Tutela penal do meio ambiente: a importância dos tipos penais de perigo na difícil tarefa de evitar o dano ambiental. Por Fernando Oliva Palma RESUMO: O presente artigo tem o condão de demonstrar o relevante papel desempenhado pelo Direito Penal na tutela dos bens jurídicos ambientais. Demonstrar-se-á que os tipos penais de perigo são extremamente eficientes na concretização dos princípios da precaução e da prevenção e na consequente proteção do meio ambiente, em especial os tipos penais de perigo abstrato. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal Ambiental. Crimes de perigo. Princípios da precaução e da prevenção. SUMÁRIO: Introdução. 1. O papel do Direito Penal no Estado atual. 2. Bem jurídico penalmente relevante. 3. A atuação do Direito Penal na proteção do meio ambiente. 3.1. Princípio da precaução e da prevenção na tutela penal ambiental. 3.2. Crimes de perigo. Conclusões. Introdução O Direito é uma ciência que está em constante adaptação às modificações experimentadas pela sociedade. Os valores eleitos pelos membros de uma comunidade como essenciais à sua estrutura influenciam diretamente na maneira 1 como as normas e os dogmas do Direito serão construídos e desenvolvidos – sempre com vistas à garantia dos valores fundamentais à sociedade. O escopo do presente trabalho é demonstrar que o meio ambiente, bem jurídico essencial à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, possui uma peculiaridade que requer atenção especial do legislador: a grande dificuldade – e, por vezes, a impossibilidade – de reparação do dano sofrido. Em razão disso, o Direito Penal, pela sua grande capacidade de intimidação e de correção das atuações humanas, é um instrumento de extrema relevância na árdua tarefa de proteger o meio ambiente dos ataques que rotineiramente sofre do ser humano. Ser humano que, muitas vezes hipnotizado pela desenfreada busca por lucro e riqueza, objetivos típicos do capitalismo moderno, acaba esquecendo-se ser o principal prejudicado com a degradação causada. Buscaremos, assim, identificar as principais razões da recorrência ao Direito Penal para a tutela dos bens jurídicos ambientais, bem como os meios de atuação da norma criminal nesse campo. Com isso, demonstrar-se-á a direta correlação do Direito Penal Ambiental com os princípios da precaução e da prevenção, diretriz mestra do meio ambiente. Para tanto, faremos, em primeiro lugar, uma rápida abordagem sobre a função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, destacando o papel da dignidade da pessoa humana na legitimação desse ramo do Direito. Logo após, procuraremos definir os bens jurídicos que gozam de proteção penal, demonstrando a legitimidade das normas que incriminam comportamentos ofensivos ao meio ambiente. Por fim, verificar-se-á que a Lei nº 9.605 de 1998, que tipificou os crimes praticados contra o meio ambiente, utilizou-se de ferramentas criminais não muito comuns no nosso ordenamento. Tendo como objetivo evitar o dano ao meio ambiente, a referida Lei, através de tipos penais de perigo, buscou, em vários de seus 2 artigos, a repreensão do agente pela mera prática de uma conduta perigosa à integridade ambiental, não aguardando pela ocorrência de um resultado lesivo para a sua punição. 1. O papel do Direito Penal no Estado atual Inicialmente, para bem compreender o porquê da utilização da máquina penal para a proteção do meio ambiente, imprescindível seja feita uma criteriosa análise acerca da função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito vigente. O papel primordial do Direito Criminal é preservar o funcionamento do modelo social ao qual pertence, o que o faz através da mantença das expectativas de convivência dos cidadãos. A lei penal, para ser legítima, deve ser criada de modo a assegurar os valores fundamentais de determinado Estado e, assim, manter a sua estabilidade política e social. A missão do Direito Penal, pois, é garantir a identidade da sociedade em todos os seus aspectos.1 Os institutos provenientes do Direito Penal são construídos com a finalidade de conservar a solidez da organização social vigente. Dessa forma, não se trata de um sistema fechado, dotado de conceitos e dogmas sem qualquer influência políticosocial. Os seus institutos estão diretamente vinculados a interesses políticos e sociais preponderantes numa comunidade, os quais variam conforme a conjuntura histórica do momento. Isso não significa que o Direito Penal é um sistema aberto, dependente unicamente de interesses políticos externos; ele é uma ciência autônoma e, como tal, possui características próprias. Todavia, ele é direcionado para proteger os valores essenciais de determinada organização coletiva. 1 CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2001. p. 108. 3 A utilização do Direito Penal como instrumento funcional de estabilização político-social está sujeita à organização política vigente. A legitimidade dos seus institutos, portanto, depende da sua capacidade para manter o funcionamento do modelo social em questão. Por ser uma ferramenta de manutenção da ordem em vigor, deve resguardar os preceitos básicos do modelo sobre o qual seus institutos serão sustentados. Não pode criar institutos contrários às premissas fundamentais do Estado; o seu conteúdo material deve estar inclinado para a confirmação dos princípios basilares do Estado do qual faz parte. O modelo de Estado atual no Brasil, denominado Estado Democrático de Direito, tem como valor supremo a dignidade da pessoa humana2. A Constituição Federal, lei fundamental e suprema do Estado, contém as normas referentes a toda estruturação da comunidade, desde diretrizes políticas até direitos e garantias dos cidadãos.3 Todas essas normas, obviamente, devem estar sistematicamente organizadas de maneira a garantir a preservação da dignidade da pessoa humana, sob pena de subversão do sistema constitucional. A dignidade da pessoa humana consiste na autodeterminação do homem, no direito que todo ser humano tem a um livre desenvolvimento numa sociedade caracterizada pela diversidade de culturas e valores. É um atributo inerente a todos os seres humanos: pelo simples fato de ser humana, a pessoa merece todo o respeito, independentemente da sua origem, raça, sexo, idade, condição econômico social ou estado civil. Nas palavras de Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A 2 Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 67. 3 4 dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.4 Todos os princípios e normas do ordenamento jurídico pátrio, portanto, devem respeitar a dignidade da pessoa humana. Ocorre que o Direito Penal, por vezes, acaba por atacar diretamente a dignidade humana, como, por exemplo, nas penas restritivas de liberdade (prisão). Por esta razão, ou seja, pelo sério prejuízo que a cominação da pena pode causar ao indivíduo, o Direito Penal só vai poder atuar para inibir condutas que direta ou indiretamente se mostrem ameaçadoras à integridade da dignidade humana. Pierpaolo Cruz Bottini explana com maestria a função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, conforme se pode verificar do seguinte excerto da sua obra: Desta forma, a utilização legítima do direito penal, no modelo de Estado em vigor, só se faz possível diante de condutas que atentem contra a dignidade humana ou contra os bens e valores que permitam sua existência material. Comportamentos que não afetem esta dignidade não oferecem perigo à funcionalidade do sistema Democrático de Direito, não ofende as expectativas de uma convivência plural e, portanto, não devem ser objeto de repressão penal.5 4 Id. Ibidem, p. 21-22. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 176. 5 5 A construção do Direito Penal, destarte, terá como norte a constante asseguração da dignidade da pessoa humana, em duas perspectivas. Uma, já mencionada, diz respeito à punição somente daquelas condutas que afetarem bens jurídicos indispensáveis à autodeterminação do indivíduo, sejam elas perigosas ou danosas. A segunda, não menos importante, consubstancia-se na impossibilidade de cominação de penas desproporcionais, desiguais ou imprevisíveis aos agentes. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o Direito Penal só poderá ser acionado para banir comportamentos prejudiciais à dignidade de algum ou de alguns indivíduos, deverá também evitar causar prejuízo à dignidade do indivíduo provocador da conduta.6 2. Bem jurídico penalmente relevante A dignidade humana de cada indivíduo, que compreende o conjunto de condições necessárias para a sua autodeterminação, concretizar-se-á mediante a tutela de todos aqueles bens e interesses que de alguma forma lhe causarem certa influência. A legitimidade e os limites de atuação do Direito Penal, assim, estarão atrelados à necessidade de garantir a existência segura de bens jurídicos essenciais à conservação da dignidade humana. Caberá ao Direito Penal, pois, atuar sobre os bens jurídicos que de alguma forma sirvam para a materialização da dignidade humana, de modo que tais bens, obviamente, estão intimamente ligados a este valor supremo.7 Uma primeira pergunta que pode exsurgir desta definição diz respeito à necessidade de tais bens jurídicos estarem ou não expressamente previstos na Constituição. A maior parte da doutrina entende que não. 6 7 Id. Ibidem, p. 177. Id. Ibidem, p. 178. 6 Ângelo Roberto Ilha da Silva acredita que a Constituição Federal não apresentará um rol exaustivo dos bens passíveis de intervenção penal. De acordo com o autor brasileiro, não obstante alguns dos bens estejam presentes na Carta Maior, muitos podem ser deduzidos mediante uma teleológica interpretação constitucional, sem que nela estejam expressamente estancados. Nesse sentido, afirma que os bens jurídicos que forem necessários para resguardar valores que a ordem constitucional considera como fundamentais merecerão o status de bem jurídico-penal. O autor considera tais bens como instrumentos de proteção de bens fundamentais previstos constitucionalmente, e por isso merecem atenção especial.8 José Francisco de Faria Costa compartilha deste entendimento, afirmando categoricamente que: Assim, temos para nós que a Constituição desenvolve, neste particular como em tantos outros, uma função sistemática e uma função de orientação que ninguém ousa contestar; mas daí a admitir, como o faz alguma doutrina italiana, que só é legítima a incriminação de comportamentos lesivos de bens jurídicos com relevo constitucional, é coisa que consideramos como manifestamente errada. Seria atribuir, sem fundamento, não só uma natureza estática aos bens jurídicos, como também considerar a Constituição como o seu catálogo mais representativo ou mesmo único.9 Em que pese os bens jurídicos de relevância penal não necessitem estar previstos na Constituição, a maioria dos autores entende que eles devem estar de acordo com as normas constitucionais. Em outras palavras, os bens jurídicos não podem afrontar a Constituição, referencial último dos valores fundamentais de uma sociedade. Ângelo Roberto Ilha da Silva leciona sobre a matéria: 8 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 86-88. 9 FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal. Coimbra: Editora Coimbra, 2000. p. 198-199. 7 Sob tal quadrante podemos afirmar que os bens jurídicopenais deverão estar pressupostos na Constituição, quando expressamente consagrados (de forma positiva e impositiva), ou dela deduzidos mediante uma análise sistemática e teleológica, ou seja, excluindo-se as vedações impostas a certas incriminações, explícitas ou implícitas, e averiguando-se se a tutela de determinado bem não se põe em conflito com os valores que a Carta Política visa a afirmar e resguardar, ou melhor, contribui-se para uma implementação efetiva dos valores constitucionais.10 Luiz Regis Prado também aborda este tema: O legislador deve sempre basear-se na Constituição e nos valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, tendo em conta o caráter limitativo da tutela penal. Aliás, o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo Direito Penal como ante o Direito Penal. Encontram-se, portanto, na norma constitucional as pautas substanciais para a incriminação ou não de condutas.11 Por outro lado, dizer que os bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal devem estar de acordo com os preceitos constitucionais (mesmo que não expressos na referida Carta) não significa dizer, igualmente, que todos os bens jurídicos nela constantes mereçam a atuação do ius puniendi. Conforme referido anteriormente, somente aqueles bens jurídicos aptos a garantir a dignidade humana legitimarão a sanção estatal. Dessa maneira, bens jurídicos constitucionais que não visem a garantia deste valor fundamental não motivarão o exercício do Direito Penal. 10 Op. cit., p. 88. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 106. 11 8 Feitas essas considerações, pode-se concluir que bens jurídicos individuais como a vida, a integridade física, a saúde e a liberdade são inegavelmente passíveis de tutela penal, vez que, além de estar em consonância com as normas constitucionais, o ferimento a qualquer deles impede o ser humano de gozar da sua plena dignidade. Todavia, a questão torna-se um pouco mais obscura quando se têm em vista bens jurídicos difusos, como, por exemplo, o meio ambiente, previsto na Constituição federal em seu artigo 225. É possível que esse bem, cujos titulares muitas vezes não podem ser individualmente identificados, seja protegido pela norma penal? Pierpaolo Cruz Bottini acredita que para responder a este questionamento é preciso ter em mente que o desenvolvimento do indivíduo não ocorre egoisticamente. A construção de cada ser humano decorre das mútuas relações existentes entre todos, de maneira que o compartilhamento de bens entre os cidadãos é consequência inevitável. Em razão disso, a supressão do bem jurídico meio ambiente, mediante a sua constante degradação, certamente prejudicaria o desenvolvimento de cada cidadão. Sendo assim, a preservação da dignidade de cada um depende, sim, da preservação ambiental.12 Importante destacar que a própria Constituição Federal de 1988, no § 3º do artigo 225, prevê expressamente a possibilidade de utilização de sanções penais para punir condutas lesivas ao meio ambiente, verbis: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações (...) § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, 12 BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op. cit., p. 182-183. 9 independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (grifou-se) Em síntese, o Direito Penal será um importante meio de coação de condutas que de alguma maneira venham a ofender o meio ambiente, objetivando, com isso, mantê-lo equilibrado e adequado para que o homem possa se autodeterminar e se desenvolver. Assim, ao fim e ao cabo, estar-se-á garantindo a preservação da dignidade da pessoa humana. 3. Atuação do Direito Penal na proteção ao meio ambiente 3.1. Princípio da precaução e da prevenção na tutela penal ambiental O dano ocasionado ao meio ambiente, na maior parte das vezes, não é passível de uma eficiente reparação. A infungibilidade de muitos dos seus elementos, bem como a grande extensão do impacto ambiental torna a lesão ao meio ambiente praticamente irreversível. O reflorestamento de uma área desmatada ou a descontaminação de um rio poluído dificilmente é capaz de restabelecer o status quo ante do local danificado. O impacto gerado sobre o meio ambiente não se limita à esfera individual do bem jurídico atingido, afetando o equilíbrio ecológico da região como um todo, de modo que as suas características primitivas dificilmente são recuperadas. Em virtude dessa peculiaridade, sobressaem-se os princípios da precaução e da prevenção. Precaver ou prevenir o dano acaba sendo muito mais válido do que intentar repará-lo depois de já concretizado, porquanto, como dito, a recomposição do bem lesado às vezes não é possível e, quando o é, o estrago pode tomar proporções que abranjam bens jurídicos aparentemente alheios à situação. 10 É exatamente por esta razão que a Lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) utiliza-se essencialmente de normas penais que visam a proteção do meio ambiente antes da configuração do dano, a fim de evitar a lesão ao patrimônio ambiental. A mera colocação do bem jurídico em perigo é, em grande parte dos casos, suficiente para atrair a atuação da norma criminal. O Direito Penal Ambiental, portanto, utilizando-se dos tipos de perigo, é uma clara manifestação dos princípios da precaução e da prevenção, sendo um importante instrumento de proteção ao meio ambiente13. 3.2. Crimes de perigo Os crimes de perigo buscam evitar a ocorrência do dano, criminalizando-se a conduta por considerá-la perigosa à integridade do bem jurídico protegido. Antecipase, assim, a incidência da norma penal: ao invés de se aguardar o resultado lesivo para só então punir o agente, prefere-se sancionar a mera ameaça à lesão, garantindo-se a segurança e a integridade do bem jurídico de maneira mais efetiva. Dessa forma, enquanto os crimes de dano são aqueles cuja consumação depende da efetiva lesão de um bem ou interesse jurídico, os crimes de perigo consumam-se com a probabilidade de lesão ao bem ou ao interesse. Não há destruição nem diminuição do bem-interesse penalmente protegido; há, sim, turbação ou ameaça à sua existência ou segurança, com uma relevante probabilidade de que ele venha a ser danificado. São duas as espécies de crime de perigo constantes do ordenamento pátrio: crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. 13 FREITAS, Vladimir Passos de e FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 38-39. 11 Os crimes de perigo concreto são aqueles em que o tipo penal requer a verificação efetiva do perigo ao bem jurídico tutelado. Em outras palavras, o perigo constitui elemento essencial do tipo. Isso não significa, todavia, que o dispositivo tenha que fazer menção expressa à palavra perigo. Pode vir acompanhado de outra locução, ou até mesmo sem uma referência equivalente, bastando que o sentido da norma dê conta da necessidade de constatar a existência de um perigo real na situação fática analisada. Assim, examinando o caso concreto, o julgador deverá averiguar se a conduta praticada pelo agente foi realmente capaz de criar uma real situação de perigo de lesão ao bem jurídico protegido pela norma. Os crimes de perigo abstrato, por sua vez, são aqueles em que o perigo vem presumido na conduta narrada no tipo penal. Presume-se que determinadas condutas são perigosas a bens jurídicos fundamentais à sociedade, punindo-as sem a necessidade de se comprovar a existência de perigo no caso concreto. Basta, para a configuração do crime, que a conduta praticada pelo agente esteja em conformidade com a descrição normativa. Dessa forma, o perigo é analisado no momento de criação da norma, e não no caso concreto, diferentemente dos crimes de perigo concreto. Relativamente aos crimes ambientais, a Lei nº 9.605/98 recepcionou ambas as espécies delitivas. Vejamos. O artigo 54 da referida lei, que trata do crime de poluição, é um exemplo manifesto de utilização de tipo penal de perigo concreto para proteger o meio ambiente. Assim dispõe o artigo mencionado: Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Se o crime é culposo: 12 Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) anos, e multa. § 2º Se o crime: I – torna uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II – causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das área afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III – causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV – dificultar ou impedir o uso público das praias; V – ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. § 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. Neste dispositivo, a lei requer expressamente a criação de um ambiente de periculosidade (“em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos”), decorrente do comportamento delituoso, não bastando a mera realização da conduta (“causar poluição de qualquer natureza”) para a sua incriminação. Assim, caberá ao julgador, no caso concreto, verificar se a poluição causada pelo agente efetivamente criou uma situação real de perigo ao meio ambiente, caso em que poderá se sujeitar a até 4 (quatro) anos de reclusão. Os tipos penais de perigo concreto, portanto, requerem uma profunda dilação probatória – especialmente pericial –, a fim de que reste inequivocamente demonstrada a periculosidade do comportamento em questão. Eis o grande empecilho 13 para a tipificação das condutas enquadradas nessas espécies delitivas: a comprovação de que o ato praticado possui condições reais de lesar o meio ambiente, muito embora não seja necessário o advento da lesão para a sua repressão. Os tipos de perigo abstrato, então, acabam sendo mais eficientes na proteção do meio ambiente, vez que dispensam a produção de prova para a verificação do grau de perigo da conduta praticada. Por este motivo, o legislador deu um maior espaço a essa espécie delitiva dentro da Lei dos Crimes Ambientais, criminalizando atos contrários às imposições do Poder Público, especialmente no que concerne ao licenciamento ambiental. Os artigos 29, 39 e 55 da mesma lei são manifestos exemplos de crimes de perigo abstrato. Atente-se para a redação dos referidos dispositivos: Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa. [...] Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem deixa 14 de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente. O objetivo dessas normas é evitar que o indivíduo, ao caçar ou ao cortar árvores em determinados locais, bem como pesquisar, lavrar ou extrair recursos minerais venha a acarretar um irreparável prejuízo ao meio ambiente no local. Em razão disso, o Poder Público, no exercício do poder de polícia, permite a prática de tais atividades somente mediante a concessão de licenças, estipulando rigidamente os seus limites para evitar possíveis danos ao meio ambiente (como a exterminação de uma espécie animal em extinção, no primeiro caso, por exemplo). Assim, presume-se que o indivíduo que caça, extrai minerais ou corta árvores em locais de preservação sem a devida permissão do Poder Público está pondo em risco, em perigo os bens jurídicos protegidos pelas normas. É uma presunção de perigo aferida pelo legislador com base na experiência, já que na maioria das vezes em que há desrespeito a esses regramentos o meio ambiente acaba sendo danificado. Estes são alguns dos casos de crimes de perigo abstrato tipificados na Lei dos Crimes Ambientais. Não se exige que, no caso concreto, seja constatada uma situação real de perigo ao meio ambiente. Daí porque a desnecessidade de produção de provas para incriminar o ofensor: a mera prática da conduta descrita nos tipos é suficiente para a sua punição, a qual poderá, no segundo caso, ser de até três anos de detenção. Conclusões Através do desenvolvimento do presente trabalho pudemos concluir que os crimes de perigo são fundamentais para a salvaguarda do meio ambiente, bem jurídico fundamental ao ser humano. Configuram, portanto, a categoria delitiva mais eficiente 15 na concretização dos princípios da prevenção e da precaução, sem os quais a tutela jurídica penal ambiental não faria qualquer sentido. Os tipos penais de perigo concreto, em verdade, são de aplicação um pouco mais restrita, uma vez que, como visto, dependem de uma prova muito difícil – e, na maior parte das vezes, demorada – de ser produzida. Sendo assim, a função elementar dos tipos penais de perigo no âmbito do Direito Ambiental acaba sendo melhor desempenhada pelos tipos de perigo abstrato, eis que autorizam a cominação de penas com a simples prática de condutas descritas nos dispositivos legais, independentemente da sua real periculosidade. A mera inobservância de um regramento administrativo, como a necessidade de licença para realizar certos atos, é suficiente para que o infrator seja legitimamente punido. Dessa forma, o indivíduo que agir em detrimento do meio ambiente sem atender às diretrizes impostas pelo Poder Público poderá ser responsabilizado não apenas na esfera cível, mas também na criminal. E, tendo em vista a grande dificuldade de autoconscientização do homem, não há como negar que o seu receio em sofrer uma intervenção penal acaba sendo essencial para a garantia de segurança do bem jurídico ambiental. Curiosamente, uma vez protegido esse bem precípuo, o maior beneficiado acaba sendo o próprio ser humano. Referências Bibliográficas BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2011. BRASIL. Lei dos Crimes Ambientais. Disponível em: 16 <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm>. Acesso em: 26 e 27 de agosto de 2011. CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2001. FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal. Coimbra: Editora Coimbra, 2000. FREITAS, Vladimir Passos de e FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Fonte: PALMA, Fernando Oliva. “Tutela Penal do Meio Ambiente: a Importância dos Tipos Penais de Perigo na Difícil Tarefa de Evitar o Dano Ambiental”. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, nº 39, dez-jan. 2012, p. 33-45. 17