribuídas, e que rompem com o anterior modelo, como sejam a direcção da
investigação criminal e o exercício da acção penal, a promoção e coordenação de acções
de prevenção criminal, o controlo da constitucionalidade das leis e regulamentos, a
fiscalização da Polícia Judiciária, para além da defesa dos interesses do Estado. Se
algumas destas tarefas já estavam consagradas em leis anteriores, o facto de se poderem
exercer com autonomia confere-lhes uma importância bastante acrescida. A questão que
se colocava, e que em parte ainda se mantém, é se o Ministério Público seria capaz de
exercer tão vasto rol de competências, adoptando uma postura activa, em vez da
tradicional postura passiva. Porque esta lei estabelece que o Ministério Público passe a
ter capacidade de iniciativa, o que é diferente de exercê-la. Algumas das funções de
cariz mais social, ao nível dos trabalhadores, da família e dos menores, só viriam a ser
incluídas na lei seguinte.
Embora este modelo desse um maior protagonismo ao Ministério Público, o facto
é que a sua acção na área penal ficou ainda limitada devido à manutenção da figura do
Juiz de Instrução Criminal com amplos poderes, algo que também só na seguinte
revisão foi alterado, em consonância com as mexidas introduzidas no Código de
Processo Penal de 1987 (Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro). Tudo o resto foi
elaborado um pouco à imagem do Estatuto dos Magistrados Judiciais, em particular nas
questões referentes às incompatibilidades, deveres e direitos, bem como no acesso à
carreira e devida progressão ou em relação à aposentação, cessação e suspensão de
funções e acção disciplinar.
2.2.2. Lei Orgânica do Ministério Público de 1986 e Lei de Autonomia de 1992: a maturação
da instituição
O período de reformas entre 1985 e 1995 foi impulsionado, principalmente, pelos
sucessivos governos do Partido Social-Democrata. Tendo o PSD sido eleito sem maioria
14
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
em 1985, a sua queda em 1987, devido à aprovação de uma moção de censura, veio a
traduzir-se numa maioria absoluta em 1987, a qual viria a repetir em 1991, podendo, deste
modo, proceder às reformas sem necessidade de negociações parlamentares. Já as
revisões constitucionais de 1989 e de 1992 necessitaram de uma negociação com o
Partido Socialista para atingir os necessários 2/3 de votos parlamentares.
Em 1985, o Ministro empossado foi Mário Raposo, tendo como Secretário de
Estado-Adjunto Garcia Marques. Entre as medidas preconizadas, destaca-se a vontade
de alterar o Código de Processo Penal e melhorar os necessários serviços
complementares (Instituto de Medicina Legal, Polícia Judiciária, etc.), atribuindo ao
Ministério Público maiores competências, em especial na fase de inquérito. Ainda em
relação ao Ministério Público, o programa de Governo previu o retomar da proposta de
alteração do estatuto do Ministério Público de acordo com a revisão do Código de
Processo Penal e do Código Penal. Propunham, assim, reforçar os meios humanos e
materiais de modo a dar melhores instrumentos para a aplicação da justiça. Facto
curioso foi o de as três leis (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Estatuto dos
Magistrados Judiciais e Lei Orgânica do Ministério Público) terem sido aprovadas
durante a vigência de um Governo minoritário, sem garantias de apoio parlamentar. A
nova maioria absoluta conquistada pelo PSD, em 1991, confirmou Laborinho Lúcio
como Ministro da Justiça.
Entre a aprovação da primeira e a da segunda lei não se detectaram quaisquer
mudanças legislativas que pudessem alterar a estrutura, organização ou competências do
Ministério Público. A aprovação da segunda Lei Orgânica do Ministério Público (Lei
n.º 47/86, de 15 de Outubro), ocorreu um ano após a publicação do Estatuto dos
Magistrados Judiciais. O facto de ocorrer um ano após o Estatuto dos Magistrados
Judiciais poderá ter tido, entre outras, as seguintes explicações: 1) a tentativa de
elaborar uma Lei Orgânica do Ministério Público, em alguns aspectos, idêntica ao
Estatuto dos Magistrados Judiciais; 2) a superação de alguns direitos e regalias em
comparação com os juízes. No que respeita a esta segunda explicação, existem dois
dados que nos ajudam a comprovar esta ideia. O primeiro deve-se ao facto de, alguns
meses depois da aprovação do Estatuto dos Magistrados Judiciais, ter sido publicada a
Lei n.º 24/85, de 9 de Agosto, que concedia aos magistrados do Ministério Público os
mesmos direitos consagrados aos juízes no seu Estatuto. O segundo dado constata-se
15
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
pelo teor do Decreto-Lei n.º 242/88, de 28 de Setembro, que atribui aos juízes jubilados
os mesmos direitos que a Lei Orgânica do Ministério Público consagra aos magistrados
reformados do Ministério Público. Cunha Rodrigues afirma, inclusive, que esta lei
“introduziu apenas modificações de pormenor, tendo tido por finalidade essencial
aproximar aspectos dos estatutos da magistratura judicial e do Ministério Público. E, em
1990, a Lei n.º 2/90, de 20 Janeiro, alterou o sistema retributivo dos magistrados do
Ministério Público, em paralelismo com o da magistratura judicial” (1999b: 75).
A estratégia seguida na concretização do princípio do paralelismo entre as
magistraturas parece ser o de elevar constantemente a fasquia das regalias e direitos, ao
mesmo tempo que os deveres, obrigações e responsabilidades se mantêm relativamente
estáveis. Isto é, sempre que se aprova uma nova lei orgânica referente a uma
magistratura procura-se puxar para cima o capítulo dos direitos e regalias, sabendo que
esses mesmos direitos e regalias serão rapidamente estendidos à outra magistratura.
Em relação a esta lei, já o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
afirmava, na sua Informação Sindical n.º 45, de 1986, que ela mantinha, no essencial, a lei
anterior. Embora concordasse com algumas disposições inovadoras, o facto de se
manterem muitas outras levou a que criticasse a pouca ambição desta Lei. Sucintamente,
concordou o Sindicato com a consagração do papel do Ministério Público na defesa da
independência dos tribunais, a possibilidade de criação do Vice-Procurador-Geral
Distrital, a introdução da opção de renúncia à promoção ou a abolição do sexénio. Opôsse, contudo, à não fixação do quadro de magistrados do Ministério Público, ao facto de
ser o Procurador-Geral da República a designar os Procuradores-Gerais-Adjuntos nos
tribunais superiores, à distribuição da representatividade no Conselho Superior do
Ministério Público, à não eliminação da obrigação do Ministério Público defender os
interesses particulares do Estado e à não retirada dos poderes directivos do Ministro da
Justiça, entre outros aspectos. No entanto, esta lei veio clarificar e aumentar as
competências do Ministério Público, razão pela qual o Sindicato não se opôs, apesar de
algumas críticas, à sua aprovação. Afinal, o Ministério Público conseguia consagrar uma
velha aspiração, a de serem os detentores do exercício da acção penal; o que, juntamente
com a aprovação do Código de Processo Penal, permitiu que passasse a ser responsável
pela realização da instrução criminal (agora inquérito). Esta alteração substancial veio
permitir uma revalorização da importância desta magistratura no seio do poder judicial.
16
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Esta lei veio a ser complementada com a aprovação da Lei de Autonomia do Ministério
Público (Lei n.º 23/92, de 20 de Agosto), que veio a alterar a Lei Orgânica do Ministério
Público nalguns aspectos importantes.
À competência exclusiva do exercício da acção penal, acresce a introdução das
competências no patrocínio dos direitos sociais (laborais e familiares) e do dever de
representar os incapazes, os incertos e os ausentes. Embora a “tradição” da actuação do
Ministério Público nas áreas sociais tenha raízes históricas, o seu exercício com maior
autonomia e com um rol de competências alargado veio a determinar uma acção mais
preponderante.
A orgânica do Ministério Público pouco foi mexida com esta lei, com a excepção de
uma melhor clarificação dos diferentes órgãos, incorporando o alargamento de
competências verificado. Uma das poucas alterações verificadas nos órgãos do Ministério
Público surge relativamente à composição do Conselho Superior do Ministério Público,
posteriormente modificada também pela Lei 23/92, de 20 de Agosto.
Outras medidas foram introduzidas: acaba-se com o sexénio (à imagem do que
aconteceu com os juízes), que impedia que os magistrados estivessem mais de seis anos
no mesmo tribunal; e os poderes do Ministro da Justiça deixam de ser directivos e de
vigilância para se tornarem mais genéricos e consultivos, terminando, por exemplo, com a
possibilidade de tomar a iniciativa da acção disciplinar relativamente aos magistrados. Os
poderes do Ministro da Justiça limitam-se, assim, à solicitação de informações e relatórios
e à possibilidade de dar instruções de carácter específico nas acções cíveis em que o
Estado seja parte interessada.
A evolução do item referente aos vencimentos é, por sua vez, praticamente igual
ao estipulado para os magistrados judiciais,8 assim como os itens relacionados com o
direito a casa ou os direitos especiais, por serem reproduzidos quase na íntegra. A
reprodução de disposições provenientes do Estatuto dos Magistrados Judiciais aplica-se
também em relação às classificações dos magistrados.9
8
A matéria relacionada com os vencimentos foi clarificada e melhorada com a Lei n.º 2/90, de 20 de
Janeiro, que vem dizer que o sistema retributivo dos magistrados do Ministério Público é composto pela
remuneração base e por suplementos. É nos suplementos que se podem verificar aumentos significativos,
distinguindo-se do valor referente ao correspondente índice da função pública.
9
Esta duplicação de legislação, sempre que se abordam direitos e regalias das duas magistraturas, poderá
levar à questão da utilidade de haver um estatuto comum, que, por um lado, harmonize os deveres e
direitos e, por outro, evite o “puxar para cima” sempre que um novo estatuto é aprovado.
17
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Enquanto esta Lei Orgânica contemplou mais o aperfeiçoamento das competências do
Ministério Público, face ao novo papel na área criminal, do que a reorganização dos seus
órgãos, com a segunda revisão constitucional abriu-se a porta para a aprovação da Lei de
Autonomia do Ministério Público (Lei n.º 23/92, de 20 de Agosto), que veio introduzir
algumas importantes alterações, das quais destacamos: a cooperação do Ministério Público
nas acções de prevenção criminal, deixando de ser o coordenador; a impossibilidade de
fiscalizar administrativa e disciplinarmente os órgãos de polícia criminal; a alteração da
composição do Conselho Superior do Ministério Público, aumentando a representatividade
da Assembleia da República, com a designação de 5 dos seus 19 membros; e a eliminação
dos poderes de instrução genérica do Ministro da Justiça.
A experiência autonómica do Ministério Público, a que alguns colocavam reservas
de doutrina e outros de funcionamento, na opinião de Cunha Rodrigues (1999b),
revelou-se positiva e, com uma ou outra dificuldade de percurso, saldou-se pelo reforço
da opinião comum sobre a independência da administração da justiça e por uma melhor
articulação entre os vários subsistemas que operam na área judicial. Permitiu, sobretudo,
que, em tempos de profunda densidade política e ideológica e de renhida disputa
partidária, a isenção do Ministério Público (magistratura tradicionalmente suspeita de
compromisso com o poder político) não tivesse sido geralmente posta em causa.
2.2.3. Estatuto do Ministério Público de 1998: tempo de prestação de contas públicas
O período entre 1996 e 2006 corresponde ao terceiro e último período de aplicação
de reformas na organização judiciária, em Portugal, no pós-25 de Abril de 1974. Neste
período foram igualmente aprovadas novas versões das três leis referentes à organização
dos tribunais, dos juízes e do Ministério Público.10 A aprovação destas leis deu-se
durante o Governo do Partido Socialista, nos anos de 1998 e 1999, tendo como Ministro
da Justiça Vera Jardim. Nos anos subsequentes, mesmo com a subida ao poder do
Partido Social-Democrata (em aliança com o CDS – Partido Popular), entre 2003 e
2005, e o posterior regresso, com maioria absoluta, do Partido Socialista, desde 2005,
não se registaram alterações nestas leis.11 Privilegiou-se o “ataque” aos factores de
10
O Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho) foi apenas alterado em cerca de 55
artigos dos perto de 200 que continha o anterior Estatuto, ainda que por vezes substancialmente.
11
Com a excepção da referente à alteração do período de férias judiciais, com implicações nalguns artigos
relativos a esta matéria (Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto).
18
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
congestionamento e morosidade dos tribunais, ainda que as reformas introduzidas
tenham sentido carências financeiras para poderem produzir os devidos resultados,
como foi o caso da reforma da acção executiva. Neste momento, assiste-se a um novo
ímpeto reformista (reorganização do mapa judiciário, introdução de mecanismos
alternativos de resolução de conflitos com maior vigor, novo incursão sobre a acção
executiva, desmaterialização dos procedimentos, etc.), ainda que permaneça a dúvida de
que, sem os meios adequados, estas reformas possam atingir os seus objectivos.
Os últimos anos foram, igualmente, marcados por uma grande mediatização da
justiça penal e, em particular, da acção do Ministério Público. Vários casos expuseram a
capacidade de investigação do Ministério Público, ficando, assim, sujeito ao escrutínio
público e à mercê das críticas, positivas ou negativas, em função dos interesses em jogo.
De facto, uma liderança contestada, na figura do Procurador-Geral da República, José
Souto Moura, a quem competia gerir mediaticamente estes processos, originou uma
grande desestabilização na instituição. A sucessão de eventos registados nos últimos 5/6
anos provou que o período de maturação da intervenção do Ministério Público, que
ocorreu no período anterior, está agora sujeito a uma prestação de contas públicas cada
vez mais exigente, pelas mais diversas razões. O recém-empossado Procurador-Geral da
República, Pinto Monteiro, tem, deste modo, uma dupla tarefa: por um lado, garantir a
estabilização da instituição, de modo a que possa funcionar sem os sobressaltos que
registou nos últimos tempos; e, por outro, garantir as condições para uma mais eficiente e
credível actuação, que será escrutinada, política e publicamente, em função dos resultados
alcançados nas diversas frentes de actuação, com especial realce para a área penal.
Voltando ao Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto),
constata-se que esta foi a primeira lei sobre a organização judiciária a ser aprovada neste
período. Este Estatuto, há muito esperado, parece ter vindo a contento das
reivindicações do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, de tal modo que na
Informação Sindical 131/98 se recusam as críticas de outros operadores judiciários, em
especial dos juízes, no que toca ao reforço dos seus poderes, em desfavor dos juízes de
instrução criminal. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses opôs-se igualmente à
atribuição de competências ao Ministério Público para realizar acções de prevenção
criminal. Entendiam que estas competências são da competência do Governo, devendo
o Ministério Público executar a política criminal e não defini-la. Deste modo, no seu
19
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Boletim n.º 3, de 1998, levantam-se grandes dúvidas sobre a constitucionalidade desta
disposição, que acabou, no entanto, por ser aprovada.
A primeira diferença face às leis precedentes relaciona-se com a sua designação,
deixando de ser uma lei orgânica para passar a ser um estatuto. Na opinião de Cunha
Rodrigues, “retomou-se o conceito de estatuto por arrastamento do Estatuto dos
Magistrados Judiciais e por se considerar que ele materializa, de forma mais activa, as
garantias e as prerrogativas dos magistrados” (1999b: 78).
Em relação às alterações introduzidas no sentido de dotar o MP de estruturas
capazes de executar as suas competências e de adaptar o seu funcionamento aos novos
códigos em vigor, podemos afirmar que as principais medidas adoptadas ao nível das
estruturas dizem respeito à criação de novos órgãos de investigação criminal,
nomeadamente o Departamento Central de Investigação e Acção Penal e os
Departamentos de Investigação e Acção Penal distritais. Muitas das modificações
verificadas vão mais no sentido de reorganizar o diploma, limando algumas disposições
ao nível linguístico, do que propriamente alterar o conteúdo dos artigos ou reformular as
suas estruturas ou competências. Um magistrado do Ministério Público entrevistado, e
referido em Dias (2004: 103), diz peremptoriamente que:
No fundamental esta lei, contrariamente àquilo que as pessoas dizem, não veio alterar
grande coisa relativamente à estrutura e ao fundamento. O que veio é reorganizar um
pouco internamente, com a ideia de obter uma determinada eficácia. Essa reorganização
interna, com a ideia da eficácia, passou também por uma nítida ideia de concentração de
poder. Não me atrevo a dizer que era a ideia que estava por detrás, porque somos
confrontados com a seguinte dificuldade: temos uma estrutura arcaica para a investigação
criminal que é preciso fazer actualmente. (Ent. 6 – Magistrado do MP)
As primeiras grandes mudanças surgem, como já se referiu, ao nível das
competências do Ministério Público. Para além da promoção e realização de acções de
prevenção criminal, o Ministério Público passa a participar na execução da política
criminal definida pelos órgãos de soberania, devendo exercer as suas funções na área
penal orientadas pelo princípio da legalidade (que se mantém como pedra chave da sua
actuação criminal). Isto é, em 1998, com o Partido Socialista no Governo, reforçou-se o
vínculo a este princípio, mas, posteriormente, o mesmo partido iniciou uma discussão
20
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
de modo a poder alterá-lo – complementando com o princípio da oportunidade – sem
que os contornos de tal mudança fossem claros.
A organização do Ministério Público é então alterada. Surge um novo órgão de
coordenação e de direcção da investigação da criminalidade violenta, altamente
organizada ou de especial complexidade: o Departamento Central de Investigação e
Acção Penal. A sua composição, além de magistrados do Ministério Público, contempla
a coadjuvação das várias polícias com funções criminais, de modo a estabelecer uma
melhor coordenação entre os vários órgãos envolvidos. Sobre a criação deste órgão, a
Associação Sindical dos Juízes Portugueses manifestou-se (Boletim n.º 3 de 1998) no
sentido de exigir a criação do correspondente Tribunal Central de Instrução Criminal,
bem como os tribunais correspondentes aos Departamentos de Investigação e Acção
Penal distritais (também consagrados nesta lei), o que veio a ser contemplado na Lei
Orgânica de Funcionamento dos Tribunais Judiciais. A expansão destes órgãos implicou
também a existência de quadros graduados para o efeito, facto que originou um aumento
das categorias superiores.
As funções das várias categorias dos magistrados do Ministério Público foram
bastante clarificadas. A especificação das competências jurídicas e territoriais dos
magistrados do Ministério Público é tanto mais importante quanto se trata de uma
magistratura hierarquizada, exigindo-se uma grande transparência no exercício das suas
funções, bem como uma correcta delimitação das fronteiras entre as diferentes
categorias. Deste modo, os superiores hierárquicos são obrigados, quando solicitados, a
emitir por escrito as ordens ou instruções referentes a determinados processos. No caso
dos magistrados se recusarem a obedecer por qualquer razão, tal posição deve ser
também efectuada por escrito, devidamente fundamentada.
No capítulo das classificações houve igualmente poucas alterações, o mesmo já não
acontecendo ao nível dos movimentos, onde as mudanças foram muitas. Estas ocorreram
essencialmente nas matérias respeitantes ao acesso às várias categorias e lugares dentro
do Ministério Público, uma vez que com a criação de novos órgãos houve a necessidade
de criar os respectivos lugares, como aconteceu com os Departamentos de Investigação e
Acção Penal. Estipularam-se assim os critérios exigidos, bem como as competências
mínimas, para o exercício de determinadas funções.
21
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Analisando-se a legislação produzida sobre o Ministério Público, e tendo
igualmente como pano de fundo a restante legislação produzida sobre a organização
judiciária (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e Estatuto dos
Magistrados Judiciais), conseguiu detectar-se a preocupação política de cortar, ao longo
do tempo, as ligações ao sistema vigente no Estado Novo. Contudo, o corte verificado
manifestou-se mais ao nível das prerrogativas do poder judicial – autonomia,
independência, inamovibilidade ou (ir)responsabilidade – do que em relação à renovação,
quer dos recursos humanos, quer dos recursos materiais, para além da reestruturação da
organização do sistema no seu todo. A evolução foi bastante lenta e, durante muito tempo,
não acompanhou minimamente as necessidades e o crescimento da procura de tutela
judicial. Como refere Pena dos Reis, “o aparelho de administração da justiça revelou uma
capacidade de resposta muitas vezes insuficiente, tardia, burocratizada, deixando perceber
a existência de sérias contradições e hesitações nos órgãos de poder e na sociedade quanto
à sua planificação e organização e ao seu papel” (1999: 79).
As reformas neste período, pode acrescentar-se, preocuparam-se mais em
actualizar e adaptar legislativamente as instituições judiciárias à própria evolução do
Estado e do sistema democrático do que em mudar radicalmente a filosofia do sistema.
Assim, privilegiou-se a melhoria do funcionamento do aparelho judiciário, em termos
organizativos e tecnológicos, e em menor escala no crescimento dos recursos humanos,
procurando modernizar o sistema judicial. Apesar disso, a crónica discrepância
(crescente) entre procura e oferta judicial leva-nos a reflectir sobre a real prioridade que
os
sucessivos
governos
colocaram
na
sua
resolução,
verificando-se
quase
sistematicamente que o crescimento, real ou percentual, do orçamento da justiça é
bastante inferior ao registado em outras áreas como a saúde, a educação ou a segurança
social, para não mencionar as obras públicas.
A nova equipa do Ministério da Justiça, saída do Governo maioritário do Partido
Socialista, tendo como Ministro da Justiça Alberto Costa, parece querer adoptar uma postura
diferente. Nos seus propósitos, numa fase inicial, está a implementação de várias medidas
que, mexendo o mínimo a nível das leis orgânicas e estatutos, procuram melhorar os pontos
identificados como ineficientes, aliás fundamentais para aperfeiçoar a administração da
justiça. Contudo, a falta de investimento para poder efectuar algumas das reformas principais,
como a implementação da reforma da acção executiva, da reestruturação do mapa judiciário
22
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
ou da criação e alargamento dos meios alternativos/complementares de resolução de conflitos,
limita sobremaneira o êxito de tais intentos.
O Pacto de Justiça, firmado em Setembro de 2006, entre os dois maiores partidos
políticos (PS e PSD), trouxe a última grande novidade em termos de justiça, com o
estabelecimento de um conjunto de entendimentos para a realização de reformas a
vários níveis, desde a reforma dos códigos penal e de processo penal, à alteração do
mapa judiciário, passando pela introdução da mediação penal, da alteração da acção
executiva ou da modificação no sistema de acesso às magistraturas, entre outros
aspectos. Este Pacto estabeleceu um calendário para a execução destas reformas e um
compromisso de votação favorável na generalidade e subscrição de projectos conjuntos
na especialidade.12
3. As funções e os órgãos do Ministério Público
3.1. As funções do Ministério Público
A Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, que surgiu, pela primeira vez, com a epígrafe de
Estatuto do Ministério Público (EMP), na sequência da revisão constitucional de 1997,
introduziu uma nova definição de Ministério Público, segundo a qual “o Ministério
Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na
execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos
da Constituição, do presente Estatuto e da lei” (art. 1.º, n.º 1). Cunha Rodrigues (1999a:
34) afirma que “a redacção evoluiu de uma definição para uma norma de competência.
Tem agora a virtualidade de enunciar o tipo complexo de atribuições cometidas ao
Ministério Público e, nessa medida, os traços da sua identidade”.
De facto, uma das características essenciais do Ministério Público, em Portugal,
prende-se com o seu poliformismo e o conjunto vasto, heterogéneo e transversal das
suas atribuições e competências.
12
O Pacto da Justiça surgiu numa altura sensível, relativa à nomeação do novo Procurador-Geral da
República, após um apelo do Presidente da República para um concertação de posições para a definição
do nome a propor. Em resultado desta negociação, foi nomeado, sem oposição, o Juiz Conselheiro
Fernando Pinto Monteiro (tomou posse a 9 de Outubro de 2006).
23
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993: 830 e ss), as funções do
Ministério Público poder-se-iam agrupar em quatro áreas: “representar o Estado,
nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma
espécie de Advogado do Estado; exercer a acção penal (...); defender a legalidade
democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso administrativo e fiscal e na
fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas pessoas
mais carenciadas de protecção, designadamente, verificados certos requisitos, os
menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.”.13
Nos termos do EMP, ao Ministério Público compete, assim, representar o Estado14,
as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em
parte incerta; participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de
soberania; exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade; exercer o
patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de
carácter social; assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses colectivos e
difusos; defender a independência dos tribunais nas áreas das suas atribuições, e velar
para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis;
promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade; dirigir a
investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades; prover e realizar
acções de prevenção criminal; fiscalizar a constitucionalidade dos actos normativos;
intervir nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse
público; exercer funções consultivas; fiscalizar a actividade processual dos órgãos de
polícia criminal; recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido
13
Os mesmos AA. defendem ainda que o exercício simultâneo das várias funções pode não estar isento
de conflitos e incompatibilidades, uma vez que nem sempre a defesa dos interesses privados do Estado é
harmonizável com, por exemplo, a defesa da legalidade democrática (1993: 830 e ss).
14
De interesse neste âmbito é saber se se trata verdadeiramente de um patrocínio judiciário ou de uma
representação. Sérvulo Correia (2001), referindo-se à matéria administrativa, parece entender tratar-se
aqui de um patrocínio judiciário. No mesmo sentido, parece entender também Cunha Rodrigues (1999a:
156), ao referir-se a esta actividade desenvolvida pelo Ministério Público como “exercício da advocacia
do Estado”. Em sentido contrário, embora referindo-se à actuação do Ministério Público na jurisdição
cível, Carlos Lopes do Rego (2000: 83) afirma que se trata “de verdadeira representação orgânica da
Administração Central perante os tribunais – e não de mero patrocínio judiciário exercido pelos agentes
do Ministério Público”, o que importaria, na opinião do Autor, uma obrigatoriedade de representação,
constituindo a intervenção de mandatário judicial, nos termos do art. 20.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil, uma situação excepcionalíssima, carecedora de “preceito constante de lei da Assembleia da
República ou de decreto-lei credenciado por autorização legislativa, já que nos movemos em matéria –
competência e atribuições do Ministério Público – situada no âmbito da competência legislativa reservada
da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. p) CRP)” (2000: 98).
24
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa; bem como exercer
as demais funções conferidas por lei15 (cf. art. 3.º).
Estas atribuições do Ministério Público estão, ainda, previstas e dispersas pelas
leis de processo e em legislação avulsa.16 O Ministério Público pode intervir principal17
ou acessoriamente, consoante represente, seja principal representante da parte ou lhe
cumpra apenas uma função de zelar pelos interesses que lhe são atribuídos por lei.
Podemos, assim, concluir que a actuação do Ministério Público, além de
transversal a todo o processo, assume funções diferenciadas, posicionando-se, no
processo, ora como autor, ora como réu, ou, ainda, como amicus curiae.
3.2. A organização do Ministério Público
Segundo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/VII, que deu origem
à Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, a alteração do Estatuto do Ministério Público teve
como preocupação a redefinição das competências dos vários magistrados e a criação de
novos órgãos vocacionados para a resolução de problemas concretos, num esforço de
organização interna, reconhecendo o poliformismo do Ministério Público, que exerce
“competências nas áreas constitucional, cível, criminal, social, de menores,
administrativa e tributária, ora agindo em funções típicas de magistrado, ora em
representação de interesses sociais e colectivos, ora na função de advogado do Estado
ou de defensor da legalidade, [o que] tem obrigado a considerável esforço de
organização, formação e métodos de trabalho em contextos de elevado volume
processual e de graves carências de apoio”.
15
Como exemplo destas funções residuais previstas na lei, destaca-se a função de articulação entre os
serviços de apoio à decisão e à execução da decisão e o Tribunal, no âmbito da legislação de menores.
16
A título de exemplo, as funções de representação do Estado encontram-se previstas nos art. 20.º do
Código de Processo Civil, 11.º, n.º 2, do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e 6.º do Código
de Processo do Trabalho; as de representação dos incapazes, incertos e ausentes em parte incerta nos arts.
15.º a 17.º do Código de Processo Civil; o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias nos arts. 7.º,
al. a) e b), do Código de Processo do Trabalho e 85.º, al. d), da Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais; a defesa de interesses colectivos e difusos no art. 26.º-A, do Código de Processo Civil.
17
A intervenção do Ministério Público é principal quando, nos termos do art. 5.º do EMP, representa o
Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais (nestes dois últimos casos, desde que não seja
constituído mandatário próprio), incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta (desde que os
representantes legais não se oponham a tal intervenção formalmente no processo); exerce o patrocínio
oficioso dos trabalhadores e suas famílias; representa interesses colectivos ou difusos; nos inventários
exigidos por lei; nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade.
25
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Figura 1: Estrutura do Ministério Público
FONTE: HTTP://WWW.PGR.PT/
Assim, actualmente, o Estatuto do Ministério Público define como órgãos a
Procuradoria-Geral da República, as procuradorias-gerais distritais e as procuradorias da
República (cf. art. 7.º), e, como agentes do Ministério Público, o Procurador-Geral da
República, o Vice-Procurador-Geral da República, os Procuradores-Gerais-Adjuntos, os
procuradores da República e os procuradores-adjuntos (cf. art. 8.º, n.º 1).18
A Procuradoria-Geral da República, que é o órgão superior do Ministério Público,
compreende o Procurador-Geral da República, o Conselho Superior do Ministério
Público,19 o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, os auditores
jurídicos e os serviços de apoio técnico e administrativo.20
18
Os agentes do Ministério Público podem, ainda, ser coadjuvados por assessores (cf. art. 8.º, n.º 2). A
instituição da assessoria e a definição das suas competências foi instituída pela Lei n.º 2/98, de 8 de
Janeiro, nos termos da qual “o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais de Relação dispõem de
assessores que coadjuvam os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público”, prevendo-se
a possibilidade de existência de assessores nos tribunais de 1.ª instância “quando a complexidade e o
volume de serviço o justifiquem” (cf. art. 1.º). Aos assessores compete “proferir despachos de mero
expediente; preparar a agenda dos serviços a efectuar; elaborar projectos de peças processuais; proceder à
pesquisa da legislação, jurisprudência e doutrina necessárias à preparação das decisões e das promoções
nos processos; sumariar as decisões e as promoções, a legislação, a jurisprudência e a doutrina de maior
interesse científico e integrá-las em ficheiros ou em base de dados; e colaborar na organização e
actualização da biblioteca do tribunal” (cf. art. 2.º, n.º 1).
19
O Conselho Superior do Ministério Público, dada a sua importância, será analisado num ponto
autónomo, que introduziremos a seguir.
20
A orgânica dos serviços da Procuradoria-Geral da República está estabelecida pelo Decreto-Lei n.º
333/99, de 20 de Agosto (que revogou o anterior Decreto Regulamentar n.º 64/87, de 23 de Dezembro).
26
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
O Procurador-Geral da República, que preside à Procuradoria-Geral da República, é
apoiado por um Gabinete, composto pelo chefe de Gabinete, seis assessores e dois secretários
pessoais,21 e é coadjuvado e substituído pelo Vice-Procurador da República, nomeado pelo
Conselho Superior do Ministério Público. Nos tribunais superiores (Supremo Tribunal de
Justiça, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas), o
Procurador-Geral
da
República
é
ainda
coadjuvado
e
substituído
por
Procuradores-Gerais-Adjuntos, cabendo ao Procurador-Geral designar, bienalmente, o
coordenador da actividade do Ministério Público em cada um daqueles tribunais (cf. art. 13.º).
Uma das atribuições da Procuradoria-Geral da República prende-se com o exercício
de funções consultivas. Essas funções são exercidas através do Conselho Consultivo, que é
composto pelo Procurador-Geral da República e por Procuradores-Gerais-Adjuntos.22
Também os auditores jurídicos, categoria exercida por procurador-geral adjunto
junto da Assembleia da República, de cada Ministério e dos Ministérios da República
para as Regiões Autónomas, exercem funções de consulta e apoio jurídicos junto das
entidades dos quais funcionem.23
De entre os novos departamentos criados pelo no Estatuto, destacam-se os
departamentos de contencioso do Estado, o Departamento Central de Investigação e
Acção Penal (DCIAP) e os Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP). Com
a Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, ficaram na dependência da Procuradoria-Geral da
República, para além do Departamento Central de Investigação e Acção Penal
(DCIAP), o Gabinete de Documentação e de Direito Comparado (GDDC),24 o Núcleo
de Assessoria Técnica (NAT) 25 e os Departamentos de Contencioso do Estado.
Segundo o preâmbulo daquele diploma, a reorganização dos serviços da PGR teve como critérios a
“racionalidade, eficácia e mínimo custo”.
21
Cf. art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 333/99, de 20 de Agosto (orgânica dos serviços da PGR).
22
Ao Conselho Consultivo compete, entre outras funções, emitir parecer restrito a matéria de legalidade nos
casos de consulta previstos na lei ou a solicitação do Presidente da Assembleia da República ou do Governo;
pronunciar-se, a pedido do Governo, acerca da formulação e conteúdo jurídico de projectos de diplomas
legislativos; pronunciar-se sobre a legalidade dos contratos em que o Estado seja interessado, quando o seu
parecer for exigido por lei ou solicitado pelo Governo; e informar o Governo, por intermédio do Ministro da
Justiça, acerca de quaisquer obscuridades, deficiências ou contradições dos textos legais e propor as devidas
alterações (cf. art. 37.º do EMP). É, actualmente, composto pelo Procurador-Geral da República e oito vogais.
23
Cf. art. 44.º e 4.º do EMP.
24
Ao GDDC compete, entre várias competências, prestar assessoria jurídica, recolher, tratar e difundir
informação jurídica (cf. art. 48.º, n.º 1, do EMP).
25
O NAT foi criado pela Lei n.º 1/97, de 16 de Janeiro, destinando-se a “assegurar a assessoria e
consultadoria técnica ao Ministério Público em matéria económica, financeira, bancária, contabilística e
de mercado de valores mobiliários” (cf. art. 1.º, n.º 2).
27
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei que deu origem à Lei
n.º 60/98, o legislador considerou que “a emergência de novos fenómenos de criminalidade
associada e induzida pelo consumo de estupefacientes, a mobilidade e estruturação dos
grupos e sub-culturas delinquentes, a sofisticação das novas formas de acção e organização
da criminalidade de colarinho branco tornaram patentes as insuficiências e fragilidades do
sistema” e que se tornou “manifesto que um órgão fechado em si mesmo, sem valências de
especialização, modelado segundo critérios rígidos de competência territorial na base da
comarca, sem ligação à prevenção e à investigação policial e às suas formas de organização
territorial e material não poderia dar resposta suficiente às novas solicitações”. Assim,
foram criados o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), que se
destina à coordenação e direcção da investigação e da prevenção da criminalidade violenta,
altamente organizada ou de especial complexidade,26 e os Departamentos de Investigação e
Acção Penal (DIAP),27 que se podem estruturar por secções “em função da natureza e
frequência dos crimes” (cf. art. 72.º, n.º 1).28
Os departamentos de contencioso do Estado,29 também criados pela Lei n.º 60/98,
com competência em matéria cível e/ou administrativa, cujo objectivo se prendia com a
26
Cf. art. 46.º do EMP. O DCIAP é constituído por um procurador-geral adjunto, que o dirige, e por
procuradores da República, competindo-lhe coordenar a direcção da investigação dos seguintes crimes:
crimes contra a paz e a humanidade; organização terrorista e terrorismo; crimes contra a segurança do
Estado, com excepção dos crimes eleitorais; tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e
precursores, salvo tratando-se de situações de distribuição directa ao consumidor, e associação criminosa
para o tráfico; branqueamento de capitais; corrupção, peculato e participação económica em negócio;
insolvência dolosa; administração danosa em unidade económica do sector público; fraude na obtenção
ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito; infracções económico-financeiras cometidas de forma
organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática; e infracções económico-financeiras de
dimensão internacional ou transnacional (cf. art. 47.º, n.º 3, al. b), do EMP).
27
O EMP criou um DIAP em sede de cada distrito judicial, prevendo-se a possibilidade de criação,
através de portaria do Ministério da Justiça, ouvido o Conselho Superior do Ministério Público, de DIAP
em comarcas de elevado volume processual, ou seja, em comarcas que “registem entradas superiores a
5.000 inquéritos anualmente e em, pelo menos, três dos últimos cinco anos judiciais” (cf. art. 71.º).
Actualmente existem, em Portugal, 4 DIAP, instalados pela Portaria n.º 754/99, de 27 de Agosto.
28
Aos DIAP nas sedes de cada distrito judicial compete dirigir o inquérito e exercer a acção penal por
crimes cometidos na área da comarca, relativamente aos crimes enunciados para o DCIAP (cf. art. 73.º).
29
Nos termos do art. 53.º do EMP, a estes departamentos compete a representação do Estado em juízo, na
defesa dos seus interesses patrimoniais e a preparação, exame e acompanhamento de formas de
composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado. Em matéria administrativa, esta
competência do Ministério Público sofreu algumas alterações, em 2004, com a reforma do contencioso
administrativo. Apesar de a lei de processo vir, com aquela reforma, pela primeira vez, prever
expressamente a representação do Estado pelo Ministério Público, aquela lei restringe a representação aos
processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, prevendo, ainda, por outro
lado, que “as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo
por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito” (art.
11.º, n.º 2, do CPTA), pelo “auditor jurídico ou o responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa
colectiva ou do ministério” (n.º 3).
28
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
prevenção “[d]os possíveis riscos de conflito de deveres ou de interesses e de conferir
agilidade à representação do Estado pelo Ministério Público, na defesa dos seus
interesses privados, quer nas relações com a Administração, quer no que se refere à sua
intervenção junto dos tribunais”, nunca foram efectivamente instalados, continuando a
ser letra morta da lei.
Às procuradorias-gerais distritais, que existem na sede de cada distrito judicial,
compete, entre outras funções, a direcção, coordenação e fiscalização da actividade do
Ministério Público no distrito judicial, emitindo ordens e instruções às quais os
magistrados do Ministério Público devem obediência no exercício das suas funções,
bem como a coordenação da actividade dos órgãos de polícia criminal e a fiscalização
da sua actividade processual (cf. art. 56.º do EMP).
Por último, às procuradorias da República, existentes na comarca sede de cada
círculo judicial, compete a direcção, coordenação e fiscalização da actividade do
Ministério Público na área da respectiva circunscrição territorial (cf. art. 61.º do EMP).
3.3. O Conselho Superior do Ministério Público
A estrutura do Ministério Público inclui o Conselho Superior do Ministério
Público.30 Enquanto o Conselho Superior da Magistratura, para os juízes, é um verdadeiro
órgão de governo da magistratura judicial (autoregulação), o governo do Ministério
Público reparte-se entre o Procurador-Geral da República e o Conselho Superior do
Ministério Público, tendo o primeiro primazia sobre o segundo. Isto deve-se, segundo
Cunha Rodrigues, ao facto de que “sendo o Ministério Público uma magistratura
predominantemente monocrática, isto é, funcionando normalmente por intermédio de
órgãos ou agentes unipessoais, concentra-se na posição do Procurador-Geral da República
a representação do Ministério Público e as atribuições que, pertencendo à ProcuradoriaGeral da República, não se encontram confiadas a outros órgãos” (in Cluny, 1994: 48-49).
Acrescenta, ainda, que a hierarquia existente nesta magistratura “corresponde também a
necessidades impostas pela natureza das funções e por um objectivo de democratização da
administração da justiça” (in Cluny, 1994: 49), regendo-se por estritos critérios legais.
30
Temos igualmente, em Portugal, na estrutura judiciária, o Conselho Superior da Magistratura (para os
juízes), o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (para os magistrados judiciais nestes
tribunais) e o Conselho de Oficiais de Justiça. Para mais informações sobre os diferentes conselhos e
sobre o seu desempenho, ver o trabalho de João Paulo Dias (2001).
29
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Cunha Rodrigues considera, deste modo, que “a tradição portuguesa foi sempre de um
Ministério Público indivisível e policêntrico” (1999a: 357), tratando-se, assim, de “um
modelo com raízes muito antigas, cuja evolução se realizou principalmente segundo as
exigências da justiça e da administração do país” (1999b: 92). Por conseguinte, a
“organização hierárquica do Ministério Público poderá representar-se por um eixo em
que, de um lado, estão os poderes directivos e, do outro, os poderes de gestão e
disciplinares. Os poderes directivos, correspondendo lato sensu a intervenções de carácter
técnico e processual, encontram-se distribuídos por escalões e funcionam segundo uma
estrutura monocrática cujo vértice é o Procurador-Geral da República, não distinguindo a
lei entre poderes directivos genéricos e específicos nem entre instruções ou ordens de
natureza preventiva e a posteriori. Os poderes de gestão e disciplina competem a um
órgão colegial – o Conselho Superior do Ministério Público” (1999a: 305-306).
O âmbito de actuação do Conselho Superior do Ministério Público, perante esta
estrutura organizativa, está limitado, pelas próprias competências do Procurador-Geral
da República, numa espécie de prolongamento ou delegação de atribuições. Destas
atribuições, decorre que, ainda por razões que se prendem com a natureza do cargo, o
Procurador-Geral da República não está sujeito à autoridade do Conselho, algo que se
depreende deste extracto importado da página da Internet da Procuradoria-Geral da
República e que confirma o carácter monocrático do Ministério Público: “as funções
que não se ligam directamente ao exercício da acção disciplinar e à apreciação do
mérito profissional são exercidas pelo Conselho de forma opinativa, remetendo-se para
o Procurador-Geral da República os poderes de decisão” (site da Procuradoria-Geral da
República – www.pgr.pt).
A actual composição deste órgão, após uma sucessão de mudanças ao longo dos
últimos 30 anos, apresenta actualmente três características: 1) a predominância de
magistrados do Ministério Público, face aos membros laicos;31 2) uma forte
representação de membros do Ministério Público a exercer o cargo por inerência,
nomeadamente os quatro procuradores-gerais distritais; 3) uma baixa representatividade
de membros laicos representando os órgãos políticos.
31
Laico refere-se ao facto de não serem magistrados. Normalmente, são juristas ou professores de direito,
com ou sem proximidade a partidos políticos.
30
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Deste modo, e apesar da presença de membros laicos, verificamos a existência de
uma predominância de membros do Ministério Público e uma forte presença das
hierarquias da Procuradoria-Geral da República, podendo traduzir-se numa menor
pluralidade de opiniões e numa diminuição da operacionalidade, funcionando num
verdadeiro regime de auto-governo. A actual composição de 19 membros é a seguinte:
Procurador-Geral
da
República;
quatro
procuradores-gerais
distritais;32
um
Procurador-Geral-Adjunto, dois procuradores e quatro procuradores-adjuntos, eleitos
entre os seus pares; cinco juristas designados pela Assembleia da República; e dois
membros de reconhecido mérito designados pelo Ministro da Justiça.
O funcionamento deste órgão divide-se por duas secções: o Plenário e a Secção
Disciplinar (este de composição mais reduzida, para abordar apenas questões de
natureza disciplinar, quando justificado). As reuniões ordinárias são de periodicidade
bimensal, podendo ser extraordinárias sempre que convocadas pelo Procurador-Geral da
República ou por um mínimo de sete membros. O serviço de inspecções funciona com
magistrados recrutados entre procuradores-gerais adjuntos ou procuradores da
República, com mais de 15 anos serviço e com a última classificação de Muito Bom.
Os membros do Conselho Superior do Ministério Público têm um mandato de três
anos, podendo ser reeleitos uma vez. Os vogais eleitos ou nomeados não magistrados
ficam com o direito a auferir um vencimento correspondente ao cargo de origem, se
público, ou ao de Director-Geral, caso optem por ficar a tempo inteiro.
As competências do Conselho Superior do Ministério Público são as seguintes,
segundo o Estatuto do Ministério Público:
a) nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional,
exercer acção disciplinar, com excepção do Procurador-Geral da República;
b) aprovar o regulamento eleitoral do Conselho, aprovar o regulamento interno
da Procuradoria-Geral da República e proposta de orçamento;
c) deliberar e emitir directivas em matéria de organização interna e de gestão de
quadros;
d) propor ao Procurador-Geral da República directrizes;
d) propor ao Ministério da Justiça, por meio do Procurador-Geral da República,
providências legislativas;
e) conhecer das reclamações previstas na lei;
32
A organização judiciária do território nacional está dividida em quatro distritos judiciais, havendo, por
cada um, um Procurador-Geral Distrital que é o seu responsável máximo.
31
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
f) propor o plano anual de inspecções e sugerir inspecções, sindicâncias e
inquéritos.
Ao contrário do que sucede no caso dos juízes, em que o Conselho Superior de
Magistratura é um verdadeiro órgão de gestão da profissão, o Conselho Superior do
Ministério Público está bastante limitado na sua capacidade de intervenção e gestão,
devido à acção, por um lado, dos poderes detidos pelo Procurador-Geral da República,
e, por outro, pela sua composição limitar, como sucede com os juízes, uma maior
independência das estruturas hierárquicas. Acresce ainda, a estes factores, a grande
autonomia, em termos de gestão e exercício de poder hierárquico, por parte dos
Procuradores-Gerais Distritais, que diminui, igualmente, qualquer capacidade de
intervenção por parte do Conselho. Contudo, tais limitações são, em parte, justificadas
pelas exigências de estruturas hierarquizadas e coordenadas, entre si, para um melhor
exercício das suas competências a diversos níveis de intervenção, com especial destaque
para a área criminal.
4. O acesso à carreira e a formação dos magistrados
O recrutamento dos magistrados do Ministério Público é feito em simultâneo com os
juízes, através de um concurso público de ingresso para o Centro de Estudos Judiciários
(regido actualmente pela Lei n.º 16/98, de 6 de Abril). Esta escola de magistrados iniciou
funções em 1980, rompendo com o anterior modelo de ingresso nas magistraturas. O
concurso é, após a aprovação da Lei n.º 16/98, aberto aos cidadãos de nacionalidade
portuguesa, que tenham concluído a licenciatura em direito há, pelo menos, dois anos. Para
além de ministrar a formação aos futuros magistrados, também realiza acções de formação
a advogados, solicitadores e outros sectores profissionais (Dias, 2004).
As provas de acesso, avaliadas por um júri composto por magistrados, nomeados
pelos conselhos superiores e outras personalidades externas à estrutura judiciária,
designados pelo Ministro da Justiça, compõem-se de três fases: provas escritas, provas
orais e entrevista (com a presença de psicólogos). Quanto à formação ministrada na fase
inicial, após a fase de admissão,33 ela reparte-se por três momentos, com uma duração de
22 meses: 5 meses de formação teórico-prática; 12 meses no estágio de iniciação nos
33
Entram, em média, 150 auditores para tirar o curso de juiz ou magistrado do Ministério Público
32
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
tribunais judiciais (metade do tempo junto de um juiz, metade junto de um magistrado do
Ministério Público); e 5 meses novamente no Centro de Estudos Judiciários, para
consolidação da formação, após os estágios nos tribunais. Só após o término desta fase, os
auditores podem seleccionar, de acordo com hierarquia de lugares, a magistratura que
pretendem ingressar. Posteriormente, são colocados durante 10 meses em regime de
estágio de pré-afectação (com os formadores a serem designados pelos respectivos
Conselhos Superiores), junto da magistratura entretanto escolhida. No final deste período,
são nomeados definitivamente magistrados e colocados, como efectivos, num tribunal.
Nos dois anos seguintes, os magistrados são obrigados a frequentar uma formação
complementar, através de actividades de reflexão sobre problemas actuais, jurídicos e
outros assuntos de relevo para o exercício da função. Posteriormente, o Centro de
Estudos Judiciários oferece, anualmente, uma formação permanente, com programas de
carácter interdisciplinar, de frequência facultativa, para debater problemáticas
relacionadas com as instituições judiciais (Santos, Pedroso e Branco, 2006).
As acções de formação complementar e permanente têm tido, no geral, pouco
êxito, dada a fraca presença de magistrados, em especial das primeiras instâncias.
Embora a complementar tenha um carácter obrigatório, a sua não frequência não impõe
qualquer tipo de sanção nem é alvo de censura. Actualmente, está em preparação uma
reforma da formação, nos vários níveis, ministrada pelo Centro de Estudos Judiciários.
Contudo, os seus contornos ou tendências ainda não são conhecidos.
5. Alguns dados relativos ao Ministério Público e aos Tribunais
A análise da evolução dos recursos humanos nos tribunais judiciais, ao longo da
última década (1993-2003),34 permite-nos afirmar que, de um modo geral, se registou
um forte crescimento. Em seguida, deter-nos-emos com mais detalhe na análise do
comportamento de cada uma das categorias. Em primeiro lugar, e no que concerne aos
magistrados judiciais, percebemos que, apesar do crescimento do número de juízes em
cada categoria profissional, podemos encontrar algumas diferenças. Senão vejamos:
34
Para facilitar a análise dos dados recorremos ao cálculo de números índice, relacionando o valor de
1993 e o de 2003. O objectivo é, assim, facilitar a leitura da evolução no tempo. Para tal escolhemos
como base o ano de 1993.
33
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Quadro 1: Recursos Humanos da Justiça (1993* a 2003)
1993
1994
1995
1996
N.I
N.º
N.I
N.º
1280
100
1344
105
1397
109
1460
114
1515
118
1563
122
59
100
62
105
59
100
68
115
66
112
65
110
Juízes desembargadores
275
100
265
96
256
93
254
92
259
94
265
96
Juízes de direito
946
100
1017
108
1082
114
1138
120
1190
126
1233
130
PRESENTES NOS TRIBUNAIS
1059
100
1095
103
1165
110
1231
116
1267
120
1324
125
MAGISTRADOS DO MP
1002
100
1053
105
1061
106
1076
107
1087
108
1115
111
Procuradores-GeraisAdjuntos
107
100
113
106
116
108
116
108
124
116
135
126
Procuradores da República
153
100
175
114
177
116
191
125
197
129
205
134
Procuradores Adjuntos
742
100
765
103
768
104
769
104
766
103
775
104
PRESENTES NOS TRIBUNAIS
850
100
922
108
942
111
939
110
964
113
982
116
6194
100
6846
111
6900
Juízes conselheiros
FUNCIONÁRIOS JUDICIAIS
* N.I - NÚMEROS ÍNDICE: 1993=100
7185
N.I
116
N.º
7400
N.I
N.º
7605
119
FONTE: GABINETE DE POLÍTICA LEGISLATIVA E PLANEAMENTO
1999
N.º
MAGISTRADOS JUDICIAIS
111
N.º
1998
N.º
MAGISTRADOS JUDICIAIS
N.I
1997
2000
N.I
N.º
2001
N.I
N.º
2002
N.I
N.º
2003
N.I
N.º
N.I
1599
125
1624
127
1690
132
1678
131
1752
137
73
124
83
141
76
129
72
122
74
125
322
117
312
113
317
115
320
116
310
113
Juízes de direito
1204
127
1229
130
1297
137
1286
136
1368
145
PRESENTES NOS TRIBUNAIS
1382
131
1368
129
1440
136
1348
127
1671
158
MAGISTRADOS DO MP
1138
114
1180
118
1227
122
1264
126
1288
129
Procuradores-GeraisAdjuntos
155
145
161
150
162
151
161
150
165
154
Procuradores da República
205
134
333
218
354
231
358
234
368
241
Procuradores Adjuntos
778
105
686
92
711
95,8
745
100
755
102
PRESENTES NOS TRIBUNAIS
999
118
1068
126
1070
126
1100
129
1106
130
8213
133
9040
146
9446
153
9299
150
9211
149
Juízes conselheiros
Juízes desembargadores
FUNCIONÁRIOS JUDICIAIS
* N.I - NÚMEROS ÍNDICE: 1993=100
FONTE: GABINETE DE POLÍTICA LEGISLATIVA E PLANEAMENTO
1) nos Juízes Conselheiros o aumento registado foi na ordem dos 25%; contudo o valor
registado em 2003 é muito idêntico ao de 1999, o que significa que este crescimento do
34
N.I
123
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
número de juízes nesta categoria profissional não foi homogéneo, antes tendo sido
caracterizado por fortes oscilações; 2) relativamente aos Juízes Desembargadores o
aumento foi mais reduzido que na categoria anterior (13%), e verificou-se um
comportamento inverso ao dos Juízes Conselheiros, na medida em que somente após
1999 se verificaram aumentos; 3) por último, e no que se refere aos Juízes de Direito,
regista-se um aumento de 45%. Este aumento foi gradual, tendo apenas sido quebrado
em 1999, com um ligeiro decréscimo. De acrescentar, ainda, que entre os anos de 2002
e 2003 se assiste a um forte aumento do número de juízes (+9%).
A análise da evolução do número de Magistrados do Ministério Público demonstra
que o crescimento apresentado, apesar de gradual, aconteceu de forma bastante lenta –
29% nos 10 anos em análise. Observando cada uma das categorias profissionais
verificamos, por um lado, que o número de Procuradores da República cresceu 141%, ou
seja, mais do que duplicaram. Pelo contrário, a categoria dos Procuradores Adjuntos foi a
que registou o crescimento mais reduzido. De salientar, contudo, o ano de 2000, que se
caracteriza por uma diminuição de -8%. Destaque, ainda, para o facto de no ano de 2002
se verificar o mesmo valor de 1993. Finalmente, os Procuradores-Gerais-Adjuntos,
apesar da evolução positiva registada (+54%), demarcam-se pelos decréscimos registados
nos anos de 2001 e 2002. Relativamente à presença dos magistrados do Ministério
Público nos tribunais podemos afirmar que, ao longo dos anos em análise, se assistiu a um
aumento, embora lento, destacando-se o ano de 2000 como o ano em que se
ultrapassaram os 1000 magistrados do Ministério Público nos tribunais.
Por último, os Funcionários Judiciais registaram um crescimento na ordem dos 49%,
mais notório e significativo após 1999. No entanto, em 2003 denota-se uma inversão desta
tendência, tendo-se passado de 9299 funcionários em 2002, para 9211 em 2003.
Passando à análise do movimento processual nos tribunais judiciais de 1.ª instância,
percebemos, de um modo geral, que o número de processos pendentes duplicou,
apresentando um crescimento de 104%, apesar da diminuição registada em 1995. Por
outro lado, no que diz respeito ao número de processos entrados, constata-se, ao longo da
década em análise, uma diminuição, na ordem dos -7%. A evolução do número de
processos apresenta um comportamento não regular, mas apesar da diminuição global, há
um notório crescimento do número de processos entrados entre 2001 e 2002.
35
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
Quadro 2: Processos nos Tribunais Judiciais de 1.ª Instância (1993* a 2003)
PENDENTES
ENTRADOS
FINDOS
1993
652095
100
861796
100
768925
100
1994
713234
109
868081
101
938135
122
1995
632027
97
614234
71
503130
65
1996
741141
114
649385
75
523611
68
1997
874765
134
730505
85
556658
72
1998
1047963
161
705951
82
592595
77
1999
1151866
177
709426
82
674607
88
2000
1176428
180
697401
81
668734
87
2001
1196942
184
682800
79
619540
81
2002
1250236
192
738882
86
657889
86
2003
1328420
204
802202
93
700191
91
FONTE: GABINETE DE POLÍTICA LEGISLATIVA E PLANEAMENTO
Por fim, uma nota relativamente ao número de processos findos. Ao longo dos 10
anos registou-se uma diminuição de -9%, particularmente acentuada em 1995 (-35%).
Apesar do volume de processos findos ser inferior ao registado em 1993, foi crescendo
até 1999. Contudo, somente no ano de 2003 se assiste a um crescimento do número de
processos findos, embora o valor ainda fique aquém do atingido em 1993.
Esta análise permite fazer uma ligeira “radiografia” do sistema, em termos dos
meios disponíveis, pouco podendo explicar o agravamento do volume processual
registado nos últimos anos, com a excepção da afirmação de que o aumento dos recursos
humanos pode não ter sido suficiente para combater a actual pendência processual.
6. Considerações finais
O Ministério Público em Portugal, ao contrário do que é corrente afirmar-se,
alterou bastante as suas características ao longo dos tempos. Ainda que mantendo uma
matriz de defensor da legalidade, tal como antes defendia os interesses do Rei, a
diversidade de funções que foi assumindo conferiu-lhe uma importância bastante grande
na “arquitectura” do sistema judicial e como garante da legalidade e dos direitos dos
cidadãos. Apesar de, no período do Estado Novo, o Ministério Público ter seguido as
“instruções” da ditadura, em especial nas questões sociais e políticas relevantes, a
36
O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
transição para a democracia levou, não a uma diminuição de competências, mas a um
crescendo de competências.
A partir do período revolucionário, de 1974, o papel do Ministério Público foi
crescendo, quer no âmbito das competências, quer na autonomia no desempenho
profissional. Verificou-se, igualmente, uma preocupação em modernizar a formação dos
magistrados, os serviços e a própria organização interna de uma magistratura que, em
função das suas competências, tem uma estrutura hierarquizada, ainda que
funcionalmente autónoma.
O leque de competências é diversificado, ainda que se centre, em termos de
volume processual e notoriedade mediática, na área criminal, fonte geradora de muitas
polémicas. É na investigação e acusação das matérias penais que o Ministério Público
desempenha as suas principais funções e onde existem mais estruturas especializadas de
apoio e maiores recursos humanos e materiais afectos. Contudo, a sua acção não se
limita à área penal, dado que as suas funções nas áreas laboral, de família e menores,
administrativa, dos interesses difusos (ambiente, consumo, urbanismo, etc.) e na defesa
dos mais fracos e incapazes têm um papel fundamental na defesa da legalidade e na
promoção do acesso dos cidadãos ao direito e à justiça.
Apesar das dificuldades sentidas, devido ao volume processual, à crescente
complexidade dos assuntos que chegam aos tribunais e das limitações em termos de
recursos humanos, materiais e financeiros, é hoje inquestionável o seu papel no seio do
poder judicial português. O equilíbrio no interior do poder judicial, conseguido ao longo
dos últimos 30 anos, não só em função do paralelismo profissional e estatutário com os
juízes, tem permitido sedimentar uma prática profissional coerente e estruturada.
Os crescentes desafios emergentes na nossa sociedade global, nas diversas frentes
jurídicas, originam uma forte pressão sobre os magistrados do Ministério Público, que
nem sempre tem sido bem gerida ou sido alvo de uma resposta capaz. A resposta que
conseguir dar, em termos de desempenho, será, assim, um elemento crucial para
determinar a evolução das competências e das formas de organização. A promoção dos
direitos de cidadania depende, em parte, do seu exercício profissional. Por isso, um
Ministério Público eficaz, competente e célere é um elemento estruturante do poder
judicial e do próprio sistema democrático.
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O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?
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